"SÃO QUASE TODOS PRETOS": COTIDIANO E EXPERIÊNCIA DA CLASSE DE TRABALHADORA EM MACEIÓ PÓS ABOLIÇÃO - Sandra Sena
“São quase todos pretos” cotidiano e experiência da classe de trabalhadora em Maceió pós abolição.pdf
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO
SANDRA CATARINA DE SENA
“SÃO QUASE TODOS PRETOS”:
COTIDIANO E EXPERIÊNCIA DA CLASSE DE TRABALHADORA EM MACEIÓ
PÓS ABOLIÇÃO
MACEIÓ
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO
SANDRA CATARINA DE SENA
“SÃO QUASE TODOS PRETOS”:
COTIDIANO E EXPERIÊNCIA DA CLASSE DE TRABALHADORA EM MACEIÓ
PÓS ABOLIÇÃO
Dissertação entregue ao Programa
de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Alagoas
como requisito para obtenção do
título de mestre.
Orientadora: Profª Dra. Ana Paula
Palamartchuk
MACEIÓ
2019
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecário: Marcelino de Carvalho
S474s
Sena, Sandra Catarina de.
“São quase todos pretos” : cotidiano e experiência da classe de trabalhadora
em Maceió pós abolição / Sandra Catarina de Sena. – 2019.
88 f. : il. color.
Orientadora: Ana Paula Palamartchuk.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Alagoas.
Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes. Programa de Pós-Graduação em
História. Maceió, 2019.
Bibliografia: f. 79-81.
Anexos: f. 86-88.
1. Brasil - História - Abolição da escravidão, 1888. 2. Trabalhadores - Maceió
(AL) - História. I. Título.
CDU: 94(813.5).063
Às trabalhadoras e trabalhadores
Negros, indígenas e pobres do Brasil
Em memória de minha avó,
Dona Monica.
Marielle Franco, presente!
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos trabalhadores e trabalhadoras de Alagoas, que arduamente
sobrevivem e resistem às desigualdades sociais nas terras de Zumbi, Dandara e Tia Marcelina.
Na mesma intensidade, agradeço aos meus ancestrais, que enegrecem e encorajam minha
trajetória na luta por direitos e liberdade.
À minha mãe (que também é meu pai), que garantiu à nossa família uma vida digna, de cabeça
erguida e sem medo do futuro. Às minhas irmãs e meu irmão, que constroem seus destinos,
arriscando suas fichas em busca de um mundo que lhes proporcione oportunidades.
Agradeço à minha orientadora, Ana Paula Palamartchuk, que além de professora, é uma amiga
e companheira, da qual tenho muitíssima admiração, carinho e respeito.
Todo respeito, carinho e gratidão à Luciano Farias, meu companheiro de luta, de sorrisos e
“aperreios”, de amor e coragem, de café e fumaça, de confiança e determinação, de ousadia e
esperança. Obrigada pelos dias e noites de leituras, produções de texto, revisões e muito amor.
À Renata Gusmão, Jessica Evellyn e Gabriela Dias, que muito mais que “colegas” de curso e
profissão, tornaram-se grandes amigas e companheiras, das quais tenho muitíssimo orgulho de
estar lado a lado. Com certeza, sem elas esse o mestrado teria sido muito mais difícil do que
realmente foi. Agradeço pelas companhias, acolhimento, cafés, debates e trocas de experiência.
Com muitíssimo apreço, toda gratidão as professoras Irinéia Franco e Flávia Carvalho e aos
professores Robertinho, Aruã Lima, Jeferson Santos e Elias Veras que contribuíram
imensamente para meu desenvolvimento pessoal e profissional.
Aos amigos e amigas, Gustavo Marinho, Raíssa Bandeira, Yara Costa, Felipe Cirino, Thayse
Melo, Camila Maria, Mayk, Erica Rocha, Andrei Stefani, Bruna Moraes, Mary Alves, Gilmar
Rocha, Laís Camêlo, Pedro Pércia, Thati Nicácio, Débora Alves, Rafael Miranda, Emissário,
Diego Vasconcelos, Ana Antunes, Emanuelle Vanderlei, Júlia Araújo, Magão, Mari Lima, Fabio
Crystian, Ellen Apolinário, Roger Alexandre, Camila Melo, Felipe Santos, Karol Moares,
Gustavo Rolo, Ju Krisan, Tayná Barbosa, Natália Julieta, Maurício, Eduarda Rocha, Dayane
Jatobá, Sergio Santos, Ariane Regina, Alexander Moreira, Luana Verçulino, Camila Dantas, Isa
Mendonça, Roberta Reis, Mirelle Camargo, por estarem sempre por perto para as conversas, a
praia, a cerveja, o abraço e o carinho. Essas pessoas são fundamentais para minha negritude
ousada que sonha reconstruir esse mundão.
Agradeço também, ao amigo Levy Felix, com quem pude compartilhar experiências, teorias e
os “desacertos” do inglês.
Obrigada ao INEG (Instituto do Negro de Alagoas), pelo encorajamento e mãos dadas na luta
contra o racismo, que é a luta de nossas vidas.
Agradeço à Soso e Danilo, pelo acolhimento, respeito e confiança, pelas risadas, abraços e
afetos. Em especial à Laurinha, que cheia amor, força antirracista e olhinhos brilhantes me
fazem ter esperanças no futuro.
Cheia de carinho, agradeço à todas companheiras da Marcha Mundial das Mulheres, que
cotidianamente lutam por uma sociedade feminista, antirracista, antiproibicionista,
antilgbtfóbica e anticapitalista. “Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres”.
Às minhas companheiras e companheiros do Partido dos Trabalhadores (PT), da Frente Brasil
Popular, MST e de toda militância de esquerda, que sonha e resiste por um Brasil melhor e
justo. Em especial, Lenilda Lima, que cheia de afeto, sabedoria e serenidade, nos dá lições de
vida, resistência e determinação todos os dias.
À Universidade Federal de Alagoas (UFAL), que através das lutas e conquistas de estudantes,
trabalhadores e trabalhadoras, me possibilitram a garantia de uma formação acadêmica pública
e gratuita.
Agradeço a Ivanilda, Jane e Lúcia (in memorian), que garantem diariamente o funcionamento
da universidade, em suas funções precarizadas e na maioria das vezes, invisibilizadas. Essas
mulheres trabalhadoras dos serviços gerais da universidade, são referências de sobrevivência e
resistência. À elas, todo meu carinho e respeito.
Por fim, agradeço à todas e todos que quebraram as correntes para que pudéssemos ter chances
de ocupar e ressignificar os espaços da vida pública. Lutemos sempre contra as imposições de
qualquer sociedade desigual.
#LulaLivre por todos e todas que ousam construir novos horizontes.
#MariellePresente por todas as mulheres pretas que sobrevivem e lutam por um futuro de
esperança e justiça.
“SÃO QUASE TODOS PRETOS”: COTIDIANO E EXPERIÊNCIA DA CLASSE DE
TRABALHADORA EM MACEIÓ PÓS ABOLIÇÃO.
RESUMO
Há décadas, pesquisadores e pesquisadoras sinalizam diversas críticas às “narrativas
tradicionais” sobre a História do Trabalho no Brasil. Por muito tempo, foi insistido descrever
nas entrelinhas do período pós abolição, que a mão de obra no Brasil era majoritariamente
“masculina, branca e europeia”. Na contramão da tradição, foi, e continua sendo, necessário
questionar os silêncios e as invisibilidades contidas na história do país. Desde o fim da década
de 1970, a partir da consolidação da História Social do Trabalho como campo relevante para o
diálogo, foram “despertados” diversos e conflitantes debates a respeito da presença das
populações negras, indígenas, assim como das mulheres no cotidiano da História do Trabalho
no Brasil. Aliada à essa perspectiva, a pesquisa e análise de documentação relacionada (jornais,
literatura, documentações oficiais, relatórios do governo do estado, e outros) possibilitou
mapear as fontes e a construção da escrita histórica que evidenciam a experiência de
trabalhadores e trabalhadoras que despenderam sua força de trabalho no contexto alagoano pós
abolição.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalhadores e trabalhadoras; Pós abolição; Maceió; Alagoas.
"THEY ARE ALMOST ALL BLACK": EVERYDAY AND EXPERIENCE OF THE
WORKING CLASS IN MACEIÓ POST ABOLITION.
ABSTRACT
For decades, researchers have pointed to several criticisms of the "traditional narratives" on the
History of Labor in Brazil. For a long time, it was insisted on describing among the lines of the
post-abolition period that labor in Brazil was mostly "masculine, white and European."
Contrary to tradition, it was, and still is, necessary to question the silences and invisibilities
contained in the history of the country. Since the end of the 1970s, as a result of the
consolidation of the Social History of Labor as a relevant field for dialogue, diverse and
conflicting debates about the presence of black, indigenous, and women's populations have
been "awakened" of Work in Brazil. Allied to this perspective, research and analysis of related
documentation (newspapers, literature, official documents, state government reports, and
others) made it possible to map the sources and construction of historical writing that evidence
the experience of workers who spent their time labor force in the post-abolition Alagoan
context.
KEY WORDS: Workers and workers; Post abolition; Maceió; Alagoas.
Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 11
Capítulo 1 - Homens, Mulheres E Crianças: Trabalho Pós Abolição..................................... 19
1.1 Classe Trabalhadora, Cotidiano e Experiência ................................................................. 19
1.2 História Social do Trabalho no Brasil............................................................................... 24
Capítulo 2 - Cotidiano e Historiografia Alagoana .................................................................. 37
2.1 Cotidiano Maceioense Pós Abolição ................................................................................ 37
2.2 - História e Historiografia Alagoana................................................................................. 42
2.3 Trabalho, Trabalhadores e Trabalhadoras Pós Abolição em Maceió .......................... .....47
Capítulo 3- Maceió Embraquecida..........................................................................................50
3.1 A Classe Trabalhadora tem Maceió Tem Gênero, Raça e Idade........................................51
3.2 Marginalização da Pobreza................................................................................................60
3.3 Religiosidade Pós Abolição...............................................................................................64
Capítulo 4 - Maceió Pós Abolição...........................................................................................69
4.1 Ocupações Da Cidade........................................................................................................69
4.2 Mendicidade.......................................................................................................................73
4.3 Luta Por Direitos................................................................................................................77
Considerações Finais................................................................................................................83
Referência Bibliográficas
Documentação
Anexos
11
I.
INTRODUÇÃO
E só pra lembrar aos outros quase todos pretos
Não tem jeito, são quase todos pretos!
RZO – Assim que se fala
“São quase todos pretos” refere-se a uma reflexão da classe trabalhadora na capital
alagoana pós abolição, baseadas no cotidiano do trabalho e nas experiências dos trabalhadores
e trabalhadoras, “descobertas” na documentação relacionada (jornais, revistas, relatórios do
governo, literatura, entre outras), levantando possíveis diálogos sobre locais de trabalho,
ocupações populacionais na capital alagoana no início do século XX e as diversas formas de
resistência e sobrevivência encontradas por trabalhadores e trabalhadoras no período
demarcado pelo pós abolição.
A importante discussão no campo da História Social do Trabalho, aponta para
abordagens que envolvam tanto História, assim como Literatura, Ciências Sociais, Filosofia,
Economia e outras, como partes complementares da construção historiográfica. History from
Below e o Paradigma da ausência são os dois principais pontos de partida para compreensão
do perfil sociocultural, econômico e político da classe trabalhadora na cidade de Maceió.
Através do estudo da documentação, seleção e cruzamento das fontes, foi possível fazer um
panorama desse quadro.
No final do século XIX, Maceió era composta por quatro bairros principais, dos quais
três estavam localizados na parte “baixa da cidade” (Maceió, Jaraguá e Levada), e um na “parte
alta”, mais afastada do comércio, conhecido como Alto do Jacutinga1.
A' ladeira que fica ao lado da Cathedral moram umas mulheres de vida alegre
que vivem a incommodar os vizinhos com a sua immoral conversação2
Foram recolhidos a este estabelecimento pelo terceiro commissario os
indivíduos: Bellarmino Nazario dos Santos, por vagabundagem e embriaguez.
Foi posta em liberdade pelo sub-commissario do Alto do Jacutinga. Celestina
Africana da Costa.3
1 MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Filhos do trabalho, apóstolos do socialismo: os tipógrafos e a construção de
uma identidade de classe em Maceió (1859-1905). Recife, PPG em História da UFPE, 2004. Dissertação de
mestrado, p. 30.
2 (sem autor), Immoralidade. O Evolucionista, 2 de janeiro de 1905. Ano IV, n. 1.
3 (sem autor), Casa de Detenção: Movimento do dia 4. O Evolucionista, 5 de janeiro de 1905. Ano IV, n. 4
12
O primeiro trabalho com documentação foi selecionar e analisar jornais locais, cujo
período datavam desde antes a abolição, aproximadamente na década de 1870, até a primeira
década do século XX. A imprensa como parte fundamental da documentação deste trabalho,
permite mensurar um “diagnóstico da sociedade” maceioense, perpassando os conflitos
políticos, as disputas de ideias, o mercado e os costumes. Apesar de ser uma ferramenta de
informação utilizada principalmente pelas elites, é possível perceber através das entrelinhas de
cada nota e artigo, as relações existentes naquele espaço e tempo.
Na virada do século XIX para o XX, paralelamente aos desdobramentos da
implantação da República, da abolição da escravatura e do fim do Império,
intensificaram-se a urbanização e a industrialização do Brasil. Esse processo
de transformação, de conjuntura complexa e multifacetada, foi acompanhado
de perto pela imprensa.4
Notas como essas mencionadas acima, a respeito de pessoas que viviam no entorno do
Alto do Jacutinga, eram comuns nas páginas dos principais jornais, principalmente pós a
abolição do trabalho escravo, como forma de moralizar o trabalho, os trabalhadores e
trabalhadoras como identificado por Sidney Chalhoub, em Bar, lar e Botequim. Através dessas,
conseguimos obter um breve mapeamento acerca dos costumes e condutas presentes na cidade
Maceió. O Alto do Jacuntinga, por exemplo, foi geralmente caracterizado por ser um bairro de
moradia e comércio de homens, mulheres e crianças pobres, sem a mínima assistência do
governo do estado. Osvaldo Maciel afirma:
[…] o Alto do Jacutinga, localiza-se num tabuleiro elevado no sentido Oeste
da cidade. Contraditoriamente, o lugar é representado na imprensa da época
ora como área mal assombrada, matagal que circunda a cidade, para onde
corriam marginais, ora como novo bairro chique da gente “abastada”, que
buscava paz e sossego em chácaras e sítios.5
Por outro lado, o Porto de Maceió, localizado na região litorânea, no bairro de Jaraguá,
é um espaço visivelmente positivo aos olhos dos noticiários, dos grandes comércios e
consequentemente da construção historiográfica tradicional. Diante disso, este torna-se
fundamental para compreensão do cotidiano do trabalho e da classe trabalhadora pós abolição
em Alagoas, assim como da economia e da política local. A região reunia diariamente grande
4
DA SILVA, Márcia Pereira; FRANCO, Gilmara Yoshihara. Imprensa e política no Brasil: considerações sobre o
uso do jornal como fonte de pesquisa histórica. Revista Eletrônica História em Reflexão, v. 4, n. 8, 2010.
5 MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. ESPAÇO URBANO E MARGINALIZAÇÃO EM MACEIÓ (1895-1905).
Comunicação apresentada no V Encontro Nordestino de História, ANPUH, 2004.
13
número de pessoas, das quais estavam alocadas em diversos postos de trabalho, entre eles
trapicheiros, estivadores, lancheiros, doqueiros, carroceiros, etc. Segundo Maciel, nesse
período, Jaraguá tornou-se a grande sede do comércio e de toda movimentação da capital
alagoana.6
Mesmo que esse trabalho não se debruce com maior empenho sobre a história política,
vale ressaltar que nesse período, o estado de Alagoas esteve sob governos de homens, membros
de famílias influentes, com bastante recursos e propriedades no estado. A elite local, na maioria
das vezes, dedicava-se às diversas funções existentes no poder judiciário (promotores,
advogados, procuradores, etc.), econômico (senhores de engenho, entre outros proprietários de
terras) e militares.
Para construir o debate foi necessário um mapeamento da documentação e seleção das
fontes, além de um íntimo diálogo com a bibliografia relacionadas à História do Trabalho,
História de Alagoas e outras produções intelectuais nas áreas da Sociologia, Antropologia,
Filosofia e Arquitetura, que deram chances à compreensão do processo de experiência e
cotidiano da classe trabalhadora na virada do século em Maceió.
Nesse sentido, essa dissertação está subdividida em quatro capítulos, que dispõem-se
entender tanto o debate da história social do trabalho no Brasil e em Alagoas, assim como o
cotidiano do trabalho pós abolição, observando-os a partir de sujeitos já inseridos no contexto
do trabalho no Brasil, sendo em sua maioria trabalhadores e trabalhadoras negras, pobres e
nacionais7.
O primeiro capítulo, é uma resumida leitura a respeito do estudo da História Social do
Trabalho, partindo dos/das intelectuais marxistas britânicos. Primeiramente é elaborada uma
tentativa de compreender os questionamentos feitos pelo historiador Edward Palmer
Thompson, a partir de sua principal obra, Formação da Classe Operária Inglesa, buscando
entender a classe como “fenômeno histórico”, nos quais sujeitos “assumem” papéis sociais –
que ultrapassam qualquer conceito sociológico que tentem enquadra-los. Para isso, tal como
proposto pelo historiador, é imprescindível o diálogo articulado entre história e as ciências
humanas, para uma possível compreensão a respeito da “experiência” da classe trabalhadora8
e suas complexidades, vivenciadas entre processos de “liberdade” da escravidão9 e o trabalho
6 MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Idem.
7
DOS SANTOS, Carlos José Ferreira. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza, 1890-1915. Annablume,
1998.
8 THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 10
9 LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História. São Paulo (16): 25-38,
fev. 1998, p. 28
14
“pós abolição”. Nessa discussão, partindo do conceito de experiência, é importante destacar
que ele é pensado na vida cotidiana, que segundo a filósofa húngara Agnes Heller, “é a vida do
homem inteiro”, e que por sua vez, interage em todos espaços sociais, seja privado ou público.
Experiência e Cotidiano aqui, estão sendo pensados baseados na reflexão thompsiniana,
mas contextualizada no período de abolição de populações, que durante mais de três séculos,
foram forçados à vida escravizada. A historiadora norte americana Natalie Zamon Davis e o
historiador francês Fernand Braudel alertam para o debate sobre a importância que as Ciências
Sociais tem no fazer historiográfico. Segundo Davis, é um dos importantes “meios de
interpretação” que visualizam as diversidades nos comportamentos sociais.
A “abrangência” conceitual e teórica da História Social, permite realizar um amplo
estudo sobre a classe trabalhadora, a partir de suas complexidades vivenciadas em momento de
transformações políticas, econômicas e sociais no país. Nesse caso, foi fundamental a
“observação” a partir desse diálogo, porém, alinhado em discussões que envolvam homens,
mulheres e crianças negras, indígenas e nacionais pobres, como reflexo da maior parcela da
classe trabalhadora em Alagoas pós abolição.
O segundo capítulo se dispõe fazer um breve debate historiográfico de Alagoas pós
abolição, que por sua vez, caminha lentamente para a compreensão da história do trabalho nesse
período, principalmente no que diz respeito aos costumes e experiências da classe. Vale
ressaltar que Alagoas tem bastante intimidade com trabalho desempenhado principalmente por
homens, mulheres e crianças negras, como é destacado nas pesquisas relacionadas ao século
XIX.
Na década de 1980, cuja conjuntura estava delineada pelo centenário jurídico da
abolição dos povos escravizados, pelo fim do golpe militar, pelo processo de redemocratização
política do Brasil e pela retomada de força dos movimentos sociais – em principal o movimento
sindicalista –, surgiram novas perspectivas sobre história, assumindo novas estratégias para
conhecimento a respeito da classe trabalhadora. Foi nesse período que as obras de Thompson
e a História Social ganharam destaque nos estudos sobre a classe trabalhadora no Brasil,
principalmente ao buscar entender os processos de “transformações” nas relações de trabalho
na virada do século XX. Diante desse processo, pesquisadores e pesquisadoras atentaram em
seus trabalhos, críticas à História Tradicional e a História do Trabalho, que anteriormente
“traçaram o perfil” de trabalhadores no Brasil do século XX, como sendo “branco, masculino
e europeu”. Nesse sentido, foi e continua sendo necessário questionar os silenciamentos da
nossa história. Vários pesquisadoras e pesquisadores envolveram pesquisa sobre quem são os
trabalhadores e trabalhadoras na virada do século XIX para o XX. Claúdio Batalha, Silvia H.
15
Lara, Flávio Gomes, Álvaro Nascimento, Casé, Sidney Chaloub, Wlamyra Riberiro, entre
outros e outras, que ajudam trazer questões à história e historiografia nacional, assim como
alagoana.
A partir dessas leituras, é colocado em debate os caminhos traçados entre a pequena
historiografia alagoana e os demais escritos sobre a capital no início do século XX. O alagoano
Moacir Medeiros de Sant’Ana, bacharel em Direito, atenta para questões importantes, das quais
é possível ter noções sobre a economia do estado nas primeiras décadas do século XX, bem
como os trabalhos do jornalista Craveiro Costa, que escreve sobre a dinâmica social da então
capital alagoana10 e do literato Félix Lima Junior, que através de suas crônicas, tenta ajudar
compreender como a “vida” estava organizada na capital alagoana, nesse mesmo período. No
que diz respeito ao debate sobre trabalho e trabalhadores em Alagoas, mais especificamente, é
de suma importância referenciar o historiador Osvaldo Batista Aciolly Maciel, tendo ele
realizado uma brilhante pesquisa documental sobre as organizações de “Caixeiros” e
“Tipógrafos” entre fins do século XIX e início do século XX.
Ao nos perguntarmos quem eram os trabalhadores e trabalhadoras em Maceió na
primeira década do século passado, nos localizamos entre pessoas que começaram a ocupar as
ruas de comércio de Maceió para o desenvolvimento de suas atividades cotidianas. Neste ponto,
é possível fazer um paralelo, e não uma mera comparação, com os aspectos apontados por
Antônio Luigi Negro quando questiona o conceito tradicional de classe trabalhadora para
pensar os trabalhadores soteropolitanos. Tanto o caso da capital baiana, quanto da capital
alagoana, “Aqui, certamente, ex escravos passam a fazer parte das ruas e das relações
socioeconômicas na capital.”
Como a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras que compõem essa pesquisa estão
inseridos nos campos de trabalhos informais, muito dificilmente a documentação irá apresentar
os indicativos de cor em suas informações sobre esses setores da classe trabalhadora. Dessa
forma foi necessário recorrer à pesquisa de períodos que antecedem a discussão de abolição.
Esse debate faz uma “ponte” com os argumentos do historiador Danilo Luiz Marques, quando
o mesmo utiliza o romance de Pedro Nolasco Maciel para refletir o processo de libertação de
escravizadas na capital alagoana:
O romance Traços e Troças, [...] de fins da década de 1880 nos apresenta a
história de amor entre um alfaiate, Manoel, e uma garota “pimenta e mal
educada” de nome Zulmira. Ao longo da narrativa principal, apresenta indícios
de como se configuravam os costumes e o cenário urbano de Maceió, nos
10 COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: Edições Catavento, 2011.
16
trazendo uma visão panorâmica da cidade de fins do século XIX e, em
algumas passagens, nos remete à presença africana no quotidiano da capital
alagoana. Como a história do africano Félix, acusado de praticar feitiçaria:
Lera nos jornais que dois carteiros do correio Luiz Cunha e Anastácio Costa,
ambos jovens vendendo saúde, morreram de febres palustres em poucos dias,
porque abriram um pacote de feitiço vindo do Rio para o africano Félix da
Costa, em Jaraguá, que outro empregado estava enfermo: que o prelo do jornal
que dera notícia, chamando a atenção da polícia, quebrara-se: que o Braz,
subdelegado, teve receio de prender o negro feiticeiro. (MACIEL, 1964, p.
147).
O terceiro capítulo, partindo do trabalho empírico, com o mapeamento e análise das
fontes, apresenta um discurso no qual envolve sujeitos inseridos numa determinada realidade.
“O discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e evidência,
um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica, do outro”11.
A principal documentação dessa pesquisa está centrada em jornais que circularam em Alagoas,
principalmente na capital, entre o fim do século XIX e o início do século XX. Dentre todos
que serão listados no final, destaco os principais: O Proletário (1893/1902), Gutemberg (18921911), O Caixeiro (1893) e Perseverança (1909-1910)12. Paralelo à essa documentação,
faremos uma discussão com os Relatórios de Presidentes dos Estados Brasileiros, mais
especificamente de Alagoas (publicados anualmente), obras literárias e pesquisas que de algum
modo contribuem para percorrer os caminhos do trabalho urbano na capital alagoana no início
do século XX.
Tal como atentou para sua pesquisa "Direitos trabalhistas em construção: as lutas pela
jornada de oito horas em Pernambuco, 1890-1891." publicada na Revista Tempo em 2016,
Marcelo MacCord questiona a documentação que não aponta a cor dos trabalhadores
As fontes da atual pesquisa invisibilizam a cor do trabalhador, mas lido
com mercados de trabalho que receberam pouquíssimos imigrantes no
final do século XIX e continuaram contratando descendentes de
africanos.13
No caso de Alagoas, a documentação da pesquisa, o caso de cor se repete, assim como
a falta da presença de mulheres trabalhadoras em seus “discursos”. Pesquisas relacionadas à
trabalho, escravidão e abolição no século XIX são fundamentais para essa reflexão.
11 MARTINS, Suely Aparecida. As contribuições teórico-metodológicas de EP Thompson: experiência e cultura.
Em Tese, v. 2, n. 2, p. 23-36, 2006. apud E.P. THOMPSON (1981)
12 Esses periódicos estão hospedados no site da Hemeroteca Digital. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital; exceto o exemplar de 1902 de O Proletário, que se encontra
arquivado no Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP.
13MAC CORD, Marcelo. "Direitos trabalhistas em construção: as lutas pela jornada de oito horas em Pernambuco,
1890-1891." Tempo 22.39 (2016), p. 177, 178.
17
Nas últimas três décadas, novas pesquisas acadêmicas sobre a formação da
classe operária brasileira relativizaram a referida rigidez teórica. Perdeu
espaço o essencialismo que moldou as experiências dos sujeitos que viveram
do suor do próprio rosto na fôrma explicativa dos analistas. Nesse sentido,
mas sem abandonar o referencial marxista, houve avanços significativos nos
estudos tanto do período posterior aos anos 1930 quanto da Primeira
República. Mais recentemente, outras investigações seguiram alargando suas
balizas temporais até o Império do Brasil, permitindo que conhecêssemos as
demandas da até então pouco conhecida “classe artística”, composta por
artífices e suas associações. Outro panorama que se descortinou é a superação
do paradigma que restringiu ao Rio de Janeiro e a São Paulo o protagonismo
na formação da classe operária nacional.6 Da mesma forma, a historiografia
tem problematizado o papel hegemônico que foi dado aos imigrantes
europeus, trabalhadores brancos, em sua constituição. Isso tem permitido, por
exemplo, demolir a pretensa “anomia” e “incapacidade” dos negros para
atuarem como sujeitos históricos na sociedade pós-abolicionista e em seus
mundos do trabalho.14
Como apontado em “Comércio Interprovincial de Escravos em Alagoas no Segundo
Reinado”, a historiadora Luana Teixeira faz uma interessante discussão sobre o mercado de
africanos e seus descendentes no século XIX em Alagoas. A pesquisa foi realizada com
documentação que relaciona a passagem de africanos pelos portos de Maceió e Penedo,
vendidos aos cafeicultores no Sudeste do país15. Essa pesquisa não está voltada para o século
XX, mas ajuda traçar “perfis” sociais pós escravidão em Alagoas, que é o sentido desse debate.
O quarto capítulo aponta para discussão de quais condições sócio econômicas e culturais
Maceió encontrava-se no período pós abolição. Incialmente faz um debate acerca da
organização da própria cidade, apresentando as principais regiões de presença da classe
trabalhadora, tanto condizente aos locais de trabalho, quanto aos espaços de moradias,
divertimento e religiosidade. Vale ressaltar que esse período é marcado por um crescimento
desordenado da cidade e que deu-se com foco no desenvolvimento do capital, no
enriquecimento das elites e nas transformações nas relações de trabalho escravo para trabalho
“livre”. Essa desorganização trouxe consigo um grande número de conflitos e miséria ao
estado. Nos deparamos nesse cenário tanto quando analisamos jornais locais, que denunciam o
número de mendigos nas ruas da capital alagoana16, quando vemos relatos de trabalhadores que
denunciam as péssimas condições, longas jornadas de trabalho e as precárias condições de
14
MAC CORD, Marcelo. Direitos trabalhistas em construção: as lutas pela jornada de oito horas em
Pernambuco, 1890-1891. Tempo, v. 22, n. 39, 2016.
15 TEIXEIRA, Luana. O comércio interprovincial de escravos em Alagoas no Segundo Reinado. Tese (Doutorado
em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2016, p. 116
16
Mendicidade. Perseverança, 15 de agosto de 1909, ano 1, n 2
18
moradia17. A mendicidade foi um elemento importantíssimo para esse processo de análise,
devido ao grande número de denúncias feitas diariamente nos jornais da cidade, assim como os
exemplos dados na literatura alagoana. Por fim, e não menos importante, um espaço foi
destinado para destrinchar minimamente as lutas enfrentadas pela classe trabalhadora nesse
período de transição em busca por direitos, sendo eles tanto a libertação da própria escravidão
nos anos finais do século XIX, assim como as diversas formas de enfrentar a precariedade da
vida encontradas na capital alagoana no início do século XX.
17
ALMEIDA. Luiz Sávio de. Chrônicas alagoanas vol. II – Notas sobre poder, operários e comunistas em
alagoas. Maceió: EDUFAL, 2006.
19
II.
CAPÍTULO 1 – HOMENS, MULHERES E CRIANÇAS: TRABALHO PÓS
ABOLIÇÃO
1.1 CLASSE TRABALHADORA, COTIDIANO E EXPERIÊNCIA
O Sr. Manoel Araújo Pinheiro fundou, em 1899, a Companhia Elevadora
Jacuntinguense, levando bondes ao planalto. Era pequeno número de
habitantes, gente pobre e humilde que preferia subir a pé as ladeiras da
Catedral, do Cortiço, do Brito e dos Martírios. O movimento nos veículos foi
pequeno e não registrou lucro. Em 1901 ou 1902 cessou o serviço e a Catu
adquiriu o acervo Jacuntinguense. Em fevereiro de 1908, tendo aumentado o
número de pessoas residentes no Jacuntinga e atendendo a constantes
reclamações, foi o tráfego restabelecido.18
Tal como afirma o inglês Edward Palmer Thompsom, “A classe acontece quando alguns
homens, com resultados de experiências comuns [...] sentem e articulam a identidade de seus
interesses entre si”. Thompson foi militante do Partido Comunista da Grã-Bretanha, ao lado de
outros historiadores marxistas como Eric Hobsbawm, Christopher Hill e a historiadora Dorothy
Thompson. Além de militante, foi um dos mais importantes historiadores marxistas do século
XX, cuja teoria e prática estiveram voltadas compreender a “experiência” como uma questão
central para análise das práticas sociais, na qual o autor, entre vários questionamentos com o
marxismo “ortodoxo”, desenquadra a classe trabalhadora de um “puro” conceito sociológico, e
a visualiza a partir de um fenômeno histórico, determinado pelas “relações de produção”.
Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de
acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matériaprima da experiência como na consciência. Ressalvo que é um fenômeno
histórico. Não vejo a classe como uma “estrutura”, nem mesmo como uma
“categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode
ser demonstrada) nas relações humanas […] a noção de classe traz consigo a
noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que
escapa à analise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua
estrutura. A mais fina rede sociológica não consegue nos eferecer um
exemplar puro de classe19
“A Formação da Classe Operária Inglesa” é considerada uma das melhores obras do
autor e ela se subdivide em três volumes. Originalmente foi lançada em 1963, cuja intenção
inicial não fora o debate acadêmico, muito pelo contrário, mas “um passo” de o diálogo com
18 LIMA JÚNIOR, Félix. Maceió de outrora: obra póstuma./Félix Lima Júnior; [organizado por] Raquel Rocha –
Maceió: EDUFAL, v.2, p. 31, 2001.
19 THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 9 e
10.
20
operários ingleses, para os quais o autor lecionava na década de 1960. No Brasil, o primeiro
volume “Árvore da Liberdade” foi publicado mais de duas décadas após, em 1987, pela editora
Paz e Terra. A obra foi escolhida por ser uma das maiores referências para compreender tanto
experiência da classe, assim como consciência, que segundo ele:
A classe acontece quando alguns homens, como resultados de experiências
comuns [...], sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si [...] A
consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em
termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores e formas
institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não
ocorre com a consciência de classe. […] A consciência de classe surge da
mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da
mesma forma.20
Cinco anos antes, 1968, o historiador francês da segunda geração dos Annales, Fernand
Braudel, havia pulicado o artigo intitulado Histoire et sciences sociales: la longue durée21, no
qual ele afirma que os trabalhos e pesquisas contemporâneas da história, tinham, de modo
consciente ou não, encaminhado uma “noção mais precisa da multiplicidade do tempo e do
valor excepcional da longa duração”. Há um rompimento com a história tradicional, a história
que acontece no “tempo curto”, brevemente, com “relato precipitado, dramático, de curtofôlego”. Segundo o autor, o tempo tem vários outros elementos que precisam ser avaliados.
“[...] a curva de preços, uma progressão demográfica, o movimento dos salários, as variações
das taxas de juros[...] exigem medidas bem mais amplas”. Tudo acontece dentro do tempo.
“Todo trabalho histórico decompõe do tempo passado”. Infelizmente, isso não ocorre com as
ciências sociais. Braudel questiona as ciências sociais, porque, segundo ele, infelizmente,
procuram sempre “escapar à explicação histórica”,
[…] isso ocorre por dois procedimentos quase opostos: um
“acontecimentaliza”, ou, se quiser, “atualiza” só extremo os estudos sociais
graças a uma sociologia empírica, desdenhosa de outra história, limitada aos
dados do tempo curto, da investigação colhida no aqui e agora; quanto a outra,
ela supera pura e simplesmente o tempo, imaginando nos termos de uma
“ciência da comunicação”, uma formulação matemática de estruturas quase
intemporais.22
Tanto Braudel, quanto Thompson, apesar das diferentes abordagens históricas,
concordam que a história não caminha solitariamente. As ciências sociais é uma importante
20 THOMPSON, E. P., Ibidem, p. 10
21 BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais: a longa duração. Revista de História, v. 30, n. 62, p. 261-294,
1965.
22 BRAUDEL, Fernand. Ibidem, p. 99, 100.
21
aliada na longa estrada de observação dos modelos sociais, que por sua vez são fundamentais
para pesquisa histórica, mas que precisam estar inseridos em contextos históricos. Ou seja, os
conceitos acabam não fazendo sentido, caso não estejam inseridos no tempo e no espaço. “Quer
se trate do passado ou da atualidade, uma nítida consciência dessa pluralidade do tempo social
é indispensável a uma metodologia comum às ciências humanas”23.
A historiadora norte americana Natalie Zemon Davis, alinhada à História Social da
Cultura, assim como Thompson, publicou um artigo intitulado “Anthropology and History in
the 1980s” em 1981 na revista estadunidense Journal of Interdisciplinary History. Foi
publicado no Brasil em 2011, na coletânea Nova História em perspectiva, organizada por
Fernando A. Novais e Rogerio F. Da Silva. Seu intuito foi “articular” um diálogo que
aproximasse os historiadores da Antropologia. Para ela, os estudos antropológicos, possuem
quatro características que “tornam úteis para os historiadores”: a) observação acurada de
processos vivos; b) meios de interpretação de comportamento simbólico; c) sugestão sobre as
diferentes partes de um sistema social que se ajustam umas às outras e d) material sobre culturas
diferentes dos que os historiadores costumam usar24. Nesse sentido, a Antropologia é uma
“disciplina irmã”, que causa um fundamental impacto na “reflexão historiográfica”, rompendo
com o passado imutável e o apresentando através das “várias experiências humanas”25.
Desprendida da pureza dos conceitos, é notório que a experiência acontece ao longo da
“vida cotidiana”, que por sua vez “é a vida do homem inteiro”26,
“o homem participa da vida cotidiana com todos aspectos de sua
individualidade e personalidade. Nela, colocam-se 'em funcionamento' todos
os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades
manipuladas, suas paixões, ideias, ideologias”27
Cotidiano aqui está sendo pensado a partir da filósofa húngara Agnes Heller. Ela foi
aluna e assistente do filósofo marxista Georg Lukács, que concentrou suas pesquisas na
discussão sobre estética e ontologia do ser social. Ao lado de outros discípulos do filósofo, fez
parte da Escola de Budapeste. O Quotidiano e a História é uma obra fundamental para
discussão sobre a vida cotidiana. A obra foi lançada originalmente em 1970, mas os marxistas
brasileiros Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, fizeram sua tradução e a publicaram pela
23 BRAUDEL, Fernand. Ibidem, p. 89.
24 DAVIS, Natalie Zemon. Antropologia e história nos anos 1980. Nova História , 2011, p. 331.
25 DAVIS, Natalie Zemon, Ibidem, p. 340.
26 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução:Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972
27 HELLER, Agnes. Ibidem, p.17
22
Editora Paz e Terra em 1972. Podemos dizer que a vida cotidiana é composta por várias
“partes”, dentre elas, “a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres, o descanso, a
atividade social sistematizada e a purificação”28. Essas partes são heterogêneas,
sistematicamente hierárquicas, e inevitavelmente sofrem alterações de acordo com as distintas
estruturas sócio econômicas na qual estão inseridas. A vida cotidiana está constantemente
presente no “centro do acontecimento histórico”, e segundo a filósofa, ela é a “essência da
substância social”. A experiência humana é o “fazer-se” dentro vida cotidiana.
Em consonância com a “amplitude” de possibilidades apresentadas para observar a
classe, um dos fatores fundamentais que deve ser destacado é a participação as mulheres nos
espaços da sociedade de classes. A historiadora pós estruturalista, norte americana Joan Wallach
Scott trouxe para análise, “novas” perspectivas nesse sentido, sendo uma das primeiras tratar a
categoria gênero em seus estudos. Em 1986, Scott lança o artigo Gênero: uma categoria útil de
análise histórica que desde já, modificaria os “rumos da história”. Em diálogo estabelecido
entre os estudos de feministas e pesquisas acadêmicas, ela destaca a falta da presença das
mulheres na história, e propõe um “alargamento das noções tradicionais daquilo que é
historicamente importante, para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva, quanto as
atividades públicas e políticas”29.
A reação da maioria dos/as historiadores/as não feministas foi o
reconhecimento da história das mulheres e, em seguida, seu confinamento ou
relegação a um domínio separado ("as mulheres tiveram uma história separada
da dos homens, em consequência deixemos as feministas fazer a história das
mulheres que não nos diz respeito"; ou "a história das mulheres diz respeito
ao sexo e à família e deve ser feita separadamente da história política e
econômica"). No que se refere à participação das mulheres na história, a
reação foi, na melhor das hipóteses, um interesse mínimo ("minha
compreensão da Revolução Francesa não muda por saber que as mulheres dela
participaram"). O desafio colocado por essas reações é, em última análise, um
desafio teórico. Isso exige uma análise não apenas da relação entre a
experiência masculina e a experiência feminina no passado, mas também da
conexão entre a história passada e a prática histórica presentes. Como o gênero
funciona nas relações sociais humanas? Como o gênero dá sentido à
organização e à percepção do conhecimento histórico? As respostas a essas
questões dependem de uma discussão do gênero como categoria analítica.30
A “abrangência” exposta nos conceitos e categoria acima, permitem realizar um
consistente estudo na História Social, no qual envolve pesquisa de áreas distintas que são
28 SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”.Educação & Realidade. Porto Alegre,
vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, p. 18.
29 SCOTT, Joan Wallach. Ibidem , p. 73
30 SCOTT, Ibidem, p. 74.
23
referências na pesquisa da classe trabalhadora no Brasil pós abolição. Mais recentemente o
debate da ativista e filósofa marxista norte americana Angela Yvonne Davis vem tornando uma
importante referência para discussão sobre trabalhadores, e principalmente trabalhadoras
negras, antes e pós abolição da escravidão. Em sua principal obra, “Mulheres, Raça e Classe”,
Davis demarca a presença substancial de mulheres negras na escravidão, nas lutas por liberdade
no século XIX e por direitos civis nos Estados Unidos no século XX, a partir de suas
experiências e cotidiano. Ela apresenta variadas “formas de resistências” encontradas por
trabalhadores e trabalhadoras, fora das instituições partidárias e sindicais como comumente são
conhecidas as lutas trabalhistas. Se para a historiografia e para as ciências humanas a mulher
negra foi sempre esteve fora espaço do “dito”, através de documentações (cartas, documentos
de cartório, jornais, legislação, etc) ela demarca não apenas a presença, mas a importância
dessas – por inúmeras vezes silenciadas – como parte fundamental para entender as relações de
trabalho e seus “pesos” na sociedade norte americana. Em pouco mais de duzentas páginas,
Davis busca compreender os caminhos percorridos pelas mulheres negras nos Estados Unidos,
desde seu processo de escravização, sua constituição familiar dentro de uma sociedade
patriarcal e sua presença fundamental na luta por direitos civis nos Estados Unidos pós
escravidão. Nessa obra, brilhantemente, ela rompe com a ideia de homogeneidade nos costumes
entre mulheres negras e brancas, partindo, essencialmente das contradições sociais expostas em
uma sociedade condenatória à população negra por seus costumes. A principal reflexão desta
obra, baseada em críticas ao “marxismo ortodoxo”, está sob as condições as quais mulheres, de
uma “mesma classe social”, tiveram (e ainda tem) experiências tão distintas devido não apenas
ao gênero, mas seu lugar étnico racial na sociedade de classes, trazendo um “elemento” que
nem se sobrepõe, muito menos subtrai a condição classista, pelo contrário, demarca o “lugar”
nas pirâmides das desigualdades sociais.
Depois de um quarto de século de “liberdade”, um grande número de mulheres
negras ainda trabalhava no campo. Aquelas que conseguiram ir para a casagrande encontraram a porta trancada para novas oportunidades – a menos que
preferissem, por exemplo, lavar roupas em casa para diversas famílias brancas
em vez de realizar serviços domésticos variados para uma única família
branca. Apenas um número infinitesimal de mulheres negras conseguiu
escapar do campo, da cozinha ou da lavanderia.31
Por mais que essa não seja uma pesquisa exclusivamente sobre a exploração das
mulheres negras nos Estados Unidos, e que certas bases de análise muitas vezes se distanciem
31 DAVIS, Angela Y. Mulher, raça e classe. Boitempo, 2016, p. 95
24
da realidade brasileira, é fundamental entender as contradições expostas por Davis sobre a vida
de mulheres e crianças negras, que diversas vezes se assemelham na realidade brasileira, tanto
pela exploração e tortura durante mais de três séculos de escravidão, como pelas condições
precárias do trabalho assalariado.
Em O Calibã e a Bruxa, publicado em 2004, a escritora, ativista feminista e professora
italiana Silvia Federici, aponta as “múltiplas faces” do capitalismo e suas relações de trabalho
em distintos lugares do mundo, com limites e realidades distintas. Federici faz uma análise do
capital e as relações de trabalho no século XX e XXI, em discussões baseadas em críticas,
acordos e desacordos com os pensadores Karl Marx e Michael Foucault, apontando o papel
fundamental das mulheres nas relações de reprodução do capital, sobretudo deixando claro o
“esquecimento” dos autores a respeito da questão de gênero neste processo. Sobre o
desenvolvimento do capitalismo no continente Europeu e sua relação de exploração com o
Brasil ela afirma:
Com sua imensa concentração de trabalhadores e uma mão de obra cativa,
arrancada de sua terra e que não podia confiar no apoio local, a plantation
prefigurou não apenas a fábrica, mas também o uso posterior da imigração,
além da globalização voltada a reduzir os custos do trabalho. Em particular, a
plantation foi um passo crucial na formação de uma divisão internacional do
trabalho que — por meio da produção de “bens de consumo” — integrou o
trabalho dos escravos a reprodução da força de trabalho europeia, ao mesmo
tempo que mantinha os trabalhadores escravizados e os assalariados
geográfica e socialmente separados.32
Portanto, para o amadurecimento do estudo sobre trabalhadores e trabalhadoras é
necessário ultrapassar a discussão econômica e/ou política, mas exige uma minuciosa
observação através das diversas áreas de conhecimentos e da “historicização” dos conceitos
propostos no contexto. Gênero e raça são categorias fundamentais de análise nessa pesquisa,
justamente por tratar de um período da história do trabalho no Brasil, baseado em mudanças
nas relações de trabalho, demarcadas entre trabalho escravo e assalariado, tornando visível a
presença maciça da população negra, das mulheres e crianças, que por tempos, passaram
“despercebidos” no discurso histórico “tradicional” sobre classe.
1.2
HISTÓRIA SOCIAL DO TRABALHO NO BRASIL
Desde a década de 1980, as obras de Thompson e a História Social ganharam relevância
32 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Ed. Elefante, 2017.
25
na reiteração dos estudos sobre a classe trabalhadora no Brasil, principalmente os que buscavam
entender os processos de “transformações” nas relações de trabalho na virada do século XX. A
produção historiográfica sobre trabalho e trabalhadores, até então, esteve limitada aos estudos
produzidos por militantes de esquerda e suas respectivas organizações, que buscaram através
da escrita, a legitimação de sua própria história e ideologia. Porém, os anos 1980, cuja
conjuntura estava delineada pelo centenário jurídico da abolição dos povos escravizados, pelo
fim do golpe militar, que durou vinte e um anos, e pela retomada de força dos movimentos
sociais, no processo de redemocratização política do Brasil, em principal o movimento
sindicalista trouxe distintas perspectivas, assumindo novas estratégias.
Tal renovação da historiografia brasileira não brotou do nada, como que por
encanto. O país vivia um momento muito especial de sua história intelectual
e política quando os historiadores da escravidão e do movimento operário
travaram diálogos com as obras de E. P. Thompson. Dávamos consistentes
passos no processo de redemocratização, os sindicatos mais combativos se
reorganizavam, os programas de pós-graduação em história conquistavam
contornos mais profissionais, um modelo mais ortodoxo de marxismo era
questionado pelas bases e os movimentos sociais reemergiam nas ruas. As
conjunturas impunham novas agendas aos intelectuais de esquerda. Neste
movimento, as classes subalternas fizeram pressão por legitimidade social,
direito à memória e ampla participação política.33
Experiência e cultura operária, conquistou espaço entre pesquisadores e pesquisadoras
no Brasil, que dedicavam seus estudos para o entendimento das complexidades vivenciadas
pelos trabalhadores no país. Porém, antes de iniciar qualquer debate sobre trabalho,
trabalhadores e trabalhadoras no período pós abolição do Brasil, vale ressaltar que Thompson
desenvolveu sua pesquisa com uma visão direcionada à classe trabalhadora inglesa no século
XVIII, inseridos no processo de industrialização e formação do operariado inglês. O que não é
o caso no contexto brasileiro. Os estudos thompsinianos no Brasil se deram, muito em grande
parte, pelo interesse em entender o contexto histórico nos quais estavam inseridos os
trabalhadores e trabalhadoras no Brasil do século XX, buscando lacunas e abismos existentes
entre trabalhadores escravizados e livres, entre senzalas e fábricas, entre quilombos e sindicatos;
um contexto histórico totalmente distinto da realidade do historiador inglês, mas com
preocupações em lacunas e silêncios, fundamentais para compreender a história a partir do
cotidiano “dos de baixo”, da classe trabalhadora invisível de nossa história tradicional.
Desprendendo-se dos “modelos” – criados pela sociologia e utilizados pela história Thompson traz um importante debate a respeito da pesquisa empírica no ofício do historiador,
33 CORD, Marcelo. EP Thompson, a historiografia brasileira e a valorização das experiências dos trabalhadores.
Revista trabalho necessário, v. 12, n. 18, 2018.
26
no intuito de desvendar a história dos trabalhadores e trabalhadoras para além de seus locais de
trabalho e suas organizações classistas, mas no “fazer-se da própria classe”, como ele afirma no
volume um de “A formação da classe operária inglesa: Árvore da Liberdade”.
Em meio a efervescência política que o Brasil estava inserido no fim do golpe militar, e
diante as renovações nos estudos sobre trabalho, “diferentes” questões começaram surgir para
história e as ciências humanas. Gênero, etnia e raça, justiça do trabalho, adentraram no debate.
Em 1985, a historiadora Margareth Rago, formada pela Unicamp, influenciada naquele
momento tanto pelas leituras de Thompson, quanto Foucault, fez uma versão de sua dissertação
que foi publicada como Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar - Brasil 1890-193034,
através da editora Paz e Terra. Essa obra se propõe como caminho para pensar “as formas de
disciplinarização da vida social dentro e fora das fábricas”, e “coloca na roda” mulheres e
crianças como sujeitos históricos inseridos no processo de exploração da classe trabalhadora
em questão.
O movimento operário, por sua vez, liderado por homens, embora a classe
operária do começo do século fosse constituída em grande parte por mulheres
e crianças, atuou no sentido de fortalecer a intenção disciplinadora de
deslocamento da mulher da esfera pública do trabalho e da vida social para o
espaço privado do lar. Ao reproduzir a exigência burguesa de que a mulher
operária correspondesse ao novo ideal feminino de mãe, “vigilante do lar”35
É preciso evidenciar a importância da obra no momento histórico que foi escrita – que
retira do horizonte a figura única do homem trabalhador fabril e sindicalista no início do século
XX – mas sem esquecer de destacar e criticar os silenciamentos sobre a presença (massiva) de
mulheres e crianças negras como parte constitutiva do processo histórico do trabalho pós
abolição em São Paulo e no Brasil inteiro. Nesse sentido, é importante questionar o perfil
correspondente às mulheres trabalhadoras no Brasil da Primeira República. A pergunta se faz
não apenas à historiadora, mas ao país que por mais de três séculos escravizou centenas de
mulheres indígenas e africanas, além de homens, e crianças36. E tratando especificamente da
condição da mulher no espaço do trabalho e na acumulação primitiva do capital:
34 RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar - Brasil, 1890-1930, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985. O título original da tese é Sem fé, sem lei, sem rei. Liberalismo e experiência anarquista na
republica, defendida em 1984.
35RAGO, Luzia Margareth. Ibidem p. 63.
36 A pesquisa da classe trabalhadora nacional e pobre tem sido assunto central para diversos pesquisadores e
pesquisadoras da História Social do Trabalho no Brasil. Dentre eles destaco dois pesquisadores fundamentais
para fazer essa conversa: o historiador Marcelo MacCord, doutor em História pela Unicamp e Carlos José
Ferreira dos Santos, doutor em História pela PUC SP.
27
Na ocasião, discutimos a atualidade do tema da caça às bruxas no Brasil, tendo
como foco as estratégias relançadas pelo capitalismo a cada grande crise e as
possibilidades de resistência dos movimentos de mulheres. Para além de
pensar o tema apenas circunscrito a Inquisição no Brasil e a caca às bruxas do
período colonial, entendemos que esse fenômeno ainda está presente no
encarceramento massivo de mulheres negras perpetrado pelo Estado; na sub
representação ou representação deturpada da mulher nos meios de
comunicação; nas violências obstétricas contra as cidadãs que recorrem ao
Sistema Único de Saúde (sus); nos corpos das vítimas da violência policial nas
periferias; e na experiência cotidiana de perseguição, silenciamento, agressão
e invisibilização das mulheres trans, travestis e prostitutas, entre tantos
paralelos essenciais.37
Porém, mesmo com a abertura nas perspectivas históricas, é nítido que os estudos do
trabalho no Brasil, ainda não tem como “horizonte” o entendimento das mulheres negras nesse
processo. Por sua vez, essa “prática” deixa parte fundamental das relações de trabalho por fora
do debate, e talvez, “mascarando” os “pesos e medidas” que o capital impõe sobre a vida da
maior parcela de trabalhadores e trabalhadoras, até o tempo presente. Lavadeiras, arrumadeiras,
cozinheiras, quitandeiras, entre outras, passam, por diversas vezes, invisíveis, aos olhos claros
dos/as estudiosos/as do trabalho. Um passo significativo foi dado no instante que se “rompe”
com a imagem única do trabalhador no Brasil, como branco, masculino e europeu. Todavia,
outras barreiras precisam cair abaixo.
Trabalho, lar e botequim, obra do historiador e pesquisador do Centro de Pesquisa em
História Social da Cultura (Cecult-Unicamp), Sidney Chalhoub, publicada em 1986, pela
editora Braziliense, apresenta, através da utilização de processos criminais como fonte primária,
cenas do cotidiano da classe trabalhadora no Rio de Janeiro na Primeira República. Zé Galego,
Paschoal e Júlia são os protagonistas desta história através de “histórias de amor, brigas de
botequim, tensões entre indivíduos, grupos étnicos e nacionalidades, a trama do dia a dia, as
formas de como ganhar a vida no Rio de Janeiro da chamada belle époque, para descobrir no
cotidiano da classe, um outro lugar da política” como dito por Maria Clementina Pereira Cunha,
na “orelha” da 3ª edição, publicada em 2012 pela Editora da Unicamp.
Transformar o agente social expropriado em homem de bem – isto é , um
trabalhador assalariado – requer também o exercício de um controle sobre a
sua vida fora do espaço do trabalho, pois, afinal, um indivíduo integrado à
sociedade se define ainda por certos padrões de conduta amorosa, familiar e
social38
37 Essa obra chegou ao Brasil em 2017, traduzido pelo Coletivo Sycorax e publicado pela editora independente
Elefante. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa : mulheres, corpo e acumulação primitiva / Sivia Federici. Título
original: Caliban and the Witch: Women, the Body and Primitive Accumulation. Tradução: coletivo Sycorax, p.
9
38 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: os cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque / Sidney Chalhoub. - 3ª ed. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 171.
28
Chalhoub refere-se, nesta obra, aos “bastidores” do Rio de Janeiro, a então capital do
país, num período de crescimento econômico e fortalecimento da política republicana. Também
influenciado pelas leituras de Thompson e Foucault, analisa a vida do “trabalhador comum”,
por fora dos movimentos sociais, ao mesmo tempo que trata a “pluralidade de sujeitos políticos
sociais como questão central. E faz
[...] uma crítica à maneira como a sociologia e a historiografia […] sobre
movimento operário em particular, “representavam os trabalhadores e sua
experiência na história, isto é, havia a tendência de reduzir a história dos
trabalhadores àquela dos movimentos políticos organizados, julgado todos a
partir de um modelo determinado de desenvolvimento da “consciência de
classe”39
No capítulo ...Amando...ele chama atenção para o “problema da relação entre normas de
comportamento dominantes e classes sociais tem sido tradicionalmente abordado[...] do ponto
de vista patológico”40. A partir daí, cria o argumento que questiona “tanto os homens que
ocupam os espaços de poder quanto os cientistas sociais”, que definem o padrão de
comportamento dominante como o padrão universal. Para questionar e argumentar, ele faz uma
menção aos “negros libertos”, na qual tanto no “debate sobre repressão da ociosidade”, feito
pelos barões, na Câmera dos Deputados em 1888, que os caracterizavam com “costumes
depravados” e “cheios de vícios”, quanto dos cientistas sociais, que afirmam sobre o mesmo
negro liberto que apresenta “deformações introduzidas em sua pessoa pela escravidão”,
reforçando a imagem da população negra como imoral à “existência social”41
Em O Brasil Republicano: O tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da
República à Revolução de 1930 organizado pelo historiador Jorge Ferreira e pela cientista
política Lucilia de Almeida Neves Delgado, o historiador da Unicamp Claudio H. de Moraes
Batalha publica o artigo Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva, no qual
aponta reflexões necessárias ao estudo do trabalho na virada do século XX. Inicialmente ele
demonstra que nas pesquisas há uma “imposição do trabalho assalariado sem a concorrência do
trabalho escravo”. Nesse contexto, afirma que não podemos associar as organizações e relações
de trabalho umas sobre as outras, tendo em vista a coexistência durante um determinado tempo,
dentro dos mesmos setores de trabalho. Dessa forma, a reflexão de um processo lento de
formação da classe trabalhadora, que não ocorre de forma mecânica, na mesma proporção da
39 CHALHOUB, Ibidem. prefácio à segunda edição., p. VI
40 CHALHOUB, Sidney. Ibidem, 172
41 CHALHOUB, Sidney. Ibid, apud, Anais da Câmara dos Deputados, 1888. Debate sobre a lei de repressão à
ociosidade. apud. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo – Ática,
v.1, 1978, pp.20 e 154-55
29
industrialização, mas como um processo conflituoso marcado por recuos e avanços, sendo
constituída na ação coletiva e todas as manifestações que afirmam seu caráter de classe42
Recentemente o historiador carioca Álvaro Pereira Nascimento publicou um artigo
intitulado Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à história social
do trabalho no Brasil, na Revista Estudos Históricos, do Rio de Janeiro, no qual faz um debate
baseado no “paradigma da ausência” que expõe críticas aos estudos do Mundo do Trabalho pela
ausência da população negra na historiografia. “Para onde foi população negra pós abolição?”
é uma pergunta que tem sido feita com mais frequência nos últimos anos, através de influência
dos movimentos sociais e da relação entre história e as outras disciplinas das ciências humanas.
Alguns se defendem culpando as fontes que não trazem a cor dos
trabalhadores ou alegando que não conseguiram tempo para “ir atrás”, como
ouço em debates nas mesas de congressos e simpósios. Amparados pela frágil
argumentação da “transição do trabalho escravo para o livre”, outros proporão
e seguirão objetivos que não abrangem o período anterior a 1888.
Reconhecemos as dificuldades enfrentadas em alguns trabalhos, mas,
perguntamo-nos, será que dialogamos com colegas da escravidão e do pósabolição para buscarmos outras fontes e ferramentas teóricas e
metodológicas sensíveis à participação da experiência de negros e negras
na formação do mundo do trabalho e do próprio movimento operário, nas
escalas local, regional, nacional e transnacional?” (grifo meu)43
É nesse entrave do debate, entre resistência e liberdade, que Silvia Hunold Lara destaca
que é importante pensarmos quais noções assumimos como perspectiva para essa discussão.
Às vezes ser livre significou poder viver longe da tutela e do teto senhorial ou
poder ir e vir sem controle ou restrições; outras vezes, significou poder
reconstituir laços familiares e mantê-los sem o perigo de ver um membro da
família ser comercializado pelo senhor. Muitas vezes, a liberdade significou a
possibilidade de não servir a mais ninguém, e, aqui a palavra liberdade adquire
dimensões econômicas, conectando-se a luta pelo acesso da terra: durante a
escravidão e depois da abolição, muitos ex escravos lutaram para manter
condições de acesso à terra, conquistadas durante o cativeiro. Como se poder
ver, estamos bem longe de entender a liberdade como a possibilidade de
vender “livremente” a força de trabalho em troca de salário.44
Tendo em vista que o Brasil recebeu um grande contingente de imigrantes europeus (de
diversas localidades) para ocupar os locais de trabalho, Antônio Luigi Negro e Flávio Gomes,
apontam que a “entrada maciça” desses imigrantes teve seu início a partir da segunda metade
do século XIX, vindo tanto para trabalhar nas áreas urbanas, quanto rurais no Brasil. A
42 BATALHA, Cláudio HM. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva. FERREIRA, J.;
DELGADO, LAN Brasil Republicano: da proclamação da República à Revolução de, v. 30, 1930. .
43 NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Trabalhadores negros e “paradigma da ausência”: contribuições à história
social do trabalho no brasil. Revista Estudos Históricos, v. 29, n. 59, p. 607-626, 2016. , p. 609
44 LARA, Silvia H. Ibidem, p. 28
30
historiografia tradicional, que aponta o trabalhador na Primeira República é “masculino, branco
e europeu”, criou a imagem do trabalho consoante à imagem do “progresso” no Brasil
republicano do século XX. Claudio Batalha afirma que os brancos e estrangeiros compunham
a classe trabalhadora, principalmente no Estado de São Paulo e na região sul do Brasil, devido
ao forte fluxo imigratório de origem europeia para essas localidades. E as mulheres, por sua
vez, tiveram um papel significativo, principalmente, no setor têxtil e de vestuário45.
É nesse sentido que o “paradigma da ausência”, de Álvaro Nascimento apresenta duas
questões relevantes, que contribuem significativamente sobre os questionamentos que
historiadores e historiadoras podem fazer em suas pesquisas sobre trabalhadores e trabalhadoras
no Brasil: buscar entender o tipo de relação existente entre trabalho escravo e trabalho livre no
Brasil, partindo da historiografia e quais problemas derivados desse “paradigma da ausência”
são expostos por ela.
A historiografia que investiga trabalhadores pobres e o movimento operário
na República tende a não incluir o componente cor dos indivíduos pesquisados
em suas páginas. Essa ausência torna-se ainda maior nas pesquisas voltadas
para os séculos XX e XXI, quando a cor dos trabalhadores é frequentemente
invisibilizada46
Nesse artigo inicia o debate fazendo uma discussão a partir de uma “fala” de Sidney
Chalhoub, no simpósio E.P. Thompson e o Brasil, na ANPUH de 2001, onde lança o
protagonismo negro como sendo pioneiro na luta dos trabalhadores no Brasil, questionando o
discurso unilateral da luta “anarquista” dos trabalhadores europeus. É fundamental afirmar que
a história do trabalho no Brasil, não tem início no século XX. Assumir esse discurso é admitir
uma historiografia racista, que apresenta a cultura e os costumes da população negra como
degenerados, tornando-os incapazes de serem admitidos na “civilidade” do mundo do trabalho
no século XX. Como disse Chalhoub “é preciso mudar a tonalidade e até o sentido de nossas
perguntas”47.
A luta dos escravos pela liberdade na segunda metade do século XIX foi o
primeiro capítulo da história do movimento operário no Brasil. Os escravos
organizaram-se coletivamente para obter a liberdade, negociaram condições
de trabalho, fizeram greves, recorreram à justiça para conseguir alforrias e
para confrontar os senhores de diversas formas. Enfim, articularam uma
cultura política complexa que ajudou a enterrar a sociedade senhorialescravista.48
45 BATALHA, Claudio H. M. Ibidem, p. 173
46 NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Idem
47 CHALHOUB, Sidney. Ibidem p. 173.
48 NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Ibidem, apud. CHALHOUB, Sidney. O primeiro capítulo da história do
movimento operário no Brasil. Livro de Resumo – XXI Simpósio Nacional de História. Niterói: UFF, 2001
31
Segundo Álvaro Nascimento, os que ele chama de “colegas da história”, que dedicam
suas pesquisas sobre trabalho no século XX, quase raramente demonstram interesse em
entender a diversidade nas resistências da população negra e quais problemas raciais foram
enfrentados no mundos do trabalho. “Foram os historiadores da escravidão e da pós-abolição
que mais investigaram mulheres e homens negros no processo. Encontraram-nos/as nas fábricas
enquanto operários/as”.
Wlamyra Riberiro Albuquerque, historiadora formada pela Universidade Católica de
Salvador (UCSAL), mestre em história pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pesquisadora da abolição e racialização
pós abolição no Brasil, faz um trabalho fundamental, em seu doutorado, para discutir as
estruturas do racismo no Brasil, envolvendo as lutas de trabalhadores e trabalhadoras
escravizadas no fim do século XIX. A pesquisadora procura compreender a ideia de raça no
contexto pós abolição no estado da Bahia e quais impactos que isso teve na vida da população
negra que fora escravizada. Ela faz um caminho de estudo para entender o processo de abolição
do trabalho escravo, que por sua vez perpassa não apenas pelas questões econômicas, baseadas
nas disputas inglesas e portuguesas do mercado internacional. Sua pesquisa só faz sentido
quando entendida em um contexto cercado das problemáticas socioculturais e também políticas
como parte constituinte desse processo.
Os juristas Tavares Bastos e Nabuco de Araújo criaram na década de 60 o
jornal A Reforma, instrumento de propaganda pelo fim gradual da escravidão,
sem o comprometimento da ordem e economia nacional.
Para Tavares Bastos por não existirem no Brasil “distinções sociais ou
políticas por causa de cores ou raça”, depois da emancipação dos escravos
“[dar-se-ia] o contrário dos Estados Unidos.” Pois, “aqui não há como lá,
desigualdade real das raças; não há profundas antipatias entre elas; o preto e o
mulato gozam aqui de todos os direitos políticos.49
Segundo Albuquerque, o abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco, também
manteve a mesma “linha” dos juristas mencionados acima, fortalecendo as afirmações que
tentaram atenuar o “peso” da escravidão no Brasil, “colocando debaixo do tapete” o caráter
racista das instituições. Sob a “bandeira abolicionista” reuniu-se diversos segmentos da
sociedade, com propostas e intenções distintas.
A pesquisadora afirma que o “13 de maio de 1888”, na verdade, libertou “uns poucos
negros”, porque a maioria “já havia conquistado suas alforrias através de inúmeras estratégias”.
49 ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil. Centro de
Estudos Afro-Orientais, 2006. p. 63
32
Dados estudados por Luis Anselmo, João José Reis fazem uma estimativa que entre 1972 e
1888 a população escravizada em Salvador decaiu de 12% para 2,5%50. A partir disso, é possível
buscar “novos” caminhos para entender essas “transformações” nas relações de trabalho.
A historiadora Rachel Soihet, que tem sua pesquisa voltada para o estudo das relações
de gênero, história das mulheres, Rio de Janeiro e feminismo, e atualmente é professora da
Universidade Federal Fluminense (UFF), publicou um artigo chamado Um debate sobre
manifestações culturais populares no Brasil dos primeiros anos da República aos anos 1930,
que apresenta uma discussão contrária ao discurso de homogeneidade entre “povo e elite” nas
práticas sociais. Mas afirma que apesar da “corrente que visava o extermínio das manifestações
populares, não faltaram representantes dos segmentos elevados e médios que os prestigiaram”.
Como exemplo ela cita o candomblé no Rio de Janeiro, que passou na Primeira República por
intensos momentos de repressão e que tanto as autoridades, como os jornais, se empenhavam
em transparecer o preconceito quando referiam-se “aos populares adeptos dessa forma de
religiosidade”, demarcando o lugar das práticas inconsistentes com a República. E deixa nítido
que eles não foram os únicos afirmaram suas posições contrárias à vida de trabalhadores e
trabalhadoras pobres (negras, indígenas e nacionais):
Muitos médicos assumiam que os devotos destes cultos eram mentalmente
desequilibrados, sendo publicados estudos sobre desordens mentais causadas
pela participação nessas seitas religiosas. Em decorrência, os esculápios
chegam, inclusive, a recomendar que os seus seguidores fossem registrados
na polícia, devendo ser submetidos a exames periódicos para determinar sua
estabilidade intelectual e psicológica51
Ou seja, no Rio de Janeiro no início do século XX, a população negra teve que
apresentar-se em delegacias sob justificativa de seus costumes estarem associados à
“anormalidades” que precisavam ser combatidas. Mesmo após abolição da escravidão em 1888,
o aprisionamento continuou sendo uma constante na vida de grande parte da população negra.
E de certo que essa repressão não foi caso único no estado do Rio de Janeiro, mas se estendeu
por todo país. Em 1912, Alagoas também viveu cenas de forte repressão às religiões de matriz
africana. Sobre o episódio do “Quebra de Xangô”, a historiadora Irineia Maria Franco dos
Santos, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e pesquisadora, principalmente,
da História Social das Religiões, compreende que:
50 ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. Ibdi, p. 84
51 SOIHET, Rachel. Um debate sobre manifestações culturais populares no Brasil dos primeiros anos da
República aos anos 1930, p. 4
33
Desde o início do século, a população negra em Maceió manteve um fluxo
constante de migrações entre os interiores e a capital, principalmente
acompanhando a rota fluvial do Rio São Francisco. A maior parte dela
sobrevivia (ainda hoje sobrevive) do trabalho nas usinas de cana-de-açúcar e
mais ainda da pesca, do artesanato e do pequeno comércio. As atividades dos
artífices, em barro, madeira, tronco de coqueiro, palha, renda etc. alimentavam
o mercado de objetos religiosos. A tradição oral conta sobre a simplicidade e
a rusticidade dos materiais utilizados na sua confecção. Roupas e objetos
rituais, tambores e ornamentos, miçangas, eram feitos pelos negros artesãos
de Maceió e do interior, e vendidos na cidade. O ingome era construído de
barrica de bacalhau, que vinha nos navios, ou de tronco de coqueiro.
Tal simplicidade seria o resultado da pobreza econômica vivida pela
população negra de Maceió e no Estado. Para alguns estudiosos, era a marca
da influência banto na região – da qual derivaria a “pobreza” dos objetos, da
mítica e do ritual nagô na cidade – caracterizada ainda por um forte
sincretismo católico. Assim, alguns entenderam a religiosidade negra em
Maceió, sua mítica e prática, como inferior àquelas outras da Bahia. Tal tese
foi defendida por alguns dos intelectuais mais conhecidos entre os anos 1930
e 1950 (Alfredo Brandão, Arthur Ramos, Abelardo Duarte) e ainda
reproduzida em discursos antixangô nos anos 1970 e 1980.52
Através de ambas com a discussão sobre repressão à manifestações populares, é possível
perceber que tanto no Rio de Janeiro, quanto em Alagoas, as “elites não eram homogêneas e,
alguns de seus representantes, também recorriam aos pais de santo.”53, no Rio, Soihet fala sobre
o envolvimento do Senador Irineu Machado com o candomblé e suas intenções políticas; em
Alagoas a presença se dá através do governador do estado Euclides Malta, sendo essa relação
um dos “motivos” transpostos para disputa política com o grupo de oposição, que resultou num
conflito sangrento,
Entre os dias 01 e 02 de fevereiro de 1912 a milícia particular conhecida como
Liga dos Republicanos Combatentes, tumultuou a cidade. Prepararam-se,
invadiram e quebraram os principais terreiros de Xangô em Maceió
(RAFAEL, 2004, 24-26). Além de várias outras ações violentas, Tia
Marcelina, africana, conhecida Ialorixá da época, foi morta com um golpe de
sabre na cabeça. Muitos outros pais e mães de santo e membros do culto
sofreram violência e humilhações. Tiveram suas casas invadidas, os
assentamentos de orixás e objetos rituais quebrados ou queimados. Tal fato foi
justificado perante a população através de campanha feita pelos jornais de
oposição, em que se associava a pessoa de Euclides Malta com os terreiros de
Xangô.
Dizia-se que Malta era frequentador de terreiros, xangozeiro, filho de Leba –
designativo de origem jeje correspondente ao orixá nagô Exu. Dessa forma,
por estar supostamente o governador envolvido com “bruxarias demoníacas”,
explicavam-se todos os problemas sociais e econômicos do Estado. 54
52 SANTOS, Irineia Maria Franco dos. “Nos domínios do Xangô”: Religiões Afro-brasileiras em Alagoas e a
memória do Quebra de Xangô (1912-1980)”, p. 6
53 SOIHET, Rachel. Ibid, p. 6
54 SANTOS, Irineia Maria Franco dos, Ibidem, p. 1
34
Nos estudos sobre trabalhadores na Primeira República, Marcelo MacCord, bacharel em
História pela UFRJ, mestre e doutor em História pela Unicamp dedica suas pesquisas à História
Social do Recife, principalmente à segunda metade do século XIX. Em 2016 publica "Direitos
trabalhistas em construção: as lutas pela jornada de oito horas em Pernambuco, 1890-1891."
na Revista Tempo, onde o historiador busca questionar sua documentação que não apresenta a
cor de seus trabalhadores. Influenciado pela perspectiva thompsiniana, “que discute a formação
da classe operária como processo histórico reconstruído por meio do trabalho empírico com as
fontes (Thompson, 1981 e 1997)”, o autor afirma que apesar da documentação a qual lida,
“invisibiliza a cor”, ele está se referindo a população da capital pernambucana, cujas referências
de imigração europeia no fim do século XIX são pouquíssimas, ou seja, o mercado de trabalho,
continua, por sua vez, contratando os mesmos “descendentes de africanos”55
E esse ensaio, no recorte espaço temporal proposto neste artigo, exigiu que os
trabalhadores que povoam meu texto lutassem contra a precarização de sua
liberdade e de sua mão de obra por meio da escolarização, da participação
política stricto sensu, da conquista/manutenção de privilegiado status social e
da mais expressiva aproximação com o movimento operário nacional e
internacional.56
Sobre essa questão, é importante pensar, contudo, na possibilidade de trazer para as
pesquisas sobre trabalho e trabalhadores na Primeira República, outras relacionadas ao período
anterior ao início do trabalho livre, as quais permitem uma investigação sobre as características
dos trabalhadores tanto do período escravista e até mesmo a modificação gradual ao trabalho
livre. Sobre essa discussão, Mac Cord afirma:
Tributário dos novos estudos, o texto que entrego ao leitor é fruto de minha
atual pesquisa, que dialoga com outras que desenvolvi na última década. Há
um problema central que as conduz: compreender o que motivou a
organização formal de certas categorias de trabalhadores pernambucanos no
transcorrer do século XIX. A problemática é extremamente instigante, pois
exige que enfrentemos as mais rígidas explicações sobre a formação da classe
operária nacional. Em outras pesquisas sobre o Recife oitocentista, recortadas
no período em que vigia o escravismo, demonstrei como era importante para
os descendentes de africanos que eram brasileiros, livres e artífices
qualificados dissociarem suas imagens do estigma da escravidão e do defeito
mecânico57
Em 1998, o historiador formado pela Pontífice Universidade Católica (PUC-SP) Carlos
55 MAC CORD, Marcelo. "Direitos trabalhistas em construção: as lutas pela jornada de oito horas em
Pernambuco, 1890- 1891." Tempo 22.39 (2016), p. 177, 178.
56 MAC CORD, Marcelo. Ibidem, p. 178.
57 MAC CORD, Marcelo. Ibidem, p. 177
35
José Ferreira dos Santos (Casé Angatu58) publica “Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza
(1890-1915), através da editora Annablume (SP). Essa obra, assim como as demais citadas,
traduzem a preocupação da pesquisa sobre trabalhadores e trabalhadoras no Brasil pós abolição.
Casé, no estudo sobre as “populações pobres nacionais”, questiona a historiografia do trabalho
na grande região de São Paulo, que afunila sua história quase que unicamente ao trabalhador
fabril e europeu, mais especificamente italiano, deixando fora da escrita da história,
trabalhadores e trabalhadoras que já desprendiam sua força em território nacional antes mesmo
da chegada dos imigrantes. E segundo ele, a “Historiografia Social do Trabalho”, acaba
“privilegiando” os movimentos socialistas e anarquistas, como sendo esses os únicos a
combaterem as pressões impostas pelo sistema capitalista no século XX, deixando de lado, todo
histórico de luta que trabalhadores e trabalhadoras enfrentavam muito antes da chegada dos
imigrantes europeus. No posfácio, afirma que São Paulo era uma região onde “moravam índios,
negros, caboclos e caipiras” com suas linguagens, vivências, histórias, memórias, identidades e
(re)sistências seculares e ancestrais”59
Influenciado pela leitura foucaultiana, Casé discute ao longo dos capítulos, os elementos
da “civilização” e do “progresso”, sob o alicerce crítico do “projeto modernizante e de
branqueamento para a cidade que se quer metrópole” e deixa evidente a “presença dos nacionais
pobres”, contrariando as narrativas dominantes, afim de “demarcar territórios e modos de
viver”, fazendo uma crítica urgente ao “discurso de desqualificação” dessas populações por ele
mencionadas. No prefácio da obra, a historiadora Heloísa Faria Cruz,
professora e
coordenadora do Centro de Documentação (CEDIC) da PUC, afirma:
Para além da crítica a uma visão elitista e triunfalista da história da vida urbana
no período, a identificação da presença desses pobres nacionais como pretos,
pardos, mestiços, caipiras, caboclos, pretos velhos, lavadeiras briguentas em
sua maioria e ex escravas ou mamelucas, amas-de-leite, carroceiros
impertinentes; o realce dando a força alternativa de suas práticas culturais, as
ervas, as benzedeiras, os modos de trabalho, as tradições culinárias, as danças
e as festas nos propõe uma São Paulo onde nem tudo era italiano. Mais
importante, contribui para a compreensão dos processos de exclusão, ontem e
hoje, iluminando silêncios da historiografia sobre as temáticas da cidade e do
trabalho no período.60
Os principais argumentos dos/as pesquisadores/as citados acima, são constituídos a
58 Nome do batismo indígena do autor, junto à comunidade indígena Tupinambá de Olivença, na cidade de Ilhéus
(BA).
59 DOS SANTOS, Carlos José Ferreira. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza, 1890-1915. Annablume,
1998. posfácio.
60 DOS SANTOS, Carlos José Ferreira. Ibidem , prefácio.
36
partir da contraposição à história tradicional, que por um longo período, define que os postos
de trabalho pós abolição, foram todos ocupados por os trabalhadores do sexo masculino, de
pele branco e de origem europeia, como já referido anteriormente. As populações negras e
indígenas foram, por três séculos, a maior força de trabalho do país, mesmo elas tendo sido
desaparecidas da escrita da história após o fim da escravidão. A invisibilização dos
trabalhadores e trabalhadoras negras e indígenas, recaí sob a construção de um bloco
homogêneo de norte a sul do Brasil, na construção da imagem do trabalhador nacional.
A suposta inexorabilidade na passagem do trabalho escravo para o trabalho
livre no Brasil foi mais projeção das elites, numa ideologia – a da construção
da nação – que produzia discursos sobre a substituição da mão-de-obra.
Escravos, africanos e crioulos seriam substituídos por trabalhadores livres,
imigrantes europeus. Indolência e atraso por tecnologia e aptidão; forjava-se
a ideologia do trabalho livre no Brasil criada sob os símbolos da civilização e
do progresso. No imaginário das elites e nos projetos imigrantistas, África,
escravidão, escravo e o negro eram associados à barbárie. A nação estava em
jogo e a substituição do escravo pelo trabalhador livre seria menos uma
questão de cálculos, prejuízos e lucros, quando não se desejava qualquer tipo
de trabalhador livre, mas sim o imigrante, o branco europeu, considerado
capaz de garantir a civilização e o progresso do Brasil (cf. Azevedo, 1987).61
61 NEGRO, Antônio Luigi; GOMES, Flavio. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo
social, v. 18, n. 1, p. 227, 2006
37
III.
CAPÍTULO 2 – COTIDIANO E HISTORIOGRAFIA ALAGOANA
2.1 COTIDIANO MACEIOENSE PÓS ABOLIÇÃO
Maceió é uma cidade que “surge a partir de um engenho de açúcar, situada às margens
do riacho Maçayo, durante o século XVIII62. A cidade viveu um “surto de crescimento ao longo
do século XIX, principalmente após 1839, quando se tornou capital da província de Alagoas”,
tendo isso se dado a partir da presença da “burguesia mercantil” formada em torno do porto, a
partir dos exportadores de açúcar63.
Maceió cresceu desordenadamente, sem planejamento, “de modo que o grosso
das construções encontradas pela República tinham as linhas características
das edificações do Segundo Reinado.64
De acordo com o jornalista Craveiro Costa, no período que marca a vida pós abolição,
Alagoas se apresenta economicamente em ascensão: “pelas estatísticas oficiais existentes,
verifica-se que a transição do regime político do país, em 1889, encontrou o estado com sua
capacidade de produção em via crescente”65 e, ao mesmo tempo, indica que a República trouxe
para Alagoas o crescimento da vida municipal - que até então dependia dos governos
provinciais. Maceió, é uma de suas principais obras e foi publicada em 1939, pela Livraria José
Olympio, no Rio de Janeiro, tendo sido “financiada pela Prefeitura Municipal de Maceió”, para
ser usado como material festivo, de comemoração do centenário de mudança da capital para
Maceió, no governo do fazendeiro Eustáquio Gomes de Melo. Nessa obra ele deixa claro que
o progresso republicano trouxe grandes ganhos para o estado e consequentemente para sua
capital. Segundo ele, a partir da República, as cidades passaram ser de responsabilidade do
próprio município e foi então que a economia da capital alagoana entrou em uma curva
crescente66. Mas esse crescimento aconteceu desordenadamente, com foco no desenvolvimento
do capital, no enriquecimento das elites e na continuidade das relações precárias de trabalho, e
trouxe consigo um grande número de conflitos sociais que agravou consideravelmente a miséria
das populações mais empobrecidas com as desigualdades econômicas.
62 MARQUES, Danilo Luiz. "Sobreviver e resistir: os caminhos para liberdade de africanas livres e escravas em
Maceió (1849-1888)." (2013). p. 27
63 MARQUES, Danilo Luiz. Idem
64 DIEGUES JR., Manuel. “Evolução urbana e social de Maceió no período republicano” In: COSTA, Craveiro.
Maceió: Edições Catavento, p. 201, 2001
65 COSTA, Craveiro. História de Alagoas: resumo didático. São Paulo: Melhoramentos, 1983. p. 160.
66 COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: Edições Catavento, p. 200. 2011
38
A miséria e as desigualdades sociais geradas por esse processo fica visível quando nos
deparamos com denúncias em jornais locais, a respeito da grande circulação de mendigos nas
ruas da capital alagoana67 ou, ainda, quando encontramos relatos de trabalhadores que
denunciam as péssimas condições de trabalho, as longas jornadas e as precárias condições de
moradia68
No último capítulo de Maceió, o abolicionista69, sociólogo, antropólogo, jurista e
folclorista Manuel Diégues Junior70, em nome da urbanização e modernização da cidade, afirma
que os intendentes, e posteriormente os prefeitos, tiveram que fazer grandes esforços para
modernizar Maceió,
endireitar as velhas ruas da cidade, ruas cheirando a peixe frito, tapioca e
arroz-doce, vendidos nas esquinas, em tabuleiros enfeitados com papel de sêda
cortado em desenhos ou figurinhas de variadas cores – verde, amarelo,
vermelho e azul; ruas cheias de negras trajando chales e turbantes de cores
fortes na cabeça; essas ruas transformaram-se e modificaram-se 71 (grifos
meus)
Em outras palavras, sua opinião deixa claro que a modernização e a vida urbana não
combinavam com as diversidades sócio culturais e econômicas existentes em Maceió na virada
do século. Ao tratar sobre a vida urbana, Diégues Junior faz breves comentários sobre os
principais bairros da cidade, que por sinal eram os mesmos ainda do império. “Jaraguá, Poço,
Trapiche da Barra, Levada, Bebedouro”. A partir de suas descrições, percebemos que a cidade
era rodeada de arrabaldes pouco habitados, e que foram sendo ocupados e reconstruídos ao
longo do século XX.
Sobre a distribuição dos bairros, o historiador Osvaldo Batista Acioly afirma:
A cidade, em inícios do século XX possuía quatro bairros: Maceió, Jaraguá e
Levada, que ficavam na parte baixa da cidade, e o Alto do Jacutinga. Indo na
direção Norte, arrastando-se preguiçosamente no nível do mar, temos o
arrabalde da Mangabeiras e os povoados de Ipioca, Mirin, Garça Torta e
Riacho Doce. Em direção ao Sul, temos na restinga entre o mar e as lagoas, o
arrabalde do Trapiche e o povoado de Pontal da Barra. Ainda na área mais ao
67 Mendicidade. Perseverança, 15 de agosto de 1909, ano 1, n 2.
68 ALMEIDA. Luiz Sávio de. Chrônicas alagoanas vol. II – Notas sobre poder, operários e comunistas em alagoas.
Maceió: EDUFAL, 2006.
69 Segundo a lista de verbetes ABC das Alagoas, ele foi colaborador na Campanha Abolicionista, sendo um dos
membros da Sociedade Libertadora Alagoana. Dela também fizeram parte: Dias Cabral, Diégues Júnior, Pedro
Nolasco Maciel, Francisco Domingos da Silva, Antônio José Duarte, Eusébio de Andrade, Fernandes Lima,
Ricardo Brenand Monteiro, Luiz Lavenère, José Higino de Carvalho, João Gomes Ribeiro, Adolfo Ascoff, Luiz
Mesquita, Stanislau Wanderley, Guido Duarte.
70 É importante deixar ressaltado que após a morte de seu pai, ele foi diretor das fábricas de tecidos de Fernão
Velho, Cachoeira e Rio Largo.
71 DIEGUES JR., Manuel. ibidem, p. 201
39
Sul, afastando-se do litoral, mas margeando ainda as lagoas, teríamos os
arrabaldes de Mutange, Bom Parto, Bebedouro. Neste sentido, saia-se da
cidade em direção da Fábrica de Fernão Velho e das outras três, que já ficavam
em áreas pertencentes a outros municípios. Já o Alto do Jacutinga, localiza-se
num tabuleiro elevado no sentido Oeste da cidade. Contraditoriamente, o lugar
é representado na imprensa da época ora como área mal assombrada, matagal
que circunda a cidade, para onde corriam marginais, ora como novo bairro
chique da gente “abastada”, que buscava paz e sossego em chácaras e sítios.72
Em relação a criação das primeiras praças da cidade, o membro da sociedade
abolicionista, Diégues Junior, demarca uma fala extremamente preconceituosa, sobretudo
racista, deixando explícita a disputa pelo espaço urbano e pela representação política, alegando
uma harmonia inexistente e embranquecedora das classes sociais. Afinal de contas, era por
conta da presença de negros e negras que andavam, viviam e trabalhavam nas ruas de Maceió,
que as “famílias tinham receio” do espaço público, tal qual afirma o autor em outras palavras.
As praças surgem também nesse período, com mais importância; o contato
com a rua não é privativo dos moleques, dos negros, dos vagabundos, das
mulheres perdidas. As famílias já procuram as ruas, já vão as praças e já
assistem os festejos públicos. A democracia política que a república trouxe,
alia-se a democracia social; a aproximação entre as classes sociais, um como
que nivelamento73 (grifo meu)
As famílias das quais ele se refere, muito provavelmente não tiveram que enfrentar a
instituição da escravidão, que durou por mais de três séculos no Brasil, e impediu diversos
vínculos familiares. É exatamente nesse contexto que africanos e africanas eram comprados e
vendidos diariamente de acordo com a demanda da acumulação de capital.
[…] americanos colonizados e os africanos escravizados que, nas plantations
do Novo Mundo, tiveram um destino similar ao das mulheres na Europa,
fornecendo ao capital a aparentemente inesgotável provisão de trabalho
necessário para a acumulação.74
Cynthia Nunes da Rocha Fortes, formada em Arquitetura pela Universidade Federal de
Alagoas (UFAL) e colaboradora do Grupo de Pesquisa Representações do Lugar (RELU),
apresentou em 2011 sua dissertação de mestrado, que teve como título “Para além do guia dos
navegantes: O farol de Maceió (1827-1951)”, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU)
da UFAL. Neste trabalho, a arquiteta desenvolveu estudos sobre “a construção do ‘farol de
Maceió’ na formação da construção das memórias do bairro do Farol” e a relação com o
72 MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Filhos do trabalho, apóstolos do socialismo: os tipógrafos e a construção de
uma identidade de classe em Maceió (1895/1905). 2004, p. 30.
73 DIEGUES JR., Manuel. Ibidem, p. 202
74 FEDERICI, Silvia. Ibidem, p. 357
40
desenvolvimento urbano da cidade. Ela explica que sua análise se deu através de
“documentações escritas e iconográficas encontradas nos arquivos públicos da cidade”.
Interessante é que Fortes buscou entender a capital alagoana a partir do Alto do
Jacutinga, colocando em questão um referencial inverso ao dado como alternativa para a
maioria das pesquisas sobre a região nesse período. O bairro era localizado nas colinas que
margeavam a então cidade de Maceió em crescimento, e atualmente, ocupa o espaço no qual é
conhecido como bairro do Farol. A partir de cartões postais do início do século e de produções
literárias, a arquiteta selecionou cenas e imagens que “retrataram” a vida nesse entorno
maceioense.
É provável que a população menos favorecida nessa época, que não podia
pagar por uma residência na área central, o bairro de Maceió, que concentrava
as melhores moradias, deve ter optado por esses terrenos de encosta,
fronteiriços ao centro da cidade; este, juntamente com Jaraguá, abrigavam a
maior parte dos estabelecimentos de serviço e comércio, locais de trabalho
para muitas dessas pessoas.75
Essa pesquisa além de apresentar a “movimentação urbana”, entre as regiões de fluxo
comercial, de trabalho e as regiões turísticas, faz questão de ter como foco principal uma das
regiões mais marginalizadas da cidade, localizando a vida de trabalhadores e trabalhadoras
empobrecidos que habitavam a capital no início do século XX.
Assim como Mac Cord refere-se a capital pernambucana no período pós abolição,
Maceió no mesmo momento, além de não demarcar diretamente a cor de seus trabalhadores e
trabalhadoras na documentação da virada do século, apresenta pouquíssimos registros de
imigração europeia naquele período, provavelmente dando continuidade à contratação dos
descendentes de africanos 76, também como das demais populações pobres nacionais, como
indicado pelo historiador Casé Angatu, comentado no primeiro capítulo. (ANEXO 1)
Em 1976 foi editada a primeira edição da obra Maceió de Outrora, do alagoano Félix
Lima Júnior, “por iniciativa do professor Moacir Sant’Ana, diretor do Arquivo Público de
Alagoas (APA)”. A obra literária é apresentada sob “o olhar” de um escritor natural da cidade.
Nascido na cidade de Maceió, na Rua do Comércio, no início do século XX, Lima Júnior
estudou “as primeiras letras em escola pública estadual e os preparatórios no Liceu Alagoano,
trabalhou no Banco do Brasil [...] e foi membro da Academia Alagoana de Letras”77. Em um
75 FORTES, Cynthia Nunes da Rocha et al. Para além do guia dos navegantes: o farol de Maceió (1827-1951).
2011.
76 MAC CORD, Marcelo. Ibdem, p. 177
77 ABC das Alagoas. Verbete Félix Lima Junior. Além das informações citadas acima ele foi membro do IHGAL,
empossado em 26/06/1954, na cadeira 5, da qual é patrono Francisco Inácio de Carvalho Moreira (Barão de
41
artigo sobre alagoanos ilustres, publicado pela Secretaria de Cultura do Estado de Alagoas,
afirmam que ele foi um jovem de origem humilde e em sua educação “não consta a formação
superior”, porém “foi um homem participativo na vida literária da cidade”.
Em Maceió de Outrora ele organiza “uma espécie de quadro de costumes e
experiências” da vida social maceioense entre o século XIX e o XX, através de crônicas,
editadas em dois volumes. No segundo, uma de suas imagens literárias, é reservada unicamente
para falar da questão dos transportes coletivos na cidade. Nessa crônica, ele afirma que “em
1890 foi fundada a Companhia Alagoana de Trilhos Urbanos, a Catu, com capital
exclusivamente alagoano dividido em ações”78
A quase totalidade das ações pertenceu ao Comendador Teixeira Bastos, que
a passou à família Melo Machado. Posteriormente, foram as mesmas ações ter
às mãos os Leões, da Usina Utinga, e depois, à Companhia Força e Luz
Nordeste do Brasil.
Os veículos para passageiros – puxados por dois burros, com oito bancos e
iluminados a carbureto – não tinha campa. Quando alguém queria descer –
não havia pontos de parada... – batia no soalho com o guarda-chuva ou com a
bengala. Quem não conduzisse bengala ou guarda-chuva que se arrumasse
como pudesse. 79 (grifo meu)
Os bondes faziam percurso entre Jaraguá, Maceió e Bebedouro. Em 1899 houve a
tentativa com a fundação da “Companhia Elevadora Jacuntinguense”, na intenção de levar o
transporte à parte alta da cidade. Mas como afirma o cronista alagoano, “Era pequeno o número
de habitantes, gente pobre e humilde que preferia subir a pé as ladeiras da Catedral, do Cortiço,
do Brito e dos Martírios.”80. Desse modo fica evidente existir uma nítida distinção entre os
moradores e moradoras do Alto do Jacuntinga e das demais regiões da cidade. Porém, essa
discussão terá mais profundidade no terceiro capítulo.
O Porto de Maceió, localizado no bairro de Jaraguá, é um espaço relevante a discussão
sobre o trabalho pós abolição em Alagoas, pois reuniu grande número de trabalhadores em
diversas funções, sendo trapicheiros, estivadores, lancheiros, doqueiros, carroceiros, etc.
Segundo Osvaldo Batista Acioly Maciel, Jaraguá se tornou a sede do comércio e de toda
movimentação da capital alagoana, reunindo “trapiches alfandegados, armazéns de depósito,
associação comercial, bancos, restaurantes, capitania dos portos, fábricas, diversas fundições,
Penedo). Sócio correspondente do Instituto Histórico de Pernambuco, como também da Comissão Alagoana de
Folclore. Sócio Benemérito da Sociedade Montepio dos Artistas Alagoano e sócio honorário do Instituto
Histórico, Etnológico e Folclórico de Tucuman - Argentina.
78 JÚNIOR, Félix Lima. Maceió de outrora. Ufal, 1976. , p. 29.
79 LIMA JUNIOR, Felix. Ibidem, págs. 29 e 30
80 LIMA JUNIOR, Felix. Ibidem, p. 30
42
etc., sendo assim o bairro de maior circulação” da capital.81
Dadas as contradições presentes em Maceió após abolição do trabalho escravo,
trabalhadores e trabalhadoras forjaram em seu cotidiano, formas de resistir a exploração nos
locais de trabalho, além de enfrentar às precárias condições de vida.
2.2 - HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA ALAGOANA
De acordo com as perspectivas teóricas e metodológicas discutidas no primeiro capítulo,
a intenção aqui, perpassa por entender a experiência e o cotidiano dos trabalhadores e
trabalhadoras pouco mais de uma década após a abolição dos povos escravizados (1888), na
capital alagoana. Para isso, é indispensável um diálogo amplo entre as diversas áreas de estudos
que conseguem “montar o quebra-cabeça” das relações sociais em Maceió na virada do século
XIX para o século XX, na intenção de fazer uma História Social do Trabalho pós abolição em
Maceió. Essa pesquisa está marcada temporalmente no início da República no Brasil, e tem
como norteamento o entendimento das relações sociais a partir das relações de trabalho
existentes nesse contexto.
Nesse período, as elites e autoridades brasileiras, para quem a aceitação e implantação
da república significou o progresso do país, a ideia principal foi determinar um perfil
“embranquecedor” da classe trabalhadora brasileira como argumentado pelos historiadores
GOMES; NEGRO (2006). A historiografia tradicional, construiu a imagem do trabalhador
nacional do século XX como branca, masculina e europeia, como dito anteriormente. Porém,
diversas pesquisas no campo da História Social do Trabalho, desmentem as inverdades que não
correspondem a realidade de grande parte da população de trabalhadores e trabalhadoras
nacionais82, deixando “de fora” as populações negras e indígenas, além da forte presença de
mulheres e crianças nos locais de trabalho pós abolição.
É certo a “dificuldade” de encontrar a diversidade de sujeitos históricos em
documentações do início do século, muito devido essa tentativa excludente de “nivelar” o perfil
do trabalhador nacional no século XX,
De outro lado, nos estudos sobre classe operária, sindicatos e partidos
acabavam silenciando sobre o longo e diversificado “embranquecimento” um
problema de pesquisa. Não questionaram a exclusão,trabalhador escravo”, a
personagem de três séculos de nossa história.83
81 MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Idem.
82 Claudio HM Batalha, Silvia H Lara, Paulo S. Pinheiro e Alvaro P. Nascimento são referências nesse debate.
83 NEGRO, Antônio Luigi; GOMES, Flavio. Ibidem, p. 222
43
Porém, como afirma Nascimento (2016), os historiadores que dedicam sua pesquisa à
história do trabalho, pouco se atentam as “lutas da população negra e os problemas raciais que
ela enfrentava”,
muitos trabalhos cresceram e vieram demonstrando como os debates em torno
de classe e consciência de classe, no caso brasileiro, mais emperraram as
investigações dos historiadores ligados ao movimento operário e à cultura
operária do que os auxiliaram no diálogo com o passado. Se, como afirmou
Batalha (1999: 66), a classe iniciou sua “formação” no século XIX, esses
historiadores aventuraram-se muito pouco em buscar este fazer-se.
Foram os historiadores da escravidão e da pós-abolição que mais investigaram
mulheres e homens negros no processo. Encontraram-nos/as nas fábricas
enquanto operários/as Foram os historiadores da escravidão e da pós-abolição
que mais investigaram mulheres e homens negros no processo. Encontraramnos/as nas fábricas enquanto operários/as”
No intuito de entender o cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras da capital alagoana,
dentro da contextualização feita acima, foi necessário buscar auxílio através de pesquisas que
perpassassem o período imperial, o cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras escravizados e o
processo de libertação, para conseguir traçar um caminho para história do trabalho no Brasil
após abolição, principalmente em regiões em que a imigração europeia não teve importância
significativa. “O mundo do trabalho nas sociedades pós-emancipação exigiu a construção de
pontes que o ligasse à cidadania e à conquista de direitos”84
A pesquisa de Luana Teixeira aponta aspectos significativos para entender o perfil da
população escravizada e colocada à venda nos mercados de escravos interprovinciais, no
período que precede a proclamação da República. Segundo ela, em 1882, o número de
escravizados chega quase a 30 mil pessoas em todo estado85. Um debate fundamental em sua
extensa pesquisa, aponta para a constituição e desestruturação das famílias negras. Teixeira
deixa claro que até 1869, “apesar de haver uma condenação moral à separação das famílias,
nada impedia que senhores, no direito de livre dispor de seus bens, vendessem qualquer escravo
em detrimento do rompimento de laços sanguíneos.”86, porém, o Decreto 1.695 de 1869 proibia
a separação de crianças menores de 15 anos, gerado uma diminuição significativa nos registros
de vendas de crianças. Porém,
a partir de 1874, os negociantes começaram a burlar a proibição da separação
de famílias e enviar, não apenas crianças, como adultos casados, para o
84 MAC CORD, apud Ana Maria Rios e Hebe Mattos (2007, p. 55)
85 TEIXEIRA, Luana. O comércio interprovincial de escravos em Alagoas no Segundo Reinado. Tese (Doutorado
em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, p. 57, 2016.
86 TEIXEIRA, Luana, Ibidem. p. 252
44
Sudeste. É possível aventar-se que com a liberação do ventre em 1871 e a
perspectiva de que este fora o ato final para a abolição, a procura por crianças
escravas tenha aumentado muito, elevando seu valor nominal e estimulando a
que os comerciantes se aventurassem na contravenção.87
Angela Davis, a partir de discussões realizadas em diversas áreas, na missão de
investigar a vida social de mulheres negras escravizadas e livres nos Estados Unidos, confirma
que “famílias negras foram desfeitas à força. A separação por meio da venda indiscriminada de
maridos, esposas e crianças foi uma das terríveis marcas do estilo estadunidense de
escravidão”88, não se diferenciando, nesse aspecto, do brasileiro.
Em 2013, o historiador Danilo Luiz Marques, formado pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), apresentou sua dissertação sobre as experiências de mulheres
africanas, livres e escravizadas no cotidiano da capital alagoana, na segunda metade do século
XIX, cujo objetivo foi “investigar as Áfricas existentes em Alagoas, a partir de sua diáspora, de
modo a entender como escravizados “resistiram e procuraram, de diferentes formas, combater
a instituição escravista na Alagoas oitocentista”89. Nesse sentido o autor apresenta sua discussão
a partir das manifestações culturais existentes na capital alagoana oitocentista, como sendo
essas experiências vividas pelos povos africanos escravizados, no intuito de romper com a
“memória contínua e regular sobre Palmares [...] e [...] pensar factual da historiografia brasileira
do século XIX”90. Bumba-meu-boi, maracatu, reisado, entre outras, constituem o enredo das
relações sócio cultuais de Alagoas nesse período.
As manifestações culturais africanas em diáspora não foram separadas ou
criolizadas, erradicadas, mas sim traduzidas, reinventadas, incorporadas ou
mesclando diferentes formas culturais africanas e ameríndias. Os africanos e
seus descendentes no mundo atlântico desenvolveram estratégias para “manter
e ressignificar os modos de ver e viver o mundo sob um sentido histórico”
específico a partir de experiências afrodiaspóricas. A instituição escrava não
significou a súbita morte cultural e étnica dos africanos na diáspora, porém
“as tradições africanas não foram mantidas no ambiente da escravidão na
América em sua plenitude original, mas recriadas” teceram uma “plasticidade
cultural” para escravidão resistir/reexistir no ambiente hostil da escravidão.91
De acordo com Marques, a presença de mulheres negras era “constante nas ruas e praças
da capital alagoana” em toda segunda metade do século XIX. Elas dedicaram suas vidas à luta
por liberdade. Essa vida das “africanas livres e escravas” estavam majoritariamente
87 TEIXEIRA, Luana, Ibidem. p. 253
88 DAVIS, Angela Ibidem, p. 27
89 MARQUES, Danilo Luiz. Sobreviver e resistir: os caminhos para liberdade de africanas livres e escravas em
Maceió (1849-1888). Dissertação (Mestrado em História), 2013.
90 MARQUES, Danilo Luiz. Ibidem, p. 52
91 MARQUES, Danilo Luiz. Ibdem, p. 68
45
relacionadas aos trabalhos nos “serviços domésticos” ou em “pequenos comércio de ruas”92 As
leis abolicionistas mudaram significativamente “a conjuntura política do final do Império”. Ele
afirma que as lutas por liberdade e a resistência dos “povos cativos nos últimos momentos da
escravidão” foram diretamente lutas contra a “hegemonia senhorial”.
Diferentemente do que afirmado pelo professor alagoano Luiz Savio de Almeida, a
escravidão não chegou ao fim por uma queda expressiva entre os números de escravizados93. A
partir disso, ele tenta justificar uma possível “ideia” da elite alagoana em importar pobres
europeus para ocupar os postos de trabalho no estado, mas que o não fizeram por falta de
recursos financeiros. Tratar dessa forma é minimizar séculos de experiência e luta da população
escravizada no estado e no país, além de silenciá-las após abolição. Pesquisa mais recente tem
apresentado o importante papel de homens e mulheres na luta por liberdade.
Ao tentar entender o “papel da mulher na Primeira República”, o antropólogo Ulisses
Neves Rafael, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de
Sergipe (UFS), publicou em 2012 um artigo no Cadernos do tempo presente, intitulado “A
Mulher Alagoana na Primeira Republica: Histórias de Silêncio e Dor.” no qual ele inicia o
debate afirmando que no início do século XX, “o espaço reservado à mulher na Maceió daqueles
primeiros anos do século XX se reduzia aos domínios da casa e da Igreja, ou seja, ambientes de
intimidade e reserva”94 Para ele, “O espaço da rua e da política eram ambientes eminentemente
masculinos”.
Como apresentado por Marques (2013), mulheres negras foram fundamentais tanto no
processo de libertação da escravidão, quanto na presença do comércio local e no trabalho
doméstico em Maceió na segunda metade do século XIX. E como dimensionado por Federici
(2017), o trabalho doméstico pode ser considerado um dos “principais pilares da produção
capitalista”, porque segundo ela, é na base do trabalho doméstico não remunerado que o
capitalismo se desenvolve.95 Ao contrário das mulheres “tradicionais”, as mulheres negras
sempre estiveram presentes nesses espaços, assim como no espaço público. Dessa forma,
encontramos o “paradigma da ausência” atentado por Nascimento (2016) na pesquisa “ao lado”,
que deixa passar despercebido, intencionalmente ou não, a memória de mulheres negras, que
também compartilharam dos espaços públicos, privados e políticos, porém, cumprindo papeis
diferenciados em relação as mulheres não negras, das famílias tradicionais. Apesar de também
92 MARQUES, Danilo Luiz. Ibidem, p. 124
93 DE ALMEIDA, Luiz Sávio. Notas sobre poder, operários e comunistas em Alagoas. Ufal, 2006. . p. 40
94 RAFAEL, Ulisses Neves. A Mulher Alagoana na Primeira Republica: Histórias de Silêncio e Dor. Cadernos do
Tempo Presente, n. 07, 2012.
95 FEDERICI, Silvia. Ibidem, p. 12
46
estarem no lar, isso não significava que estivessem dedicando-se à suas famílias, muito pelo
contrário. O trabalho doméstico foi um lugar fundamental no processo de transformações das
relações entre trabalho escravo e livre96. Isso finda, pela raíz, a ideia da “mulher reservada ao
lar” na Primeira República.
Em 2017, o historiador Gustavo Bezerra Barbosa apresentou sua dissertação “Uma
possível “simbiose”: vadios e capoeiras em Alagoas (1878-1911)” ao Programa de Pós
Graduação em História da Ufal, no qual debruçou seus estudos na História Social da Cultura,
para entender, a partir da “vadiagem” e da “capoeira”, as relações sociais existentes na capital
alagoana na virada do século XX. Através de “jornais, códigos penais, posturas municipais,
projetos de lei, relatórios de presidentes de província, romances, além de documentação
proveniente da Sociedade Libertadora Alagoana”, ele fez um debate da história social com os
marginalizados que viveram na conjuntura de abolição do trabalho escravo em Alagoas,
deixando evidente o protagonismo negro na luta pelo fim da escravidão. Barbosa faz uma
importante análise do movimento abolicionista de Alagoas, caracterizando-o como
aristocrático, com inexpressiva participação popular.
Esse tipo de prática, abolicionista aristocrática, vinculada à Libertadora
Alagoana permite não só apontar uma tática abolicionista, mas também uma
estratégia senhorial para minimizar os prejuízos da perda da mão de obra
escrava. Marques (2013) atenta para o valor elevado das alforrias, que muitas
vezes impossibilitava os escravos de obterem o montante necessário para se
alforriarem97
Em oposição aos trabalhos mais tradicionais sobre história de Alagoas, as pesquisas
recentes, afirmam a forte presença da população negra na capital alagoana, ao que contata a
presença da pele negra em grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras, enfrentando
diretamente a historiografia hegemônica.
96 “As atividades domésticas realizadas por elas ofereceram vantagens ao colocá-las em contato com o ambiente
senhorial, além disto, se beneficiaram com as atividades comerciais desenvolvidas nas ruas, relações familiares
e redes de apoio mútuo. Sabedoras dos caminhos possibilitados pela legislação da época, utilizaram diversas
estratégias para acumular as quantias necessárias para comprar alforrias ou coartações” in MARQUES, Danilo
Luiz. Sobreviver e resistir: os caminhos para liberdade de africanas livres e escravas em Maceió (1849-1888).
2013. p. 52
97 BARBOSA, Gustavo Bezerra. Uma possível “simbiose”: vadios e capoeiras em Alagoas (1878-1911). 2017.
47
2.3 TRABALHO, TRABALHADORES E TRABALHADORAS PÓS ABOLIÇÃO EM
MACEIÓ
O historiador marxista alagoano Osvaldo Batista Acioly Maciel, dedicou seus estudos a
pesquisa da classe trabalhadora em Alagoas no início da Primeira República. Em 2004 defendeu
sua dissertação de mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
intitulada Filhos do trabalho, apóstolos do socialismo: os tipógrafos e a construção de uma
identidade de classe em maceió (1895/1905). Nesse trabalho ele faz um panorama geral dos
locais e condições de trabalho no cotidiano na capital alagoana e elabora um importantíssimo
debate a respeito das organizações de classe relacionando os tipógrafos na cidade. Segundo ele,
as movimentações comerciais em torno do porto de Jaraguá, refletem perfeitamente as
condições maceioense nesse período.
Indo em direção ao bairro de Maceió, este comércio de grosso trato desfila-se
dos navios e barcos para os trapiches e armazéns, e destes para as casas
comerciais, no sentido dos trilhos de ferro. O porto de Jaraguá é também, sem
dúvida, a ponte de desembarque da modernidade na cidade. Para fazer estas
novidades chegarem ao principal bairro da cidade, a natureza é transformada:
Surge o aterro de Jaraguá, a “racionalização” das águas do salgadinho e a
ponte dos Fonseca.98
“Trapiches alfandegados, armazéns de depósito, associação comercial, bancos,
restaurantes, capitania dos portos, fábricas, diversas fundições, etc.” nas proximidades do porto,
fizeram Jaraguá o bairro mais movimentado da capital, consequentemente o mais procurado
pelos trabalhadores que circundavam a cidade. Porém, ele atentou que nesse período o sistema
comum de trabalho era “ocasional”, que consiste no trabalho baseado ao que entenderíamos
hoje como “diárias”, mas no período eles denominaram “parede”. Como o autor faz um estudo
sobre as organizações de classe na cidade, ele argumenta que esse tipo de trabalho, além de
favorecer o clientelismo e a patronagem, dificultava que trabalhadores se organizem em torno
de suas pautas, devido a irregularidade do tempo de trabalho.
Morar próximo ao porto passou a ser uma das estratégias utilizadas por esses
trabalhadores para conseguir uma melhor posição/condição no trabalho.
Nestes termos, é razoável pensar que a “mocambaria” de que fala Manuel
Diegues Junior existente na Ponta da Terra não se constituísse apenas de
pescadores, mas também da família deste outro grupo de trabalhadores.99
98 MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Filhos do trabalho, apóstolos do socialismo: os tipógrafos e a construção
de uma identidade de classe em Maceió (1895/1905). 2004.
99 MACIEL, Osvaldo. Filhos do Trabalho, apóstolos do socialismo: os tipógrafos e a entidade de classe em
Maceió (1895/1905). , p. 35
48
No que diz respeito aos transportes coletivos da cidade já mencionados nesse trabalho,
Maciel afirma que ali circulavam vários tipos de mercadoria diariamente, tanto no “no trajeto
dos trilhos quanto de bonds”.
Pela manhã, vendedores de peixes e sururus, de frutas, legumes e verduras,
galinhas, leite e mel de abelha, amoladores de tesouras, funileiros, etc. Pela
tarde, surgiam outros tipos. “Negras da costa”, vendedoras de vatapá, caruru,
arroz de côco, siris, camarões ensopados, sururus e massunins, cuscus,
tapiocas e angus. Félix Lima Júnior, relembra o nome de algumas: Tia
Balbina, Maria Rosa, Babaré, Tia Joana, Sinhá Rufina. Muitas vezes velhas,
mas também novas, levando os filhos junto para a rua porque não tinham com
quem deixá-los. Normalmente este expediente adentrava a noite, nas portas
dos teatros e das salas de conferências, quando os tabuleiros eram “todos
iluminados com mexeriqueiros, queimando querosene jacaré [sic]”.
O historiador Airton Souza Melo, também pesquisador do trabalho em Alagoas, faz um
importantíssimo estudo sobre a classe operária têxtil no estado, no período que precedeu o
regime militar na década de 1960. O segundo capítulo de sua dissertação, ele denomina “A
economia têxtil em alagoas: o surto industrial têxtil no final do século XIX e sua consolidação
como importante atividade econômica no século XX”. Nesse espaço, ele busca compreender as
causas que levaram o país entrar nesse “ramo”, e faz uma importante discussão sobre as fábricas
existentes em Alagoas. Para ele, “o processo de industrialização foi lento e desigual” e foi se
ajustando de acordo com a implementação das indústrias no país, além de sobreviver entre
períodos de “crescimento e declínio”, dependendo basicamente do mercado internacional100.
Apesar de suas referências afirmarem que geralmente as indústrias contratavam
trabalhadores estrangeiros, Melo afirma que no contexto alagoano, a primeira fábrica têxtil,
localizada no bairro de Fernão Velho, a Companhia União Mercantil, contava “com 1.625 fusos
e 40 teares possuía oito estrangeiros, ao lado de trina e cinco operários nacionais”, desarmando
o discurso do trabalhador estrangeiro a partir da segunda metade do século XX.
Não sabemos, entre os brasileiros, quantos eram brancos, negros e se havia
escravos empregados, mas temos a hipótese de que havia operários
escravizados pelo fato de seu proprietário, o Barão de Jaraguá, ser um grande
senhor de engenho e possuidor de muitos escravos o que facilitaria empregar
seus escravos em seu novo empreendimento101
Segundo Melo, na década de 1890 há um crescimento da indústria têxtil no estado.
Apesar dele não deixar evidente na discussão e, tendo apenas apresentado simplesmente através
dos dados, a maior parte das atividades nas fábricas têxteis em Alagoas, no fim do século XIX,
100 MELO, Airton de Souza. Operários têxteis em Alagoas: organização sindical, repressão e vida na fábrica
(1951–1964). 2012. p. 61
101 MELO, Airton Souza. Ibidem, p. 65
49
são desempenhado por mulheres e crianças. Muito pouco é tratado e problematizado a presença
feminina e infantil nos locais de trabalho, restando-lhes apenas constatações numéricas.
Distintamente do que foi proposto pelos historiadores alagoanos Douglas Apratto
Tenório e Golbery Lessa, ao estudar o “ciclo da cana e as vilás operárias”102, a “passagem veloz
do trabalho servil para o trabalho livre” e o “progresso” vindo com o surto industrial, não
ocorreu de modo simplório, como fica aparente na obra. A história dos trabalhadores e
trabalhadoras em Alagoas aqui será lembrada através de suas conquistas e não mais pelos
avanços do capital.
102 TENÓRIO, Douglas Apratto; LESSA, Golbery Luiz. O ciclo do algodão e as vilas operárias. Maceió:
Sebrae, 2013, p. 9
50
IV.
CAPÍTULO 3 – MACEIÓ EMBRANQUECIDA
Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.
Carolina Maria de Jesus, em “Antologia pessoal”
Desde a possibilidade de refletir a classe trabalhadora no Brasil em amplas “conexões”
sociais, a partir da década de 1980, inicialmente influenciados pela leitura thompsiniana, como
dita anteriormente, e mais recente, pautadas também, a partir dos movimentos sociais em todo
país - trouxeram questionamentos ainda mais “latentes” às perspectivas sobre trabalho e classe
trabalhadora no Brasil - temos “alimentado” diariamente uma lista de “perguntas” e “reflexões”
sobre nossa história. Gênero, raça, diáspora, território, entre outros vértices, tem tomado
maiores proporções nesse debate, retirando a história do trabalho dos quadros unilaterais de
trabalhadores inseridos em partidos, sindicatos e greves, e dialogando com a amplitude da vida
social de trabalhadores e trabalhadoras no país. Essas mudanças no discurso não surgiram de
uma hora para outra. São longos anos de disputas intelectuais para fazer as perguntas que até
então eram “silenciosas” ou talvez “silenciadas”. Digamos que esse “avanço” na perspectiva se
deu muito através da conquista de espaços nas políticas públicas, tal como por exemplo a
política de cotas raciais e sociais nas universidades brasileiras. No início do século XXI,
“forjaram” outro perfil social nas universidades e consequentemente nas produções acadêmicas.
Longe de comparar as condições dadas às distintas classes sociais inseridas nesse processo
intelectual, mas já dimensionando a presença negra e pobre como ponto evidente neste ciclo.
Ao longo desse processo, diversos estudos tornaram-se referências para compreender
como a história e as demais ciências humanas desdobraram-se para pensar a experiência dos
trabalhadores e trabalhadoras no Brasil de forma abrangente, envolvendo as complexidades do
cotidiano. Apesar de estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia terem dado um largo
passo nesses sentido, as demais regiões do país, são muitas vezes subjugadas ao positivismo (as
vezes “modernizado”), que insiste em manter despercebidas as diferenças e desigualdades
sociais existentes nesse processo. Desse modo, é necessário evidenciar em letras garrafais, para
que a história não continue cometendo os mesmos “equívocos”. O trabalho do/a historiador/a é
fundamental neste processo. Método e diálogo com as diversas fontes documentais são
fundamentais na “meta” de desvendar o que sempre foi silenciado. Não devemos apenas nos
ater às problematizações percebidas por Álvaro Nascimento quando discute com a
51
historiografia fluminense e paulista o “paradigma da ausência”, mas aqui, neste caso, requer
elaborações baseadas em reflexões críticas a partir da tortuosa historiografia alagoana e da
memória conservadora e elitizada presente em jornais, revistas e obras literárias do período.
3.1 A CLASSE TRABALHADORA EM MACEIÓ TEM GÊNERO, RAÇA E IDADE
Ninguém hoje faz mais questão de cor nem de raça. Antigamente, todo mundo
queria ser cadeiado, que entre nós era sinônimo de branco. Hoje é indiferente
isto. Acabou-se a escravidão e os negros entraram para comunhão.
Todo sangue é vermelho, quer nas veias do branco, quer nas do preto.
Há negros bacharéis e médicos, negociantes, capitalistas e jornalistas. E há
brancos gatunos, calcetas, funileiros [...]103
O trecho acima foi retirado do romance Traços e Troças, escrito pelo jornalista e
abolicionista alagoano Pedro Nolasco Maciel nos anos finais do século XIX. A primeira edição
foi publicada em 1899, tendo mais duas posteriores, publicadas em 1954 e 1964
respectivamente. É notável a insistência que o autor tem em “demarcar” o “modo simples de
viver” encarados no contexto da capital alagoana no final do império e nas mudanças que
estavam por vir com a instalação da República. Assim como ele, outros escritores alagoanos,
sejam literatos, estudiosos e até mesmo historiadores, debruçaram suas “forças intelectuais”
para escrever como seria e/ou como tornou o estado alagoano após a assinatura da Lei Áurea
em 1888, o fim dos governos monárquicos e o “início” da modernização do país com a república
em fase crescente. É importante destacar que a maioria dos escritores desse período, eram
homens, não negros e de famílias com condições socioeconômicas favoráveis. Raríssimos
foram os espaços reservados às mulheres nesses diálogos, e mesmo assim, quando houve, foi
destinado à mulheres também não negras e membros de famílias abastadas. Desse modo, uma
das questões levantadas nesta dissertação requer refletir os espaços ocupados pelos
trabalhadores e trabalhadoras que viviam na capital alagoana pós abolição, quais eram suas
condições de vida e de que forma sua presença ficou demarcada na literatura alagoana.
Diferentemente do que afirmou o escritor alagoano Moreno Brandão em História de
Alagoas (1981), no final do século XIX, Alagoas não “venceu o escravismo” ao iniciar seu
período republicano, muito pelo contrário. Ao mesmo tempo que trabalhadores e trabalhadoras
escravizadas conquistaram suas alforrias, Maceió crescia desordenadamente e em escala
103
MACIEL, Pedro Nolasco. Traços e troças: crônica varmelha, leitura quente. Departamento Estadual de
Cultura, 1964.
52
desproporcional às condições de trabalho oferecidas, gerando péssimas condições de vida e um
grande número de desemprego e mendicância nas ruas da cidade e em seu entorno.
Em 1950, foi lançado no Rio de Janeiro, “Mundaú”104, o livro de crônicas
autobiográficas do comerciante alagoano Pedro de Carvalho Villela. Em 1977 foi publicado em
Maceió pelo Departamento de assuntos culturais da Secretaria de Educação e Cultura. Apesar
de ser um comerciante bem-sucedido já na primeira metade do século XX, teve na infância uma
vida financeira difícil. Nessa obra ele relata o trabalho de seu pai numa fábrica têxtil em Rio
Largo, cidade vizinha a Maceió, no qual não especifica sua função, mas deixa claro que
trabalhava cerca de 14h/dia, e ganhava “quase nada”, como vários outros trabalhadores pobres
desse período. A partir de sua memória de infância, sob a experiência da classe trabalhadora na
cidade de Maceió e Rio Largo, ele organizou algumas histórias que fizeram parte de seu
cotidiano. Através de crônicas, construiu uma narrativa sob o olhar de um homem que cresceu
numa sociedade pós escravidão, na capital alagoana, em condições precárias. Mundaú encara
Maceió e também Rio Largo através da vida de quem trabalha. Nesse sentido, ele constrói
discursos a respeito da vida de homens, mulheres e crianças, rodeados de conflitos sociais, com
disposições diversas para sobreviver diariamente, a partir de seu trabalho, suas crenças e
costumes. Diferentemente do “apaziguamento” que Pedro Nolasco apresenta acerca das
questões raciais, quando tenta inserir toda sociedade alagoana num modelo de igualdade pós
abolição, baseada principalmente nos princípios positivistas105, como no trecho citado acima,
Pedro de Carvalho, por sua vez, deixa transparecer contradições do período, baseadas em suas
próprias experiências ao longo vida. E mesmo pertencendo à classe trabalhadora, ele não estava
impune dos princípios racistas e machistas que a sociedade pós abolição lhe proporcionara,
apresentando-os impudicamente página por página em sua obra. Uma das personagens de suas
crônicas é “Negra Luiza”, assim como ele a chamava. Ex escravizada que passou grande parte
de sua vida à cuidar de crianças na região de Bebedouro, e mesmo após a abolição, segundo
ele, “não quis” sua liberdade.
Nunca tive saudades dessa Babá e nem guardo dela a menor lembrança de
amizade.
Era imensamente suja e doente.
104
105
VILLELA, Pedro de Carvalho. Mundaú. Maceió: SENEC, 1977
Segundo Alfredo Bosi, “a estreia da militância positivista no Rio de Janeiro coincidiu com o início da fase
aguda do abolicionismo. A campanha desenvolveu-se por todo o país ao longo dos anos 80. O discurso dos
ortodoxos foi coerente com três princípios básicos da doutrina de Comte: a) as três raças deverão concorrer,
cada qual a seu modo, para o progresso das sociedades e a harmonia fraterna da civilização, b) abolição como
dever universal e c) a incorporação do proletariado na sociedade moderna.”
53
Penso que a bondade de minha mãe a conservava ali, como se faz com um
bicho de estimação, já velho, que não se larga na rua para que não morra mais
depressa.
Ela me acalentava por dever e eu a suportava por obrigação.
Porque eu aceitaria qualquer outra que me dessem, pelo asco que tinha da
negra.
Mas reconheço que era uma abnegada.
Tinha cuidados especiais comigo.
Insistia em dar-me comida com suas próprias mãos.
A minha resistência era tremenda.
E vinha minha mãe ralhar comigo.
E a negra a se lamentar de que eu não gostava dela.
Um conflito sentimental.106
Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, as produções biográficas ou
autobiográficas possuem sempre, a intenção de fazer sentido, ter lógica e sequência
cronológica, na tarefa de estabelecer relações inteligíveis107. Desse modo, nos cabe refletir a
obra de Pedro de Carvalho também através de sua trajetória. Ao mesmo tempo que é sujeito
originário da classe trabalhadora, tornou-se ao longo do tempo, membro de outra classe social,
com a garantia de direitos e regalias sociais, que de certa forma “sustentam” suas convicções.
Paralelo a isso, é indispensável refletir que a estrutura da escravidão tentou a todo custo
“animalizar” as pessoas de cor, a ponto de torná-las dispensáveis, como é visto no trecho acima,
e em tantos outros que encontramos indiscretamente na literatura brasileira. Exemplo de
mulheres que foram escravizadas, e que durante a abolição da escravidão, abdicaram de sua
“liberdade” em troca de sobrevivência, trabalhando dia e noite em serviços domésticos e
cuidando de crianças, em troca do “ganha pão”, como pudemos ver no trecho da crônica
mencionada.
A partir de uma análise materialista, a tarefa é direcionada a enxergar a dimensão do que
significou ser uma “trabalhadora negra”, expressa na obra de Pedro Carvalho. É provável que
mulheres iguais a Luiza, que apesar de estarem diariamente presentes nos locais de trabalhos
mais precarizados, e alguns até sem remuneração, mesmo em tempos de “trabalho assalariado”,
elas foram, na maioria das vezes, invisibilizadas na história do trabalho no Brasil. O que o autor
tratou como desejo, podemos aqui observar como estratégias de sobrevivência. A pesquisadora
Silvia Federici, entende o trabalho doméstico não remunerado das mulheres como um dos
pilares de sustentação para reprodução do sistema capitalista. No contexto alagoano pós
abolição, esse lugar significou a realidade de mulheres negras e “libertas” do trabalho escravo,
que mesmo tendo conquistado suas alforrias, na prática, continuavam impostas aos trabalhos
106
107
VILLELA, Pedro de Carvalho. Mundaú. SENEC/AL. 2ª Edição. Maceió, 1977, p. 24.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus Editora, 1996, p. 184.
54
“invisíveis” de uma sociedade que acabara de iniciar sua história no trabalho livre, mas negou
totalmente a garantia da “liberdade”.
A Companhia Progresso Alagoano, na qual o pai de Pedro Carvalho trabalhava, foi
fundada em 1892, por José Antônio Teixeira Basto, que tinha vindo de Portugal e fixou vida em
Alagoas, tornando-se um importante nome no ramo da indústria têxtil no estado 108. A fábrica
só começou a funcionar em 1895, e segundo Airton “era composta de máquinas inglesas e
utilizava somente algodão alagoano”. Além dos donos, estava em sua diretoria, Manuel
Balthazar Pereira Diégues Junior”109, o pai do professor e escritor alagoano Manuel Diégues
Junior.
Na rua do Cupim morava um velho entrevado, com duas filhas que
trabalhavam na fábrica.
Cotinha, uma delas, era bonita e instruída.
Cuidava do seu trabalho e todos a estimavam e respeitavam.
Chegou à contra-mestra da fiação.110
Airton Melo, que fez um minucioso levantamento da indústria têxtil no estado de
Alagoas entre o final do século XIX e o início do século XX, e observa que teve um crescimento
notável no setor algodoeiro, a ponto de interferir significativamente na economia do estado.
Nas fábricas estavam empregadas em sua maioria, mulheres e crianças, com ressalva, segundo
o autor, de algumas que não foram encontradas documentação suficiente para distinguir gênero
e idade durante a análise. É importante ressaltar que tanto a questão de gênero não foi debatida
no contexto da análise, quanto a questão racial que não foi sequer mencionada como elemento
de análise para esta produção, mesmo tratando de um estado com um grande número de
homens, mulheres e crianças ex escravizadas africanas e descendentes.
Essa lacuna não é presente unicamente na pesquisa de Airton. É possível perceber que
tanto a historiografia, quanto a literatura alagoana, deixam claramente despercebidas as
questões raciais e de gênero em suas reflexões, muitas vezes, criando quadros sociológicos de
“igualdade” entre trabalhadores e trabalhadoras que inexistem até o presente momento.
108
Segundo Ibb Gato Falcão, médico, jornalista e membro da elite alagoana, José Antônio Teixeira Basto pertence
à uma das famílias portuguesas que viram a chance de organizar negócios no Brasil ao longo do século XIX.
José Antônio foi o único de sua família que permaneceu em Alagoas, seus três irmãos, Francisco, Manoel e
Domingos foram para Recife. Na capital alagoana tornou-se comendador, ocupou cargos em instituições
públicas e teve participação relevante na indústria têxtil do estado.
109
MELO, Airton de Souza. Operários têxteis em Alagoas: organização sindical, repressão e vida na fábrica
(1951–1964). 2012. p. 66.
110
VILLELA, Pedro de Carvalho. Ibdem, p. 110
55
Ao estudar os caixeiros nos anos finais do século XIX e início do século XX, Osvaldo
Maciel faz uma importante discussão, baseado na análise de diversas fontes, desde as
documentações oficiais às obras literárias e jornais do período, que relacionam as organizações
dos caixeiros na capital alagoana. Segundo ele, as associações mutualistas são entendidas como
fenômenos de classe, e por sua vez, fundamentais para o “entendimento do processo de
formação da classe trabalhadora”111. Sua pesquisa é imensamente relevante para a compreensão
dos processos de resistência da classe trabalhadora organizada em Alagoas na virada do século.
Porém, o que deve ser destacado é a diversidade dessa categoria, não apenas no campo
ideológico das organizações de classe, mas sócio cultural, permitindo entender a classe em torno
dos processos que envolvem sua existência. Pouquíssimas são as vezes que é mencionada a
presença de crianças nesse tipo de trabalho, em contrapartida não são tão raras quanto as notas
publicadas nos jornais locais, que divulgavam vagas nessa atividade.
Em nota publicada no jornal Evolucionista, em 1905, com subtítulo de Jornal da Tarde,
é publicado: “Nesta redação informa-se quem precisa de um menino de boa família para
caixeiro dum estabelecimento de importação”112. Maciel, afirma que esse periódico “é o mais
veemente órgão que sai em defesa de parte do comércio contra regulamentação do horário de
trabalho dos seus empregados”113, sob direção do abolicionista Luiz Wanderlei Lavènere114.
Diversos outros números desse mesmo jornal, durante o mesmo ano apresentou notas acerca de
vagas de emprego de caixeiro para “meninos de boa família”.
A discussão sobre trabalho infantil não era uma questão nesse contexto, mas no presente
momento, além de notável, devido a análise de documentação, é fundamental ressaltar que no
período pós abolição em Maceió, havia a presença de diversas crianças em postos de trabalho,
contrariando um dos silêncios mais tradicionais da história do trabalho no Brasil. Que crianças
seriam essas? Certamente não eram os filhos legítimos dos proprietários de terra que moravam
na capital alagoana nesse período, mas descendentes de gerações que sobreviveram à
escravidão, a seca115 e a falta de oportunidades no trabalho livre.
111
“O mutualismo é parte importante da tradição organizativa desta classe operária e compõe uma tradição
associativa que contribui positivamente na construção de uma identidade de oficio, de categoria ou mesmo de
classe para os trabalhadores que possuem alguma colocação no mercado de trabalho” MACIEL, Osvaldo
Batista Acioly. A perseverança dos caixeiros: o mutualismo dos trabalhadores do comércio em Maceió (1879
1917). 2011, p. 17.
112 (sem autor) Caixeiro, O Evolucionista, 2 de janeiro de 1905, p. 3 , ano IV, n.3
113 MACIEL, Osvaldo. Filhos do Trabalho, apóstolos do socialismo: os tipógrafos e a entidade de classe em
Maceió (1895/1905). , p. 219
114 Segundo indica no ABC das Alagoas, Luiz Wanderlei Lavènere nasceu na capital alagoana em 1868, tornandose nos anos posteriores, deputado estadual, vereador, jornalista, professor, musicólogo e fotógrafo. “Tomou parte
na campanha abolicionista, como membro da Sociedade Libertária Alagoana”.
115
Na obra Traços e Troças, há trechos que contam história de populações que fugiram da seca e deslocaram-se
56
Na Formação da classe operária inglesa, Thompson nos dá uma importante
contribuição para refletir esses caminhos. Obviamente que não estamos tratando dos mesmos
contextos que a realidade inglesa do século XVIII, mas podemos e devemos aprofundar a
pesquisa à ponto de entender as complexidades no cotidiano da classe no contexto alagoano
pós abolição. Ao perceber as noções de “progresso” no discurso historiográfico, principalmente
dos marxistas, a respeito da vida dos trabalhadores naquele momento, o inglês apontou diversas
lacunas existentes na discussão das relações ‘capital x trabalho’, ‘trabalho x trabalhadores’,
‘consciência x organização’, Segundo ele, ao centrarem sua pesquisa exclusivamente na
realidade dos locais de trabalho e das organizações de classe, subestimaram a experiência como
uma expressão fundamental para conhecer a classe e entender suas ações. No caso de Alagoas,
a historiografia tem dado curtíssimos passos nesse sentido. Em relação a história do trabalho, a
pesquisa ainda se dá nessa estrutura pensada majoritariamente a partir das organizações de
classe e seus feitos, mas pouquíssimo é refletido a partir das experiências de uma classe que
descende de mais de três séculos de escravidão e ainda vive os resultados desta estrutura, que
através do racismo, escolhe estrategicamente o ponto crucial que demarca a desigualdade.
Dessa forma, cabe nessa pesquisa o entendimento da classe trabalhadora sobrevivente da
miséria, das péssimas condições de trabalho e moradia, nas páginas da história alagoana, no
início do século que prometeu-se como progresso e liberdade, mas preservou-se como lugar de
ascensão de homens, brancos e ricos, tal qual permanece até o presente. Em muitos casos, os
sobrenomes desses abastados ainda são os mesmos que dominam as decisões políticas e
econômicas locais e nacionais.
É importante lembrar que durante o Segundo Reinado, circulou na capital alagoana,
centenas de pessoas escravizadas que eram comercializadas diariamente.
A situação dos escravos urbanos de cidades como Maceió e Penedo foi
absolutamente instável ao longo do Segundo Reinado. O movimento do
comércio de escravos não era segredo para ninguém. Os comerciantes eram
conhecidos, os lugares de negócios também e os cativos de Maceió e Penedo
não estavam alheios ao trânsito cotidiano de escravos de outras partes ali
chegando para serem embarcados logo a seguir. Em apenas quatro anos, na
década de 1850, foram exportados por Penedo mais escravos que o total da
população cativa da cidade. Em Maceió, entre 1873 e 1881, apenas 20% dos
cativos exportados por Jaraguá tinham sido matriculados na capital da
Província, ou seja, apenas um quinto dos cativos exportados habitava ali antes
de ser embarcado. Os escravos das duas principais cidades de Alagoas
conviviam cotidianamente com o comércio de escravos, seja por serem
afetados diretamente por ele, seja pela grande movimentação de escravos do
para capital alagoana, como tentativa de superação dos problemas sociais.
57
interior levados aos portos para embarcar no “próximo vapor que chegar”. As
gameleiras da Avenida da Paz que o digam.116
Como dito no segundo capítulo, sob duras tentativas de “embranquecimento” da
sociedade alagoana, assim como toda sociedade brasileira no período pós abolição, é necessário
fazer um amplo diálogo com a literatura que dialoga sobre escravidão nos momentos que
antecedem à abolição, para compreender a composição social da cidade na virada do século. A
pesquisa de Luana Teixeira possibilita dimensionar a comercialização da população negra
durante o Segundo Reinado, evidenciando uma forte presença negra em processo da
comercialização legal e ilegal da população escravizada na capital e no interior do estado,
durante o século XIX.
Tendo em vista que grande parte do trabalho nesse período estava voltado para as
produções agrárias, a população trabalhadora urbana, que vivia em Maceió, estava direcionada
basicamente ao escoamento de mercadorias advindas do interior, assim como para organização
da cidade que estava inserida numa lenta escala de modernização, tal qual a maioria das capitais
do país.
Álvaro Cardoso, natural da cidade de Penedo, localizada no interior alagoano, organizou
o Álbum Ilustrado do Estado de Alagoas [1908], reunindo cerca de 106 fotos do estado, cuja
explicação se dá através do texto elaborado por Joaquim Goulart de Andrade e publicado pelo
governo de Euclides Malta. Nessa obra, apesar de seu caráter direcionado ao progresso da
capital através de uma perspectiva positivista, o organizador apresenta imagens que
caracterizam o estado no período, na qual podemos observar nitidamente a dinâmica local. A
partir dessa obra, percebemos quão pouco mencionado a importância das lagoas na história do
estado e suas interferências no cotidiano da cidade. Em 1917, Octavio Brandão117 publicou no
periódico Semana Social118, que estava sob propriedade e direção do anarquista carioca Antônio
Bernardo Canellas, que morava em Maceió no período, sua pesquisa acerca dos canais e lagoas
existentes no estado. Sua pesquisa esteve mais voltada aos entendimentos geológicos da região,
116
Teixeira, Luana. Op. Cit, p. 2018
Otávio Brandão Rego nasceu em Viçosa (AL), em 1896. Farmacêutico, diplomou-se pela Universidade de
Recife. Foi um dos pioneiros na defesa da existência de petróleo no subsolo brasileiro, defendendo essa tese em
conferências realizadas em Maceió na década de 10. Nesse mesmo período, iniciou sua militância anarquista na
capital alagoana.
Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001
118
Jornal alagoano (1917) que acaba fazendo parte da imprensa anarquista no Brasil, organizado por Antônio
Bernardo Canellas, que mantinha contato com outros anarquistas do país, entre eles Astrojildo Pereira, que
escreve para o semanário.
117
58
mas permitiu visualizar de modo mais cuidadoso as possibilidades de sobrevivência e
resistência do local.
Dentre os locais de trabalho já mencionados, é possível perceber a partir dessas obras
destacadas acima a presença de homens e mulheres que buscaram sobreviver na capital
alagoana no entorno de suas margens lagunares e na orla marítima (VER ANEXO 2).
Pescadores, lavadeiras, carroceiros e canoeiros tiveram suas experiências no cotidiano dessas
regiões.
[...] a população da capital e de muitos outros lugares chegaram em canoas,
nos vapores, a pé, a cavalo, caravanas e grupos atacando foguetes, tocando
harmônicas, violões, violas. Nas casas de palha, por baixo das árvores, ao ar
livre, come-se, bebe-se, folga-se. As canoas atravessam o canal
embandeiradas, carregadas de povo que vai ao banho dos Remédios119, outras
voltam com o bojo cheio de banco a banco, e potes d’água.
[...] Por baixo dos coqueiros viam-se grandes varais com redes estendidas, e
os pescadores, seminus, a consertá-las; velhas fiando tucum para as tarrafas.120
Em 2010, a professora Irene Bonan elaborou uma coletânea de comemoração para os
100 anos da Escola de Artífices no estado de Alagoas. Segundo ela, nenhuma ação de educação
pública se destacou em Alagoas até a segunda década do século XIX. Em 1854 foi criado o
Colégio de Educandos e Artífices, cujo caráter era assistencial para crianças órfãs entre 7 e 12
anos, com a proposta de formar jovens trabalhadores, oferecendo exclusivamente o ensino do
ofício de mecânico121. Mais de 50 anos depois, em 1910, durante o governo de Euclides Malta
no estado de Alagoas, foi fundada a Escola de Aprendizes e Artífices de Alagoas, subordinados
ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio122, com justificativa de “colocar a classe
proletária para superar as péssimas condições de vida” erguidos em discursos de retirar jovens
das ruas, dando-lhes uma profissão e a possibilidade de um trabalho assalariado.123 Trata-se do
período que trabalhadores e trabalhadoras tiveram que reinventar seu modo de sobreviver,
principalmente às pressões da competição no mercado de trabalho, que por sua vez estava sob
comando de estruturas essencialmente racistas, recém saídas de séculos de escravidão das
populações negras em todo país. Para a pesquisadora, no caso de Alagoas, especificamente, a
escola esteve ligada mais a qualificação de artesãos de que profissionais da indústria. Nesse
119
Localizada em Coqueiro Seco, AL.
MACIEL, Pedro Nolasco. Ibdem. p. 236, 237.
121
BONAN, Irene. Da Escola de Aprendizes Artífices ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Alagoas (1909/2009): cem anos de história do ensino profissionalizante em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2010, p.
28
122
Idem, p.18
123
Idem p. 33
120
59
trabalho ela provoca um diálogo a respeito da evasão escolar, provocada na maioria das vezes
pelas péssimas condições de vida que tinham os alunos da escola, onde faltavam materiais
básicos, impossibilitando-os de frequentarem suas aulas.
No livro de centenário da instituição, são apresentadas diversas imagens da escola e seus
alunos ao longo dos cem anos da instituição, que é evidente e massiva a presença de jovens
negros. E por mais que ela não traga essa discussão sobre trabalho e raça como “chave” para a
conversa, possibilita um caminho que transparece a vida de jovens e adultos da classe
trabalhadora, inseridos numa rede de ensino público, que ao mesmo tempo que possibilita a
aprendizagem de uma profissão e outros saberes, impõe regras sociais das quais elas julgam
ideais. Era necessário, segundo o próprio decreto, “afastar” os filhos da população pobre da
ociosidade, do vício e do crime. Mas afirmamos que mais necessário ainda é visar um olhar a
partir da comunidade que enfrentava diariamente essas questões. O historiador Gustavo Bezerra
aponta:
No meio urbano a vadiagem apresenta-se de forma mais complexa, se fazendo
perceber não só pela ociosidade, itinerância, mendicância e pequenos furtos,
mas também pelos divertimentos como o entrudo, o quilombo, as festas de
santo, a embriaguez e os alaridos em botequins e tavernas, o comportamento
insolente de moleques peraltas, e até mesmo sobre o trabalho informal.
Em Trabalho, lar e botequim, Sidney Chalhoub ao discutir o período pós abolição na
cidade do Rio de Janeiro, afirma que o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho
livre, levou as autoridades brasileiras realizarem “reajustes no seu universo mental, de adequar
sua visão de mundo às transformações socioeconômicas que estavam em andamento”. Datada
em 13 de maio de 1888, a abolição da escravidão colocou na ordem dos debates, as diversas
transformações nas relações de trabalho, que por sua vez proporcionam novas experiências a
classe trabalhadora. Nessa obra ele menciona que em 1888 o ministro Ferreira Viana apresentou
a elaboração de um projeto que tinha como proposta a repressão à ociosidade, como se a
população negra recém liberta, que estava nas ruas das cidades brasileiras, ameaçasse a ordem,
a lei e a propriedade. Segundo Sidney, a ideia foi praticamente consenso na Câmara dos
Deputados do estado do Rio de Janeiro, que prepararam suas argumentações baseadas na
associação da liberdade de pessoas escravizadas com o que eles chamaram de “desordem”. E
nesse contexto de profundos conflitos, o trabalho foi tido como o principal elemento ordenador
e moralizador da sociedade, utilizado ideologicamente para construir padrões socioculturais
“regeneradores” das populações escravizadas do país. A partir disso, a principal ideia era
60
romper com a diversidade cultural existente no processo de formação da sociedade brasileira,
procurando não só embranquecê-la, mas também silenciá-la.
3.2 – MARGINALIZAÇÃO DA POBREZA
A diversidade de documentação usada nessa pesquisa foi bem entusiasmadas na
tentativa de marginalização das práticas sociais exercidas pela população pobre e negra na
cidade de Maceió pós abolição. Ao mesmo tempo que determinavam as regras morais,
denunciavam aqueles e aquelas que de certa forma contrariavam as “normas”. As denúncias
eram feitas diariamente através dos meios de comunicação, nas páginas dos jornais e na
literatura local.
E no processo moralização e marginalização da vida pública, os meios de comunicação
deram largada na tentativa de impor as regras “sociais”, que na maioria das vezes não era
cabível com os costumes da maior parcela da população. No que se trata sobre o espaço
reservado a mulher na sociedade alagoana do início do século XX, é instruído que essa tivesse
características delicadas e atividades voltadas ao espaço privado da casa e da igreja.
O “Manual de Instrucção Civica: Egualdade” publicado em 1899 pelo jornal
republicano Rebate em Maceió responde perfeitamente esse questionamento quando diz:
É evidente que o homem tem na sociedade função diversa do que aquella que
a mulher tem de preencher.
Ao homem cabem os trabalhos do exterior, cuidado de prover e sustentar sua
família, os perigos e as fadigas de guerra. Á mulher pertencem o trabalho
doméstico, o cuidado da educação dos filhos, o encargo de embelezar o
interior da casa. Desta diferença na missão de cada sexo resulta que os direitos
e os deveres são os mesmos.
E da mesma forma que “instruíam” os costumes “ideiais”, condenavam a quem pudesse
contrariar quaisquer das regras. Em 1905 o jornal Evolucionista, já mencionado outra vez,
denunciou através de uma nota, mulheres que moravam no Alto do Jacutinga, e que segundo
eles, eram “da vida alegre” e faziam muito barulho ao longo da noite com suas conversas
“immorais”. O artigo intitulado “Immoralidade124”, expõe críticas à vida de mulheres
trabalhadoras do sexo na cidade de Maceió, resguardados a partir dos bons costumes
estabelecidos por uma moral que “fincou” o lugar da mulher ao lado do marido, dentro de casa,
cuidando dos filhos e temente ao Deus cristão, descartando qualquer possibilidade da
124
s/a. Immoralidade. O Evolucionista. Ano IV. N. 1, 2 de janeiro de 1905, p. 2
61
contrariedade. Porém, as coisas nem sempre funcionam como ditam as regras. O romance
Traços e Trocas descreve perfeitamente os bons rapazes da cidade que mostravam apreço por
essas moças, admirando-as e muitas vezes tirando seus próprios benefícios:
Na noite em que o Juquinha mandara preparar o pescado, veio realmente de
Jaraguá o bonde de 9 horas, todo vestido de branco, chapéu de palha, prosando
com o Maciel, olhos de lince fixos em duas horizontes125.
A prostituição, geralmente destacada como um “desvio” social, é questionada pela
historiadora Cristiana Schettini, doutora em História Social pela Unicamp. Uma das principais
críticas elencadas em sua argumentação é a relação próxima do poder público com o
pensamento cientificista, que através das determinações biológicas, estabeleceu hierarquias
sociais. Segundo a autora, a prostituição, justamente no início da República, requer muito mais
uma relação de interesses com os poderes públicos que uma simples condenação moral, porque,
[...] a história de como o novo regime republicano se relacionou com as
prostitutas não parece diferir muito do que ocorreu com outros grupos cujas
maneiras de significar espaço urbano também estavam na mira.
[...] a tendência daquele momento em diante era que o novo regime apenas
criaria condições para a exacerbação do papel da ciência e dos pensamentos
racistas na naturalização e legitimação das desigualdades sociais.126
Ao contrário de buscar respostas exatas sobre prostituição, Cristina abre um leque de
possibilidades e contextos que envolvem cotidiano e experiência de centenas de trabalhadores
e trabalhadoras diariamente:
A prostituição foi uma forma socialmente aceitável de homens e mulheres
estabelecerem relações sexuais naquela época, mas não apenas porque
houvesse mais homens do que mulheres, ou porque jovens imigrantes
estrangeiras fossem abruptamente arrancadas de seus laços familiares, ou
ainda porque essas mulheres não encontrassem outra possibilidade de
sobrevivência. A prostituição foi uma possibilidade de trabalho disponível a
muitas mulheres porque aquela era uma sociedade informada por
determinadas concepções sobre sexualidade e trabalho: por um lado, homens
eram social e racialmente diferenciados por sua capacidade de identificar os
objetos de desejo apropriados a seu status social. Por outro lado, posto que o
status moral de mulheres era estabelecido através da noção de honra, associada
ao recato e ao espaço privado, qualquer atuação delas no espaço público as
deixavam vulneráveis a constantes julgamentos morais.127
125
MACIEL, Pedro Nolasco. Traços e troças: crônica varmelha, leitura quente. Departamento Estadual de
Cultura, 1964.
126
SCHETTINI, Cristiana. " Que tenhas teu corpo": uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. 2006, p 26.
127
SCHETTINI, Cristiana. Ibidem, p. 21 e 22.
62
Em 1890, O Orbe publicou um artigo intitulado “A prostituta”, no qual ele apresenta
sob suas concepções conservadoras, os “males” que a prostituição resulta na vida das mulheres.
Em primeiro momento, o texto apresenta reflexões morais que condenam o trabalho da
prostituição, e por fim reserva um espaço extenso para relatar casos de mulheres que são
abandonadas pelos poderes públicos e pela sociedade em geral, e muitas vezes acabam
morrendo nas ruas da cidade, com doenças e desamparadas. Geralmente esses discursos são
realizados por homens privilegiados, a partir de suas perspectivas moralistas, que condenam
diariamente a vida dessas trabalhadoras, justificando as situações de miserabilidade a partir de
uma culpa que elas próprias “carregam” por suas escolhas “imorais”128. E por mais que haja
todo um valor moral inserido nesse debate, a prostituição é vista aqui dentro da discussão sobre
a classe trabalhadora inserida no contexto social da cidade de Maceió na virada do século, logo
após a abolição da escravidão. As principais fontes que indicam a presença da prostituição nesse
período são os jornais locais, que por sua vez, independente da vertente política que assumam,
quase sempre com perspectivas recheadas de preconceitos e piadas. Talvez se houvesse outros
tipos de fontes nesta pesquisa, pudéssemos observar com mais exatidão o perfil sócio cultural
dessas mulheres, indicar a média de idade, a cor e as condições sócio econômicas, nos
permitindo dimensionar um quadro elaborado da situação local.
Nesse processo, vários grupos e perfis sociais foram atingidos pela marginalização da
pobreza. O que Casé chama atenção para os “trabalhadores nacionais” na cidade de São Paulo,
em Alagoas esse processo ocorre com a população negra descendente de povos africanos e
indígenas, já que Alagoas não teve presença massiva de imigração europeia nesse período,
como dito anteriormente.
Entraram pelo lado sul da igreja do Rosário, que estava em festa, penetraram
no templo; quem quis fez sua oração sincera ou hipocritamente. Ao sair do
templo foram assaltados por inúmeros sujeitos, uns vestidos de penas e
untados de oca, lembrando os primitivos habitantes do Brasil; outros
enlamados de preto. Era aquilo um brinquedo tradicional, que renovava os
quilombos da serra dos Palmares, célebre república organizada por africanos
escravizados em número superior a três mil e que se refugiaram na Serra da
Barriga, neste Estado, onde viveram mais de meio século.129 (grifo meu)
Esse trecho de Traços e Troças representa não apenas o olhar racista do escritor Pedro
Nolasco, mas a forma como a elite branca e letrada relacionava-se com a população negra,
128
129
Prostituta. O Orbe. Ano XII, n17, 23 de fevereiro de 1890, p. 3.
MACIEL, Pedro Nolasco Ibidem, p. 247, 248
63
indígena e pobre de Maceió no início do período republicano. Período que eles resolveram tratar
por momentos de civilização e progresso130, hegemonizado por seus próprios padrões de
costumes e ordenamentos sociais.
Foram recolhidos a este estabelecimento pelo terceiro commissario os
indivíduos: Bellarmino Nazario dos Santos, por vagabundagem e embriaguez.
Foi posta em liberdade pelo sub-commissario do Alto do Jacutinga. Celestina
Africana da Costa.131
As denúncias eram constantes. Não possuir pele branca e propriedades, quase sempre
foi associado à pessoas violentas e criminosas, e por mais que o “espírito da república” pregasse
“igualdade”, suas relações eram totalmente excludentes.
Em 18 de fevereiro de 1905, o Gutemberg132 publicou entre suas notas um informe da
Intendência Municipal, que fazia o policiamento dos carroceiros, cuja intenção era evitar
qualquer “inconveniência” que pudesse existir entre essa categoria de trabalho133. A nota tratava
especificamente sobre a detenção do preto Jacob, carroceiro e empregado da limpeza dos
armazéns da firma de tecidos Almeida Guimarães, acusado de roubar peças de madrasto/
madapolão134 e outros tecidos de algodão, além de algumas garrafas de bebidas. O senhor
Adoplho Almeida, sócio do comendador Teixeira Basto, também informou que o preto era
suspeito de roubar seu relógio de ouro. A polícia afirmou que Jacob também seria investigado
por outros delitos, que não foram informados. Além dele, outros três empregados da mesma
empresa também estavam sob acusações, e o policiamento do local aconselhava que a empresa
os demitissem imediatamente, evitando esse “tipo” de trabalhador em suas propriedades.
Muito longe de ser o “homem de bem” tal qual “esperava-se” na constituição da
república, em terras maceioenses, não bastava ter um emprego “fixo” e ser um trabalhador
assalariado comum. Ser negro sempre foi um pretexto para violência e tonaram-se ao longo da
história brasileira, “motivo ideal” para encarceramento. Na maioria das vezes o indicativo racial
elenca uma série de suspeitas, que deixa grande parte da classe trabalhadora negra e
empobrecida “na mira” das repressões.
130
NEGRO, Antônio Luigi; GOMES, Flavio. Ibidem
sem autor), Casa de Detenção: Movimento do dia 4. O Evolucionista, 5 de janeiro de 1905. Ano IV, n. 4
132
Nota. Gutemberg, Ano XXIV, nº 35, 18 de fevereiro de 1905, p.2
133
Furto. Gutemberg: Jornal de Maior Circulação no Estado. 18 de fevereiro de 1905, Ano XXIV, n 35, capa.
134
Pano fino de algodão. Também conhecido como Morim. Fonte: Wikipédia.com.br (acesso em 23 de abril de
2019)
131 (
64
3.3 RELIGIOSIDADE PÓS ABOLIÇÃO
Essa pesquisa tem relações íntimas com a imprensa e a literatura alagoana.
Principalmente através de notas, artigos, crônicas e romances, foi possível vislumbrar os rumos
tomados pela sociedade maceioense após abolição da escravidão. Nesse sentido, é fundamental
destacar a eminente presença do culto religioso entre as relações sociais nesse processo, como
elemento fundamental para compreensão acerca dos costumes e crenças na história do Brasil.
Muito além das questões espirituais, as religiões assumem papeis sociais, que interagem
diretamente na forma como a população organiza sua vida e seleciona seus “princípios”. Ao
estudar os conflitos religiosos em Alagoas, Irinéia dos Santos aponta para uma questão vital
para dimensionar quão influente é a igreja católica nesse contexto,
No Brasil a imprensa católica passou a ser mais atuante na segunda metade do
século XIX. Procurando atender a tarefa colocada pelos papas, avançou junto
com o ideal ultramontano no país, entrando no embate contra os “males da
modernidade” e sua ferramenta de difusão, a “má imprensa”135
Segundo Nelson Werneck Sodré, o século XIX no Brasil foi marcado por períodos de
aprofundamento das contradições sociais. E a “liberdade do ventre, liberdade dos sexagenários,
abolição, as questões religiosas, eleitoral, federativa, militar, as transformações institucionais”
possuíam relações diretas com a imprensa do país, que por sua vez “ampliava sua influência” e
propagava ideias136 dia após dia.
Apesar das disputas ideológicas inseridas nesse período do cotidiano maceioense –
ideologia aqui é vista a partir das concepções do sociólogo marxista Michael Löwy, nomeada
“visão social de mundo137” – grande parte dos escritores alagoanos, aproximavam-se dos
princípios cristãos, agindo transparentemente através das páginas de jornais e da literatura local.
As relações de poder entre igreja e poder público estavam nitidamente demarcadas nas decisões
públicas do estado. Em 1898, o então governador Manuel Duarte, afirma em um dos relatórios
de governo, que devido a população alagoana ser “totalmente católica”, ele tomou a decisão de
decretar a doação de terras devolutas para serem utilizadas na construção de um futuro bispado
135
DOS SANTOS, Irineia Maria Franco, Conflitos religiosos, visões de mundo e relações de poder na imprensa
católica: “A Fé Christã” (Alagoas, 1902-1907). Segundo a autora, “este artigo é resultado parcial do projeto
de pós-doutorado ““A Fé Christã”: A imprensa católica entre os combates pela fé e as relações de poder
(Alagoas, 1900-1912)”, em andamento no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS/Porto AlegreRS, 2018”, p. 13 (não publicado)
136
SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. p. 223
137
LOWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. Editora Cortez, 1992, p.
13.
65
no estado138. Esse discurso apenas confirma as instituições influentes nos conflitos locais.
Classes sociais, religiões, costumes, territórios e manifestações culturais fazem parte de uma
série de “critérios” formulados e estabelecidos pelas elites brancas e letradas do estado, que
distinguem, separam e qualifica os grupos sociais.
Sabe-se que a prática de demonizar os deuses vencidos foi utilizada pelo
cristianismo no seu processo de expansão/universalização, ao se vincular
oficialmente ao Estado romano, a partir do século IV d.C. Durante o período
colonial, indígenas e africanos eram “orientados” pelos missionários a rejeitar
a sua própria cosmovisão, deuses e antepassados em favor do panteão católico.
No entanto, tal “orientação” – feita sob o forte “argumento” da escravidão –
não surtiu plenamente os efeitos esperados. Se por um lado, as cosmogonias e
práticas religiosas africanas e indígenas permaneceram na vida social, mesmo
perseguidas, por outro, a recorrência nos discursos e ações de demonização do
Outro, teve graves consequências para a vida cultural e social ao longo do
tempo, pois se expressaram em políticas públicas de repressão jurídica e
policial, ou seja, criminalização. O racismo institucional e religioso no Brasil
manteve-se nas estruturas do Estado, da colônia ao império e prolongou-se no
período republicano em seus diferentes regimes e governos. Caberia entender
o quanto a imprensa católica participou da sua manutenção, assumindo os
pressupostos das teorias raciais e das ideologias políticas dominantes.139
Anos mais tarde, ao longo da primeira metade do século XX, Alagoas terá papel
relevante nas discussões a respeito da presença negra na formação do estado.
Em novembro de 1934, um ano após a publicação de Casa Grande e Senzala,
aconteceu no Teatro Santa Izabel, na cidade do Recife, o primeiro Congresso
Afro-Brasileiro, sob a liderança de Gilberto Freyre, [...] Pautados na ideia de
“mestiçagem”, esses trabalhos visavam dar atenção à “participação do negro
e do mestiço no processo cultural do Brasil”. Entretanto, as chamadas
“culturas negras” foram entendidas como folclore [...] Esses estudos eram
herdeiros das abordagens conservadoras ancoradas no racismo científico de
fins do século XIX e início do XX. As gerações de intelectuais brasileiros
influenciados por Nina Rodrigues trataram da escravidão e do negro no Brasil
“através dos conceitos de acomodação, adaptação, aculturação, assimilação
e outros”
O pesquisador alagoano Alfredo Brandão, em sua apresentação no congresso,
expôs a “tese da conformidade do negro”, sintetizada no seguinte trecho: “O
negro era um conformado com sua sorte. É natural que vivesse obcecado com
a ideia de liberdade, mas nos tempos posteriores ao quilombo [Palmares] a
obcecação não o levava a revoltas e a reações a mão armada” 140
138
NUNES, Márcio Manuel Machado. A criação do bispado das Alagoas: religião e política nos primeiros anos
da República dos Estados Unidos do Brazil (1889-1910). 2016. Dissertação (mestrado em História) –
Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA) – Universidade Federal de Alagoas, 2016.
139
DOS SANTOS, Irineia Maria Franco. Ibidem. p. 18
140
MARQUES, Danilo Luiz. Sob a “sombra” de Palmares: escravidão, memória e resistência na Alagoas
oitocentista. 2018. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), 2018.
66
Porém, ao tentar compreender a história no “contrapelo” dos discursos silenciados e/ou
por vezes folclorizados, encontramos uma vastidão cultural e religiosa inseridas no período pós
escravidão. O Catálogo Ilustrado da Coleção Perseverança141, publicado em 1974 pelo Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas, apresenta a pesquisa de um dos principais folcloristas
alagoanos sobre os “Xangôs” na cidade de Maceió, no qual ele refere-se a intensa presença dos
“terreiros de cultos africanos” na capital durante o período. Gabriela Torres Dias, afirma que
esta coleção é um “marco” fundamental na história dos estudos sobre as religiões de matriz
africana no estado142, e apesar das críticas que a mesma tece aos folcloristas, considera-os
fundamentais para compreensão social a respeito da população negra em Alagoas. Até então, a
literatura alagoana, assim como os jornais e revistas do período, guardavam um lugar especial
aos personagens negros da nossa história, geralmente esses eram dispostos à cenas de crimes,
aos desvios morais e as péssimas condutas, criando um discurso de estranhamentos e eliminação
“do outro”.
[...] tanto a violência policial quanto a folclorização compõem instrumentos
práticos de “silenciamento” social produzidos pelas classes dominantes,
destinados à população negra e suas produções religiosas143
Apesar dos silenciamentos contidos na história de Alagoas a respeito da população
negra e seus cultos sagrados, foram inúmeros os casos de repressão racista à vida das pessoas
de cor nas cidades alagoanas, tanto antes, quanto pós abolição. Essa tentativa de “eliminação”
do outro (não branco) é mantida até o tempo presente.
Em 1912, Alagoas foi palco de um dos momentos mais violentos e sangrentos,
direcionado às “comunidades de terreiro”, os centros religiosos de matriz africana do país e a
população negra de Alagoas, esse episódio ficou conhecido como “Quebra de Xangô”. Suas
causas foram diversas, envolvendo-se desde as disputas políticas das elites alagoanas, até o
“preconceito” em relação aos cultos de matriz africana. E muito longe de discutir as questões
políticas que envolveram a oposição entre as oligarquias alagoanas, o “quebra” significou
momentos de tensões e violência contra população negra e pobre que frequentavam as casas de
“xangô”:
141
“A Coleção Perseverança foi doada em 1950, ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, pelo Sindicato
dos Empregados do Comércio, antiga Sociedade Perseverança e Auxílio dos Empregados do Comércio. O
nome atual “Coleção Perseverança”, foi colocado em homenagem à instituição doadora” ver: DIAS, Gabriela
Torres.
142
DIAS, Gabriela Torres. Os intelectuais alagoanos e o Quebra de Xangô de 1912: uma história de silêncios
(1930-1950). Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal de Alagoas, 2018.
143
Dias, Gabriela Torres. Ibidem, p. 142
67
Os terreiros foram acusados de obter proteção e praticar feitiçarias em
benefício do antigo governador. Muitos acabaram invadidos e tendo seus
filhos de santo e lideranças religiosas violentamente agredidos, além dos
objetos de culto queimados em praça pública. As casas mais antigas do Xangô
de Alagoas foram destruídas e algumas lideranças sobreviventes evadiram do
Estado144
Ao observar esses episódios e tantos outros, nota-se que as questões religiosas
demarcaram um importante lugar de conflitos na história do Brasil, e que por sua vez estão
intimamente ligadas às relações de poder e as formas excludentes exercidas pelo estado
brasileiro. Em Alagoas, no mesmo “instante” que é “selecionada” a religião cristã como oficial
do estado, as demais, de origem africana e indígena, são automaticamente “demonizadas” e
sofrem inúmeras tentativas de eliminação ao longo do tempo. As relações de poder são
totalmente injustas, excludentes e silenciadoras com parcela significativa da população. O
período “pós abolição” dá uma infinidade de exemplos que trabalhadores e trabalhadoras,
negras e indígenas tiveram suas práticas e costumes reprimidos em contrapartida à relações
culturais que, na maioria das vezes não lhes “pertenciam”. Isso não quer dizer que que não haja
interação entre os grupos sociais, muito pelo contrário, mas talvez se sobreponha questões que
muitas vezes passam despercebidos na história do trabalho em Alagoas.
Porém, muito além do preconceito “fecundado” ao longo da história de Alagoas, a
complexidade da vida social requer bastante atenção. Apesar do catolicismo ser o parâmetro
“ideal” da vida pós abolição, não quer dizer que as diversas práticas religiosas não tenham tido
relações próximas nesse processo. O romance Traços e Troças, já mencionado outras vezes,
narra a história de duas mulheres, Zulmira e dona Maria, ambas católicas e frequentadora da
igreja, à procura de uma feiticeira ou curandeira, nas margens da lagoa Manguaba, no intuito
de acabar uma briga de casal. O autor da obra faz questão de despejar todos adjetivos negativos
ao referir-se à Ana Cesária, a tal curandeira que havia encontrado. Segundo ele, a “bruxa velha
era uma espécie de hospital”, que “abusava da boa fé dos ignorantes e desesperados”, mas que
suas práticas “curavam” todos os males físicos e morais. Porém, ele faz questão de alertar sobre
sua “duvidosa” higiene, tal qual era costumeiro esse tipo de observação quando pessoas não
negras referiam-se à pessoas negras nesse período. Vide o caso da babá de Pedro de Carvalho,
mencionado no terceiro capítulo deste trabalho.
Aquela casa de consulta, verdadeiro consultório para clínica de porta nas casas
de caridade, era uma Arca de Noé; viam-se ali todas as raças, todas as cores,
144
DIAS, Gabriela Torres. Ibidem, p. 12.
68
feios e bonitos, felizes e infelizes; e a sinhá Aninha Cesária a dar consultas, a
sós, na alcova, trancada meia hora com o cliente, a enchê-lo de vento.145
145
MACIEL, Pedro Nolasco. Ibidem, p. 237
69
V.
CAPÍTULO 4 – MACEIÓ PÓS ABOLIÇÃO
Não fomos vencidas pela anulação social
Sobrevivemos à ausência na novela, e no comercial
O sistema pode até me transformar em empregada
Mas não pode me fazer raciocinar como criada
Yzalú
De acordo com pesquisas realizadas por Craveiro Costa, sobre a economia do estado de
Alagoas na virada do século XIX para o XX, “pelas estatísticas oficiais existentes, verifica-se
que a transição do regime político do país, em 1889, encontrou Alagoas com sua capacidade de
produção em via crescente”146, e ao mesmo tempo, a República trouxe ao estado o crescimento
da vida municipal - que até então dependia dos governos provinciais - e a partir disso, as cidades
passaram ser responsabilidade do próprio município. Segundo ele, foi assim que capital
alagoana conseguiu ascender numa curva crescente147. Porém, essa via não teve
necessariamente “mão dupla”, o crescimento foi totalmente desordenado, com foco no
desenvolvimento do capital e no enriquecimento das elites. As relações de trabalho não eram
mais estabelecidas nas condições entre proprietários e escravizados, como nos séculos
anteriores, muito pelo contrário, a partir de então todos e todas eram considerados “livres”,
inclusive as crianças, para venderem sua força de trabalho em troca de precárias condições de
vida. Essa miséria gerada pelo desenvolvimento desordenado, é visível tanto quando nos
deparamos com jornais locais, que denunciam o número de mendigos nas ruas da capital
alagoana148, ou quando vemos relatos de trabalhadores que denunciam as péssimas condições,
longas jornadas de trabalho e as precárias condições de moradia149.
4.1 OCUPAÇÕES NA CIDADE
A história da escravidão também se deu em paisagens urbanas e semiurbanas
como Maceió, uma cidade negra e atlântica que guarda peculiaridades. Podese dizer, sem nenhum demérito, que ela está longe de se equiparar em termos
demográficos e econômicos a cidades como Rio de Janeiro, Recife e Salvador,
todavia, possui suas particularidades e se constituiu como uma cidade com
forte presença africana.150
146
COSTA, Craveiro. História de Alagoas: resumo didático. São Paulo: Melhoramentos, 1983. p. 160
COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: Edições Catavento, p. 200. 2011
148
Mendicidade. Perseverança, 15 de agosto de 1909, ano 1, n 2
149
ALMEIDA. Luiz Sávio de. Chrônicas alagoanas vol. II – Notas sobre poder, operários e comunistas em
alagoas. Maceió: EDUFAL, 2006.
150
MARQUES, Danilo Luiz. Sob a sombra de Palmares, p. 293
147
70
Os trabalhos de Danilo Marques e Luana Teixeira são fundamentais para compreensão
desse período de “transição” no cotidiano de Maceió. Entender os processos de luta e resistência
dos trabalhadores e trabalhadoras escravizados e livres ao longo do século XIX, significa a
possibilidade de não “cair de paraquedas” na imagem do trabalho “livre”, recém iniciado após
a abolição. Até assinada a Lei Áurea diversos embates ocorreram em todos lugares do país, seja
em prol da emancipação, ou na tentativa de permanecer a produção sobre as “rédeas”
escravistas. Para compreensão das estratégias de resistência e dos processos de emancipação, é
necessário entender a configuração da cidade nesse período.
O bairro de Jaraguá, onde localiza-se o Porto de Maceió, por exemplo, foi uma
localidade importantíssima no que tange a discussão sobre a comercialização de africanos e
africanas ao longo do século XIX, assim como parte fundamental da cidade para busca por
empregos no início do século XX. Trapicheiros, estivadores, doqueiros, carroceiros são as
principais atividades de trabalho na região. Osvaldo afirma que “em regiões portuárias de menor
movimento, como era o caso do Jaraguá em ‘relação a outros portos do mundo e do Brasil, o
sistema tradicional de trabalho era o free call ou shape up, que no Brasil ficou conhecido pelo
nome de parede.” Segundo ele, esse era o tipo de trabalho “ocasional”, que “de acordo com o
movimento do porto no dia, o encarregado de contratações escolhe a turma de doqueiros e
estivadores que irão trabalhar naquele dia”, desvinculando qualquer relação entre trabalhadores
e local de trabalho, estabelecendo relações “clientelistas”151 e ao mesmo tempo incertas.
Numa crônica intitulada “Comes e bebes”, publicada no primeiro volume da obra
Maceió de Outrora, Félix Lima Júnior aponta:
Em Jaraguá, como relembrou o cronista J. Silveira, a preta Balbina sentada na
calçada do primeiro prédio do Beco da Estrela – início da atual rua
Comendador Leão – fazia concorrência a Maria Rosa, vendendo seu apreciado
“Ribacão” ou “arribação”. Caixeiros, estivadores, trapicheiros, empregados
dos armazéns de açúcar e de estivas fartavam-se da comida modesta e
apetitosa
Explorando o mesmo ramo, a Babaré, negra velha, africana legítima, quase
centenária, vendia, de 1 as 4 da tarde, junto ao portão de ferro da Great
Western of Brazil Company, na rua Barão de Anadia, na estação central, arroz
de coco, vatapá, caruru, além de siris, camarões e sururus ensopados em leite
de coco152.
151
152
Ver: MACIEL, Osvaldo. Filhos do trabalho... p, 34
JÚNIOR, Félix Lima. Maceió de outrora. Ufal, v.1 1976.
71
Além dos trabalhadores que desenvolviam atividades no porto de Jaraguá, como já foi
dito, diversas trabalhadoras, recém libertas da escravidão, na maioria das vezes, também
buscavam no entorno do bairro, tirarem o sustento de suas vidas, comercializando mercadorias,
como forma alternativa para enfrentar os desafios econômicos na realidade do “trabalho livre”.
Raras foram as vezes que essas mulheres foram pensadas para refletir a história do trabalho em
Alagoas. Na maioria das vezes, elas foram vistas na literatura local, porém sem devida
importância no processo desenvolvimento da “nação em progresso” tal qual era “profetizado”
na virada do século. Marques ao estudar mulheres africanas escravizadas e livres no século XIX
percorre a trajetória de mulheres negras que para conquistarem suas alforrias se debruçaram em
atividades de comércio, principalmente nessa região. Dessa forma é possível afirmar que
mulheres negras desempenharam papéis significativos não apenas no processo de libertação da
escravidão, mas foram fundamentais na garantia de sobrevivência de suas famílias nos períodos
posteriores. Portanto podemos dizer que Jaraguá foi o “berço” das decisões sócio econômicas
e políticas do estado de Alagoas desde seu “início”.
A arquiteta Cynthia Fortes ao estudar o Alto do Jacutinga e a formação do bairro do
Farol na cidade de Maceió, buscou compreender de que forma se deram as ocupações na parte
alta da cidade litorânea. Suas fontes a levaram para o encontro das ocupações ainda na primeira
metade do século XIX, anterior a construção do farol (1856), e segundo ela, aquela era uma
região de matas, na qual alguns autores alagoanos, tal como Moacir Medeiros de Sant’Ana
chegou afirmar a formação de “quilombo” nessa região da cidade. Os jornais locais
costumavam remeter-se ao Jacutinga, no período pós abolição, como uma região que aglutinava
pessoas imorais, cujas práticas eram motivos legítimos de serem reprimidos. Claramente os
diversos tons pejorativos a respeito dessa população, condiz diretamente às suas precárias
condições de vida.
Através da análise de imagens e mapas do Alto do Jacutinga entre os séculos XIX e XX,
Cynthia afirma que,
na fotografia da igreja dos Martírios, foram captadas também formas de abrigo
vernaculares, pontualmente inseridos na paisagem natural [...]. Nesses
abrigos, podem ter vividos carvoeiros, lenhadores, vendedores de ripas,
caibros e paus para cercas, que segundo Lima Júnior (1974), construíram
habitações modestas com a matéria-prima abundante fornecida pela densa
vegetação do Jacutinga no século XIX.
Diariamente os meios de comunicação publicavam nem que fosse uma pequena nota a
fazer as denúncias do local. Um quesito interessante nesse assunto é a intensidade de denúncias
72
realizadas contra mulheres que trabalhavam com prostituição, dando a entender que várias
trabalhadoras dessa atividade sobreviviam no desprezado bairro. E é bastante provável que
esses conflitos em torno da moral e do patriarcado tenham sido constantes. Mas ao certo isso
nos leva à fazer exercícios de reflexões acerca das condições de vida dessas mulheres, tentando
entender suas “armas” para resistir a miséria na qual grande parte dos trabalhadores e
trabalhadoras estavam inseridos naquele momento.
Em 28 de novembro de 1896, o Orbe publicou uma nota na capa do jornal, exigindo das
autoridades públicas procedimentos quanto aos casos de prostituição na região, acusando duas
mulheres, cujas identidades não foram reveladas, de viverem na rua do Arame153 sem limites
para “faltas de decência” ao longo da noite154.
Notas como essas eram recorrentes. E diante várias denúncias relacionadas a condução
da vida das pessoas pobres na capital alagoana, estavam evidentes nos jornais o receio que as
autoridades e as elites tinham ao conviver ao lado de trabalhadores e trabalhadoras negras recém
libertos. O mesmo receio já propagados ao longo do século XIX em relação a abolição, que por
sua vez se deu gradativamente.
Quanto aos negros que se alforriavam em ritmo mais acelerado, enfrentavam
redefinições sociais e políticas da precariedade da liberdade. Estavam
excluídos da cidadania política devido à lei eleitoral de 1881, não tinham
acesso à instrução primária, não obtinham autorização legal para criar
associações baseadas em laços étnicos e raciais. Em meio a tantas negativas,
lidavam com a afirmação do racismo científico na esteira do imperialismo
europeu e sua repercussão no desenho de políticas públicas (CHALHOUB,
1996). Outrossim, a difusão de novas ideologias do trabalho esgarçava o
conceito de vadiagem e restringia a liberdade possível aos egressos do
cativeiro e seus descendentes, fazendo deles os alvos preferenciais da
suspeição policial nas cidades. Destarte, gestavam-se estruturas de dominação
atinentes a formas de exploração do trabalho outras que não a escravidão,
renovando-se os sentidos da precariedade estrutural da experiência de
liberdade dos negros.155
Os bairros da Levada, Ponta Grossa, Bebedouro, Trapiche da Barra e demais localidades
nas margens da lagoa Mundaú, por sua vez, foram bairros habitados pelas populações pobres e
trabalhadora que sofriam diariamente com a carestia da república. O “bairro da Graça”, segundo
Pedro Nolasco, assim era chamado o bairro da Levada, por ser sede da Igreja Nossa Senhora
153
Segundo Craveiro Costa, a rua arame foi chamada assim porque nela passava o fio do telegrafo nacional.
s/a. É com a polícia. Orbe. Ano XVIII, n. 129, 28 de novembro de 1896, capa.
155
CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX).
Revista História Social, Unicamp: Campinas - SP. Nº 19, 2010, p. 57, 58.
154
73
das Graças156 foi palco de grandes acontecimentos no início do século XX. Neste bairro estava
localizado o porto da Levada, que nesse período teve papel significativo nas relações de
comércio e trabalho da cidade. Por ser rota de escoamento de mercadoria, entre os rios e lagoas
do estado, canoeiros, remeiros, entre outros, encontraram ali alternativas de trabalho e
sobrevivência. As lavadeiras trabalhavam às margens.
Segundo Craveiro Costa, em Maceió, Bebedouro havia sido um bairro com “elegantes
casas”, cujos moradores eram muito bem “selecionados” e preparavam belas festas de Natal.
Mas ao longo do século XIX, este foi transformando-se em “arrabaldes”, totalmente
“abandonados”. Devido ao crescimento da populacional em Maceió, os grupos de trabalhadores
e trabalhadoras foram espalhando-se entre os bairros e a vida social ganhou novas dimensões
no cotidiano da cidade.
É interessante pensar que nessa mesma região da cidade, também havia forte presença
das casas de cultos africanos, como aponta o folclorista Abelardo Duarte157, assim
caracterizando-se uma região proeminentemente negra, de trabalhadores e trabalhadoras livres
e libertos, que buscaram dia após dia manter suas famílias, cultuar seus ritos sagrados e poder
conviver “livremente”. Porém, como bem destacado por Silvia Lara, “liberdade adquire
dimensões econômicas”, e para população negra liberta em Maceió pós abolição isso significou
uma complexidade de conflitos que envolveu diretamente o acesso às decisões públicas e as
condições de vida oferecidas na cidade em crescimento. Um dos maiores exemplos na história
de Alagoas causados pelas desigualdades sociais, econômicas e raciais em Alagoas pós
abolição, foi o Quebra de Xangô, no qual já tratamos anteriormente. Esse episódio marca na
história brasileira, não apenas histórias de faltas de oportunidades e direitos, mas perversas e
intensas tentativas de destruição da cultura negra que ocupava grande parte da cidade de Maceió
nesse período.
4.2 – MENDICÂNCIA
O crescimento populacional desordenado durante a transição entre os séculos XIX e
XX, trouxe à cidade de Maceió um montante de conflitos e miséria. Notamos a proporção do
desastre através das notícias circuladas na capital durante esse período. Além dos inúmeros
casos de roubo de galinha e cavalo que levavam pessoas para a casa de detenção, também era
156
157
MACIEL, Pedro Nolasco. Ibidem, p. 240.
DUARTE, Abelardo; INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO (ALAGOAS). MUSEU. Catalogo
Ilustrado da Coleção Perseverança. Departamento de Assuntos Culturais, SENEC, 1974.
74
publicada diariamente notas e artigos a respeito dos mendigos que viviam espalhados pelas ruas
da cidade. Na maioria das vezes esses eram criminalizados por sua própria situação de miséria,
porém outras, apesar do “horror” que sentiam, mostravam-se dispostos ajuda-los através de
campanhas e doações.
Gustavo Bezerra aponta que no código de posturas de Maceió de 1848 era proibido que
trabalhadores escravizados pedissem esmolas pelas ruas da cidade, e caso fossem capturados e
comprovado o ato, seus senhores pagariam multa ao estado. Fosse homem tinha os custos de
10 mil réis, caso fosse mulher, pagariam 5 mil réis158.
[...] a proibição do cativo à outra forma de sobrevivência, a não ser a imposta
pela instituição escrava, nem mesmo a mendicância lhes era permitida,
cerceando-se qualquer forma alternativa de sustento dos escravizados.
Ressalta-se o fato da penalidade recair sobre o senhor do escravo, caso fosse
comprovado o abandono do escravizado pelo mesmo, e a multa aplicada a ele
caso o escravo seja do sexo masculino, dez mil réis, ou feminino, cinco mil
réis. Faz-se necessário destacar a maior valorização do escravo masculino, que
se faz notar a partir do valor da multa a ser aplicada ao proprietário de
escravos, revelando-se na legislação uma desigualdade de gênero.159
O ato da mendicância esteve presente em diversos momentos da história maceioense, e
envolveu centenas de trabalhadores e trabalhadoras que tentaram fugir da escravidão e/ou que
não conseguiram espaços nos locais de trabalho livre, e através da prática de “pedir esmolas”
conseguiram sobreviver um dia após o outro, morando nas ruas da cidade e vivendo do que as
pessoas, algumas associações e o estado lhes cediam. Os jornais não falam nada acerca da cor
dessas pessoas, porém, a probabilidade que no período pós abolição, sejam essas as recém
libertas da escravidão que já viviam na cidade e também aqueles que fugiam da seca do sertão.
Continua a falta de chuvas no sertão: a secca, portanto, vai produzindo
terríveis efeitos. Os gados estão reduzidos a metade ou menos da quantidade
que existia.
Aumenta a imigração dos sertanejos160
A mendicância foi pauta explicita por todo esse período. Ao passar dos anos esses
números apenas foram aumentando. Durante as décadas finais do século XIX, o Orbe publicava
textos a respeito da criação de um asilo de mendicidade, cuja proposta era “retirar” as pessoas
158
BEZERRA, Gustavo. Ibidem, p. 28
BEZERRA, Gustavo. Ibidem, p. 28
160
A Secca. O Orbe, 25 de novembro de 1898. Ano XX, n 162.
159
75
das ruas. “Havia queixas de que a colheita de esmolas estava se dando “a toda hora, todos os
dias”, os pedintes batiam nas portas das casas, gritavam e blasfemavam”161. Infelizmente não
foi encontrada documentação sobre a criação do asilo, e muito pouco sobre seu funcionamento.
Mas sabemos que o ex governador do estado, que por sua vez também era médico, Manuel José
Duarte dirigiu a construção do asilo de mendicidade na capital no início do século XX. Através
de publicações nos jornais conseguimos perceber o intenso fluxo de pessoas que eram levadas
para instituição diariamente.
É notável que o crescimento populacional de Maceió no pós abolição relacionava-se
diretamente com a falta de oportunidades de trabalho no cotidiano de parte significativa da
sociedade alagoana. Gustavo Bezerra, através da análise do Capítulo XII do Código Penal da
República de 1890, aponta “quão entrelaçados estavam vadios, mendigos, ébrios e capoeiras”
perante a lei, qual decreta que todo indivíduo que tenha condições para trabalhar e não trabalhe,
e “finja” enfermidades para não trabalhar ou que “mendigue de bando”, seja penalizado com a
prisão, assim como “embriagar-se por hábito” ou ser “dono de casa de vender bebidas ou
substâncias inebriantes”, construindo um perfil “óbvio” de sujeito marginalizado da capital
alagoana no início da República. Será que o encarceramento foi a alternativa dada pela poder
público, no Brasil, à população negra e pobre pós abolição? Segundo Félix Lima, em Maceió
“a capacidade da Penitenciária era um pouco mais que 100 detentos. Mas o número de presos
no início do século XX, era muito maior”162.
Entre 1900 e 1920, a população de Maceió cresceu um pouco mais que cem por cento,
ou seja, nos vinte primeiros anos do século XX, a população de Maceió dobrou de tamanho163.
Esse fator é importantíssimo se pensarmos as condições de vida dessas pessoas numa cidade
“em crescimento”. Logo nos primeiros anos do século, algumas denúncias, assim como,
também, alguns pedidos de ajuda, foram feitos nas páginas do Gutenberg. Em janeiro de 1904,
é apresentado na capa desse, um artigo de denúncia sobre a falta de abastecimento de água para
os moradores de Maceió:
Fóra de toda duvida é o crescimento de nossa capital: embora lento, está se
operando a olhos nús: facto comprovado aliás pela demonstração das
estatisticas, pela relação official da decima urbana, pelo computo da
edificação predial. Entretanto também está verificada a diminuição sensivel
do fornecimento d’água potavel por parte da companhia que dispõe dos meios
161
MARQUES, Danilo Luiz. “Um Covil de Escravos Fugidos”: a cidade de Maceió na década da abolição. In:
História e Democracia. Guarulhos, SP, 2018, p. 1
162
JÚNIOR, Félix Lima. Ibidem, p. 51.
163
COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: Edições Catavento, p. 200.
76
mananciais de bôa especie e qualidade.164
Em 1905, durante o governo de Euclides Malta, o Gutemberg apresentou um artigo de
capa, intitulado “bolsa dos pobres”, onde faziam uma espécie de campanha para que a
população reúna os rótulos de cigarro da fábrica “Estrela do Norte” em “benefício da
mendicidade”, que é reprimida diariamente pelas forças policiais e que sofre com diversos
problemas de saúde e vivem sem nenhuma assistência, pelas ruas de Maceió:
Nada mais triste e deponente do que vermos os nossos semelhantes infelizes
mortos á fome.
Já lhes basta a lepra infame que lhes invade o corpo numa camada compacta;
já lhes basta o cranco pestileno que pouco a pouco lhes vae minando a
existencia; e já lhes basta a tuberculose que paulatinamente os vae arrastando
á borda da sepultura165
Os relatórios de estado apresentados pelo governo, afirmam que nesses primeiros anos
do século XX houve imenso esforço quanto à higiene e saúde pública em todo estado. Já na
década de 1890 havia um intenso surto de varíola que espalhou-se por todo estado, contagiando
centenas de pessoas ao longo dos anos seguintes166, casos de “febre palustre”167 também eram
bastantes comum, levando pessoas à morte.
Em 1906 o Gutenberg publicou uma nota exigindo que o comissário de polícia
prendesse Agostinho, que segundo o jornal, era um mendigo que vivia “pedindo esmolas na
calçadas das cabellarias que ficavam defronte o mercado”, pois seu mau cheiro e suas feridas
“peçonhentas” eram desagradáveis ao comércio. Na mesma nota, também colocaram em
questão que no espaço frequentado por Agostinho, havia grandes disputas entre o mercado das
pessoas que vendiam em tabuleiros e os estabelecimentos, gerando uma imensa concorrência.168
Nesse sentido, faz necessário fazer observações acerca das dificuldades encontradas por
trabalhadores e trabalhadoras pobres, que buscavam “formas alternativas” de garantirem seu
sustento, seja no trabalho “informal” ou na busca por ajuda financeira, através da caridade.
Em 15 de agosto de 1909, o jornal Perserverança, apresentou em um artigo de capa
uma denúncia aos mendigos que viviam nas ruas de Maceió, segundo eles, a miséria crescia a
164
Gutenberg: Falta d’água. Gutemberg, Maceió, 31 de janeiro de 1904, ano XIII, nº 19
Bolsa aos Pobres. Gutemberg, 7 de fevereiro de 1890. ano XXIV, nº 25
166
Relatório emitido pelo governo do estado de Alagoas em 1909, sendo esses publicados anualmente.
167
malária
168
Pedido. Gutemberg, Ano XXV, n. 23, 2 de fevereiro de 1906, capa.
165
77
cada dia169.
Causa horror e, vezes até, revolta, ver desfilar em Maceió aos sabbados, desde
as 7 horas da manhã até alto dia, a procissão esfarrapada e infecciosa de
mendigos que nesta capital armaram tenda. Aos sabbados andam elles no
commercio deste bairro; os outros dias da semana, porem, occupam-nos elles
nos outros districtos da capital - Jaraguá, Levada, Poço e os demais. Podemos
affirmar que o seu numero se eleva a centenas, isso sem contar com os que
apparecem mais recatamente170
As péssimas condições de vida oferecidas pelo estado de Alagoas à grande parte da
população em junção ao crescimento sem planejamento da capital, ocasionou diversas
complicações no cotidiano dessas pessoas. Falta de trabalho, moradia, higiene e condições
básicas de saúde foram por diversas vezes a base da experiência enfrentada por centenas de
trabalhadores e trabalhadoras na capital alagoana durante o pós abolição.
4.3 LUTA POR DIREITOS
Apesar desse trabalho não está direcionado à entender agrupamentos de trabalhadores
formais e de certa forma organizados em associações ou sindicatos, é fundamental entender os
processos de luta e resistência dentro e fora das entidades classistas, tendo em vista que a
dinâmica social ocorre em várias faces.
Como vimos nos capítulos aqui presentes, a classe trabalhadora em Maceió não é
homogênea, ainda que por caracterizações gerais, possamos confundi-la. A luta por direitos
segue a lógica da denúncia contra a exploração e dominação dos trabalhadores e segue à
conclamação para a mudança das relações de trabalho.
Voltando a pensar em quem seriam essas pessoas que começaram a ocupar as ruas do
comércio de Maceió nesse período, é possível fazer um paralelo, menos do que uma
comparação, com as preocupações apontadas pelo historiador Antonio Luigi Negro, quando
questiona o conceito tradicional de classe trabalhadora para pensar os trabalhadores
soteropolitanos. Aqui, certamente, ex-escravos passam a fazer parte das relações da capital
baiana, ao qual considera:
Querendo ser simples, esse artigo não se apega aos (não muito bem-sucedidos)
169
170
Mendicidade, Perseverança, ano 1, n 2, 15 de agosto de 1909.
Perseverança, ano 1, n 2, 15 de agosto de 1909.
78
esforços de detalhada teorização do conceito de classe, lacuna que Marx e
Engels deixaram. Em alguns intentos surgiram áridas formulações. Noutros, o
fosso entre o conceito e o fenômeno foi alargado, o ideal se descolando da
realidade. Acertar as contas, teoricamente, com Marx e Engels levou ao
esquecimento da história, à desconsideração de sujeitos históricos
extraordinários. Paralelamente, o afã de prosseguir com uma exclusiva e
‘verdadeira ciência’ para o ‘socialismo internacional moderno’ (o que Marx
teria feito, segundo Engels) tem levado o marxismo – enquanto doutrina – a
prescrever uma consciência verdadeira à história do proletariado.”171
Portanto é de extrema importância o entendimento sobre os “lados” que se seguem as
lutas da classe trabalhadora e suas reivindicações aos patrões e aos governantes. Durante o
período pós abolição, resistir fez parte do cotidiano dessas pessoas, das quais é possível ter
exemplos diversos e relevantes ao longo dos anos, desde a busca por alforrias, a luta por
sobrevivência e a formação de organizações classistas e suas movimentações em torno de
melhores condições de vida, contextualizadas numa sociedade extremamente desigual.
Tal qual discutido por Sidney Chalhoub, a libertação dos povos escravizados, significou
muitas vezes uma ameaça as classes dominantes e a ordem estabelecida pelos mesmos,
“provocando um deslocamento de profissões e de hábitos de consequências imprevisíveis”172.
Nessa situação, o governo brasileiro criou leis e decretos que impediam povos recém libertos
ocuparem os espaços das cidades e do campo tal qual pessoas “livres”. O projeto de repressão
a ociosidade, a perseguição aos ditos vagabundos, aos mendigos e ébrios, foi sem dúvida,
formas de limitar não só os espaços públicos, mas também o acesso à vida digna, com direitos
e condições essenciais, tais como comer, morar, vestir, entre outros.
É inumerável a quantidade de vezes que trabalhadores e trabalhadoras que viviam nessas
condições buscaram encontrar saídas para tamanha exploração e humilhação. “Fingir estar
doente” significou muitas vezes proteger-se da violência policial que agia ferozmente contra
aqueles e aquelas que não tinham um emprego, além de garantir refeições e alguns momentos
de descanso. Estar vivo nas condições precárias que a sociedade pós abolição oferecia, muitas
vezes significou resistir às pressões da sociedade de classes.
Em 1905 o Evolucionista publicou um artigo intitulado “Os falsos doentes”173 que
afirma sobre a felicidade que “vagabundos” ficavam ao terem dias de folgas, associando isso à
possível falta de coragem para o trabalho e a disposição para uma vida de “vadiagem”. O artigo
171
NEGRO, Antonio Luigi. Rodando a baiana e interrogando um princípio básico do comunismo e da História
Social: O Sentido Marxista Tradicional de Classe Operária.” Revista Crítica Histórica. Ano III, nº 5, julho de 2012,
p. 24.
172
CHALHOUB, Sidney. Ibidem, p. 67
173
Os falsos doentes. Evolucionista. Ano IV, nº 242, 31 de outubro de 1905, p.2
79
retoma dois casos, que aos olhos da edição do jornal, eram “incompreensíveis”. Em ambos os
nomes dos sujeitos não foram revelados, mas um desses era um antigo enfermeiro, que por anos
viveu entre os hospitais e conhecia bem as doenças que alastravam a cidade. Sem trabalho, o
sujeito “fingia” estar com uma doença de pele conhecida como “sinal do diabo”, que muitas
vezes levou pessoas à fogueira. Mas no seu caso foi diferente, segundo o jornal, ele desenhava
em seu corpo todas as manchas características da doença, garantindo-lhes a “hospitalização
eterna”174. O outro caso, foi uma acusação contra um cavaleiro que trabalhava na cidade de
Maceió, e sempre disfarçava conjuntivite, para pedir dispensa de seu dever no trabalho.
As formas de resistência ao trabalho explorado e as condições precárias da vida foram
diversas. As tentativas de não estarem submissos a essas circunstâncias foi cada vez ganhando
novas proporções. O contexto de mobilizar-se contra os antigos senhores, assim como os
patrões foi a cada instante sendo remodelado de acordo com a conjuntura e a possibilidade de
organização dos grupos oprimidos.
Em 1898, trabalhadores dos trapiches organizaram-se contra as precárias condições de
trabalho e contra os baixos salários.
Foram informados que ante-ontem os trabalhadores do Trapiche Faustino, em
Jaraguá, declararam-se em greve, em vista do pequeno salário que tinham.
Não consta que houvesse fato desagradável, bem como se os trabalhadores
foram attendidos no pedido justo que fizeram.175
Osvaldo Maciel desenvolve sua pesquisa no sentido de entender a classe trabalhadora
organizada em associações e entidades de classe entre o fim do século XIX e início do século
XX no estado de Alagoas, durante o pós abolição. Os tipógrafos e os caixeiros são as categorias
de trabalho na qual o pesquisador se debruça para refletir esse espaço na história do trabalho do
estado. Sobre o primeiro, ele faz uma reflexão acerca do “processo de articulação de uma
identidade coletiva dos trabalhadores com o socialismo na capital alagoana, entre 1895 e
1905”176. E no segundo ele faz uma discussão acerca do significado do mutualismo177 no estado
de Alagoas178.
174
Os falsos doentes. Evoliucionista. Ano IV, nº 242. 21 de outubro de 1905, p. 2
Greve. O Orbe. Ano XX, nº 96, 12 de novembro de 1898, p. 2.
176
MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Filhos do trabalho, apóstolos do socialismo: os tipógrafos e a construção
de uma identidade de classe em Maceió (1895/1905). 2004. Dissertação (mestrado em História) Universidade
Federal de Pernambuco
177
Ler: BATALHA, Claudio HM. Relançando o debate sobre o mutualismo no Brasil: as relações entre
corporações, irmandades, sociedades mutualistas de trabalhadores e sindicatos à luz da produção
recente. Mundos do Trabalho, v. 2, n. 4, p. 12-22, 2010.
178
MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. A perseverança dos caixeiros: o mutualismo dos trabalhadores do comércio
175
80
Para entender a composição da classe trabalhadora e suas lutas históricas, é
imprescindível uma reflexão acerca das organizações de classe, sejam elas nos modelos
“clássicos”, como estudado pelo pesquisador, como também nas diversas formas de reagir as
contradições existentes no sistema das desigualdades sociais, como vimos ao longo desse
trabalho.
Entre o século XIX e o século XX, Maceió foi um espaço de importantes acontecimentos
nas mobilizações de trabalhadores e trabalhadoras, desde a revolta dos escravizados
oitocentistas, como destacados por Danilo Marques, aos atos de resistência por liberdade da
escravidão e a conquista da abolição, como apontado por Gustavo Bezerra, até as lutas encaras
pelas organizações classistas, sejam elas associações mutualistas ou sindicatos, como
demonstradas no trabalho de Osvaldo Maciel.
Em 3 de maio de 1903, o jornal operário Trocista, estando em seu sexto ano de
funcionamento, fez lembrar o congresso da II Internacional de 1893, onde foi discutido por
trabalhadores, em sua maioria homens, de grande parte do mundo, a redução da jornada de
trabalho para 8 horas diárias, e segundo a campanha feita pelo mesmo, a partir disso os
trabalhadores do Brasil, principalmente os de Alagoas, não podiam ficar de fora desta luta, pois
essa representava uma pauta de justiça social para com os trabalhadores de todo o mundo. No
mesmo artigo, fez menção ao 1º de maio, fortalecendo que a data era de “todos que sofriam as
opressões do capitalismo”179.
É possível notar que no período pós abolição com a ampliação do trabalho livre, eram
mencionadas em diversos jornais ligados à causa operária e ao socialismo, que circulavam não
apenas em Alagoas, mas por todo país, denúncias e campanhas direcionadas à jornada de
trabalho, tendo como foco principal das reivindicações a exigência de sua redução para 8h/dia.
Em 1909 tivemos a “famosa” greve dos ferroviários do Nordeste, onde os trabalhadores
da Great Western, dos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, fizeram
uma significativa greve, conseguindo paralisar o funcionamento de todas as ferrovias dos
estados mencionados durante quase uma semana, reivindicando melhores salários180. O
Gutemberg, acompanhou todo processo de mobilização, desde antes do início da greve, no dia
10 de janeiro de 1909, com a divulgação das pautas exigidas pelos trabalhadores ferroviários,
sendo a principal, o aumento dos salários em 20, 30 e 50 por cento, até o vencimento181; até os
em Maceió (1879 1917). 2011. Tese (Doutorado em História) da Universidade Federal de Pernambuco
1º de maio. O Trocista. Maceió, 3 de maio de 1903. ano VI, nº 199
180
ALMEIDA, Luiz Savio. Op. cit. p. 70
181
A gréve da Great Western. Gutemberg, Maceió, 17 de janeiro de 1909, ano 29, n 7
179
81
dias seguintes, apresentando os desdobramentos de suas mobilizações nos dias em que os
trabalhadores suspenderam o funcionamento de toda artéria ferroviária, organizando
manifestações pacíficas nas ruas dos quatro estados. O Diário do Natal, jornal republicano, da
capital do Rio Grande do Norte, informa que a empresa inglesa havia demitido alguns
trabalhadores e reduzido o salário dos que permaneceram, prometendo elevá-los
posteriormente. Tendo ficado sem respostas e melhores condições, os trabalhadores optaram
pela greve182. Além das demissões e reduções de salários, os trabalhadores denunciaram os
privilégios dados aos trabalhadores ingleses em detrimento das péssimas condições oferecidas
aos trabalhadores nacionais, realizando uma campanha em defesa dos trabalhadores do país,
sendo essa uma importante justificativa que eles encontraram para melhorar as condições
oferecidas aos trabalhadores que eram ameaçados diariamente com as péssimas condições de
trabalho e redução de salários183. Apesar de não ter acontecido a imigração europeia para
Alagoas, os principais cargos nos locais de trabalho muitas vezes eram assumidos por
estrangeiros, em especial ingleses.
Essa greve teve início em Pernambuco, tendo se estendido para os outros estados184,
onde transparece denúncias tão “urgentes”, fazendo com que os trabalhadores ganhassem a
simpatia da população em geral para contribuir na mobilização. Segundo Luiz Sávio Almeida,
as consequências da greve se agravava cada vez mais, pois era através do transporte ferroviário
que se faziam toda entrega de mercadorias pelo estado, tendo que então ser entregue através de
outros meios de transporte, como carro de boi, por exemplo, dificultando o acesso e deixando
mais caro os produtos185. Apesar das dificuldades tidas pela falta de transporte de mercadorias
e todos os problemas que isso pode causar, o Gutemberg aponta que a greve teve um grande
apoio da população, onde elas chegaram participar de diversas mobilizações nas ruas dos quatro
estados ao lado dos grevistas.
A greve acabou em 24 de janeiro, com o recuo dos empresários da Great Western,
atendendo as diversas reivindicações dos trabalhadores locais.
É notável que essa greve dos trabalhadores da Great Western foi um momento
importantíssimo na história dos trabalhadores de Alagoas e nos demais estados do Nordeste,
tendo em vista que quase duas semanas com as atividades suspensas causaram bastante prejuízo
no lucro dos empresários ingleses, e que depois de diversas mobilizações apoiadas pela
182
Greve na Great Western. Diário do Natal, 13 de janeiro de 1909. ano XVIII, nº 3615
Greve da Great Western, Diario do Natal, 14 de janeiro de 1909. ano XVIII, nº 3616
184
Idem
185
ALMEIDA. Luiz Sávio de. Chrônicas alagoanas vol. II – Notas sobre poder, operários e comunistas em
Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2006, p. 80
183
82
população dos quatro estado, os empresários que nos primeiros instantes se negavam à qualquer
negociação, tiveram que recuar, dando ganho de causa aos trabalhadores, que acabaram saindo
com suas pautas atendidas.
Essa greve representou um dos principais momentos da luta por direitos enfrentadas
pelos trabalhadores em Alagoas no início século XX. A partir daí, os trabalhadores ganham
novas formas de resistência, diferente a que os escravizados desenvolveram nos séculos
anteriores. Segundo Alice Anabuki Plancherel, a década de 1910 foi um período intensamente
marcado por diversas manifestações por parte dos trabalhadores de Alagoas, sendo esses
alfaiates, sapateiros, trapicheiros, carroceiros, trabalhadores da empresa de energia, pintores,
padeiros, entre várias outras categorias186. Suas maiores reinvindicações estavam associadas à
melhores salários, porém, não se resumiam a essa pauta, algumas como resistência contra a
opressão nos locais de trabalho e contra o controle e dominação política por parte da classe
dominante estava presente em seu cotidiano187.
186
PLANCHEREL, Alice Anabuki. Memória e omissão: Anarquismo e Octavio Brandão. Maceió: EDUFAL,
1997 p. 60
187
Idem
83
VI.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos sobre experiência e cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras tem crescido
bastante nos últimos anos. Os rumos para as novas pesquisas ganharam elementos diferentes,
nas quais tentam preencher as lacunas evidentes na história do trabalho no Brasil. Novas
percepções, baseadas em gênero e raça, por exemplo, são base elementares nessa discussão.
No entanto, a produção historiográfica sobre trabalho em Alagoas, no período marcado
pelo pós abolição e “início” do trabalho assalariado, possui pouco visibilidade, tendo uma
escassa produção à respeito. A partir das pesquisas feitas nos últimos anos, é possível apontar,
como sendo um dos principais, o trabalho do historiador Osvaldo Maciel sobre trabalhadores
agrupados em organizações classistas nesse período.
Desta forma, torna-se relevante estudos sobre o cotidiano dos trabalhadores nos
momentos que sucedem a abolição da escravidão em Alagoas, trazendo diálogos sobre locais
sobre trabalho, formas de ocupação da cidade de Maceió no início do século XX e as diversas
formas de resistência encontrada pelos trabalhadores; além das contradições expostas entre
capital e trabalho; trabalho e trabalhadores.
Em Alagoas, a história do trabalho e dos trabalhadores pós abolição raramente é
discutida a partir da condição de rompimento com o trabalho escravo. Com contribuição da
documentação (digitalizada) disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional, conseguimos
reunir um grande número de jornais do período, nos possibilitando fazer um breve panorama
da situação do estado durante o período.
A principal documentação dessa pesquisa está centrada em jornais que circularam em
Alagoas, principalmente na capital, entre o fim do século XIX e o início do século XX. Dentre
todos que serão listados no final, destaco os principais: O Proletário (1893/1902), Gutemberg
(1892-1911), O Evolucionista (1905) e Perseverança (1909-1910)188. Paralelo à essa
documentação, faremos uma discussão com os Relatórios de Presidentes dos Estados
Brasileiros, mais especificamente de Alagoas (publicados anualmente) e pesquisas que de
algum modo contribuem para percorrer os caminhos do trabalho urbano na capital alagoana no
início do século XX. Além disso, conseguimos localizar e ter acesso à documentação disponível
tanto no Centro de Documentação e Memória da UNESP (CEDEM), quando no Arquivo
Público de Alagoas (APA), que foi de fundamental importância para desenvolvimento desta,
188
Esses periódicos estão hospedados no site da Hemeroteca Digital. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital; exceto o exemplar de 1902 de O Proletário, que encontra-se
arquivado no Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP.
84
assim como a literatura alagoana, que foi de suma importância no processo de entendimento
das caracterizações sociais envolvidas no processo de abolição, como também de compreensão
das dimensões sócio políticas.
A partir da pesquisa apresentada neste trabalho, é possível compreender um pouco
acerca das experiências e do cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras que viveram na capital
alagoana na virada do século XIX para o século XX, percebendo além de suas formas de
resistência às pressões impostas pelo trabalho explorado, bem como a construção de suas pautas
a partir do contexto vivenciado diariamente. Como visto, diversas formas de organizar e
mobilizar as pautas da classe foram encontradas.
Compreender as relações étnicas, de gênero e familiares, as formas de lazer e
sociabilidade dos trabalhadores e trabalhadoras, as comunidades e espaços de moradia e ações
da classe, foram elementos que possibilitaram a construção de um importante debate sobre as
experiências das classes trabalhadoras urbanas em Maceió.
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VILLELA, Pedro de Carvalho. Mundaú. SENEC/AL. 2ª Edição. Maceió, 1977
DOCUMENTAÇÃO
JORNAIS
A Tribuna
O Proletário
Gutemberg
O Caixeiro
Evolucionista
O Subúrbio
Perseverança
Diário de Natal
O Trocista
Orbe
Fé Christã
DOCUMENTOS OFICIAIS
Relatórios de Presidentes dos Estados Brasileiros
ANEXOS
ANEXO 1
Ocupação da borda da encosta do bairro do Farol que corresponde hoje ao Mirante Ambrósio de Lira.
Fonte: acervo digital do APA.189
189 FORTES, Cynthia Nunes da Rocha. Ibidem, p. 59.
ANEXO 2
Ao norte da lagoa Manguaba – Uma canoa a remo
Maceió - Lavagem de roupa no Poço
Maceió – Porto da Levada
Maceió – Uma quitanda na Levada