EM DEFESA DA IGREJA DE PEDRO? CONTROVÉRSIAS ADOCIONISTAS NA IGREJA HISPÂNICA (SÉCULO VIII) - Luanna Klíscia de Amorim Mendes
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES – ICHCA
PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA - MESTRADO
LUANNA KLÍSCIA DE AMORIM MENDES
EM DEFESA DA IGREJA DE PEDRO? CONTROVÉRSIAS
ADOCIONISTAS NA IGREJA HISPÂNICA (SÉCULO VIII)
Maceió
2019
1
LUANNA KLÍSCIA DE AMORIM MENDES
EM DEFESA DA IGREJA DE PEDRO? CONTROVÉRSIAS
ADOCIONISTAS NA IGREJA HISPÂNICA (SÉCULO VIII)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Alagoas, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em História.
Orientador (a): Prof.ª. Drª. Raquel de Fátima
Parmegiani.
Maceió – AL
2019
2
3
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos meus pais Lucia Maria e Sebastião Mendes, e minha irmã
Kerolayne Susan pelo apoio incondicional, pelo auxílio e pela paciência nos dias difíceis e pelas
inúmeras vezes que as obriguei a ler minha dissertação, e aos meu primo Jose Francisco por me
dar conselhos de apoio nessa jornada, e minhas primas por ouvirem meus diversos lamentos.
A professora Dra. Raquel de Fátima Parmegiani, pela oportunidade, paciência e
confiança depositadas em mim desde os tempos da graduação e pelo apoio quando os
empecilhos apareciam, por sua dedicação e sua orientação repleta de conhecimentos e sabedoria.
As professoras doutoras Flávia Maria de Carvalho e Arrisete Cleide de Lemos Costa
por nos auxiliarem nesse caminho com seus conhecimentos nas disciplinas, ao professor Doutor
Alexandre Torres Fonseca pelos encaminhamentos vindos da história da ciência. Aos
professores doutores Pedro de Lima Vasconcelos e Guilherme Queiroz de Souza pela
disponibilidade de participar de minha qualificação e defesa, e por indicar caminhos possíveis
para a pesquisa. E aos professores e ao do Programa de Pós-Graduação em História PPGHUFAL.
Ao meu amigo Cesar Leandro por compartilhar comigo nossas alegrias, angústias e
referências bibliográficas, aos meus companheiros José Carlos e Benjamim Oliveira pelo apoio
e os excelentes debates que me permitiram ouvir outros lados par aminha pesquisa, e pela
confiança em nossas empreitadas nas oficinas e minicursos que deram valiosas contribuição
nessa jornada acadêmica, aos meus companheiros do grupo de pesquisa Vivarium pela troca de
experiências e discussões tão ricas. Aos meus companheiros de mestrado que sempre deram
força Rafael, Andressa, Oseas, Ângela, Luan, Ricardo, Mary e Robson e permitiam com suas
levezas desestressar com uma boa conversa.
Além de um especial agradecimento a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
Alagoas – FAPEAL por consentir com seu apoio financeiro que permitiu a realização deste
trabalho.
5
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo a reflexão a respeito de um debate ocorrido por meio de
cartas sobre ideia Adocionista ocorrida na Igreja Cristã Hispânica no século VIII, surgida a
partir dos diálogos travados entre clérigos e nobres. Esta questão perpassou por todas as regiões
presente na Hispânia (Emirado de Córdova, o Reino das Astúrias e a Marca Hispânica) como
também o Império Carolíngio e os Estado Papais. Em nossa pesquisa partimos das discussões
envolvidas em questões dogmáticas que iniciaram com a heresia Migecianista que culminou
com o debate sobre as ideias Adocionistas defendidas pelo Bispo Félix de Urgel e o Primaz da
Hispânia o arcebispo Elipando de Toledo, ideia esta que foi considerada herética pelas Igrejas
franca e romana. Deste modo colocamos em debate como as questões dogmáticas eram
debatidas quando não havia unanimidade entre o corpo eclesiástico na Alta Idade Média.
Palavras-chave: Hispânia, Adocionismo, Cristo, Elipando, Heresia.
6
ABSTRACT
The present work aims to reflection on a debate occurred through letters about Adoption idea
occurred at Hispanic Christian Church in a VIII century, emerged from dialogs between clerics
and nobles. This question passed through by all regions presents in Hispania (Emirate of
Cordova, the Kingdom of Asturias and Marca Hispanica) as well as The Carolingian Empire
and the Papal States. In our research we star from the discussions involved in dogmatic
questions which started with Migecianism which culminated with debate about Adoptions ideas
defendant by Bishop Félix and Primacy of Hispania the archbishop Elipando of Toledo, this
idea that was considered heretical by churches frank and roman. Thus, we put in debate as the
dogmatic questions were debated when there was not unanimity between the ecclesiastical body
in the Early Middle Ages.
Keywords: Hispania, Adoption, Christ, Elipando, Heresy.
7
LISTA DE MAPAS
MAPA 1 - Península Ibérica em 560, divisão de reinos e demarcação de sua capital
.................................................................................................................................................. 20
MAPA 2 - Reino visigodo no início do século VIII com a divisão de apoiadores dentro
doo reino visigodo, entre o rei Rodrigo e Ágila – filho de Witiza. A parte quadriculada em verde
claro corresponde à caminhada que o exército árabe fez ao chegar na região. Mapa de la
Península Ibérica 711-714. ....................................................................................................... 26
MAPA 3 - Reino das Astúrias e localização de sua capital, no período do reinado de
Carlos Magno. .......................................................................................................................... 27
MAPA 4 - Marca Hispânica, região hispânica que estava na fronteira entre o Império
Carolíngio e o Emirado de Córdova. ........................................................................................ 28
MAPA 5 - Divisão regional da península ibérica entre os anos 711 a 756. ............... 30
MAPA 6 – Referente a divisão dos reinos na região onde se localizava os domínios de
Carlos Magno e os Estados Papais, no período da questão Adocionista. Mapa: Império
Carolíngio na época de Carlos Magno. .................................................................................... 38
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................. 10
1.
CONHEÇA
TEUS
INIMIGOS:
O
ESPAÇO
GEOGRÁFICO
E
ORGANIZACIONAL DA QUESTÃO ADOCIONISTA ................................................ 15
HISPÂNIA .............................................................................................. 17
IMPÉRIO CAROLÍNGIO - FRANCOS ..................................................... 37
ESTADO PONTIFÍCIO DE ROMA .......................................................... 42
2. ENTRE DISCURSOS E DISPUTAS: ORGANIZAÇÃO CLERICAL,
CONTROVÉRSIAS, DOGMAS E HERESIAS ........................................................... 48
OS CONCÍLIOS TRATAM DA VONTADE DE DEUS? ............................ 48
A QUEM CABE O DIREITO DE PRESIDIR UM CONCÍLIO? ................... 54
O QUE DEFENDEM OS HERÉTICOS? .................................................... 63
QUEM SÃO OS HERÉTICOS HISPÂNICOS ............................................ 68
ADOCIONISMO É UMA HERESIA? ....................................................... 72
ELIPANDO: PODE UM BISPO SER HERÉTICO? .................................... 76
3.
EM
DEFESA
DE
CRISTO:
ESTRATÉGIAS
DISCURSIVAS
NA
EPISTOLOGRAFIA DO DISCURSO CLERICAL ...................................................... 83
EPISTOLOGRAFIA: A ARTE DA ESCRITA DISCURSIVA ..................... 84
O QUE AS PRÁTICAS RELIGIOSAS PAGÃS TRAZEM À TONA SOBRE A
QUESTÃO ADOCIONISTA?................................................................................ 90
DE ACUSADOR A ACUSADO ............................................................... 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 113
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... 116
FONTE .................................................................................................... 116
FONTES COMPLEMENTARES ............................................................. 116
DICIONÁRIO ......................................................................................... 116
BIOGRAFIA GERAL .............................................................................. 117
9
GLOSSÁRIO DE CONCEITOS .................................................................. 124
ANEXO A – CONCÍLIO DE SEVILHA ........................................................ 128
El símbolo de la fe de Elipando (Concilio de Sevilla) .................................... 128
ANEXO B – CARTA.................................................................................... 130
Carta de Elipando a Albino (Alcuino) .......................................................... 130
ANEXO C – LIVRO ..................................................................................... 139
Cuatro libros de Alcuino contra Elipando ..................................................... 139
Libro primero ............................................................................................ 139
10
INTRODUÇÃO
A Idade Média foi um tempo cheio de debates teológicos, em que os dogmas, heresias
e doutrinas eram questões importantes a serem debatidas entre os clérigos devido aos quatro
primeiros concílios universais – que são os pilares da Igreja Católica – não terem sido capazes
de erradicar as dúvidas pertinentes e os desvios doutrinários. Essa multiplicidade de opiniões
sobre o cristianismo deveu-se ao fato de que o mesmo esteve, durante toda a Alta Idade Média
– séculos IV a X –, em construção quanto aos seus dogmas, ritos, organização política, etc.
Foi necessário, nesse contexto, o estabelecimento de limites em relação às outras religiões, ao
paganismo politeísta, ao monoteísmo radical do judaísmo e, até mesmo, a outras formas de
compreensão do próprio cristianismo.
É certo que os livros do Novo Testamento não trazem uma sistematização da doutrina
da fé. Essa tarefa ficou a cargo dos escritores cristãos dos primeiros séculos, um processo que
não se deu de forma pacífica. As primeiras controvérsias dogmáticas ocorreram no início do
século I e tiveram, principalmente, o debate sobre seguir ou não seguir as Leis de Moisés. Em
resposta a essas divergências teológicas, foram organizados os chamados concílios ecumênicos
e, logo no primeiro deles, Concílio de Nicéia, foi defendida a questão homo-ousios, na qual
Jesus era entendido como da mesma essência ou substância do Pai. No entanto, essa
normatização não pôde impedir que tal polêmica se mantivesse presente nos escritos de
diversos autores cristãos. Os defensores da teologia trinitária foram levados a permanecer
atentos às doutrinas divergentes defendidas por homens do próprio clero, a quem eles passaram
a denominar de falsos doutores.
No período da Alta Idade Média, uma época de constante desenvolvimento teológico,
era comum pensamentos discordantes surgirem e debates acalorados faziam parte das
discussões dogmáticas. As diversidades culturais e políticas eram a riqueza do cristianismo
crescente, mas também eram sua ruína latente; tantas brigas internas poderiam ruir com todas
as tentativas de unificação. Essas são questões políticas que envolveram a relação entre a
diocese de Toledo, os reinos cristãos ao norte da Península, o Império Carolíngio e o Papado
Romano, e que nos abre uma janela importante de análise sobre a vivacidade dos conflitos
internos da Igreja no que tange ao processo de unificação da ortodoxia cristã e hegemonia do
Papado Romano sobre o que passou a ser chamado de cristandade Ocidental em um momento
posterior – e isso implicou na definição e controle centralizado de práticas rituais, litúrgicas,
sacramentais, da interpretação de textos canônicos, etc. e, consequentemente, na refutação de
11
projetos de Igreja divergentes.
A história da Igreja Hispânica é um bom exemplo da realidade. Após uma longa luta
de dois séculos de combate entre as vertentes Ariana e Católica, a instituição havia, por fim,
conseguido uma unificação doutrinal na vertente Católica. Porém, o século VIII marcou sua
história com uma outra importante ruptura territorial, a chegada Árabe, e isso abriu espaço para
que uma nova divergia dogmática se fortalecesse na região: o Adocionismo.
As ideias Adocionistas do século VIII caracterizaram-se pela defesa da figura de Cristo
semelhante ao Pai, como se destaca na formação da Santíssima Trindade, em que as três pessoas
da Trindade são indivisíveis e equivalentes, e possuem essência humana e divina, como foi
determinado nos concílios ecumênicos da Antiguidade. Há, no entanto, diferença na
argumentação quanto à geração de Cristo em relação à sua essência humana: o Adocionismo
defende que Cristo foi adotado em sua humanidade.
As diversidades nas interpretações dogmáticas da religião cristã estiveram sempre
presentes na história da região, como já apontamos. Importantes nomes da história da Igreja
nos deixaram documentos sobre suas atuações nesses conflitos, como foi o caso dos irmãos São
Leandro e São Isidoro de Sevilha, e o rei Leovigildo, que lutaram pela unificação da Igreja
Hispânica em lados opostos, assim como o arcebispo Elipando de Toledo e o presbítero Beato
de Liébana. Daí a riqueza de se estudar uma temática tão complexa como o Adocionismo, uma
polêmica delicada que perpassava as fronteiras Ibéricas.
Nosso estudo sobre a questão Adocionista partiu da análise das cartas trocadas entre
tais personagens citados e seus interlocutores (Elipando, arcebispo de Toledo, Felix, bispo
de Urgel, o Abade Alcuíno de York, o rei Carlos Magno e os Papas Adriano e Leão III).
Investigamos esse debate teológico por meio dos indícios das disputas políticas dentro do
próprio corpo eclesiástico da Igreja cristã medieval, algo que, em larga medida, marcou o
processo de centralização do poder do Papado Romano sobre a região que passou a ser chamada
de cristandade. Na Península Hispânica, sem dúvida alguma, embora a Igreja estivesse sob a
autoridade de Toledo, as diversas regiões que compunham essa diocese estavam submetidas a
realidades políticas muito diferentes. Nesse sentido, refletimos sobre o papel que os discursos
dogmáticos tiveram no processo de afirmação política desses diversos grupos cristãos.
No Brasil, as reflexões sobre a história política da Igreja no século VIII normalmente
perpassam pelo olhar franco-germânico, centralizando os debates aos Carolíngios na pessoa de
Carlos Magno, que estava expandindo seus domínios. Na querela Adocionista, os francos
aparecem como uma das partes envolvidas no conflito e a abordagem política eclesiástica se
centra tanto entre os Ibéricos, quanto os Carolíngios e o Papado Romano.
12
Esse estudo apresentou pontos do debate discursivo, dado que esse foi um fator nas
críticas dentro das cartas, pois o discurso por si só é uma manifestação estrutural da ordem a
qual seu autor pertence, sendo ele uma palavra em movimento, uma prática linguística que vai
além de uma organização frasal, projetando a imagem de seu autor ao tentar validar seus
argumentos. No caso do discurso eclesiástico, como relata os estudos de Zumthor, há, também,
uma típica reivindicação de autoridade que se justifica como palavra de Deus. Ela implica em
exprimir uma situação em que esses homens necessitavam afirmar suas ideias e negar a do
outro, em uma perspectiva de persuasão ao construir o sentido da verdade, pois o discurso
religioso, por si só, é autoritário1.
Esses homens presentes na questão Adocionista utilizaram-se de um meio de debate e
troca de informações oficiais muito comum no mundo antigo e medieval: as cartas. Estas eram
usadas como gênero de escrita e prática sociocultural. Compreendemos, desse modo, que toda
comunicação oficial é estabelecida por regras de escrita e de linguagem, e, na Idade Média, as
correspondências também possuíam regras linguísticas específicas para determinados fins.
Dentro das correspondências medievais, um elemento presente era a arte da retórica, a qual
devia ser obrigatoriamente usada na composição das cartas, com normas que exigiam
procedimentos de etiqueta, linguagem, cortesia e polidez, que, para olhares desatentos da
modernidade, podem ser interpretados de maneira errônea.
Esses elementos nos levaram às seguintes questões: como esses homens usaram suas
influências quando persuadiam, uns aos outros, a seguirem suas próprias convicções, pelo meio
linguístico da retórica? E, desse modo, como o Arcebispo Elipando, o Primaz da vasta região
Hispânica, de uma Igreja estruturalmente organizada e poderosa, com muitos aliados dentro de
sua Igreja, pôde ter suas concepções contestadas por reinos vizinhos e seus subordinados? Com
essas questões em mente, buscamos analisar o debate que perpassou tal questão dogmática, que
percorreu interpretações das Escrituras. Ela foi causa de uma disputa política e teológica, sendo
capaz de ultrapassar as fronteiras das dioceses onde havia se originado.
Para alcançar tal objetivo, no primeiro capítulo do nosso trabalho procuramos mostrar
a geografia e a organização política das regiões que estiveram envolvidas nessa disputa.
Evidenciamos as pessoas, suas posições políticas e hierárquicas, assim como fizemos um
apanhado histórico sobre a região Hispânica. Sem dúvida, esta foi palco de disputas territoriais
e dogmáticas por muitos séculos, sendo a maior delas a que se deu entre cristãos católicos e
arianos. Tratamos um pouco, também, do histórico da Igreja Hispânica e do processo de
1
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das letras, 1993. Passim.
13
cristianização da região, com suas normatizações dogmáticas e hierárquicas. Essa região viu-se
dividida em três partes logo após a chegadas dos árabes. Ao Norte, se encontrava o novo reino
cristão das Astúrias, que nascera com os refugiados. A Igreja cristã desse reino dependia
hierarquicamente da Primaz da Hispânia, e essa pequena região se contrapôs fortemente às
ideias Adocionistas. O nordeste da Hispânia passou por uma conjuntura peculiar antes, durante
e ao fim da querela. A região viveu uma disputa territorial entre o Império Cristão Carolíngio e
o Árabe do Emirado de Córdova, o que deixou o carismático Félix, bispo de Urgel e defensor
do Adocionismo na região, em uma delicada posição de autoridade. Ao Sul da Península
Ibérica, estava o Emirado de Córdova, que passou a ser administrado pelo Emir Abderramão e
seus descendentes. Essa situação política permitiu que a Igreja desse território pudesse exercer
suas atividades livremente, abrindo espaço para que o Primaz da Igreja Hispânica proferisse
suas ideias dogmáticas em toda a região. Outro detalhe necessário debatido foi que o Império
Carolíngio estava passando por uma reforma clerical. Com a ascensão dessa nova dinastia, os
domínios da Igreja Franca passaram por um processo de unificação em relação às instruções
dogmáticas de seu clero e as ideias Adocionistas ameaçavam esse projeto.
Sobre essa reforma litúrgica dos domínios Carolíngios, nos debruçamos um pouco
devido à influência que ela teve na Igreja Cristã Latina por causa das ligações que o Império
tinha como o papado romano. Ao trazer para o cristianismo franco um fator de relevância que
necessitava de atenção, uma reforma educação adequada que poderia ser feita com ajuda de
Roma, dado que nas regiões vizinhas já havia feito esta reforma, e tinham uma tradição antiga
em formação educacional clerical.
No segundo capítulo, abordamos temas relevantes para a compreensão das questões
dogmáticas e hierárquicas que circunscreveram o Adocionismo. Tratamos sobre os concílios e
como eles foram relevantes para a formação da Igreja, e localizamos as distinções entre os tipos
de concílios: os ecumênicos de valores universais, que, até o momento da disputa, eram sete.
Além disso, apontamos a característica dos integrantes que deveriam aparecer nessas
assembleias e buscamos mostrar o papel que estas tiveram na definição das hierarquias clericais,
que foram se constituindo ao longo dos primeiros concílios ecumênicos. Demos destaque à
criação da figura do metropolita, a quem estaria subordinado todo o corpo clerical das Igrejas
regionais, assim como estava sob sua responsabilidade os fiéis daquela região.
Ainda tratando dos concílios, mostramos os fatores que fizeram com que os quatro
primeiros de caráter ecumênico se tornassem importantes pilares da Igreja, tendo seus cânones
como elemento de sustentação da fé cristã. A questão da heresia foi um tema recorrente neles
todos, visto que, ao tentar estabelecer sua ortodoxia, a Igreja necessitava regulamentar o que,
14
para ela, seria a fé correta e o que não a pertencia. Perpassamos, também, a trajetória histórica
do Adocionismo. Havia mais de uma vertente que defendiam opinião sobre as ideias acerca da
natureza de Cristo, e elas se iniciaram muito cedo dentro da história da cristandade.
Por fim, tratamos das especificidades do Adocionismo Hispânico do século VIII.
Apontamos as diferenças dogmáticas que existiam entre seus defensores, elencamos alguns
dogmas debatidos por eles e abordamos como eles tiveram relevância para tentar findá-las.
No terceiro capítulo, discutimos as características dos nossos documentos – a
epistolografia –, mostrando o que esse gênero de escrita, suas regras e técnicas teriam a
contribuir para com nossa pesquisa histórica sobre a questão Adocionista, com a metodologia
da análise crítica do discurso. As cartas nos apresentam todo o trajeto das discussões que
estiveram em torno da questão Adocionista, que se iniciam com uma suspeita de que práticas
pagãs estariam ganhando espaço na Hispânia, culminando nas acusações de heresia:
primeiramente o Migecianismo e, em seguida, o Adocionismo.
Para defender suas ideias, os debatedores embasaram suas discussões em diversos
temas, como heresia, subordinação da Igreja, autoridade, adoção, nuncupatividade dos poderes
de Cristo e duplo nascimento. Essas variadas temáticas envolveram o uso de argumentações
cimentadas em arte retórica, algo necessário para tal elemento. Estas eram utilizadas para
derrubar ou impulsionar suas alegações com o uso de técnicas sobre o dogma cristão defender
ou transformar o Adocionismo em uma heresia. Desse modo, passaremos, portanto, para a
análise, com seus complexos cenários sobre as questões Adocionista e seus debatedores.
15
1. CONHEÇA TEUS INIMIGOS: O ESPAÇO GEOGRÁFICO E ORGANIZACIONAL
DA QUESTÃO ADOCIONISTA
Conheces teu inimigo e conhece-te a ti mesmo; se
tiveres cem combates a travar, cem vezes serás
vitorioso. Se ignoras teu inimigo e conheces a ti
mesmo, tuas chances de perder e de ganhar serão
idênticas. Se ignoras ao mesmo tempo teu inimigo
e a ti mesmo, só contarás teus combates por tuas
derrotas.
(Sun Tzu, a arte da guerra, 2011)
A questão Adocionista hispânica 2 foi um importante debate teológico com
consequências políticas consideráveis para a Igreja católica3, que contou com a participação de
membros da Igreja de diferentes regiões da Europa, como: as principais dioceses da Península
Hispânica (devemos ressaltar que essa região estava dividida em diversas realidades políticas:
o sul era administrado pelos árabes, o norte, pelos visigodos cristão, e o nordeste permanecia
sob forte domínio entre os Carolíngios e árabes), o Império Carolíngio e o Estado Pontifício
de Roma. Podemos dizer, também, que o debate Adocionista abrangeu diversas camadas da
sociedade: homens da Igreja, que iam de Diácono até o Papa 4 - título dado ao bispo
metropolitano de Roma5 - além de nobres das regiões Asturiana e do Império Carolíngio. Esse
debate perdurou por cerca de dezoito anos. Tendo início por volta dos anos 784 6 , em um
concílio7 em Sevilha, só o vemos desaparecer da documentação no começo do século IX.
2
Existe mais de um tipo de vertente Adocionista, a que estaremos analisando é o Adocionismo ocorrido na
Península Ibérica, defendida por Elipando de Toledo e Félix de Urgel. No capítulo subsequente analisaremos as
diversas vertentes adocionistas.
3
Linha teológica defendida por aquele que seguia a decisão tomada pelo concilio de Nicéia I, em que Jesus era
divino e filho de Deus.
4
Papa é o título dado ao bispo metropolitano de Roma, vigário de Cristo, sucessor de Pedro. O termo se deriva do
grego tendo o significado de pai. Neste período, este cargo competia em um poder territorial ao chefe da Igreja
Romana. Seu poder no ramo das Igrejas regionais era inexiste, porém, poderia ser invocado como um voto de
minerva, ou aconselhamento. MACHADO, Alda da Anunciação; NETTO, João Loyola Paixão. Lexicon Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 565.
5
Na época em questão, o título não é utilizado por todos os eleitos, usa-se o título de bispo de Roma. Para evitarmos
confusão de cargos, optamos pelo uso do título de Papa.
6
Deixamos claro, que as datas presentes nesta pesquisa são todas d.C.
7
Os Concílios Ecumênicos ou Universais são aqueles nos quais estiveram presentes representantes de toda a Igreja.
Tratava-se de uma reunião de todos os Bispos da Igreja. Geralmente, a necessidade de reunir toda a Igreja tinha
como motor propulsor pontos doutrinais que precisam ser esclarecidos: a discussão de dogmas e a necessidade de
corrigir erros pastorais, condenar heresias e questões de interesse da Igreja universal. Essas assembleias eram
16
O problema começa a aparecer na documentação que tivemos acesso quando Elipando,
arcebispo de Toledo, se viu frente a um movimento de adeptos das ideias Migecianas. Migecio,
um sacerdote Hispânico, defendia que a Trindade, como ficou definida em Nicéia8 - o Pai, o
Filho e o Espírito Santo - não estava correta; ela deveria ser interpretada de maneira diferente,
em que a Trindade seria composta por três outras figuras: Davi, Paulo e Jesus Cristo, ao invés
de Pai, Filho e Espírito Santo. Para combater isso, que já ganhava terreno entre os cristãos da
região, Elipando escreveu uma carta a Migecio pedindo a retratação de suas ideias, o que não
foi obedecido. Ainda tentando resolver o assunto, acrescentou um documento às atas do
Concílio de Sevilha de 784 – “Símbolo de fé”. A condenação dessas ideias, sua argumentação
contra o Migecianismo, entretanto, causou certo estranhamento e insatisfação em parte do clero
fora da Hispânia, gerando repercussões em outros lugares. Diante dessa insatisfação, deu-se um
debate que se estruturou por meio de cartas, muitas das quais tivemos acesso em nossa pesquisa.
Esse problema dogmático, localizado na Península Hispânica, aconteceu em um
momento em que o agora Imperador dos francos, Carlos Magno, seguia com seu projeto de
expansão de domínio territorial, que, em muitos aspectos, tinha seu alicerce de poder ancorado
nas Igrejas regionais, como veremos mais adiante. O fato é que as reformas educacionais e a
unificação religiosa que estavam sendo propostas pelos francos entraram em colisão com o
particularismo da Igreja Hispânica, e não é difícil perceber que, em defesa de uma unidade da
Igreja, Carlos Magno tenha se utilizado do apoio que tinha do Papado Romano para entrar em
conflito com as ideias de Elipando e Félix no intuito de colocar aquela região sob sua própria
custódia, o que lhe abriria espaço político no território de Al-Andalus.
Antes de nos aprofundarmos no debate dogmático em si, se faz necessário uma
exposição sobre os lugares de onde falam nossos personagens envolvidos na questão. Tomamos
como escolha a divisão territorial, na qual a questão Adocionista foi alvo de debates, portanto,
nosso capítulo encontra-se dividido entre as regiões Hispânicas, Carolíngia e Romana, visto
que, em cada uma delas, a questão foi abordada de maneira dissemelhante. Procuramos, ainda,
inserir dentro destas regiões um pouco sobre os indivíduos que estiveram envolvidos nesse
debate. É preciso entender as diferentes situações e estruturas políticas, administrativas e sociais
convocadas e presididas pelo Papa ou por algum Bispo delegado por ele, não sendo necessário o Papa estar
presente para a realização de um concílio, mas apenas que ele confirmasse as decisões tomadas naquele momento.
Os Concílios Regionais referem-se a uma reunião ou assembleia de religiosos: bispos ou prelados convocados para
tratar de um ou vários temas específicos de uma determinada região a eles subordinados.
8
ISLA FREZ, Amancio. El adocionismo: Disidencia religiosa en la Península Ibérica (fines del siglo VIIIprincipios del siglo IX). Clio & Crímen: Revista del Centro de Historia del Crímen de Durango. n.1, p. 115-134,
2004. p. 121.
17
das regiões que estavam envolvidas, e como isso nos remeterá a questões discutidas nos demais
capítulos.
HISPÂNIA
Hispânia é a região onde hoje se encontra as atuais áreas de Portugal, Espanha,
Andorra, os territórios de Gibraltar e os Pirineus, uma pequena parte do território francês que
faz fronteira com a Espanha. No decurso da Antiguidade e parte da Alta Idade Média, foi área
de constante disputa entre diversos povos: Cartagineses, Romanos, Lusitanos, Vândalos,
Alanos, Suevos9, Bizantinos e Visigodos.
A chegada dos romanos entre os povos nativos das regiões hispânicas ocorreu no
século II a.C. durante as guerras púnicas. A região passou, então, por uma transformação com
a fundação de novas cidades em algumas zonas indígenas, como: Barcelona (Barcino),
Tarragona (Tarraco), Zaragoza (Caesaraugusta), Sevilha (Hispalis), Merida (Emerita Augusta),
León (Legio) e Astorga (Asturica Augusta)10. Essas regiões também foram adaptando-se ao
cristianismo, que adentrou no mundo romano de forma lenta e progressiva, partindo do sul e
indo em direção ao norte da península.
Dentre as diversas regiões, a localidade das Astúrias manteve-se distante da
cristianização 11 , sendo um dos motivos para isso o difícil acesso geográfico, devido sua
localização ser em uma zona montanhosa, que vai da cordilheira Cantábrica, até os Pirineus.
Sabe-se que a construção das cidades foi realizada de modo superficial, visto que a região foi
explorada apenas para obtenção de riquezas, pois a localidade era conhecida por ter muitas
minas de ouro12.
A manutenção da vida rural colaborou para que essa região se mantivesse até o fim do
século VI sem grande presença do cristianismo. Nesse período, chegaram até essa localidade
grupos de eremitas de formação anacoretas 13 , vindos de uma tradição cristã, que acabou
tornando-se bastante forte no lugar14. Na tradição cristã hispânica, a narrativa é variada: há
relatos de que o apóstolo Santiago Maior, e outros de que Paulo, seria o primeiro responsável
9
GARCIA TORAÑO, Paulino. História de el reino de Astúrias: (718-910). Espanha: Editora Gráfica Summa.
Vol. 24 de Biblioteca histórica asturiana. 1986. p.60.
10
MANOEL ROLDÁN, José. Historia de españa. 6.ed. Madrid: Edesa, 1998. p.16.
11
Termo utilizado para o processo de conversão de pessoas ao cristianismo.
12
GARCIA TORAÑO, Paulino. op. cit. p.23-24.
13
Monges cristãos ou eremitas que viveram em retiro, solitariamente; penitentes que se afastaram do convívio
para expiar os pecados. SANTIDRIÁN, Pedro R. Breve dicionário de pensadores cristãos. Aparecida, São Paulo:
Editora Santuário, 1997. Passim.
14
RUCQUOI, Adeline. História medieval da península ibérica. Lisboa: Editora Estampa, 1995. p.131.
18
pela evangelização. Eles utilizam Romanos (15, 24-28) para explicar a chegada do cristianismo
na região. Compreende-se que, em seus primeiros passos, os clérigos sofreram dificuldades na
região, pois, até o século III, a Igreja Hispânica resistiu às diversas perseguições 15 advindas
tanto dos nativos, como do próprio Império Romano, já que o cristianismo não era uma religião
bem vista pelo Império16.
Essa região viveu uma experiência religiosa bastante complexa, visto que, de forma
geral, quando os reinos germânicos chegaram, mantiveram as estruturas romanas de poder,
inclusive as dioceses – divisão administrativa romana –, e, com eles, trouxeram as suas
vertentes cristãs defendidas. A região norte da península teve uma cristianização bem tardia –
por volta do século VI –, e demorou bastante até que se organizasse uma sede episcopal – um
bispado – que assumisse esse território e suas funções monasteriais 17. Isso deu margem para
que versões concorrentes do cristianismo e práticas religiosas não cristãs circulassem sem muita
restrição. Com o crescimento do cristianismo na região, houveram diversas brigas territoriais
entre os reinos Suevo, Visigodo, Vasconeses e o Império Romano do Oriente – Bizantinos.
Muitas dessas disputas envolveram diferentes visões de cristianismo, como é o caso do
Arianismo, vertente do cristianismo defendida pelo presbítero Ário18, cuja questão principal
estava na negação da consubstanciação entre Jesus e Deus, ou seja, Jesus e Deus Pai não seriam
a mesma pessoa. Jesus deveria ser entendido como um homem superior aos outros, filho de
Deus, mas subordinado a Ele19. Além disso, afirmava que o Espírito Santo era uma criatura não
consubstanciada20. Em suas pregações, Ário expressou suas ideias sobre a Trindade, que uniam
o primitivo adocionismo21 e subordinacionismo22, de Luciano de Antioquia, chegando a negar
abertamente a divindade do Filho, sua eternidade e consubstancialidade com o Pai. Essa
concepção da absoluta unidade de Deus, de acordo com Gonzáles, provinha do livro de João,
15
Temos como exemplo dessas perseguições um acontecimento em meados de 250 d.C., na sede de Tarragona: os
bispos Basílides de leão e Astorga, e Marcial de Mérida foram obrigados a abandonar suas sedes e renegar a fé
cristã devido às perseguições de Diocleciano. DIAS, Isabel Rosa. Culto e memória textual de S. Vicente em
Portugal (da idade média ao século XVI). Tese (Doutoramento em literatura) - Universidade do Algarve. Faro:
2003. p.19.
16
Para mais aprofundamento ver: BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no ocidente. Lisboa: Editora
Presença, 1999.
17
RUCQUOI, Adeline. op. cit. p.131.
18
Ário nasceu na Líbia por volta da metade do século III (256-336), foi discípulo de Luciano de Antioquia, um
famoso professor do cristianismo, ou, pelo menos, teve contato com ele. Foi admitido entre os clérigos de
Alexandria, na escola exegética da Antioquia. SILANES, Nereo. Dicionário teológico: O Deus cristão. São Paulo:
Editora Paulus, 2014. Passim.
19
LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 260.
20
SOUZA, Lúcio Bento de. A fé trinitária e o conhecimento de deus: abordagem a partir da obra De Trinitate
de Santo Agostinho. Belo Horizonte, 2010. Passim.
21
Visão teológica do cristianismo antes de Niceia, que ensinava que Jesus nasceu humano e se tornou divino após
o batismo, sendo adotado por Deus.
22
Teologia que via Jesus como subordinado de Deus.
19
onde a passagem 14,28 afirma: “O Pai é maior do que eu”, o que abriu espaço para que fosse
pensada uma hierarquia entre o Pai e o Filho. A mesma coisa pode ser entendida no texto de
Filipenses 2,9: “Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é
sobre todo o nome”. Poder-se-ia entender que isso designava que Jesus havia recebido como
recompensa sua condição divina, sendo elevado junto ao Pai23.
Em meados do século IV, a vertente cristã do Arianismo dispunha de diversos
seguidores, principalmente entre os vários povos germânicos que adentravam no território do
Império Romano naquele momento. Esse foi o caso das tribos dos Godos 24 , os quais se
instalaram nas margens do Mar Negro. Era uma tribo de lavradores que recebeu do Império
Romano o status de foederati25, o que coincidiu com uma lenta e progressiva conversão ao
cristianismo. É preciso destacar que o trabalho de conversão se deu, muitas vezes, por meio de
cristãos arianos, como foi o caso do bispo Úlfilas26.
A conversão ao cristianismo dos visigodos foi repleta de dificuldades. Diversas tensões
permearam as relações entre os líderes pagãos e os cristãos, o que gerou vários conflitos entre
os godos. O próprio bispo Úlfilas foi vítima de perseguição, tanto pelas brigas internas entre os
godos, quanto por motivos externos27, como a hostilidade vinda dos romanos, que viam os
godos como bárbaros28. Deve-se destacar que o fato de terem aderido ao arianismo – visto que
havia sido condenado em Nicéia em 325 –, tornava os godos hereges na visão dos cristãos
romanos.
No meio de uma época conturbada por diversas guerras, pela movimentação de povos
dentro e fora do Império Romano, não demorou muitos anos até que o Arianismo chegasse à
Península Ibérica, onde foi adotado por parte da nobreza Visigoda. Quando estes se
23
GONZÁLEZ, Carlos Ignácio. Ele é a nossa a salvação. São Paulo: Edições Loyola, 1992. p. 284.
Godos ou Góticos, embora o termo passasse a ser aplicado indistintamente a muitos dos povos germânicos que
invadiram o Império Romano. Refere-se, historicamente, a um ramo específico dos germanos orientais, cujo berço
natal pode muito bem ter sido a Escandinávia meridional e a ilha de Gotland. Eles migraram para o leste e o sul e,
no século XIV, formaram uma federação errante de tribos instaladas ao longo dos cursos de água da Rússia: os
ostrogodos, em sua maior parte nas terras entre o Don e o Dniester, e os visigodos, entre o Dniester e o Danúbio.
LOYN, Henry R. op. cit. p. 169.
25
Expressão usada para designar a inclusão de uma tribo bárbara ao mundo romano, que afirmava que as tribos
continuariam independentes, estariam sob a proteção do direito romano e poderiam fazer troca de mercadorias,
mas teriam ligação perpetua com Roma e a obrigação de fornecer contingente militar para o exército romano.
26
BERNDT, Guido M. Arianism: Roman heresy and barbarian creed. British: Routledge, 2016. Passim.
27
Estava sendo perseguido por ser ariano, possivelmente por ser um dos bispos teólogos arianos atuantes
protegidos do imperador Constâncio, visto que, na época, a vertente Ariana já havia sido condenada como heresia
no Concílio Ecumênico de Nicéia. HUGHS, Ian. Imperial Brothers: Valentian, Valens and the disaster at
Adrianople. Great Britian: Pen and Sword, 2003. Passim
28
Bárbaro, do grego barbaros, era utilizada para referir-se àqueles que não falavam grego. Posteriormente, os
romanos passaram a usar essa palavra como sinônimo de estrangeiros. Os visigodos eram vistos como bárbaros.
Mesmo após o início do processo de sua cristianização, em 340, eles tinham apenas o status de bárbaro pagão.
24
20
estabeleceram na Hispânia, o Arianismo tornou-se motivo de vários debates entre os bispos das
Igrejas Hispânicas, entre os que rejeitavam ou aceitavam essas ideias29.
Além destas lutas externas, haviam também as internas como ocorria no reino visigodo,
como exemplo dessas desavenças, podemos citar os desentendimentos entre o rei Leovigildo e
seu filho, o príncipe Hermenegildo. O Rei era Ariano e, como tinha um projeto de converter
todos os cristãos católicos30 em arianos, isso significava tirar do cargo de bispo aqueles que não
professassem a fé cristã ariana, trocando todos os clérigos por Arianos, e, assim, transformar
toda a Hispânia em Ariana. Seu filho
Hermenegildo,
converteu-se
por
ao
sua
vez,
catolicismo
de
Nicéia, e isso atrapalhou seus planos.
Hermenegildo havia se aliado a
inimigos
dos
visigodos 31 ,
o
imperador Bizantino, e declarou
guerra a seu pai. Esse conflito
familiar envolveu toda a Península
Ibérica, não sendo apenas uma
disputa entre nobres visigodos, mas
incluindo também os outros povos
vizinhos: Suevos, Vasconeses e
MAPA 1 - Península Ibérica em 560, divisão de reinos e
demarcação de sua capital
Bizantinos. Por fim, após anos de
batalhas, de 579 a 584, o rei
Leovigildo ganhou a guerra e
Fonte: Domínio público. https://fi.wikipedia.org/wiki/
Sveebien_kuningaskunta#/media/Tiedosto:Iberia_560-pt.svg
Hermenegildo foi executado.
A vitória garantiu que os visigodos dominassem quase toda a península, e, desse modo,
Leovigildo poderia continuar com o processo de conversão da população da península Ibérica,
até que o rei faleceu dois anos depois, em 586. Em seguida, seu filho Recaredo assume o trono
e, influenciado por sua esposa de origem franca e pelos irmãos arcebispos de Sevilha, Leandro
e Isidoro, converte-se ao catolicismo. A partir desse momento, a proposta de conversão se
inverte. São Leandro, arcebispo de Sevilha, um doutor da Igreja Hispânica, e seu irmão Isidoro,
29
A teologia Ariana foi defendida dentro da Igreja Hispânica com forte apoio da nobreza, e foi a causa de muitos
debates e guerras até a ascensão do rei Recaredo (586-601 d.C.).
30
Católicos, designação dada aos seguidores da decisão tomada em Nicéia I.
31
O imperador Bizantino estava dominando a região, a sudeste da península. Hermenegildo solicitou também a
ajuda do rei Suevo Mirão, ao norte.
21
que estavam aliados ao rei Recaredo, se tornaram os responsáveis por formular uma Igreja
unificada em todo o reino Visigodo, tentando fazer com que todas as Igrejas seguissem as
normas católicas sob a proteção dos reis. A Igreja Hispânica, assim como as de outras regiões
ocidentais, se moldou por meio de uma mistura das decisões dogmáticas dos Concílios
Ecumênicos e dos Concílios Regionais32, o que deu ao clero Ibérico um papel decisivo na
direção do reino visigodo. Essa parceria entre Igreja e Rei teve sua principal manifestação nos
Concílios Regionais de Toledo, os quais funcionaram como regulamentadores da vida política
e administrativa do reino, para além das questões relacionadas à fé cristã. Com o território
hispânico unificado politicamente em uma mesma vertente do cristianismo, o católico, uma
pacificação entre disputas de vertentes contrárias manteve-se na região.
Com a unificação, a Igreja Hispânica pôde se estruturar utilizando o poder das
arquidioceses – células fundamentais das estruturas das Igrejas, elas tinham um papel de
primeira importância na vida religiosa e cultural, possuíam uma vasta rede de sedes, sendo
moldadas administrativamente aos padrões das antigas províncias do Império Romano. No
reino visigodo, havia cerca de mais de setenta dioceses – bispados – que haviam se formado em
volta de “cidades episcopais” – arquidioceses –, que ficavam nas províncias33 eclesiásticas34, já
que, desde o período do Império Romano, ficou decidido no Concílio de Calcedônia de 451 que
estava proibida a criação de novas províncias eclesiásticas, ou seja, novas arquidioceses.
A Igreja Hispânica tinha cerca de seis sedes metropolitanas, que se mantiveram bem
espalhadas em todo o território Ibérico. Elas eram compostas pelas arquidioceses: Toledo35,
32
Utilizaremos a denominação regional para nós referimos as Igreja pertencentes a um reino ou povo. Durante a
Antiguidade e Idade Média as Igrejas nacionais tinham autonomia política e administrativa para determinar suas
liturgias, dogmas e concílios próprios, independente de pedir permissão a diocese de Roma (como é feito na
atualidade), que na época não tinham o poder de decisão centralizado, quando algo era decidido com teor universal
era necessário uma convocação de representantes de todas as Igrejas Regionais, e uma representação do bispo de
Roma, o Papa.
33
Uma província romana era a maior divisão administrativa, fora da península itálica, a região no período romano
foi dividida de diversas maneiras a depender do comando de Roma. Para mais aprofundamento ROLDÁN
HERVÁS, José Manuel; WULFF ALONSO, Fernando. Citerior y ulterior: las provincias romanas de Hispania
en la era republicana. Madrid: Ediciones Istmo, 2001.
34
Províncias eclesiásticas, é um conjunto de dioceses que ficam próximas territorialmente, e têm como sede uma
arquidiocese metropolitana.
35
Província Cartaginense, tinha como metrópole Toledo: sedes sufragâneas Acci (Guadix). Arcávica. Basti (Baza).
Beatia (Baeza). Bigastrum (Cehegín). Castulo (Cazlona). Complutum (Alcalá de Henares J. Dianiun (Denia). Elo
(Montealegre). IIlici (Elche). Mentesa (La Guardia), Oretum (Granátula). aroma (Osma), Palencia, Setabi (Játiva),
Segobriga. Segovia, Segontia (Siguenza). Valencia, Valeria. Urci (Torres de Villaricos); um total de vinte e duas.
JOVER ZAMORA, José Maria; MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. op. cit. p.471.
22
Sevilha36, Merida37, Braga38, Tarragona39 e Narbona40. A arquidiocese de Toledo, a primaz41
da Hispânia, foi erigida na província de Carpentania, no século IV, como um bispado, e, no
século VII, em 610 , em um sínodo em Toledo, convocado pelo rei Gundemaro (610-612). Ela
foi intitulada como sede metropolitana e São Eladio de Toledo (615-633) foi seu primeiro
arcebispo42. Com o passar do tempo, a relevância da sede de Toledo e de seu bispo só aumentou
devido ao impulso favorável de vários fatores: o status de ser sediada na cidade real; o fato da
celebração dos Concílios Gerais serem feitas nela; o prestígio dos bispos que governavam a
sede, e a forte presença do bispo San Julián de Toledo43 no XII Concílio de Toledo de 68 , que
contribuiu para a cristalização da primazia da arquidiocese de Toledo. A aquisição desse título
deu poderes excepcionais para o bispo de Toledo, que passou a ter atuação de um patriarca –
título honorífico para a mais alta patente eclesiástica.
As províncias eclesiásticas ficavam sob comando do bispo metropolitano, que possuía
o cargo do chefe, sendo o maior responsável pela tomada de decisões nas Igrejas regionais e
pela administração das arquidioceses, cabendo a ele cuidar da fé dos fiéis, dos clérigos e exercer
a administração de todo território, utilizando as regras e deveres contidas no IV Concílio de
Toledo44. Nas regiões onde as arquidioceses tinham uma vasta região e poucas dioceses sob sua
jurisdição, também se mantinham acobertadas pelos clérigos. Pelo fato de algumas regiões
terem pouca população, a Igreja não sentiu necessidade de fazer novos bispados, visto que
manter uma diocese era bastante custoso e, para compensar essas localidades, eram criados
mosteiros, que ficavam supervisionados pelas arquidioceses. Em regiões como as Astúrias, que
36
Província de Betica, tinha como metrópole Hispalis (Sevilla); sedes sufragâneas: Assidona (Medina-Sidonia).
Astigi (Écija), Córdoba. Egabrum (Cabra). Elepla (Niebla). Iliberris (Elvira-Granada), Italica, Málaga. Tucci
(Martos); um total de dez bispados. Idem
37
Província de Lusitana, com a metrópole em Emerita (Mérida); sedes sufragâneas: Ávila, Caliabria, Coria.
Coimbra. Egirania (ldanha). Évora. Lamego. Olysipona (Lisboa). Ossonaba (Faro), Pax Iulia (Beja). Salamanca.
Viseo: um total treze bispados. Ibidem.
38
Província de galaica, com a metrópole em Bracara (Braga): sedes sufragâneas: Asturica (Astorga), Auria
(Orense). Britoniaí (Mondoñedo). Dumio, Iria Flavia (Padrón), Laniobrensis (Lañobre), Lucus (Lugo), Portucale
(Oporto), Tude (Tuy): um total de dez bispados. Ibidem.
39
Província de Tarraconense, com a metrópole em Tarraco (Tarragona); sedes sufragâneas: Ampurias, Auca (Oca),
Ausona (Vic). Barcino (Barcelona). Caesaraugusta (Zaragoza), Calagurris (Calahorra). Dertosa (Tortosa). Egara
(Tarrasa), Gerunda (Gerona). Ilerda (Lérida). Osca (Huesca). Pamplona. Turiasso (Tarazona). Urgel: um total de
quinze bispados. Ibidem.
40
Província de Narbonense, com a metrópole em Narbona: sedes sufragâneas: Agatha (Agde), Beterris (Béziers).
Carcasona, Elna (Perpiñán), Luteba (Lodéve), Maguelon Neumasus (Nimes): um total de oito bispados. Ididem.
41
O título de primaz da Espanha, um título que, na atualidade, é apenas honorífico. No período estudado esse título
concedia um status de precedência em relação às outras dioceses.
42
TEJADA Y RAMIRO, Juan. op. cit. 1859. p.488.
43
San Julián foi um teólogo com uma vasta produção literária, famoso por possuir influência entre os nobres e
clérigos hispânicos.
44
Entre deveres poderes, era dito que, se algum clérigo pegasse em armas, este pagaria penitência e perderia seu
cargo.
23
foram urbanizadas tardiamente, não havia dioceses. Por isso, ela possuía cerca de 12% dos
monastérios existentes na península45.
Os arcebispos possuíam diversos deveres, dentre eles, zelar por seus fiéis, sendo, assim,
necessário uma visita episcopal às Igrejas mais distantes da sede. De acordo com o IV Concílio
de Toledo, no cânone XXXVI, as visitas deveriam ser realizadas anualmente, sendo este o meio
mais utilizado para dar a sensação de que os arcebispos e os bispos estavam mais próximos do
povo cristão, além de corrigir possíveis erros dogmáticos. Outra questão de sua competência,
que havia sido estabelecida em Nicéia I, era que o metropolita deveria reunir e presidir os
concílios e sínodos, comunicar anualmente a data da chegada da Páscoa, verificar o ritual
litúrgico em todas as Igrejas da circunscrição provincial e intervir na consagração dos novos
bispos designados para todos os ofícios episcopais. No âmbito da ordem judicial, o
metropolitano era autoridade máxima, cabendo a ele julgar os casos de quem primeiramente
havia sido condenado pelos juízes diocesanos, ou seja, a autoridade do metropolita se afirmava
de três modos: primeiramente, com a formulação de leis; em segundo, com a punição e correção
dos eventuais erros, e, em terceiro, com o exercício da justiça46.
Cabia aos arcebispos cuidar da educação dos clérigos. Esta era realizada nas escolas
monacais e episcopais; as escolas hispânicas possuíam bibliotecas significantes, o que permitia
uma preparação mais rica do clero, com a obrigação de possuir cópias do apocalipse de São
João evangelista47, além de ser repleta de obras dos antigos autores clássicos pagãos48. Vários
bispos se empenharam em enriquecer as bibliotecas de suas escolas episcopais. A formação
clerical tinha como base regras vindas de alguns concílios, como o IV Concílio de Toledo, de
633, que determinou que todo candidato ao clero deveria ser instruído no Trivum e Quadrivium,
e nas disciplinas eclesiásticas, o que permitiria ser conhecedor das Sagradas Escrituras e dos
45
Os mosteiros fizeram parte da base fundamental da organização clerical nas regiões rurais, sendo regidos sob a
vigília de Abades. É o caso do monastério de São Martín de Turieno, hoje Santo Toribio – a fundação é datada do
século VI, sendo atribuída a um monge de Palência, chamado São Toribio, junto com outros eclesiásticos, como
Martinho de Braga, São Milão e São Frutuoso – que estava sob a supervisão do abade Fidel – no período da questão
Adocionista. Por estarem localizados em Liébana, essa região ficava sob a tutela do arcebispado de Braga, um
território muito vasto, e encontrava-se sob a vigília do arcebispo Ascário, um defensor do Adocionismo. Esse
mosteiro em particular, como relatamos no tópico anterior, teve um papel de contestador das ideias Adocionistas
dentro da região Hispânica. Manuel Riu.1982, p.17, apud Parmegiani, 2014, p.31.
46
Se alguém precisasse de justiça e não encontrasse ajuda entre a nobreza e os reis, poderia solicitar a ajuda da
Igreja.
47
Além desta obra, de acordo com o IV Concílio de Toledo, era obrigação dos clérigos conhecerem as sagradas
escrituras e os cânones para poderem ter melhor conhecimento da fé.
48
Conhecimento de uma cultura profana que era considerada perigosa para os simples, mas reservado para os
clérigos alfabetizados. Não se sabe ao certo quantas obras possuíam essas bibliotecas, mas as escolas visigodas
tinham dois livros essenciais: a Bíblia e e o Apocalipse de São João.
24
cânones da Igreja49. Todo esse trabalho na educação clerical era necessário para auxiliar na
profissão da fé e nas discussões dos concílios e sínodos que aconteciam regularmente na região.
Uma outra função dos arcebispos era a lealdade ao reino visigodo. Junto a isso, temos
uma relação delicada com outras igrejas regionais: no período medieval, as Igrejas não tinham
ligações de subordinação a uma figura central no Papado Romano, como ocorre na atualidade.
Nesse tempo, a independência de cada reino envolvia a Igreja, portanto, cada reino tinha sua
própria Igreja com suas próprias regras, porém, ainda havia uma ligação entre elas: os concílios
ecumênicos. Seus cânones e credos eram os laços que as mantinham na mesma fé.
A Igreja Hispânica tinha relações delicadas com seus reinos vizinhos, já que, por muito
tempo, defendeu uma vertente contrária à deles. Porém, tradicionalmente, manteve uma relativa
comunicação com a Igreja Romana, mesmo havendo momentos de conflito, como no
pontificado de Hormisdas (514-523), quando uma sangrenta batalha 50 assolou a Península
Itálica, gerando uma crise que afetou a história do bispado de Roma. Como consequência dessa
guerra, a cidade de Roma caiu na órbita política do Império Romano do Oriente e as relações
políticas da Igreja Hispânica com a Romana tornaram-se mais raras devido disputas entre o
Reino Visigodo e o Império Bizantino, que invadira o território visigodo.
Com as relações abaladas entre essas sedes das Igrejas, poucos diálogos ocorreram.
No século VI, só há notícias de um decreto vindo de Roma chegando à Península Ibérica.
Quando a Igreja Hispânica adotou o catolicismo em 589, houve uma nova retomada nas
comunicações, mas durou apenas até o mandato do Papado de Gregório Magno, que manteve
boa relação com São Isidoro, arcebispo de Sevilha. Porém, após a morte desse Papa, as relações
se tornaram mais escassas e menos amistosas. Para ampliar ainda mais essa separação, em 642 ,
o bispo de Roma, Teodoro (642 a 649), tentou impor a ideia de que o Papa deveria ser visto
como o chefe supremo de todas as Igrejas e, com isso, ele teria o direito de intervir em todas as
atividades das demais sedes. As Igrejas regionais não concordaram com essa determinação e se
mantiveram autônomas. Outro caso a se destacar foi um incidente decorrente do convite
dirigido pelo Papa Leão II aos bispos hispânicos para assinarem as atas do III Concílio de
Constantinopla (680 ou 681), que decretava a condenação do monotelismo51. Nessa situação, o
49
JOVER ZAMORA, José Maria; MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. op. cit. p.501.
As guerras góticas ou guerras de reconquista (535 a 554). Essas guerras da época do Imperado Justiniano I (527
a 565) tinham o objetivo de reconstruir a antiga grandeza do Império Romano. Os Visigodos e Bizantinos tinham
uma relação conflituosa apenas no campo religioso, e, durante as guerras góticas, os Bizantinos tomaram vários
territórios do Reino Visigodo, o que abalou ainda mais as relações diplomáticas entre os dois povos. Vide:
OSTROGORSKY, Georg. História del Estado Bizantino. Madri: Ediciones Akal, 1984.
51
Monotelismo era uma ideia empregada para afirmar que em cristo existia uma só vontade. LOYN, Henry R. op.
cit. p.263.
50
25
primado Julián de Toledo enviou, em resposta ao convite, algumas propostas teológicas
contidas em um “Apologético”. O Papa, não compreendendo as respostas, levantou, por sua
vez, algumas objeções ao Apologético, o que causou mais um estado de tensão entre a Igreja
Visigoda e Romana. A Primaz Hispânica reagiu com vigor a essa crítica, considerada ofensiva
tanto à sua ortodoxia, quanto à sua teologia52. A situação conflitante entre as igrejas quase
chegou à ruptura total, porém, a chegada dos árabes na península impediu a abertura de um
cisma entre as Igrejas Hispânica e Romana53, visto que um clima de apaziguamento surgiu
quando o Primaz toledano Sinderedo (710 a 713) foi até Roma em busca de refúgio54.
Mas a unificação de todos os territórios hispânicos comandados pela Igreja,
conquistada com o reinado de Recaredo, quase desapareceu devido a disputas pelo trono de
dois possíveis sucessores ao trono. Logo, a situação política da região se tornou caótica55. No
início do século VIII, o trigésimo quarto rei, Witiza, tentou associar um de seus filhos, o Ágila
II 56 , ao trono, porém, Witiza não era considerado um bom rei pela aristocracia visigoda57 .
Quando, em 710, Witiza morre, ele acaba deixando vago o trono visigodo. Os nobres, que não
desejavam deixar o poder nas mãos da mesma família por muito tempo, fizeram uma eleição e
escolheram Rodrigo 58 . Esse método sucessório, mesmo sendo pouco aplicado, era um
52
Seu caráter forte é visto no confronto que teve com o bispo de Roma. A razão era que o papa Leão II enviara
aos bispos visigodos as Atas do III Concílio de Constantinopla para assiná-los. Julian, em nome dos bispos
hispânicos, escreveu ao pontífice sua Primeira Apologética aprovando os textos recebidos e acrescentando
observações sobre os sentimentos da Igreja Hispânica. A resposta de Julian chegou às mãos do novo papa Bento
II, que interpretou isso como uma ofensa pessoal. Os bispos espanhóis delegaram, então, a Julián para escrever
uma segunda apologética, inserida posteriormente nos Atos do XV Concílio de Toledo. JULIAN OF TOLEDO,
Prognosticum futuri saeculi: Foreknowledge of the world to come. Ancient christian writers, 63. Newman press,
2010. p. IX.
53
JOVER ZAMORA, José Maria; MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. op. cit. p.483.
54
Sinderedo foi um apoiador do Rei Rodrigo. Após a queda deste, pediu refúgio em Roma, onde participou de um
concílio em 721, constando sua presença quando assina: Sinderedus episcopus ex Hispania. FLÓREZ, Enrique;
MERINO, Antolín; RISCO, Manuel; Et al. España sagrada: Theatro geographico-historico de la iglesia de
España. Origen, divisiones, y terminos de todas sus provincias. Antiguedad, traslaciones, y estado antiguo
y presente de sus sillas, en todos los dominios de España, y Portugal. V.5. Madrid: [S.n.], 1750.
55
Na Hispânia visigoda havia dois sistemas de escolha para um rei: um se dava de forma eletiva e outra, hereditária.
No sistema de monarquia eletivo/hereditário, o rei em exercício – antes de seu falecimento – indicava seu sucessor,
o qual poderia ser seu descendente. Os membros da alta nobreza militar poderiam respeitar a recomendação do
antigo rei, ou fazer uso do sistema monárquico eletivo, indicando um outro sucessor entre eles. Esses sistemas de
eleição acima elencados foram um dos motivos da queda do reino cristão visigodo. Para mais informações vide os
códigos: Eurico de 476 d.C, Breviário de Alarico (Lex Romana Visigothorum) de 506 e o Codex Revisus de 576.
56
Ágila II, ou Akhila, foi um Rei visigodo das regiões de Tarraconese e da Septimânia, um dos responsáveis pela
chegada Árabe junto com seus irmãos Ardabasto, que lhe sucedeu no trono, e Olemundo.
57
A historiografia visigoda nos mostra que bons monarcas seriam aqueles que praticavam uma política de
concessão de patrimônios à nobreza, e esta não foi a atitude de Witiza, que se comportou diferente de seus
antecessores na concessão de recursos.
58
Rodrigo ou Roderico foi um Rei visigodo da Hispânia que reinou entre 710 e 711. Governou parte da Península
Ibérica, sendo uma figura maior na lenda do que na história. Crônicas espanholas revelam que ele era neto do
vigésimo rei, Chindasvinto. CORTADA, Juan. Historia de españa: desde los tiempos mas remotos hasta 1839.
Barcelona: Imprensa de A. Brusi, 1841.
26
procedimento legal de ascensão monárquica59. Rodrigo se tornou o trigésimo quinto rei, mas
sua ascensão não foi bem aceita pelos descendentes de Witiza, Olemundo, Ardabasto e Ágila,
os quais fizeram resistência a seu reinado, elegendo seu próprio rei, Ágila II, quem deflagrou
uma disputa interna pelo poder dentro da monarquia visigoda.
Enquanto a disputa
política entre a aristocracia
visigoda acontecia, a expansão
árabe
crescia
próximas,
nas
no
regiões
norte
do
continente africano. Há algum
tempo, os generais das tribos
mouras tinham a intenção de
conquistar a Hispânia, mas o
extenso exército visigodo e a
geografia
do
possibilitavam
lugar
a
não
invasão,
restando aos árabes esperar por
MAPA 2 - Reino visigodo no início do século VIII com a
divisão de apoiadores dentro doo reino visigodo, entre o rei
Quando os filhos de Rodrigo e Ágila – filho de Witiza. A parte quadriculada em
verde claro corresponde à caminhada que o exército árabe fez
Witiza procuraram os árabes ao chegar na região. Mapa de la Península Ibérica 711-714.
um momento mais favorável.
para que eles lhes servissem
como um exército mercenário Fonte: https://upload.wikimedia.org/ wikipedia/ commons /thumb/
–
essa
era
uma
prática
0/00/ Espa%C3%B1amusulmana.svg /473px-Espa% C3%
B1amusulmana.svg.png
recorrente entre os nobres visigodos para resolução de conflitos internos60 e o rei Rodrigo tinha
grande apoio dos nobres e, por isso, contava com uma parcela muito maior de tropas –, este
fato foi entendido como o momento ideal para invadir a Hispânia. Não se sabe ao certo como
se deu os trâmites da negociação com os Mouros61, mas é possível que a luta entre os nobres
No cânone 75 do IV Concílio de Toledo, diz que “o mal rei será anatematizado por Cristo Senhor, e separado e
julgado por Deus”. Desse cânone presumia-se que, por trás de uma rebelião bem-sucedida, encontrava-se, também,
o aval divino, também sendo possível que o monarca deposto havia perdido o favor celestial. ANDRADE FILHO,
Ruy de Oliveira. Sacralidade e monarquia no reino de Toledo (séculos VI-VIII). In: História Revista: Revista
da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História, Goiás, Universidade Federal de Goiás, v.
11, n.1, jan./jun.,2006. 179- 192.
60
Um apelo a um príncipe ou a um povo estrangeiro para apoiar as reivindicações de um pretendente não era uma
novidade na península, anteriormente. Atanagildo recorreu aos Bizantinos contra Ágila I em meados do século VI.
RUCQUOI, Adeline. op. cit. p.63.
61
Mouros (mauritanos ou sarracenos), povos vindos do continente africano, eram muçulmanos que se aliaram a
Ágilla II.
59
27
visigodos tenha levado arcebispo de Sevilha, Oppas62, irmão do falecido rei Witiza, a tomar
partido de seus sobrinhos, se tornando um dos responsáveis pela aliança com Musa Ibn Nusayr,
um líder árabe do norte da África.
A história termina com a derrota do Rei Rodrigo, em 20 de julho de 711, na batalha de
Guadalete63. O trono visigodo passou para um dos filhos do falecido rei Witiza, porém, os
visigodos não conseguiram impedir a pressão dos árabes sobre a região, que se virou contra
eles logo em seguida, tendo como consequência a queda dos reis Ágila II e Ardon anos depois.
Em 718, os Mouros e Berberes64 controlavam toda a região que antes era o reino visigodo. Com
isso, parte das forças cristãs derrotadas pelo exército Mouro retiraram-se para o norte e nordeste
da península65.
A região ao Norte da
península, por ser uma região de
difícil
acesso
devido
sua
geografia, sendo ela protegida
por uma cadeia de montanhas,
abraçou milhares de refugiados
visigodos, os quais fundaram, na
região, um novo reino cristão,
que ficou sendo conhecido como
o reino das Astúrias. Esse reino
foi fundado e liderado pelo rei
Pelagio (722-737)66, o qual teve
62
MAPA 3 - Reino das Astúrias e localização de sua capital, no
período do reinado de Carlos Magno.
Fonte: https://legacy.lib.utexas.edu/
Além do irmão do Rei Witiza, há também uma lenda que relata sobre essa aliança: não teria sido Oppas o
responsável por essa negociação, mas sim um lorde Ceuta, um personagem chamado conde Julião, que, após a
traição do rei Rodrigo ao atacar sua filha, convidou o exército inimigo para enfrentar o rei poderoso.
63
Don Rodrigo, que nesse momento estava em batalha com os Vascones, teve que enfrentar também os
mercenários árabes. A morte de Rodrigo não foi confirmada. Seu corpo nunca foi encontrado, apenas seu cavalo
foi identificado. Algumas lendas relatam que ele sobreviveu à batalha de Guadalete e se refugiou nas serranias da
antiga Lusitânia, na região de Viseu. Atualmente há um tumulo na Igreja São Miguel de Fetal que, supostamente,
tem os ossos de Don Rodrigo.
64
Grupo nômade. Era composto de diversas etnias que habitavam regiões montanhosas do Magreb: cristãos,
muçulmanos e judeus.
65
Em meados de 718 a 722, houve uma grande resistência em uma série de rebeliões. Muitos fugiram do cárcere
e, entre eles, estava Pelagio, futuro fundador do reino das Astúrias, para a região ao norte da península.
66
Pelagio, segundo as crônicas de Alfonso III e nas Crônicas Rotenses, era originado de canabria-asturias, foi
duque da Cantábria e primo do falecido Rei Rodrigo. Relata-se que ele estava com Rodrigo na batalha de Guadalete
e, como consequência, tinha se tornado prisioneiro dos árabes. Durante as revoltas, ele fugiu do cativeiro em AlAndalus, incitou diversas rebeliões e, por fim, se refugiou na região montanhosa ao norte da península, fundando
um reino das Astúrias. É considerado o primeiro rei. Seu primeiro passo para a fundação de um reino independente
aconteceu com a batalha de Covadonga, na qual Pelagio (722-737), ao vencer os árabes, alargou sua autoridade
territorial e restringiu o acesso desses povos à região, fazendo da cidade Vanga de Onis sua capital. Isso mudou os
28
papel importante na região, ganhando, assim, proteção contra os árabes e a diminuição do
avanço dos mesmos67.
A região ao Nordeste
ficou conhecida como Marca
Hispânica. Foi, no período do
reinado visigodo, uma região
profundamente rural, porém,
com a chegada dos Mouros e
MAPA 4 - Marca Hispânica, região hispânica que estava na
da população que fugia das fronteira entre o Império Carolíngio e o Emirado de Córdova.
regiões conquistadas, mudou
Fonte: https://legacy.lib.utexas.edu/.
um pouco essa realidade. Isso
também aconteceu com a parte a leste da península, em direção às montanhas dos Pireneus68.
Essa região, que antes abarcava as províncias da Septimânia e partes da Tarraconesa,
tornou-se, nessa época da chegada árabe, parte dos territórios de Córdova e ficou sob tutela
administrativa do rei visigodo, o rei Ágila II (711-714), e, posteriormente, de seu irmão
Ardabasto (714-720)69. Porém, em 718, acabou nas mãos administrativas dos mouros.
Com a chegada dos árabes na região que abarcava a Septimania, poucas mudanças
foram impostas, visto que a mesma pôde manter sua organização social administrativa e
religiosa, pois haviam concordado em pagar os tributos. Porém, a região Tarraconesa resistiu à
territórios e condições políticas das regiões Ibéricas. DIHIGO, L. Barrau. História política Del reino asturiano
(718 - 910). Barcelona: Editora Silvero Cañada, 1989. p. 104.
67
Apenas se tornou reino de fato sob o comando do terceiro rei Afonso I (739-757), que, se aproveitando dos
tumultos ocorridos entre os anos 740 e 750, expandiu o território e iniciou uma organização urbana, ou seja, a
construção de cidades aos moldes do instinto reino visigodo. Estas modificações moldaram a região que
futuramente será o berço da subjugação dos reis católicos, ou “Reconquista”: expressão utilizada na historiografia
da península ibérica para designar o processo de expansão cristã iniciada no século XI, sendo seu começo na
campanha de Fernando I, de Castela (1037-1065), e finalizado no século XV, com a tomada de Granada (1492).
O termo aqui aplicado é empregado pela historiografia tradicional, porém, há medievalistas que discordam, visto
que seria mais adequado usar o termo para denominar o período que se inicia no século VIII, em 718, quando a
resistência aos novos senhores é iniciada. COSTA, Ricardo da. apud SOUZA, Guilherme Queiroz de. Da
reconquista hispânica à conquista do novo mundo: uma análise do espírito cruzadistico ibérico na
cruxcismarina e na crux ultramarina. In: X jornada de estudos antigos e medievais II jornada internacional de
estudos antigos e medievais Conhecimento, Educação e Imagem nas Épocas Antiga e Medieval, 2011, Maringá.
Anais da jornada de estudos antigos e medievais: universidade estadual de Maringá: 21 a 23 de Set de 2011. p. 116.
68
Região próxima à antiga província Tarraconensa. A população tentou conter o avanço dos mouros nas
montanhas adjacentes ao reino vizinho dos francos, mas isso só foi alcançado com a ajuda de Carlos Martel em
um momento posterior.
69
Segundo Kennedy, uma fonte posterior ao século VIII, Ardabasto, cujo nome aparece na fonte como Artabás,
estava responsável pelo pagamento de tributos aos árabes. Na fonte, ele aparece como encarregado da cobrança
do imposto aos cristãos na região, visto que, normalmente, seria feita por um árabe. KENNEDY, Hugh. Os
muçulmanos na península ibérica: História política do Al-Andalus. Portugal: editora publicações europaamerica, 1999. p.35.
29
invasão e terminou sendo devastada. Pouco tempo depois, com a ascensão do Emir Abderramão
I (756-788), as regiões se tornaram uma área de fronteira em disputa entre os francos e o
Emirado de Córdova70.
A partir de 785, quando Carlos Magno tomou Gerona e Urgel, a aristocracia hispânica
procurou uma aliança com os francos para recuperar os demais territórios que lhes pertenceram
no período visigodo, restabelecendo, aí, um poder que não ficou sujeito ao Emir de Córdova.
Os nobres cristãos da região tentaram recriar a monarquia aos moldes visigodos com a proteção
de Carlos Magno, mas sem sucesso. E, por fim, em 789, os nobres de Urgel tiveram que abrir
as portas da cidade para os francos71, tornando a região uma marca meridional do reino franco
na península, onde antes era a marca setentrional do emirado.
Em Urgel, a Igreja Hispânica fundou um bispado no século VI72, que fazia parte dos
quinze episcopados da província de Tarragona73. Essa diocese sempre foi atuante na Igreja
Hispânica, o que pode ser constatado pelo fato de que seus bispos compareceram em vários
concílios de Toledo e, mesmo com a chegada dos árabes e com as disputas territoriais, ela
manteve-se muito ativa em relação a seus deveres. A diocese de Urgel conservou-se vinculada
a Toledo até por volta do ano 789, quando a Marca Hispânica foi incorporada politicamente aos
domínios de Carlos Magno. A partir desse momento, ela ficou subordinada à Igreja Carolíngia,
ao arcebispado de Narbona, região que havia sido conquistada pelos francos cerca de vinte e
cinco anos antes.
Como vimos, com a chegada dos árabes e sua expansão territorial em meados do
século VIII, os territórios que compunham a Hispânia cristã visigoda passaram a viver, portanto,
sob distintas realidades: ao Norte da península se localizava o novo reino cristão das Astúrias,
criado pelos refugiados do antigo reino visigodo; a Nordeste, situava-se outro reino na Marca
Hispânica 74 , que se tornou uma região subordinada tanto ao Império Carolíngio, como ao
Emirado de Córdova, em tempos distintos, durante o tempo em que a questão Adocionista
70
Os aristocratas hispano-visigodos da região receberam, do reino dos francos, apoio em caso de revolta contra
Córdova e um refúgio, no caso de os francos fracassarem. Esse favor, no entanto, foi utilizado pelos monarcas
carolíngios para dominar os territórios que, mais tarde, formaram a localidade de Urgel e o norte da província de
Gerona, cuja capital tem o mesmo nome. A disputa pela região entre os Carolíngios e Córdova se acirrou em 778
e em 785. Nesse período, foi tomada pelos francos.
71
FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. p. 231.
72
Com a personalidade de São Justo sendo seu primeiro bispo.
73
Tarraco (Tarragona); sedes sufragâneas: Ampurias, Auca (Oca), Ausona (Vic). Barcino (Barcelona).
Caesaraugusta (Zaragoza), Calagurris (Calahorra). Dertosa (Tortosa). Egara (Tarrasa), Gerunda (Gerona). Ilerda
(Lérida). Osca (Huesca). Pamplona. Turiasso (Tarazona). Urgel. JOVER ZAMORA, José Maria; MENÉNDEZ
PIDAL, Ramón. Historia de españa: Las invasiones, las Sociedades, la Iglesia. Madrid: Espasa-Calpe, 1991.
p.471.
74
No período em que se passou a questão Adocionista, a região ficou tanto em posse do reino Carolíngio, como
do emirado de Córdova. Essa posse territorial foi significativa para a discussão Adocionista.
30
estava em discussão; ao Sul, ficava o Emirado de Córdova – ou Al-Andalus – governado por
líderes árabes.
A região ao sul da
Península Ibérica, tomada após
a expansão moura, iniciada em
711,
ganhou
nova
denominação: ficou conhecida
como
Al-Andalus
e/ou
Emirado de Córdova 75 . Nesse
território,
diversos
povos
conviveram juntos, tais como:
árabes,
berberes,
judeus,
moçarabes 76 e mulandis 77 .
Estes formaram uma sociedade
peculiar, resultante dessa fusão
MAPA 5 - Divisão regional da península ibérica entre os
anos 711 a 756.
Fonte: Al-Andalus. https://legacy.lib.utexas.edu/.
multicultural e de diversas vertentes religiosas.
Como já relatamos, as batalhas advindas da expansão árabe provocaram uma
desorganização administrativa e territorial em toda Hispânia e causaram a fuga de diversas
pessoas para as áreas montanhosas a norte e nordeste. Entretanto, diversas pessoas
permaneceram na região e puderam continuar vivendo em relativa paz sob a ótica de políticas
de submissão feitas pelos árabes sobre os povos que permaneceram em Al-Andalus. Os
dhimmis – povo não muçulmano – ganharam status de protegidos78. Com proteção política,
religiosa e jurídica em troca do imposto Jizya, desde que não oferecessem resistência expressiva
ou armada aos seus novos senhores, os cristãos poderiam continuar com os privilégios que
possuíam no período visigodo.
75
Inicialmente a região começou sendo vinculada ao Califado Omiada, dado que, embora a região tivesse
autonomia de seus governantes, ela, em princípio continuava estava ligada ao califa Omiada, e posteriormente com
à chegada do príncipe Abderramão, a região se tornou um emirado administrativo, fiscal e militarmente
independente, possuindo cunhagem de moeda própria e chamando-se de Emirado de Córdova, como também AlAndalus.
76
Denominação dada aos cristãos ibéricos que viviam sob o domínio árabe, ou a eventos ocorridos durante o
período ente os séculos VIII e XV.
77
Cristão convertido; descendente de casamento misto entre mulher cristã e homem muçulmano.
78
Um comandante chamado Teodemiro foi o responsável por um desses acordos na região, que ficou conhecida,
posteriormente, como Múrcia. O comandante obteve, no acordo, autonomia local e liberdade de culto, contanto
que cooperasse com tributo em dinheiro, trigo, cevada, sumo de uva, vinagre, mel e azeite. KENNEDY, Hugh. op.
cit. p.31.
31
Com a chegada em 755 do príncipe refugiado Abderramão I79, ou abd al rahman, a
região alcançou certa estabilidade. Ele foi um dos responsáveis pela organização de Al-Andalus,
com cunhagem própria de moedas, com inscrições em línguas latim/árabe80, e uma nova rede
comercial. Fazendo uso das técnicas agrícolas81 árabes, criou uma rede de riquezas, permitindo
que Córdova se tornasse uma cidade cosmopolita, fazendo com que diversas outras fossem
fundadas a partir desse modelo, como foi o caso de Madrid. Podemos dizer, a grosso modo, que
houve uma arabização82 da sociedade hispânica, visto que a influência cultural, religiosa e do
modo de vida árabe, agregou, a esta população, valores que lhe trazia vantagens, riqueza,
estrutura social e cultura intelectual 83 . Uma importante mudança dessa época foi o
desenvolvimento de uma nova língua escrita, que trouxe certa distinção cultural entre os
hispânicos do norte, nordeste, e do sul. O Árabe, língua do Corão – a língua de Deus –, tornouse a língua erudita e literária do sul da península, enquanto no norte e nordeste, cristãos ainda
conservavam o latim como língua escrita.
Apesar dessas mudanças culturais, tanto o judaísmo, como o cristianismo, a sul e
nordeste da península, permaneceu muito forte. Não houve, por parte dos árabes, determinação
em impedir a prática dessas religiões – as religiões do livro84. Esse cenário possibilitou trocas
culturais e relações diplomáticas entre os povos hispano-visigodos cristãos, judeus e árabes85.
Portanto, a Hispânia trazia um cenário territorial, administrativo e político que, em
mais de meio século, passou por muitos tumultos e reestruturações, mesmo estando dividida
entre domínios distintos, que estavam frequentemente entrando em conflito por disputa de
espaço. Apesar disso, a Igreja Hispânica conseguiu manter autonomia administrativa de suas
79
Abderramão foi neto de um califa Omíada Hishãm, descendente do profeta Maomé. Quando uma nova dinastia
ascendeu, Abássidas, um massacre à sua família ocorreu. Ele conseguiu escapar e fugir para o norte da África,
passando anos em exílio. Ao chegar em Al-Andalus, conseguiu apoio local e, por meio de batalhas, conseguiu se
tornar Emir.
80
KENNEDY, Hugh. op. cit. p.40.
81
Levando para Al-Andalus novos tipos de alimentos, como limoeiros, laranjeiras, palmeiras e abacate, dando à
localidade outro tipo de troca de mercadorias.
82
As pessoas se convertiam por vontade própria aos valores dos árabes, incorporando língua e cultura do povo
árabe. GLICK, Thomas F. From Muslim Fortress to Christian Castle: Social and Cultural Change in
Medieval Spain. Manchester University Press, 1995. p.51.
83
Nessa época, um dos princípios do islã era de que a alfabetização e o ensino religioso estavam de mãos dadas,
algo incentivado em todas as classes. As mesquitas eram usadas para alfabetizar as pessoas comuns, sendo um
lugar para encorajar a educação e aprendizagem.
84
Desse modo os árabes de Al-Andalus não encorajavam a conversão forçada entre os judeus e os cristãos
hispânicos – sendo tratados como povos do livro que, apesar de não se mostrarem dignos das palavras de Deus,
tinham, pelo menos, recebido Dele as suas Escrituras –. Poderiam, assim, continuar com suas práticas, desde que
sustentassem os exércitos árabes por meio dos tributos. BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no ocidente.
Lisboa: Editora Presença, 1999.p. 203-204.
85
Com essa tributação, eles conviveram nesse tempo de forma relativamente pacífica, porém, diversos conflitos
entre esses povos existiram, mas esse não é o foco deste trabalho.
32
dioceses e seus clérigos permaneceram exercendo seu poder sobre todo o território, sendo
obedientes à arquidiocese Primaz de Toledo.
Quando a questão Adocionista surge na Península Hispânica, tal fragmentação política
possibilitou que essa forma de cristianismo encontrasse respostas diversas quanto à sua
aceitação ou negação pelos grupos cristãos. É por isso que vemos como necessário tratar sobre
as pessoas envolvidas nesse conflito e os lugares distintos da hierarquia da Igreja Hispânica na
qual elas se encontravam.
Um dos nossos personagens essenciais na região ao sul – Al-Andalus – é Elipando,
arcebispo de Toledo, Primaz86 da Hispânia (755/783-808?)87. Foi um dos principais defensores
do Adocionismo na Igreja Hispânica e seus escritos nos trazem muito do que sabemos sobre a
defesa dessa forma de cristianismo ibérico88. Quanto à sua vida, sabemos que ele desfrutava de
grande prestígio dentro e fora da Hispânia, porém, antes do episcopado, sabemos muito pouco.
É possível que, levando em conta a tradição da Igreja Hispânica em formar seus arcebispos
dentro das escolas episcopais, onde os grandes arcebispos eram, antes de seus episcopados,
homens de formação monástica, suspeite-se que este tenha sido também seu lugar de formação.
Sendo Arcebispo de uma sede metropolitana, Elipando tinha influência e autoridade sobre toda
Hispânia – regiões arabizadas e cristãs –, mesmo com a separação política apontada acima89.
Tendo em vista o poder dado ao Primaz metropolitano de Toledo e a independência da Igreja
Hispânica em relação aos Patriarcas da Igreja a Oriente e Ocidente, a força que essa figura teria
nas decisões teológicas nesse tempo é marcante, o que fica claro no temor sentido pelas Igrejas
de Roma e Carolíngia quanto à sua defesa das ideias Adocionistas.
As poucas informações que temos sobre Elipando vêm de Beato de Liébana, que nos
relata que aquele era um pensador austero e religioso, que, desde muito jovem, havia se
consagrado em um monastério e, posteriormente, foi para a escola episcopal, onde fez sua
86
O título de primaz da Espanha, que, na atualidade, é apenas honorífico, concedia, no período estudado, um status
de precedência em relação às outras dioceses, promovendo ao arcebispo a atuação de um patriarca, a mais alta
patente eclesiástica.
87
Existem divergências em relação às datas de arcebispado de Elipando. Alguns pesquisadores concordam que ele
foi eleito em 783, já outros relatam que ele havia sido eleito em 754. Ele tinha cerca de sessenta e sete anos quando
o Adocionismo começou a ser discutido entre as Igrejas.
88 Elipando afirmava que Jesus Cristo era igual ao Pai, constituindo-se de duas essências, humana e divina, e que
Cristo era filho gerado de Deus, assim como foi decidido no concilio ecumênico de Nicéia I. Porém, sua
interpretação mudava em um detalhe sobre a essência humana de Cristo, pois, para ele, Deus ao se tornar carne, a
sua essência humana – Jesus Cristo – teria adotado a humana, e, portanto, teria ele adotado a carne.
89
Um outro personagem de influência na região era um homem chamado Militano, que havia escrito quatro
folhetos contra Beato. Porém, pouco se sabe sobre essa pessoa ou se ele possuía algum cargo dentro da Igreja.
Apenas há relatos dados nas cartas falando sobre seu apoio a Elipando contra Beato.
33
profissão religiosa 90 . Por suas cartas, podemos identificar que seus estudos não eram,
exclusivamente, a respeito das Sagradas Escrituras91. Consta-se, também, que ele tinha o cargo
de professor na escola do monastério. Com isso, ele tinha, entre seus alunos, muitos seculares
e religiosos, o que lhe garantiu prestígio e admiradores na escola92.
Na região ao nordeste, na Marca Hispânica, encontramos nosso segundo personagem:
Félix, o bispo de Urgel (781-792 e 796-799) 93 . Sobre sua vida e formação não se tem
conhecimento antes dele aparecer no debate da disputa dogmática, mas, de acordo com a
documentação, Félix era um bispo influente94 e um exímio teólogo, possuidor de grande fama
de santo e muito prestigiado nas regiões da Marca Hispânica e no Império Carolíngio. Sua
defesa em relação às ideias Adocionistas foi tão intensa que o dogma chegou a ficar conhecido,
na região da Marca Hispânica, como “heresia feliciana”. Alguns autores chegaram a sustentar
que “o fundador”95 do Adocionismo Hispânico teria sido o próprio Félix, e Elipando só teria
aderido a essas ideias mais tarde. Essa afirmação está baseada no fato de que Félix foi mais
protagonista que o primado Elipando nos debates em território carolíngio e de que suas ideias
do Adocionismo foram mais amplas e ganharam um terreno geográfico mais extenso fora da
península.
Na região norte, no reino das Astúrias, as ideias Adocionistas foram menos aceitas.
Entre aqueles que se colocavam contra o Adocionismo, é preciso destacar a figura de Beato de
Liébana, um monge que viveu no mosteiro de São Martín de Turieno 96 e foi presbítero de
notável cultura e conhecimento bibliográfico. Assim como a maioria dos personagens, pouco
sabemos sobre sua vida, possivelmente nasceu próximo aos anos de 730, em Liébana, e faleceu
por volta de 800. É conhecido pela fama que ganhou na Europa cristã com seus livros
Comentário ao Apocalipse e Apologético, que tinham como pano de fundo a questão
Adocionista, da qual o autor foi ferrenho opositor.
90
Beato de Liébana em suas anotações deixou alguns relatos sobre o mesmo. RIVERA RECIO, Juan Francisco.
Elipando de Toledo: nueva aportación a los mozárabes. Toledo: Editorial Católica Toledana, 1940. p.18.
91
Dado que as escolas episcopais hispânicas tinham um estudo abrangente do Trivium e Quadrivium.
92
Desde muy joven se consagró en un monasterio […] Donde hizo su profesión religiosa […] Hombre pensador
y religioso austero […] Sus estudios no versaron, exclusivamente al menos, sobre la Sagrada Escritura. HAMMAN,
Adalbert G. Patrologiae cursus completus. Editor: Jacques Paul Migne. Paris, apud Garnier fratres, v. 96,1862.
p.925-947.
93
No ano de 792, ele foi afastado devido suas ideias Adocionistas. Após ajuda de Elipando, pôde retornar à diocese
em 798, mas foi novamente afastado em 799 por Alcuíno.
94
Alcuíno chega a relatar que ele tinha mais de 20.000 pessoas convertidas ao Adocionismo, entre eles, bispos,
sacerdotes, monges e pessoas do povo.
95
Alcuíno, em seus quatro livros contra Elipando, relatava que tinha a convicção de que o Adocionismo nasceu
em Córdova, mas os demais eclesiásticos da região franca acreditavam que Félix seria o criador.
96
Liébana é uma comarca situada na província de Santander, que tem uma característica singular que favorecia o
isolamento.
34
Outra figura relevante no grupo de opositores a essa ideia dogmática foi Etério, na
época, bispo de Osma (in partibus infidelium)97. Nas cartas trocadas entre os envolvidos na
questão, ele é retratado como adolescente 98 , alguém que não era amadurecido para estar
envolvido em tal questão – de acordo com Echegaray99, Etério poderia ter por volta de 25 a 30
anos 100 . Naquele momento, ele estava refugiado no monastério de São Martín de Turieno,
devido ao fato de sua diocese estar ocupada pelos árabes. Atribui-se a ele a coautoria, com o
Beato de Liébana, dos textos Apologético – a primeira parte da obra tem o título de “Carta de
Etério e Beato a Elipando”101. Essa querela contou ainda com o Asturiano Fidel, abade do
monastério de Liébana. Também não temos informações sobre ele, para além do fato de que
ele ocupava o cargo de abade nesse mosteiro. É importante destacar que ele foi uma ponte de
comunicação entre o Primaz de Toledo e a região Asturiana.
Alguns nobres do reino das Astúrias também se envolveram nessa questão. Entre eles,
estava a rainha viúva Adosinda102, que, no ano de 776103, levou o Beato de Liébana para viver
na sua corte104. Não se sabe ao certo como foram as relações entre Adosinda e Beato durante
esses anos de convívio, mas é certo que ele era partidário da rainha105, quem na época buscava
apoio para coroar seu sobrinho Afonso II. Essa questão acabou levando Adosinda a se envolver
com o Adocionismo.
97
Expressão que diz: nas terras dos infiéis. A diocese de Osma é pertencente à arquidiocese de Toledo. Etério era,
no sentido retórico, um adolescente, titular do bispado de Osma, refugiado no monteiro de Beato. ECHEGARAY,
Joaquin Gonzalez; CAMPO, Alberto Del; e FREEMAN, Leslie G. SOTO, Jose Luis Casado. op. cit. p. 416.
98
Adulescentiam sane fratris nostri Heteri lacte abhuc et nondum ad robur perfectae intelligentiae perductam.
ECHEGARAY, Joaquin Gonzalez; CAMPO, Alberto Del; e FREEMAN, Leslie G. Beato de Liébana. Apologetico
Livro I. In.:. Obras Completas y complementares I: Comentario al apocalipsis himno “o dei verbum” apologético.
Madri: Biblioteca de autores cristianos, 2004. p.44.
99
Visto que há um abade de mesmo nome nos registros do monastério de 828 com a idade entre sessenta e setenta
anos. ECHEGARAY, Joaquin Gonzalez; CAMPO, Alberto Del; e FREEMAN, Leslie G. Beato de Liébana.
Prologo. In.:. Obras Completas y complementares I. op. cit. p. xx.
100
Embora, no IV Concílio de Toledo, fica claro que, para se tornar bispo, era necessário ter 30 anos para ser
consagrado.
101
Heterii et sacti beati ad elipandum epistola. No segundo livro tem o título de “Apologético”, mas o conjunto
dos livros ficou famoso pela alcunha de Aopolgeitco. ECHEGARAY, Joaquin Gonzalez; CAMPO, Alberto Del;
e FREEMAN, Leslie G. SOTO, Jose Luis Casado. Beato de Liébana. Obras Completas y complementares II.
op. cit. p. 674.
102
Filha do rei Afonso I (774-783) e neta do rei Pelagio, casou-se com Silo. De acordo com algumas fontes, Silo
era apenas uma ponte para que ela exercesse o poder como rainha, visto que isto não era permitido às mulheres.
Após a morte de seu marido, ela foi obrigada a se refugiar em Álava. Por temerem sua influência política, ela foi
insulada no monastério San Juan. Após a morte de Silo, ela apoiou seu sobrinho Afonso II à candidatura a rei, em
768, mas Mauregato, em um golpe, se tornou rei.
103
Segundo Sanders. 1930, p. XV-XVIII, apud Echegaray, 2014, p. XVIII.
104
Beato deixou o mosteiro de São Martín de Turieno e viveu na corte até a morte do rei Silo, quando um nobre
rival deu um golpe de estado.
105
Na relação entre Adosinda e Beato, ele adquiriu prestígio no tempo em que estava de estadia entre a nobreza.
35
O sobrinho da rainha Adosinda, o rei Afonso II, o casto (790-842) 106 , acabou se
envolvendo na questão pelos mesmos motivos da rainha. Além do mais, ao se tornar rei, como
todo os antigos reis visigodos, ele passou a ver, no apoio da Igreja, uma base territorial para
legitimação do seu governo. Portanto, sua participação indireta na questão foi uma forma de
resistência contra o Emirado de Córdova, pois, para conter o avanço deste sobre o reino das
Astúrias, era necessário pagamentos de altos tributos. Aliando-se à figura de Carlos Magno
(742-814)107, que enviou embaixadores às Astúrias, Afonso II usou a polêmica Adocionista
para afirmar a soberania da Igreja Asturiana em relação a Toledo, o que colaborava com a
afirmação política do próprio reino.
O último personagem que destacamos nessa questão no reino das Astúrias é Ascário,
bispo de Astorga e Braga, que se encontrava nessa região em consequência de sua diocese –
Asturica (Astorga) – também estar ocupada pelos árabes108. Assim como ocorre com os outros
personagens, temos pouca informação sobre ele além de sua participação como defensor do
Adocionismo no reino das Astúrias.
O caldeirão cultural que sempre marcou a Península Ibérica, seja antes da chegada dos
árabes, seja depois deste fato, fez ressurgir uma serie de práticas pagãs na região.
Um bom número delas já havia sido condenada pelos grandes concílios Toledanos, que
ocorreram entre os séculos V a VII. Essa situação chegou à Roma chamando a atenção do Papa
Adriano I, que entrou em contato com a Primaz da Hispânia em Toledo para verificá-la. Porém,
o primado toledano daquele período, o arcebispo Cixila109, não permitiu a intromissão da Igreja
de Roma em seus domínios.
Sem autorização para arbitrar sobre os desvios de fé na Península Ibérica, o papado se
manteve em silêncio até que houvesse uma nova eleição para esse primado, o arcebispo
Elipando. Este, ao contrário de seu antecessor, não se opôs à interferência de Adriano na região,
o que foi feito por meio do envio de emissários que deveriam investigar as tais denúncias da
forte presença de práticas não cristãs em meio à população católica da península. Carlos Magno,
com um objetivo expansionista, aproveitando-se da força política que tinha sobre Adriano,
106
Após a morte de seu pai, ele foi criado no palácio Asturiano no reinado de Silo por sua tia Adosinda, e obteve
dela uma educação para se tornar rei após a morte de Silo.
107
Rei dos francos e Lombardos.
108
Na época do reinado do rei Afonso I (739-757), o rei, na tentativa de retomar o antigo território visigodo,
terminou arrasando diversas cidades, e, com isso, não conseguiu mantê-las por muito tempo. Por fim, o Emirado
de Córdoba tomou a região de volta, porém, vendo que perderia essa região, o rei mandou que levassem consigo
os grupos cristãos, e, dentre eles, o bispo responsável pela região. Desde então, os bispos responsáveis pela diocese
de Astorga e Braga estava sitiados na região das Astúrias.
109
Cixila foi arcebispo de Toledo antes de Elipando. Seu arcebispado foi de 775-783 d. C.
36
entrou em contato com o Papa por meio de um arcebispo de sua confiança, Wulcario110, para
pedir que investigasse a suspeita de que algumas ideias muito próximas do cristianismo, e já
condenadas em concílios, estivessem ganhando espaço entre o corpo eclesiástico dessa região.
Wulcario, por sua vez, escreve para o Papa Adriano I sugerindo que envie Egila para
a Hispânia em missões pastorais a fim de investigar e corrigir os possíveis desvios existentes
na Igreja Hispânica. Adriano adota o conselho de Wulcario, concordando com a permissão
para a missão e concedendo a ordenação a Egila para receber o episcopado, enviando-o para
a Hispânia como um bispo itinerante, sem poder ser detentor de qualquer diocese. Ao iniciar a
missão, no entanto, a diocese de Elvira acabou por lhe ser atribuída.
Em suas investigações na região de Betica, Egila encontrou problemas que envolviam
questões como: datação errônea da celebração da páscoa, desvios doutrinários, litúrgicos, além
do fato de algumas pessoas não comerem carne sagrada. As práticas encontradas por Egila
foram relatadas ao Papa Adriano I em uma de suas cartas111, descrevendo, em seu relato, sobre
a datação errônea usada na celebração da Páscoa, que estava em desacordo com as datações
determinadas no Concílio Ecumênico de Nicéia I:
Decías en tu carta que, en esas regiones, muchos, retornados a la necedad y
demencia del corazón, se atreven a despreciar las continuas referencias de
nuestros escritos y advertencias acerca de la Festividad de la Pascua,
promulgadas según lo ordenado por el venerable Concilio de Nicéia, Pues
dicen que “si cae la Pascua el dia del plenilunio, es decir, el decimocuarto día
de la luna en sábado, el día siguiente domingo, es decir, el día quince de la
luna, no se celebra la .Pascua Santa ese día, sino que, no haciéndolo el día
quince, hay que celebrar los gozos de la fiesta pascual en otro domingo de la
siguiente semana, que es el día veintidós de la luna”. Pero si se examina con
espíritu interior la norma de las fiestas pascuales del gran y venerando
Concilio de Nicea en la promulgación de los 318 Padres reunidos en asamblea,
sin duda alguna se eliminará del corazón de los perplejos todo error y
ambigüedad. Pero cuando muchos se esfuerzan en reivindicar sus propias
interpretaciones como agudos, ingeniosos conocedores de la ciencia humana,
pero ignorantes de la enseñanza celestial, desprecian la tradición antigua de
los Padres con negligente pereza y anhelan ensombrecer la verdad con la
mentira.112
110
Wulcario era arcebispo de Sens.
Adriani, Epistola II Adriani papae ad Egilam. ca782, f4.
112
Ferebatur siquidem in ipsis vestris apicibus, quod multi in partibus illis in insipientiam atque cordis dementiam
devoluti nostrae relationis atque admonitionis series, secundum venerandi Nicaeni concilii institutionem de
Paschali festivitate editam contemnere audent: quod “si plenilunium quarto decimo scilicet die lunae (a sabbato
contigerit, alio die dominico videlicet quinto decimo lunae die) sanctum Pascha minime sit celebratum, sed,
praetermisso eodem quinto decimo die, in alio sequentis septimanae dominico, quod est vicesimo secundo lunae
die, Paschalis festi gaudia pronuntiant celebranda”. Quod si interius mente perpenditur magni ac venerandi Nicaeni
concilii trecentorum decem et octo sanctorum patrum simul convenientium promulgata Paschalium festivitatum
ratio, procul dubio omnis error omnisque ambiguitas ab haesitantium cordibus auferetur. Sed dum plerique propria
111
37
Ao entrar em contato com a diversidade cultural e espiritual de Córdova, Egila não
ficou apenas observando as práticas cometidas, mas também se tornou adepto do pensamento
trinitário do Migecianismo, formado por um homem da Igreja chamado Migecio113. Não se tem
conhecimento do cargo que Migecio tinha na Igreja, mas, de acordo com Echegaray, existem
vários indícios de que o clérigo estava atuante na região de Betica, a qual Egila estava
investigando.
Elipando, o primado de Toledo, estava recebendo as notificações problemáticas de suas
ovelhas e aproveitou a ocasião para findar as diversas práticas pagãs e o pensamento
Migecianista, convocando um concílio regional, o Concilio de Sevilha, em 784. Nas atas desse
concílio temos o “Símbolo de fé” com sua declaração Adocionista “Y por éste al mismo tiempo
Hijo de Dios y del hombre, hijo adoptivo en su humanidad, y no adoptivo en su divinidad,
redimió al mundo”114. Essa frase, dita por Elipando, trouxe à tona a concepção Adocionista e
seu pensamento sobre a dupla filiação de Cristo, sendo essa sua declaração o que desencadeou
o debate.
IMPÉRIO CAROLÍNGIO - FRANCOS
Os Francos115, neste momento sob o governo de Carlos Magno, tinham, nas Igrejas
locais, a base do seu poder sobre os extensos territórios que faziam parte de seu Império
Carolíngio, ou de regiões que eram aliadas. Ao contrário das Igrejas Hispânicas, que tinham
uma tradição educacional desde o período visigodo, com escolas episcopais e monacais, que
preparavam seus sacerdotes para atuarem educando e catequizando em localidades
diversificadas, dando-lhes certa autonomia em relação aos poderes laicos, na região franca,
graças às políticas do governo Carolíngio, a Igreja estava subordinada à aristocracia local.
Segundo Favier116:
commenta, ut acuti, perspicaces et mundanae scientiae gnari, spiritalis vero eruditionis ignari, vindicare desudant,
olitanam patrurn traditionem desidiosa ignavia praetereunt et vera mendaciis obumbrare inhiant.
113
Lembrando que Migecio professava uma interpretação variante sobre a Trindade: seu conceito defendia que o
Pai, o Filho e o Espírito Santo não eram a verdadeira Trindade, e, sim, seria composta por Davi como Pai, Jesus
Cristo como o Filho e Paulo como o Espírito Santo, algo que ia contra as decisões tomadas nos quatro primeiros
concílios ecumênicos.
114
Incipit Symbolum fidei Elipandinae. ECHEGARAY, Joaquin Gonzalez; CAMPO, Alberto Del; e FREEMAN,
Leslie G. SOTO, Jose Luis Casado. Beato de Liébana. Obras Completas y complementares II. op. cit. p. 415.
115
Os povos francos eram tribos autônomas quando Clóvis (481-511), em 496, converteu-se ao cristianismo
Niceniano Católico, e, com o apoio do Bispo de Roma Anastácio II, unificou as tribos e criou o reino franco com
a linhagem Merovíngia.
116
FAVIER, Jean. op. cit. p.113.
38
No começo do século VIII, é o próprio episcopado que parece desaparecer.
Quase não causa estranheza ver leigos ocuparem dioceses sem se preocupar
em receber o episcopado (Rennes, Nantes, Le Mans, Auxerre). Outros leigos
são ao mesmo tempo conde e bispo (Reims, Ruão, Paris, Bayeux). Todos
almejam transformar sua diocese em principado leigo. Alguns, como Godin,
bispo de Lyon, no começo do século VIII, se insurgem contra a autoridade
real e aspiram à independência.
MAPA 6 – Referente a divisão dos reinos na região onde se localizava os domínios de
Carlos Magno e os Estados Papais, no período da questão Adocionista. Mapa: Império
Carolíngio na época de Carlos Magno.
Fonte: https://www.educabras.com/media/aulafiles/ aula%20hist%c3%b3ria/mapaimperio
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Esse processo iniciou-se já durante o governo dos reis merovíngios, os quais se
utilizaram das concessões de cargos eclesiásticos a leigos para legitimarem seu poder nas
regiões sob seu domínio, tendo, assim, um controle nas eleições de bispos e seus colaboradores.
Dessa forma, seus aliados ficariam em posições favoráveis nas sedes episcopais, pois os bispos
dessas sedes se adequariam melhor às decisões do rei, impedido que possíveis rivais tivessem
poderes117. Tendo isso em vista, percebe-se que a Igreja Franca estava nas mãos dos nobres
117
Desse modo, quando a conjuntura política se alterava, as sedes mudavam de titular em função da nova situação.
Idem.
39
despreparados para as funções clericais, como fica claro, no relato do trecho anterior de
Favier118.
Esse processo, em que os leigos adquiriram poder dentro das igrejas, foi um
mecanismo de legitimidade territorial da realeza franca que também serviu como garantia de
sua licitude jurisdicional nas regiões sob seu domínio119.
Assim, mosteiros, dioceses e terras foram usados como instrumento político em troca
de apoio. Há diversos casos de acumulações de cargos que ocorreram, como se pode ver com o
sobrinho de Carlos Martel – filho de um meio irmão. Ele foi nomeado pelo tio para várias sedes,
tornando-se, ao mesmo tempo, bispo de Ruão, de Bayeux, de Lisieux e de Paris, e abade de
Saint-Denis, depois de Jumièges e de Fontenelle120.
Várias dioceses ficavam na mesma família aristocrática por gerações, além de diversos
bispos ficarem mais tempo nas guerras do que na prática religiosa. Dentro desse quadro, não
era incomum que muitos bispos assumissem seus cargos sendo analfabetos e sem nenhum
conhecimento sobre os dogmas da Igreja Cristã. Quando a dinastia carolíngia assumiu o poder
na pessoa de Carlos Martel, prefeito do palácio121 e príncipe122 dos francos123, essa situação
começou a ser alterada.
Durante o governo de Carlos Magno, a Igreja Franca passou por uma série de reformas,
a começar por uma organização na própria estrutura, cujo objetivo era tentar conter a autonomia
do clero secular em relação ao rei. Carlos obteve o apoio do arcebispo Bonifácio de Mogúncia
– este estava cristianizando as áreas que estavam fazendo práticas consideradas pagãs, algo que
estava ocorrendo devido a omissão do clero franco, que não estava se preocupando com seus
deveres eclesiásticos – o que podemos vislumbrar na afirmação do próprio arcebispo Bonifácio,
em seu relatório destinado ao Papa Zacarias, em 742:
Vossa Paternidade deve saber que Carlo Magno, duque dos Francos, mandou
que eu viesse e me pediu que reunisse um sínodo nesta parte do reino dos
Francos que está em seu poder. Ele permitiu corrigir e aperfeiçoar a disciplina
118
Ibidem.
Esse processo proporcionou uma presença muito forte da aristocracia nos quadros da mesma, além de uma
perda para a catequese do reino.
120
FAVIER, Jean. op. cit. p.114.
121
O prefeito do palácio era inicialmente um funcionário doméstico que organizava e mantinha a disciplina nas
casas aristocratas. No século VII, torna-se um cargo de administrador do palácio, ou seja, aquele que governa de
fato.
122
Príncipe não é só um título, é um conceito político de poder, em que se é um soberano, intermediário entre Deus
e o povo.
123
Seu filho Pepino, o Breve, em 751, se fez rei dos francos com a ajuda do Papa Estevão, que deu legitimidade
ao título de príncipe a seus filhos Carlos Magno e Carlomano.
119
40
eclesiástica, que vem sendo espezinhada e despedaçada há muito tempo, isto
é, há sessenta ou setenta anos.
Os Francos, segundo dizem os antigos, não realizaram nenhum sínodo, há
mais de oitenta anos, eles não têm arcebispo, em nenhum lugar estabeleceram
ou restauraram os direitos canônicos da Igreja.
Na maioria das cidades episcopais, as sedes são entregues a leigos gananciosos,
ou ocupadas por clérigos adúlteros, fornicadores e mundanos, que se
aproveitam do cargo de uma maneira profana.
Os bispos afirmam que não são fornicadores nem adúlteros, mas são beberrões
e negligentes, e preferem caçar. Os diáconos, ou pretensos diáconos, são
pessoas que vivem desde a adolescência na devassidão e no adultério, tendo
em seu leito quatro ou cinco concubinas, e que não têm, entretanto, vergonha
de ler o Evangelho e chegar ao sacerdócio, depois ao episcopado.124
Por volta de 743, Carlos Magno começa uma série de convocações de concílios
regionais, para os quais foram convidados o clero do reino, onde foi dada maior atenção à
nomeação dos abades e bispos, homens que, agora, deveriam ter conhecimento sobre a Igreja e
os textos bíblicos. Porém, essas mudanças não ocorreram de maneira pacífica, já que Carlos
estava recebendo auxílio de Bonifácio, que era um arcebispo estrangeiro, anglo-saxão e estava
à frente dessa mudança. As novas nomeações tiveram um cuidado maior por parte do rei e
passou-se a levar em conta o nível de instrução dos indicados. É preciso destacar que o controle
das arquidioceses e dioceses passou a funcionar como células fundamentais da organização
eclesiástica, mas, acima de tudo, possibilitava ao império aproximar-se da população. As
reformas iniciadas por Carlos também tiveram impacto no povo, visto que houve maior cuidado
com práticas religiosas125.
Portanto, essa reforma da Igreja, na verdade, significava uma restauração que
reconstruiria o clero para se adequar à nova realidade exigida e, desse modo, ter uma forte
evangelização como nos reinos vizinhos. Assim, a reforma carolíngia partiu de uma
preocupação em unificar costumes, normas, erradicação de heresias126 e disciplina dentro do
próprio clero, o que significou, em larga medida, combater versões de cristianismo divergente
em relação àquela apoiada pelo rei franco.
Durante o governo de Carlos Magno, a posição do rei dos francos como protetor da
Igreja Cristã tornou-se cada vez mais forte, e o papel dos concílios como lugar de construção
124
Relatório do arcebispo Bonifácio, documentação encontrada no livro de FAVIER, Jean. op. cit. p.118-119.
Devido as práticas pagãs que estavam ocorrendo nos campos do reino franco, devido ao abandono de assuntos
espirituais por parte dos clérigos com essa crescente atividade de paganismo com práticas supersticiosas, idolatria,
uso de amuletos e sacrifícios de animais, além de não cuidarem de suas ovelhas, os clérigos praticavam usura, e
não respeitavam hierarquias ou os dogmas da Igreja. Desse modo, o zelo no contato entre Carlos e seus clérigos
constituiu-se base territorial do seu reino com a reforma, combatendo as práticas e promulgando a catequização.
126
Como a do padre Adalberto, que dizia que havia recebido uma carta escrita pelo próprio Cristo, que lhe dizia
para negar os sacramentos e divulgar o culto às relíquias, que lhes foi trazida pelos anjos.
125
41
de uma legislação cristã passou a valer por todo território subordinado a ele, o que o fortaleceu
muito frente ao clero. Um dos concílios carolíngios mais relevantes para nosso estudo foi o de
Frankfurt, em 794, no qual Carlos Magno incumbiu Angilberto 127 de ir até Roma com o
propósito de mudar o que ficou decidido nos cânones do concilio ecumênico de Nicéia II em
relação ao uso de imagens – lá estas estavam proibidas. Carlos não concordou com o fato desse
concílio ser válido, visto que não estavam presentes seus bispos francos. O Concílio Franco de
794 teve, portanto, o sentido político de mostrar a força que o Império Carolíngio tinha sobre a
cristandade ocidental ao não se submeter à ordem de outras regiões.
Outra questão enfrentada por Carlos Magno foi a reforma educacional do clero franco,
a qual atribuía à Igreja o dever de educar seu corpo eclesiástico, como ocorria no extinto reino
visigodo, dando ao mais simples sacerdote, até bispos e arcebispos, competência em relação ao
conhecimento formal – o Trivium128 e o Quatrivium129 - e, a partir daí, o conhecimento sobre a
fé cristã.130
Abrindo escolas em mosteiros, nas catedrais e nos palácios sob a supervisão da
autoridade de bispos e abades, Carlos cercou-se dos intelectuais mais bem-dotados da Europa,
uma elite de eruditos que lhe deu suporte para as suas ambições políticas. Ele próprio tomou
lições de teologia e participou de disputas131 acadêmicas. Com a ajuda de outro clérigo, Alcuíno
de York, estabeleceu um empreendimento que aproximou o reino franco dos estudos da cultura
clássica greco-romana, possibilitando uma difusão intelectual e uma unificação dogmática e
litúrgica do quadro clerical. Isso tudo aproximou a vida erudita no reino franco ao que acontecia
na península Ibérica e no Império Bizantino.
O maior promotor dessa reforma foi o Abade Alcuíno de York, que fora convocado
por Carlos Magno para liderar essa reforma educacional132. Este veio para o Império Franco
para ser abade133 do Mosteiro de São Martinho na cidade de Tours. Além disso, tomava conta
127
Angilberto, Abade de Saint-Riquier, foi diplomata e amigo de Carlos Magno, teve dois filhos com Berta, filha
de Carlos.
128
Trivium ou ensino literário, composto pelo ensino das técnicas lógica, gramática e retórica.
129
Quadrivium ou ensino científico, composto pelo ensino das técnicas aritmética, música, geometria e astronomia.
130
Lima, Mauricio Cesar de. Introdução à história do direito canônico. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p.
60-61.
131
Disputatio é uma arte do discurso vivo, do discurso a dois. O diálogo aqui é agressivo, tem por escopo uma
vitória que não é predeterminada: é uma batalha de silogismos. BARTHES, Roland. Investigaciones retóricas 1:
la antigua retórica ayudamemoria. Espanha: Tiempo Contemporáneo, 1982. Passim.
132
No palácio de Aix-la-Chapelle, Alcuíno fundou uma escola que incluía, também nos estudos, um tratado, Libri
Carolini, no qual os francos se colocam contra o culto de imagens orientais, o que ficou decidido no concílio
ecumênico de Nicéia II, este apoiado pelo papa Adriano I, elaborado por ordem de Carlos Magno.
133
Abade é o título dado ao superior da ordem religiosa monástica. Alcuíno era abade de sete mosteiros: Ferrières,
Saint-Loup, Sens, Saint-Jose, Flavigny, Cormery e São Martinho de Tours. RICHE, Pierre. Daily life in the world
os charlesmagne. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1978. p.85.
42
de outros seis mosteiros, estando à frente de centenas de monges, aldeões andarilhos, escravos
e crianças, que eram enviados a esses lugares para receber educação formal134. Seus discípulos
tinham a função de se tornar a próxima geração de professores do rei.135 Alcuíno contou com
uma equipe de muitos assistentes para ajudá-lo na reforma desejada por Carlos, o que fica
evidente na carta que Elipando envia para Albuino (Alcuíno)136, onde escreve: “Procura no ser
tú, que se sabe que tienes 20.000 siervos137, uno de ésos, y por eso, ensoberbecido por las
riquezas, tu sabiduría no es la que desciende de lo alto, sino que es terrena, carnal y diabólica
(Sant 3,15)”138.
Essas reformas tiveram a função de organizar o quadro hierárquico da Igreja Franca,
que foi reestruturado nos paradigmas de Nicéia I, vinculando, assim, todo o clérigo franco a
uma diocese, sob a autoridade de um arcebispo. O combate às práticas pagãs ou/e formas
divergentes de cristianismo, práticas essas que muitas vezes estavam presentes no próprio corpo
eclesiástico, estava incluso entre as principais batalhas enfrentadas pelo Reino Franco, já que
isso quebrava a unidade cristã projetada por Carlos Magno. Não eram poucas as manifestações
religiosas consideradas heréticas pelos concílios, e estão entre estas as questões Migecianista e
Adocionista.
Dessa forma, vemos que a legitimidade do poder de Carlos Magno baseou-se, em
grande medida, na afirmação de uma unidade cristã que não se limitava aos territórios do reino
franco. É preciso destacar a grande influência que ele exerceu na Igreja cristã do Reino de
Astúrias, mas, principalmente, na sede romana da Igreja e dentro desse quadro. E, nesse sentido,
a questão Adocionista serviu largamente ao seu projeto expansionista territorial por abrir
caminho para que ele exercesse influência sobre a Igreja Hispânica. A atuação que Carlos
Magno exerceu sobre a região da Marca Hispânica e o apoio dado à diocese de Urgel deixaram
claro seu intuito de alcançar a Igreja Toledana. A questão Adocionista, no entanto, foi mais
complexa e acabou por derrotar suas pretensões de incorporar ao Império toda essa região à sua
tutela.
ESTADO PONTIFÍCIO DE ROMA
Lugar esse onde estudavam desde a decoração das passagens da Bíblia, até o ensino das sete artes liberais – em
Trivium e Quadrivium.
135
SYPECK, Jeff. Tornando-se Carlos Magno. Rio de Janeiro: Record, 2012. p.57.
136
Epistola Elipandi ad Albinum (Alchvinum).
137
A partir de 796, Alcuíno era o abade de São Martín de Tours, cuja abadia tinha 20 mil servos. Os dados são
verdadeiros e não foram negados pelo próprio Alcuíno. É a acusação que o prejudicou.
138 Elipandi, Epistola Elipandi ad Albinum (Alchvinum). c798. f4.
134
43
No início do século VIII, Roma estava inserida em uma complexa disputa entre
diversos grupos aristocráticos, além de estar sofrendo uma constante pressão vinda dos
Lombardos139. Somente quando Pepino III, o Breve (751-768), interveio militarmente na região
a favor da Igreja, foi que esta pôde equilibrar-se politicamente frente aos grupos com quem
disputava poder.
Frente a tantas ameaças, principalmente a presença dos lombardos, o Papa Estevão II
(752-757) pediu várias vezes ajuda a Constantinopla, mas esta não pôde responder devido aos
problemas militares que enfrentava em sua fronteira a oriente. A solução encontrada, diante do
derradeiro fracasso nas negociações com Astolfo, foi ir até os Alpes solicitar ajuda e proteção
carolíngia e procurar aliança com os francos, na pessoa de Pepino. O Papa tentou reaver a
aliança que existiu entre Pepino e o Papa anterior, Zacarias (741-752)140.
Como parte do seu acordo com os carolíngios, o Papa Estevão ungiu os filhos de
Pepino, uma ação que buscava legitimar a dinastia carolíngia no poder, dado a forma ilegítima
como assumiram o reino dos francos141. Não há dúvidas de que este acordo trouxe certa paz
para o Papado Romano, visto que os carolíngios lhes garantiram segurança em relação aos
lombardos e à própria aristocracia romana descontente com aqueles que dirigiam a Igreja142.
Por volta de 767, a cidade eterna143 é abalada por mais um golpe. Um grupo de nobres
elegeram Constantino, um leigo, para o cargo de Papa. Durante o conflito, o “falso” Papa –
Constantino – chamou pelo socorro de Pepino, o Breve – este era considerado, naquele
momento, o protetor do papado –, porém, ele não respondeu ao chamado. Enquanto isso, os
opositores do falso Papa pediram socorro aos lombardos. Estes, por sua vez, ajudaram na
139
Roma era vista pelos reinos vizinhos como um lugar ocupado por salafrários, pecadores, famintos, além de ser
um lugar com constantes guerras territoriais nos ducados entre os nobres romanos, visto que era uma região de
influência desde os tempos do Império Romano do Ocidente.
140
O Papa Zacarias apoiou Pepino na reivindicação ao trono contra a fraca nobreza merovíngia.
141
A coroa do rei dos francos era passada por linhagem sanguínea apenas de direito masculino. A quebra dessa
linhagem ocorreu com o rei Sigeberto III, que deixou a coroa para seu filho adotado, Childeberto, que tinha a
alcunha de “o Adotado”. Com isso, Pepino de Laden e outros demais aristocratas assassinaram Childeberto, “o
adotado”, e coloram o filho legítimo do rei, Dagobeto II, no poder. Isso manteve a linhagem de Pepino de Laden
ligada ao cargo de prefeito do palácio. Assim, controlando o reino, eles tinham o poder de fato, mas não o título
ou legitimidade. Somente com seu descendente, Pepino, o breve, que o título de rei dos francos foi legitimado com
o batismo da Igreja Romana. FAVIER, Jean. Op cit. Passim.
142
Nessa aliança surgiu a doação, por parte de Roma, com o documento falsificado da “Doação de Constantino”,
o que legitimou a fundação de um estado autônomo, cujo fundador seria Cristo no céu e o Papa, representante na
terra. Fundavam-se, assim, os Estados Pontifícios, que se mantiveram até o século XIX, e, com um documento,
tiraram o poder de Constantinopla sobre Roma e deram legitimidade ao poder do bispo de Roma sob as regiões a
ele subordinadas.
143
Designação dada à cidade de Roma. SCHÜLER, Arnaldo. Dicionário enciclopédico de teologia. Canoas: Ed.
ULBRA, 2002. p..113.
44
batalha, mas se aproveitaram do conflito interno, invadiram Roma e, assim, a Igreja pôde depor
o tal “falso” Papa e eleger um de sua vontade, na pessoa de Estevão III (768-772)144:
Cristóvão convocou todo o povo de Roma ao antigo fórum dos imperadores e
fez que os leigos e os clérigos, por unanimidade, elegessem um novo pontífice,
Estêvão III. Decidiu-se, além disso, que os leigos não participariam mais da
eleição do Papa. Nem por isso se podia decretar que os clérigos fariam a sua
escolha em perfeita liberdade.
Passados alguns anos desse incidente ocorrido em Roma, no ano de 772, Adriano I
(772-795) assume o pontificado com uma política de conciliação com os lombardos. Porém, o
líder destes – Didier –, temendo a perda de mandado sobre Roma, avançou sobre a cidade.
Diante disso, Adriano não viu outra solução além de recorrer à ajuda dos francos.
Carlos Magno, dando continuidade à parceria política entre os francos e o Papado
Romano, iniciado por seu pai, envia seus representantes à Roma para resolver a situação de
maneira diplomática, tarefa que logo é substituída pelo envio de seu exército. Isso ocorreu na
Páscoa de 774. A presença de Carlos na cidade Eterna lhe deu o caráter de um exarca145, uma
autoridade Bizantina que representava o Imperador. Ao alcançar a vitória sobre regiões antes
de domínio dos lombardos, Carlos tornou-se rei dos Francos e dos Lombardos, além de ter o
apoio146 do Papa Adriano.
Com a aliança política e militar entre Carlos e Adriano, eles se tornaram amigos,
chegando a se corresponder frequentemente 147 . Essa afinidade ajudou Carlos Magno a dar
continuidade em sua reforma educacional, garantindo um suprimento de livros e clérigos
intelectuais vindos de lá. Como relata Favier148:
Roma nada tem de uma capital intelectual. Mas conta com papas letrados, os
monges dos monastérios gregos introduzem textos desconhecidos até então, e
os clérigos do entourage pontifical animam ao mesmo tempo o scriptorium de
Latrão e uma verdadeira escola de canto sacro e de poesia litúrgica, a scola
cantorun, amplamente inspirada nos exemplos bizantinos. Boa parte da rica
biblioteca — mais de Cem volumes — reunida no século VI no monastério
calabrês de Vivarium pelo genuíno aristocrata romano que era Cassiodoro foi
salva da dispersão pelos papas, e foi graças a essas aquisições que a biblioteca
144
FAVIER, Jean. op. cit. p.176.
Delegado do imperador de Constantinopla, no Ocidente; Legado do patriarcado grego. Dicionário Online de
Português Michaelis. Disponível em < http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=exarca>.
Acesso em: 22 de dez. de 2018.
146
Em um desses casos, quando Carlos roubou a Bavária de seu primo Tassilo, Adriano o ameaçou de excomunhão,
apresando, assim, a rendição de Tassilo.
147
Conversam sobre tudo, desde como lidar com bispos, até reparos de goteiras nos telhados da Igreja. SYPECK,
Jeff. op. cit. p. 34.
148
FAVIER, Jean. op. cit. p.393.
145
45
de Latrão se fez tão rica em manuscritos da Antiguidade clássica e cristã. Um
papa como Paulo I, irmão e sucessor, em 757, de Estêvão II, acha por bem
enviar livros gregos como presente a Pepino, o Breve. Isso significa que ele
dispõe de um certo número deles em sua biblioteca que vêm de Roma que lhes
dá valor.
O período de presença lombarda na Península Itálica paralisou os centros religiosos
dos Estados Pontifícios e diminuiu a supervisão dogmática sobre as dioceses. Porém, a aliança
com os carolíngios permitiu que Roma buscasse se posicionar como árbitro sobre as ações das
Igrejas por todo o domínio carolíngio. Sua influência se tornou base para a realização efetiva
na reforma clerical que Carlos desejava.149
É nessa perspectiva que Carlos pôde se colocar sobre um conflito dogmático que
ocorria fora das regiões sobre sua autoridade, como era o caso da questão Adocionista. Na
tentativa de impor seu poder na Hispânia, Carlos recorreu ao papado para ser capaz de lidar
com a região de fronteira, que, por meio de batalha contra os moçárabes, não conseguiu avançar
além de Gerona e Urgel.
Adriano, apoiado pelos carolíngios, se sentiu no direito de se envolver em assunto de
outras Igrejas de reinos vizinhos. Inicialmente, não havia conseguido permissão para se
envolver em assuntos eclesiásticos na Hispânia, visto que, como relatamos, o arcebispo de
Toledo – Cixila – não permitiu a intromissão, mas, seu sucessor, o arcebispo Elipando,
autorizou, ao deparar com os assuntos lá encontrados, vários relatos sobre práticas pagãs e
heréticas que estavam sendo cometidas na Península Ibérica, o que culminou, por fim, em
Adriano tomando partido dos carolíngios na questão Adocionista.
A polêmica Adocionista permaneceu, por muito tempo, como elemento de debate entre
Igreja Romana, Hispânica e Franca, e, por todo esse tempo, a situação em Roma continuou
conflituosa. Após a morte de Adriano I, o clero romano, temendo que as famílias poderosas de
Roma tentassem nomear seu próprio papa, elegeram alguém de sua escolha para o cargo, em
um processo que durou apenas dois dias. Em 26 de dezembro de 795, Leão III (796-816 ) foi
eleito e, para descontentamento dos nobres romanos, Leão era filho de uma família romana não
nobre, padre por vocação e burocrata por treinamento. Ele fez de seu primeiro compromisso
governar para o clero e não para os nobres, como informa Favier150:
Em Roma, mais uma vez reinava a anarquia. A eleição do romano Leão III,
em 26 de dezembro de 795, se dera por unanimidade dos eleitores, mas ela
149
HALPHEN, Louis. Carlomagno y el Imperio carolingio. Madrid: Ediciones AKAL Universitaria, 1992. p.
87-88.
150
Ibidem, p.481.
46
não tinha a mesma unanimidade na cidade. A política local do papa logo deu
azo a contestações, e toda uma facção se agrupou em torno dos sobrinhos de
Adriano I. Para dificultar ainda mais as coisas, o povo punha em dúvida a
moralidade do novo pontífice. Na verdade, a aristocracia romana, a
aristocracia feudal, estava excluída das grandes decisões desde a morte do
papa Adriano I, e Leão III privilegiada os clérigos da administração central.
Em suma, abria-se um conflito entre a Cidade e o palácio de Latrão.
Leão III não teve com Carlos Magno o mesmo tipo de amizade que seu antecessor
Adriano. Embora a aliança tenha sido mantida, o papa esteve sempre numa situação de
subordinação ao rei dos francos.
Em cartas a Angilberto, Carlos Magno o encorajava a aconselhar o Papa a fortalecer
sua imagem perante os cristãos, visto que circulavam muitos boatos sobre sua fragilidade
política, o que poderia colocar em perigo os Estados Pontifícios, na medida em que abriria
espaço para novas invasões de outros povos, ou fomentaria o surgimento de novas insurreições
entre a aristocracia romana.
Essa situação de fragilidade da figura do Papa fica muito clara quando analisamos a
participação dele nos concílios da Igreja Franca. A maioria deles conta com seu acordo, mas
ele, ou seus representantes, não participaram efetivamente dos debates. A questão Adocionista
travada na Península Ibérica é um exemplo dessa relação que se configurou durante o papado
de Leão III, visto que, aqui, o papado foi obrigado a se envolver na questão a pedido de Carlos
Magno. Leão teve de chamar o concilio de Roma de 798 com o intuito de impedir a progressão
das ideias Adocionistas na Península.
Essa situação se agrava quando o Papa Leão III vê seu cargo ameaçado pela
aristocracia de Roma e é obrigado a pedir apoio a Carlos Magno para permanecer no cargo. A
questão se tornou tão tensa em Roma que Leão chegou a ser atacado fisicamente por seus
opositores:
Na procissão o cortejo do papa estava a dois passos de São Lourenço, diante
da igreja dos Santos Estêvão e Silvestre (atualmente São Silvestre in Capite),
quando caiu numa emboscada. Sicários derrubaram o pontífice do cavalo,
surraram-no e deixaram-no estendido no chão. Depois arrastaram-no até a
igreja, onde o esperavam os organizadores do atentado. Eles tentaram obter
do Papa urna abdicação. O papa informou depois que, para intimidá-lo,
ameaçaram-no de cortar lhe a língua e furar lhe os olhos. 151
151
Ibidem. p.482.
47
Leão chegou a ser aprisionado por seus opositores no monastério de Santo Erasmo e
sobreviveu somente porque contou com a ajuda de alguns fiéis para resgatá-lo. Sem ter outra
escolha, repetiu o que fizera seus antecessores Estevão II e Adriano I: pediu ajuda ao rei franco.
Embora Leão tenha conseguido escapar da armadilha de seus opositores, estes não o
deixaram em paz, começando uma campanha de difamação da sua figura, com acusações de
adultério, perjúrio e heresia. Carlos Magno pareceu ter visto nessa fragilidade do Papa o
momento ideal de se legitimar como protetor da Igreja de Pedro. Ele, então, ajudou Leão III a
retomar o poder papal para que este se reafirmasse no cargo. Em troca, foi coroado Imperador
no natal de 800, na Basílica de São Pedro, símbolo máximo de uma unidade que começa a se
configurar: a Cristandade.
É nesse contexto que o Adocionismo figura não apenas como uma questão dogmática,
mas como um forte caráter político. Pensando nisso, trabalharemos no próximo capítulo os
elementos constituintes desse debate, tratando de questões como: heresia, dogmas, hierarquia,
os tipos de Adocionismo e como esses elementos fizeram parte das discussões como
argumentos tanto de defesa, como de acusação dessas ideias.
48
2. ENTRE DISCURSOS E DISPUTAS: ORGANIZAÇÃO CLERICAL,
CONTROVÉRSIAS, DOGMAS E HERESIAS
O dom da fala foi concedido aos homens não para
que eles enganassem uns aos outros, mas sim para
que expressassem seus pensamentos uns aos
outros.
(Santo Agostinho)
OS CONCÍLIOS TRATAM DA VONTADE DE DEUS?
Como pudemos ver ao longo do capítulo anterior, a questão Adocionista envolveu
diversas pessoas da hierarquia da Igreja latina ocidental e do quadro político que compunham
os reinos Franco e de Astúrias. Todas elas são parte da estrutura e da dinâmica de poder que
englobavam as relações entre Igreja e realeza na Alta Idade Média. Essa dinâmica, sem dúvida,
é um fator de grande relevância dentro desses debates e é algo possível de vislumbrarmos no
conteúdo das cartas trocadas entre os personagens envolvidos, assim como das atas dos
concílios que trataram do assunto.
Dessa forma, faz-se necessário pensarmos como os discursos que construíram o
conceito de ortodoxia, heresia e hierarquia clerical agiram de forma a legitimar ou esvaziar o
poder político de determinado grupo nessa região hispânica. Precisamos trazer para discussão
o foro em que os debates sobre essas questões ocorreram; como já dissemos, as assembleias
conciliares com suas atas e cânones. Para tanto, faremos algumas considerações sobre o papel
dos concílios no que tange à função legitimadora que eles assumiram no processo de definição
e fortalecimento da hierarquia eclesiástica, assim como do poder dos soberanos e da Igreja nas
suas regiões de domínio.
Os concílios foram fundamentais à Igreja desde suas primeiras décadas de existência,
a começar pelo “corpo apostólico” ou o Concílio de Jerusalém em 49. Eles iniciaram suas
primordiais decisões, no entanto, tornaram-se algo mais relevante para a afirmação do
cristianismo a partir do século IV, quando o poder secular ganhou papel ativo nas decisões
dessas assembleias com a participação de Constantino no I concílio de Nicéia, em 325. Para
Jefferson Ramalho, podemos ver, a partir daí, um processo de institucionalização e adesão da
Igreja a uma estrutura de poder política interna com traços imperiais:
49
Enquanto boa parte da população e sua identidade religiosa permaneceram
sincréticas por décadas, a religião cristã adotaria, ainda que aos poucos, o
modelo administrativo imperial. Até a terminologia dessa Cristandade
nascente seria, em meio a uma simbiose, retirada da administração romana.
Termos imperiais foram apropriados e passaram a ganhar novos significados.
Diocese (δηνίθεζηο), por exemplo, é uma palavra que exemplifica muito bem
esse processo de apropriação. Utilizado no Direito Romano, era um termo que
fazia referência à direção, ao governo, à administração local de um território
e à jurisdição nele adotada e aplicada. Além disso, também eram denominadas
dioceses as divisões administrativas das várias províncias imperiais. Um
exemplo é a organização, sob ordem de Diocleciano, de doze dioceses em todo
o território imperial romano a partir do ano 300. Ao adotar uma política interna
centralizada, a religião cristã passaria a identificar como diocese toda unidade
geográfica que tinha um bispo à frente de sua administração (...)152
A essa realidade, soma-se a forte tendência aos regionalismos que marcam a política
do Baixo Império, como aponta Orlandis:
(...) La Iglesia, hasta entonces fundamentalmente urbana, pudo entonces
extender su accion a los campos y empreender la catequeses de la mayoritarias
poblaciones rurales. Hizo entonces su aparición uma “geografia eclesiástica”,
com unas divisiones que establecían los limites de los distritos territoriales. Y
a este fin, la Iglesia, em vez de inventar ex novo, resolvió acomodar sus
estructuras territoriales a las civiles vigentes en el Bajo Império.153
Esses regionalismos configuraram-se, também, no quadro das normas dogmáticas,
litúrgicas e hierárquicas da Igreja, o que pode ser acompanhado na relação conflituosa que
muitas vezes encontramos entre as atas conciliares de uma sede metropolitana para outra. O
historiador Geneviève Buhrer-Thierry nos adverte para o fato de que os concílios se tornaram,
nesse contexto histórico, um instrumento de governo nada negligenciável de poder:
(...) os concílios de Toledo do período visigodo inauguraram o princípio de
acordo com o qual o concílio é ao mesmo tempo um ato religioso – que se
desenvolve de acordo com uma ordo e uma liturgia bem definida -e um ato
político, ao qual são suscetível de participar não somente clérigos, mas
também os leigos, ou pelo menos alguns dentre eles. (...).154
152
RAMALHO, Jefferson. Constantino nas palavras e nas coisas: a (não) cristianização imediata do império
romano a partir das diferenças e das semelhanças entre representações politico-religiosas de fontes
literárias e de fontes arqueológicas (312-337). Tese (Doutoramento em história) - Universidade Estadual de
Campinas. São Paulo: 2018. p.331-332.
153
ORLANDIS, José. Consideraciones históricas sobre la disciplina de los concílios provinciales. In: Cuadernos
de Historia del Derech OPSIS (Online), Catalão-GO, v. 18, n. 1, p. 21-43, jan./jun. 2018o, 2004, vol.
Extraordinário, pp. 203-210.
154
BUHRER-THIERRY, Geneviève. Coleções canônicas e autoridade dos bispos na Alta Idade Média. In: Revista
Signum, 2016, vol. 17, n 2., pp. 60-68, p. 63.
50
O alcance político dessas assembleias fica claro quando verificamos que o discurso
que se constrói em suas atas são moldados de tal forma ao ponto de serem entendidos como
uma regra universal, e não apenas regional. Assim, embora se possa definir essas assembleias
como provinciais, gerais ou ecumênicas, é preciso ter presente que essa nomenclatura nem
sempre reflete a realidade, visto que um concílio regional poderia ser registrado como
provincial ou ecumênico. Tem-se sempre a intencionalidade de impor uma ideia de verdade
absoluta, ortodoxa:
(...) os concílios têm por objetivo fazer com que a voz da Igreja, cujas decisões
são universais, seja escutada. Todo concílio, mesmo restrito, é uma expressão
do collegium de bispos que baseia a sua autoridade na origem apostólica do
“concilio de Jerusalém”. O que se ouve neles é a voz dos apóstolos, escolhidos
por Deus para espalhar a Boa Nova e conduzir o povo cristão: “O Espírito
Santo e nós mesmos decisimos...” (Atos, 15, 28). (...).155
Vale destacar que essas assembleias se tornaram foro decisório nas questões
disciplinares, doutrinal e litúrgico-pastoral de alcance variável, mas também eram arenas
políticas, tensionadas por rivalidades eclesiásticas locais e/ou regionais e pela ingerência de
imperadores ou monarcas156.
Se é difícil saber, por meio de suas atas, as formas tomadas pelo debate, uma vez que
o que temos preservado é apenas seu resultado final, no caso do nosso trabalho, as cartas
trocadas entre os personagens envolvidos na questão Adocionista são um complemento que em
muito nos favorece na compreensão de como esses concílios agiram a favor da consolidação do
poder episcopal. Isso frente aos sucessivos episódios de afirmação ou destituição de famílias
aristocráticas que disputavam os cargos eclesiásticos e também da importância que tiveram
nessas disputas, a imposição e uniformização de elementos doutrinais e litúrgicos.
Nessa perspectiva, também é preciso pensar um pouco sobre a dinâmica de
funcionamento dos concílios regionais e daqueles chamados ecumênicos, no que tange à
questão da sua autoridade. A essas assembleias, é atribuída uma narrativa, em que pesa a ideia
de que nelas estejam estabelecidas a ordem dada por Deus ao universo. É esse o princípio que
está por trás da palavra escolhida para definir os concílios, que deveriam ser considerados
superiores a todos os outros por seu caráter mais amplo de participação dos membros da Igreja:
ecumênico (do grego Oikoumené), mundo habitado. Essa nomenclatura foi agregada aos vinte
155
Idem, p. 64.
SILVA, Paulo Duarte. Secundum Statuta Canonum: Poder e Memória nos Concílios do sul da Gália (124-529).
In: OPSIS (Online), Catalão-GO, v. 18, n. 1, p. 21-43, jan./jun. 2018, p. 24.
156
51
e um concílios 157 e à tradição reafirmada sobre eles, que os coloca na origem da fé cristã.
Podemos fazer, aqui, um paralelo com a afirmação de Emilio Gonzáles Ferrín sobre a
construção de dogma e ortodoxia ao estudar as origens culturais do Islã:
O dogma e a ortodoxia se apresentam sempre avalizado pela tradição, mas são,
na verdade inovações ou ao menos seleções isoladas, discriminatórias e
grande parte dessas tradições. Nessa larga evolução compartilhada e
simbiótica de tantos possíveis judaísmos, cristianismo e islã forjaram-se
determinadas ortodoxias mediante o processo recorrente que pode ser definido
como continuidade retroativa que teremos em conta a todo o momento. (...)
Assim, na invenção de uma tradição será essencial administrar a chamada
autoridade discursiva sobre a qual germinará a verdade.158
Esse peso é atribuído aos concílios considerados ecumênicos, o que deu a eles o
mesmo valor de testemunha atribuído às Escrituras Sagradas e que os colocou como
legitimadores da vontade divina. Um exemplo claro disso pode ser visto no próprio discurso
construído pelos dois lados da questão Adocionista: ambos partem do Concílio de Nicéia para
testemunhar a verdade das suas ideias quanto à natureza de Cristo. Segundo Umberto Eco, na
Idade Média, o argumento apoiava-se somente no testemunho do passado, e este tinha uma
cronologia bastante vaga. Assim: Para a Idade Média, o problema da tradição, tanto em
historiografia quanto em hermenêutica, é que ela não deve ser reconstruída: ela já está dada
desde o início, e se trata apenas de reconhecê-la e de interpretá-la de modo correto.159
Por conseguinte, embora o poder atribuído aos concílios ecumênicos não tenham
diminuído a necessidade de que diversos concílios de âmbito regional ocorressem nas Igrejas
das múltiplas regiões que compunham o Império Romano na sua parte Ocidental 160 , eles
serviram como testemunhas, a partir das quais se poderia dizer coisas verdadeiras, na medida
157
Para melhor elucidação optaremos, pela nomenclatura concílios regionais, para tratar de concílios de uma
determinada região e ecumênicos para tratar dos vinte e um concílios gerais.
158
GONZÁLE FERRÍN, Emílio. A Angústia de Abraão. As origens culturais do judaísmo, do cristianismo e
do islamismo. São Paulo: Editora Paulus, 2018, p. 6.
159
ECO, Umberto. A falsificação na Idade Média. In: Da arvore ao Labirinto. Estudo histórico sobre o signo e a
interpretação. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013, pp. 214-238, p. 231.
160
Segundo Peter Brown é preciso ter sempre presente que a chamada Crise do Império Romana, não foi uma
crise generalizada que pôs fim a toda estrutura romana. As dificuldades enfrentadas pelo Império foram
respondidas com diversas soluções que modificaram sua política administrativa, tendo como uma das
consequências a formação de regionalismos que se caracterizavam por elementos culturais políticos, sociais e
econômicos bastante diversos uns dois outros. a Igreja Cristã respondeu a esta realidade: (...) Las iglesias cristianas
de cada región (pese a sus frecuentes intercâmbios y a la afirmación teórica de formar parte de uma institución
universal, la Iglesia, com i mayúscula) eran, como cualquier outro rasgo del mundo romano, el produto de
condiciones locales (...) las iglesias regionales de Occidente procedían de accuerdo com su próprio ritmo. Por lo
general, desconocían los asuntos de sus vecinos (...). BROWN. Peter. Por el ojo de una aguja. La riqueza, la
caída de Roma y la construcción del cristianismo em Occidente (350-550 d. C). Barcelona: Editora Acantilado,
2016, p. 21-22.
52
em que estas fossem sustentadas por uma auctoritas. E, se é possível que ambos os lados da
questão Adocionista tenham se utilizado desse mesmo testemunho, é justamente porque, como
novamente nos afirma Umberto Eco, (...) caso se suspeite de que a auctoritas não sustenta a
nova ideia, procede-se à manipulação de seus testemunho, porque a auctoritas tem um nariz
de cera.161
O fato é que os concílios regionais vão utilizar-se desses mecanismos para fazer valer
uma certa unidade cristã, em um contexto de realidades regionais sociais, culturais e políticas
bastante diversificado e complexo que compunha a realidade das Igrejas cristãs na Alta Idade
Média. Para Geneviève Buhrer-Thierry:
(...) estamos diante de uma enorme quantidade de textos que fazem referências
a autoridades variadas, sem que nenhum deles pretenda apresentar um resumo
do direito da Igreja, como será o caso do Decreto de Graciano, no século XII.
No limite, toda a coleção canônica da Alta Idade Média é uma coleção
“privada”, que o bispo compôs de acordo com a sua vontade, para dispor do
que lhe parece útil dentro do seu raio de ação pastoral e para se encontrar na
“floresta inextricável” de diferentes prescrições. (...).162
Essa prerrogativa também foi importante na construção de debate nas dinâmicas de
poder ligadas à hierarquia e atributos de funções dentro do clero, assim como na relação de
poder que se configurava entre os membros do corpo eclesiástico, e deste para com os reis. Para
Michael Gaddis, é sabido que os bispos que governavam as Igrejas compartilhavam de
autoridade e legitimidade que repousavam sobre entendimentos comuns de hierarquia, primazia
e deferência, conceitos articulados à tradicional linguagem secular de honra e dignidade.
Todavia, a questão que se coloca como essencial em nosso trabalho não é como esses bispos
operavam dentro de suas próprias cidades e congregações, mas como eles se relacionavam entre
si através da estrutura de poder maior da Igreja, utilizando-se tanto das regras formais, como
daquelas informais que costumavam governar tais interações163.
Para o historiador, essas relações poderiam se mostrar um quesito como as
expectativas de cortesia recíproca exigidas entre bispos para dar plena fé e crédito às ações, por
exemplo, de excomunhões e/ou disciplinares realizadas pelos seus colegas. Porém, o caso em
que nos debruçamos mostra que uma atitude contrária não era tão incomum, visto que, em
muitos dos momentos que compõem a questão Adocionista hispânica, os bispos envolvidos não
161
ECO, Umberto. op. cit. p. 234.
BUHRER-THIERRY, Geneviève. op. cit. p. 68.
163
GADDIS, Michael. The Political Church: Religion and State. In: ROUSSEAU, Phillip (Ed.). A companion
to Late Antiquity. Oxford: Blackwell, 2009. pp. 512-524, p. 514.
162
53
respeitaram os limites regionais de seu poder, não apenas mantendo comunhão com pessoas
excomungadas de outras arquidioceses, algo evidente na fala do Papa Leão III no concílio de
Roma de 798:
El obispo León dijo: «¿Quién no ve que ese desgraciadísimo e infeliz hereje,
que no sólo se hizo heresiarca hace tiempo ladrando sobre la adopción en el
Hijo de Dios, sino que también se hizo perjuro por una, dos y tres veces? Pues
primero en el concilio de Ratísbona (792), que se realizó por mandato del muy
ilustre y ortodoxo hijo nuestro Señor rey Carlomagno, confesó sobre esta
herejía que se había equivocado y anatematizando a quien se atreviera a decir
que el Hijo de Díos Señor nuestro Jesucristo era según la carne adoptivo. Y
nuevamente bajo nuestro predecesor de santa memoria Señor Adriano papa,
enviado por el Señor Carlos muy ilustre gran rey, él mismo misérrimo hereje,
infeliz obispo, enseñado por el mismo san-to obispo, hizo en Prisión un librito
ortodoxo anatematizando y confirmando, entre las restantes cosas, que el Hijo
de Dios no era adoptivo, como había dicho, sino "confieso a nuestro Señor
Jesucristo propio y verdadero Hijo de Dios". Por eso poniendo ese mismo
librito ortodoxo suyo sobre los sacrosantos misterios de Dios, en nuestro
Palacio patriarcal, juró que así lo defendía y confesaba. Y de nuevo poniendo
ese mismo ortodoxo librito suyo en el altar de la confesión sobre la tumba de
San Pedro apóstol, de la misma manera también allí juró que nunca se
atrevería a llamarle adoptivo, sino que "sostengo y confieso que es Hijo de
Dios propio y amado". Pero después transgrediendo la ley de Dios excelso se
hizo perjuro, huyendo a vivir entre los paganos que estaban de acuerdo con él.
Pero ni tampoco respetó que aquel santo y ortodoxo concilio, que sobre esta
cuestión se celebró en presencia del muy ilustre Señor Carlos y ortodoxo gran
rey, contuviera suficientemente la recta fe; y lanzándolos a las cadenas del
anatema condena-ron con sus secuaces al mismo Félix, si persistía en su
error.164
Nesse documento, vemos que o Papa afirma que o bispo Félix havia sido condenado
por suas ideias Adocionistas e, mesmo assim, fugira para outra região, onde obteve apoio dos
164
Leo episcopus dixit: «Quis non videat miserrimum illum et infelicem haereti. cum, quo non solum haeresiarcha
dudum de adoptione in filio Dei latrans factus est, sed etiam et semel et bis et tertio periuratus effectus est? In
primis namque in Ratisbonensi concilio; quod per iussionem praefulgidi et orthodoxi filii nostri domini Caroli
magni regis actum est, confessus est se ex ipsa haerese male dixisse et in ipso conscripsit concilio, anathematizans
quo ausus fuerit dicere filium Dei dominum nostrum Iesum Christum adoptivum secundum carnem esse. Et iterum
sub sanctae recordationis praedecessore postro domno Hadriano papa, directus a domno Carolo praefulgido magno
rege, ipse miserrimus haereticus, infelix episcopus, doctus ab eodem almo praesule, fecit illum orthodoxum in
vinculis libellum, anathematizans et confirmans inter cetera nequaquarn filium Dei adoptivum esse, sicut dixerat,
sed "proprium et verum dorninum nostrum Iesum Cristum filium Dei confiteor". Unde et ipsurn orthodoxurn suum
libellum super sacrosancta Dei mysteria in nostro patriarchio ponens iuravit sic tenere et cofiteri. Et iterum in
confessione super corpus beati Petri apostoli ipsum ponens orthodoxum suum libellum similiter et illic iuravit
nequaquam se dicere a.udere adoptivum, sed "proprium et dilectum filium Dei teneo et confiteor". Et postmodum
transgressus legem Dei excelsi fugiens apud paganos consentaneos periuratus effectus est. Sed nec illud metuit
almum et orthodoxum concilium, quod in conspectu domni Caroli praefulgidi et orthodoxi magni regis pro
huiusmodi re gestum est, satis rectae fidei continere; et anathematis vinculis iaculantes eundem Felicem, si in ipso
errore persisteret, cum sequacibus suis condemnaverunt. Concilium Romanum. Octobr. 23 de 798.
54
membros da Igreja regional e continuou a pregar suas ideias que haviam sido condenadas como
heréticas na sua diocese de origem:
Lo que dices en tu escrito, que él solo (Félix), con unos pocos afines a su
creencia, está en contra de lo que defiende toda Hispania, acuérdate que el
Señor dijo: Es ancho, espacioso el camino que lleva a la perdición y son
muchos los que transitan por él. Mas ¡qué estrecho y angosto es el camino
que lleva a la Vida!, y son pocos los que la encuentran (Mt 7,13-14).165
Nesse trecho da carta do primaz da Hispânia, vemos um jogo de palavras em suas falas
ao relatar as respostas das indagações de Alcuíno, o que deixa claro o apoio de Toledo a Félix
para que este permanecesse propagando o Adocionismo, contrariando a decisão do concílio
franco. Todas essas questões nos coloca frente a problemas importantes para o presente trabalho:
qual o peso da lei que se cria a partir das atas de um concílio dentro das relações políticas dos
grupos que disputavam o poder sobre as regiões estudadas? Quais seriam seus limites de
atuação? Quem teria autoridade para presidi-lo ou testemunhá-lo?
A QUEM CABE O DIREITO DE PRESIDIR UM CONCÍLIO?
Um dos primeiros concílios a tratar da temática da hierarquia do clero na Hispânia foi
um concílio regional166 que aconteceu na cidade de Ilíberis/Elvira167, por volta do ano 300168.
Pode-se dizer que o concílio de Elvira foi o primeiro formatador da Igreja Hispânica, visto que
aprovou cânones sobre a política da Igreja e das práticas cristãs 169 . De acordo com Sayas
165
Quod dicis in scripto tuo quia ipse solust sum cum paucis in ea credulitate, quam omnis Hispania retinet,
memento Dominum dixisse: Lata et spatiosa via est quae ducit ad mortem, et multi sunt qui intrant per eam. Quain
arcta et angusta via est quae duapauper, ad vitam, et ijauci sunt qui inveniunt eam. Elipando, Epistola Elipandi ad
Albinum (Alchvinum). 798, f4.
166
Os concílios nacionais ou regionais foram convocados pelo arcebispo do reino/império. Neles, participavam
apenas os clérigos pertencentes à província eclesiástica, delimitada dentro de uma região ou reino.
167
Ilíberis, ou Elíberis, ou Elvira, é uma cidade localizada onde atualmente fica a cidade de Granada, na Espanha.
A cidade teve seu apogeu no período em que o Império Romano dominava a Península e desapareceu junto com
o Império do Ocidente. O Concílio de Elvira foi o primeiro grande concílio a ser realizado na Península Ibérica,
onde esteve presente um grande número de representantes do clero Hispânico. Dentre eles, havia 19 bispos e 26
presbíteros. As temáticas abordadas foram diversificadas entre casamento, batismo, idolatria, jejum, excomunhão,
cemitérios, vigílias, usuras, missas, relações dos cristãos com os pagãos, judeus e hereges, o culto ao imperador e
etc. SCHAFF, Philip. History of the christian church, volume I: apostolic Christianity. A.D. 1-100. United
States of America: Benediction Classics, 2010. p.307.
168
300 ou 306, existem divergências acerca da data exata desse concílio hispânico.
169
Percebe-se a diversidade de opiniões dogmáticas no cânone 51 do concílio de Elvira: “Se um cristão batizado
provém de qualquer heresia, de nenhuma maneira seja promovido ao clero, inclusive se alguns tiverem sido
condenados no passado, que sejam depostos de seu cargo sem demora” - Ex omni haerese fidelis si venerit, minime
est ad clerum promovendus, vel si qui sunt in praeteritum ordinari, sine dubio deponantur -. Esse cânone mostra
que as questões de desvio da fé não estavam apenas entre aqueles que se aproximavam das práticas pagãs, mas
também era preciso manter vigilância sobre os cristãos que estavam dentro da Igreja. CARVALHO JÚNIOR,
55
Abengochea e Varela,170 as atas de Elvira têm os cânones mais antigos e conservados de um
concílio, e podemos dizer que eles contém muita informação relevante sobre a Igreja dessa
época por terem chegado aos 81 dos cânones de suas atas originais.171 Após o concílio de Elvira,
em 300, vários sínodos172 seguiram produzindo algumas normas canônicas, porém, somente
com o concílio ecumênico de Nicéia, em 325, - este presidido pelo Imperador Constantino -,
foi possível ter um primeiro concilio que tinha a validade para toda a Igreja, sendo o primeiro
a ser considerado ecumênico.
A decisão do Imperador Constantino em realizar um concílio ecumênico teve como
intuito criar uma concordância através do consenso para questões em que o corpo eclesiástico
da Igreja se punha em conflito. Tentou-se, ali em Nicéia173, a proposição de normas que dessem
conta de organizar a Igreja Cristã em um só modelo de fé. Ao fazê-lo, permitiu-se que esta
visse a si mesma face a face, pela primeira vez, como portadora de uma lei que deveria ser
compreendida por seus membros como universal.174 Não há dúvidas de que esse concílio contou
com uma ampla participação de bispos, porém, devido à distância de Nicéia em relação às
Igrejas a Ocidente, a maior parte dos representantes eram das regiões da Ásia, Síria, Palestina,
Egito e Grécia. O bispo de Roma da época, Silvestre, não esteve presente e sua justificativa foi
exatamente a grande distância entre Nicéia e Roma, sendo representado 175 por dois padres,
Vitus e Vicentius. Essa ausência de representantes de Igrejas do Ocidente, assim como do
próprio bispo de Roma nos concílios tardo-antigos, foi muito frequente e sempre justificada
devido às dificuldades da viagem e os altos custos para o deslocamento.
As questões debatidas nesse concílio, ao menos o que vislumbramos por meio dos
cânones que chegaram até nós (vinte cânones), mostram uma ampla diversidade de assuntos
que, provavelmente, foram impostos pelas dificuldades enfrentadas no cotidiano das Igrejas.
No que tange à questão da hierarquia eclesiástica, destacamos os cânones quatro e dezoito (Vide
Anexo A), que tratam das competências e jurisdições dos eclesiásticos. Respondendo a uma
realidade material em que o bispo metropolitano configurava-se como uma figura muito
próxima àquela do governador de província romano, essa norma legislou de modo a colocar a
Macário Lopes de. Gentios, judeus e hereges: os não cristãos nos concílios de Elvira (306) e Arles (314). Romanitas.
Revista de Estudos Grecolatinos, n. 1, p. 54-70, 2013. p.55
170
SAYAS ABENGOCHEA, Juan José; VARELA, Manuel Abad. Historia antigua de la península ibérica y
visigoda. Madrid: universidad nacional de educación a distancia, 2013. p.105.
171
TEJADA Y RAMIRO, Juan. Coleccion de cánones y de todos los concilios de la Iglesia de España y de
America: en latin y castellano con notas e ilustraciones. Madrid: Pedro Montero, 1859. t.II. p.18-101.
172
Assembleia eclesiástica convocada pelo bispo para tratar de assuntos da diocese.
173
Nicéia atual İznik, na cidade de Anatólia na Turquia.
174
BROWN, Peter. op. cit, p.40.
175
A prática de mandar representantes começou com o papa Silvestre I e foi adotada por seus sucessores nos
concílios. Além dos dois legados, há uma presença incerta de dois bispos latinos.
56
figura do bispo no topo de uma pirâmide de poder, em que sua palavra valia como decisão final
sobre todo e qualquer possível problema que surgisse nas Igrejas das regiões de sua
competência.
É fato que o Arcebispo passou a ser uma figura de grande importância política, uma
vez que a arquidiocese – no momento em que o poder do Império sobre suas províncias
ocidentais foi enfraquecendo – passou a ter a função antes atribuída à antiga administração
romana. A historiografia aponta que não foram poucos os conflitos que colocavam em lados
opostos grupos que, dentro do próprio clero, disputavam o controle do poder sobre importantes
dioceses. Muitas das acusações perpassavam questões ligadas à má conduta e desvios
dogmáticos, porém, sob essa camada discursiva estão cobertas disputas relacionadas ao controle
político sobre as regiões.176 O concílio de Nicéia aponta para isso quando trata da importância
de se manter o cargo de bispo dentro do corpo eclesiástico.
É por todos os meios apropriados que um bispo deve ser nomeado por todos
os bispos da província, mas isso deve ser difícil, seja por conta da necessidade
urgente ou por causa da distância, pelo menos três devem se reunir, e os
sufrágios dos ausentes [bispos] também deve ser dado e comunicado por
escrito, depois que a ordenação ocorrer. Mas em cada província a ratificação
do que é feito deve ser deixado ao Metropolitano.177
Ou seja, esse dispositivo de lei tentava agir de tal forma, que a nomeação de novos
bispos se desse apenas em uma assembleia de pares – ao menos com três deles reunidos que
fossem da mesma província, além da figura do próprio metropolitano. A restrição às práticas
litúrgicas para quem assumisse postos menores dentro da hierarquia caminhava no mesmo
sentido:
Chegou ao conhecimento do santo e grande Sínodo que, em alguns distritos e
cidades, os diáconos administram a Eucaristia a presbíteros, ao passo nem por
cânone nem por costume é permitido que eles que não têm direito à oferecer,
dar para o Corpo de Cristo a eles que oferecem. E isso também foi dado a
conhecer, que alguns diáconos agora tocam a Eucaristia, mesmo antes dos
bispos. Que todas essas práticas sejam totalmente abolidas, e deixe os
176
Essa decisão concentrou, assim, os poderes nas mãos dos bispos metropolitanos, que ficariam no cume da
hierarquia da comunidade cristã. No concílio de Nicéia, foram criados somente os bispados metropolitanos em
Alexandria, Antioquia e Roma. Para ser uma sede metropolitana após o concílio de Nicéia, era necessário um fator
político de grande relevância no desenvolvimento da Igreja, visto que mantê-las requer uma demanda de recursos
alta e criar novas sedes em regiões desabitadas não era viável para a Igreja. CRUZ, Marcus Silva da. A
representação do bispo de Roma no discurso historiográfico dos séculos IV e V. In. Encontro Regional de
História da ANPUH - Rio: Memória e Patrimônio, XIV, 2010, Rio de janeiro. Anais do XIV Encontro Regional
de História da ANPUH - Rio: Memória e Patrimônio. Rio de janeiro: NUMEM, 2010. p. 1-10. p.4.
177
Cânone 4. SCHAFF, Philip.Nicene and Post-Nicene Fathers: Second Series, Volume XIV the Seven
Ecumenical Councils. Estados Unidos da America: Lightning Source, 2007. p. 8-42.
57
diáconos permanecerem dentro de seus próprios limites, sabendo que eles são
os ministros do bispo e os inferiores dos presbíteros. Que eles recebam a
Eucaristia de acordo com sua ordem, após os presbíteros, e que seja o bispo
ou o presbítero a administrarem a eles. Além disso, não deixem que os
diáconos se sentam entre os presbíteros, para que sejam contrários ao cânone
e ordem. E se, após esse decreto, qualquer que se recusar a obedecer, que seja
deposto do diaconato.178
Nesse cânone, encontramos claras referências a um exercício de legitimação dessa
hierarquia entre os membros do clero, prática que, sem dúvida alguma, encontrou resistência
para que, de fato, viesse a ser obedecida, já
que confrontava com os poderes políticos
Quadro 1: Um quadro breve sobre a
hierarquia da Igreja no tempo de Nicéia.
locais e até mesmo com costumes já
arraigados nas atividades religiosas e/ou
rituais dessas Igrejas.
O direito ou não de administrar a
comunhão no ato litúrgico traz o tom sobre
os limites das funções de cada um dentro do
corpo da Igreja, visto que, por intermédio
desse ato, rememorava-se o papel do próprio
Cristo frente à sua Igreja, lugar que estaria
agora todos os bispos e que a exclusividade
deles na realização da repetição desse ato
ajudaria a manter.
Não há dúvida de que essas
Fonte: Domínio Público, 2019.
questões ligadas às hierarquias e funções
de cada membro do corpo eclesiástico buscavam funcionar como mecanismos de controle de
poder dentro das Igrejas. Havia muitas acusações de corrupção e má conduta abordadas por
meio de um discurso que atribuía ao acusado uma desobediência que o aproximava a traidor da
própria figura de Deus. E não foram poucos os debates sobre essa questão dentro dos sínodos
regionais e ecumênicos que serviram para deslegitimar grupos rivais dentro do próprio corpo
clerical.
178
Cânone 18. SCHAFF, Philip.Nicene and Post-Nicene Fathers: Second Series, Volume XIV the Seven
Ecumenical Councils. Estados Unidos da America: Lightning Source, 2007. p. 8-42.
58
Se
voltamos
para
a
questão
Adocionista na Península Hispânica do
século VIII, vemos a posição hierárquica da
Quadro 2: Um quadro breve sobre a
hierarquia da Igreja, no tempo da questão
Adocionista.
figura do arcebispo ao se colocar, a todo
momento, em seu argumento, como um
legitimador da defesa Adocionista. Porém, é
intrigante acompanhar pelas cartas como
esse mesmo argumento – autoridade do
bispo – foi questionado como testemunho de
verdade. Como já dissemos, os cânones
quatro e dezoito do concílio de Nicéia
afirmam que a eleição de um bispo e/ou
arcebispo deveria ser feita por seus pares e
que, a partir daí, seu poder e decisões seriam
tidos como a vontade de Deus. Elipando e
Félix foram eleitos por seus pares e
Fonte: Domínio Público, 2019.
tinham a aprovação do corpo eclesiástico – ou da grande maioria –, portanto, suas concepções
e decisões deveriam ser acatadas sem serem questionadas por membros abaixo na hierarquia,
assim como de Igrejas de outros reinos. Elipando era bispo metropolitano, primaz da Igreja
Hispânica, no entanto, foi questionado não apenas por aqueles a quem lhe deviam obediência,
mas também por membros da Igreja Franca, como podemos constatar numa carta do arcebispo
Elipando para o abade Fidel:
Como el señor Ascárico quiso escribirme estas letras no con la arrogancia del
que enseña, sino con el deseo de preguntar, por eso la verdadera humildad le
instruyó. En cambio éstos, llevándome la contraria o tratándome como un
ignorante, no pretendieron preguntarme sino enseñarme qué era lo ortodoxo,
Y Dios sabe que, aunque hubiesen escrito de forma insolente, yo agradecido
debería obedecer si hubiesen dicho cosas verdaderas, recordando lo que está
escrito: “Sí la revelación la tiene un joven, cállese el anciano”. Y también:
“Está cerca de Dios aquel que sabe callar ante la razón”. Pero nunca se ha oído
que los lebaniegos hayan enseñado a los de Toledo. Todo el mando sale que
esta sede brillo por sus santas doctrinas desde el mismo inicio de la fe y que
nunca fue origen de cisma alguno, Y ahora ¿una oveja, sarnosa pretende ser
nuestro maestro? Sin embargo no quise comunicar estas cosas a nuestros
restantes hermanos, antes de que sea cortado de raíz allí donde surgió
semejante mal. Porque sería para mí una ignominia si esta afrenta se llega a
escuchar en la jurisdicción toledana, que yo y mis restantes hermanos que hace
59
tiempo juzgamos en las tierras de Sevilla y, con la ayuda de Dios, corregimos
la herejía de los migetianos. […].179
Essa carta mostra uma relação de confronto com o que estava determinado na lei
canônica, visto que a carta enviada ao abade Fidel traz uma queixa de Elipando em relação às
atitudes do Beato de Liébana, um monge que, estando no cargo de presbítero e apoiado pela
realeza de Astúrias, punha-se a contestar os feitos do primaz da Hispânia. Não há dúvidas de
que as questões políticas que envolviam o Reino de Astúrias e as Regiões sob o governo dos
Árabes estavam por traz dessa insubordinação do Beato para com Elipando. A distância que
separava o primaz de Toledo do clero que estava na região do Reino das Astúrias, seja ela
geográfica ou política, fez com que essas duas realidades locais da Igreja Cristã se distanciasse
muito em seus interesses políticos, o que fez com que Elipando perdesse grande parte de sua
autoridade sobre os membros da Igreja dessa região, os quais, por sua vez, aproximaram-se
cada vez mais da realeza de Astúrias e da Igreja Franca, já sobre forte influência de Carlos
Magno.
Não podemos nos esquecer da importância que o clero e a Igreja, como instituição,
exerciam nesse contexto histórico: eles agiam como legitimadores do poder político da nobreza
e realeza. Sendo assim, quando a realeza do Reino das Astúrias escolheu apoiar Beato de
Liébana, um indivíduo conhecido na região por seu saber acerca dos textos bíblicos, mas com
cargo muito abaixo do primaz da Hispânia, significava que o rei das Astúrias, Afonso II, estava
renegando as decisões tomadas em Toledo e afirmando seu poder nessa região, visto que tal
atitude o colocava em oposição a grupos políticos externos ao reino.180
179
Cum dominus Ascaricus mihi non docentis imperio, sed interrogantis voto ea scribere voluit, sicut illum vera
humilitas docuite Isti vero, modo et contraria dicendo modo et quasi ignorantem me quid rectum sit noluerunt
interrogare, sed docere Unde Deus novit quia licet proterve scripsissent, nam si vera dixissent, gratus obedire debui,
reminiscendo quoci scriptum est: «Si iuniori revelatum fuerit, senior taceatt”. Et iterum: «Proximus ille Deo est
qui scit rationi tacere». Nam nunquam est auditum ut Libanenses Toletanos docuissent. Notum est plebi universae,
hanc sedem sanctis doctrinis ab ipso exordio fidei claruisse et nunquam schismatum aliquid emanasse. Et nunc
una ovis morbida., doctor nobis appetic esse? Et tamen nolui ea ad aures ceterorum fratrum nostrorum perducere,
antequam illic, ubi exorturn est huiuscemodi maium, sit radicitus amputatum. Quia ignominia erit mihi si intra
ditione Toletana hoc malum fuerit auditum, ut quod ego et ceteri frates mei in Ispalitanis tanto tempore
diudicavimus et, Deo auxiliante, tam in festis Paschalium quam in ceteris erroribus Migetianorum haeresem
emendavimus. Elipando, Epistola ad Fidelem. 785, f43.
180
Isso se deve aos tempos do extinto reino Visigodo, em que a nobreza estava muito próxima das decisões
tomadas pela Igreja, dado o fato de que, na cidade real, Toledo, as decisões eram concentradas. Com a chegada
Árabe, a nobreza visigoda estava concentrada no reino das Astúrias, estando, por sua vez, longe do centro da
Igreja, onde todas as decisões eram tomadas. E devido a distância entre a primaz e o reino das Astúrias, qualquer
assunto levaria muito tempo para ser tratado, portanto, utilizar de membros da Igreja próximos à realeza como
porta voz era algo viável, visto que o bispo da região, Ascário, era a favor das decisões tomadas pelo primaz Assim,
apoiar Beato de Liébana, um indivíduo conhecido por sua ligação com a Rainha Adosinda, era a melhor escolha,
mesmo ele sendo alguém em nível muito abaixo ao do arcebispo.
60
Outros assuntos discutidos em Nicéia que nos parece importantes para a análise da
questão Adocionista hispânica são aqueles relacionados às regras para a realização de sínodos:
a excomunhão e a transferência de bispos para outras dioceses. No cânone cinco, afirma-se que
os bispos metropolitanos eram os únicos que poderiam realizar sínodos, devendo estes
acontecer duas vezes ao ano, sempre antes da quaresma e na época do outono. Essa regularidade
servia para que impasses polêmicos pudessem ser findados rapidamente. Esse cânone garantia
ao bispo metropolitano a exclusividade no momento de convocar sínodos; nem mesmo os reis
poderiam interferir nas decisões das Igrejas sem sua aprovação. É preciso destacar que o fato
dos cânones serem instrumentos de normatização das leis de um reino fazia com que os reis
procurassem manter os principais cargos eclesiásticos em mãos de uma aristocracia local ligada
a eles, e ,desse modo, podiam solicitar aos eclesiásticos que um determinado assunto fosse
sabatinado em assembleia se assim o desejasse. Essa é a situação que encontramos, por exemplo,
no reino franco no período de Carlos Magno, visto que este havia feito uma reforma clerical e
educacional que terminou por colocar a Igreja e seus membros muito ligados à sua figura.
Vemos isso explicitamente em uma carta de Elipando dirigida ao rei franco, solicitando que ele
reconduzisse a diocese de Urgel para Félix, que havia sido afastado de sua sede.
Por eso, como postrados ante tu presencia, pedimos com lagrimas que
restituyas em el honor que le pertenece a tu siervo Felix, y hagas que el pastor
vuelva a la grey dispersada por los feroces lobos, recordando tambien aquello,
que dios ominipotente aleje de vos, que le sucedio a Constantino emperador,
que siendo pagano fue convertido al cristianismo por san silvestre, y despues
por instigacion de la serpiente, su hermana, contradiciendo la opinion de los
318 padres, se convirtio a la opinion arriana y, arrojado al infierno por uma
caída digna de lastima, consumo su ultimo dia. […].181
Cabia também ao bispo metropolitano aplicar penas de banimento e excomunhões aos
homens e mulheres pertencentes à sua diocese, porém, o cânone cinco não deixa claro se essas
penas teriam o mesmo valor em outra diocese, ou seja, fica em aberto se a decisão de banimento
de uma diocese teria ou não valor universal. Para, então, evitar esse tipo de desconforto, o
cânone comunica que tal decisão deveria ser feita independentemente se a condenação foi
motivada por rivalidade ou contenda entre os eclesiásticos.
181
Idcirco veluti prostrati coram tuis obtutibus cum lacrymis poscimus ut famulum tuum Felicem in proprio honore
restaures et pastorem gregi a lupis rapacibus disperso reformes, reminiscens et illud quod omnipotens Deus a vobis
longe efficiat, de Constantino imperatore, qui dum esset idololatriae cultor, per beaturn Sylvestrium factus est
christianus, postea per serpentem sororem suam sanctorum trecentorum decem et octo sententiam refutans in
Arriano dogmate conversus et ad infernum flenda ruina dimenus diem clausit extremum. Elipando, Epistola
Elipandi ad Carolum magnum. c789, f3.
61
Por mais que a documentação identifique que houve certo acordo entre os bispos de
não acolherem aqueles que foram condenados em Igrejas de outras regiões, é certo que essa
abertura na lei canônica possibilitou, por exemplo, que alguns clérigos defensores de ideias
dogmáticas cristãs, considerados heréticos em concílios regionais, pudessem exercer cargos
eclesiásticos em outras dioceses que ainda não haviam condenado tais ideias como heréticas182.
Há que se destacar que essa falta de comunicação ou acordo de uma Igreja para com as outras
é o que permitiu, por exemplo, que Elipando e Félix, mesmo sendo anatemizados183 no concílio
franco de Frankfurt de 794, continuassem em seus cargos na Igreja Hispânica, onde o
Adocionismo era considerado ortodoxo. É preciso também salientar que, no caso de Felix, só
lhe foi possível o retorno à diocese de Urgel quando essa região voltou a pertencer ao Emirado
de Córdova.
O fato é que o próprio cânone do concílio de Constantinopla de 381 lhes assegurava a
manutenção em seus cargos. No segundo cânone, aparece a proibição de que um bispo de uma
determinada diocese interfira nos assuntos de outra:
Os bispos diocesanos não se metam nem façam confusão em Igrejas que ficam
fora de seu território. De acordo com os cânones, o bispo de Alexandria cuide
das coisas no Egito, os bispos orientais governem só o Oriente, preservados
os privilégios que os cânones de Nicéia asseguraram ao bispo de Antioquia.
Os bispos do território da Ásia governem só na Ásia, os do Ponto só no Ponto
e os da Trácia só na Trácia. Quando não são chamados, os bispos não devem
atravessar os limites de seus territórios para fazer ordenações ou praticar
outros atos eclesiásticos. Estando em vigor a legislação escrita a respeito da
administração eclesiástica, é claro que assuntos atinentes a cada província
devem ser resolvidos em sínodos provinciais, como foi definido em Nicéia.
Entretanto as Igrejas de Deus que estão entre populações barbáricas, devem
ser governadas de acordo com o costume em vigor desde o tempo dos pais.184
Não é por menos que o Papa Adriano I, ao se ver sob a necessidade de investigar um
caso de desvio dogmático na região sobre jurisdição da arquidiocese de Toledo, não o faz sem
antes pedir autorização do arcebispo do lugar. Inicialmente ele havia solicitado a Cixila, e, com
a negação dele, recorreu ao seu sucessor, Elipando.
182
No período em que Nicéia foi discutida, várias vertentes cristãs existiam. Entre muitas, existia as vertentes do
Arianismo. Ário era um diácono de Alexandria e foi fundador dessa vertente. Havia sido excomungado em um
sínodo em 320, mas esse ato não havia sido um fim para essa polêmica. Ário havia encontrado refúgio em outra
diocese com os bispos da Palestina, lugar onde conseguiu tornar a vertente arianista forte.
ALBERIGO, Giuseppe. História dos concílios ecumênicos. Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus,
1995. p.21.
183
Anátema é a expulsão, condenação, excomunhão e execração de qualquer pessoa que segue doutrina contrária
ao que se considera a “verdade” da fé da Igreja Católica.
184
ZILLES, Urbano. Documentos dos Primeiros Oito Concílios Ecumênicos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
p. 29-30.
62
Por eso, como postrados ante tu presencia, pedimos com lagrimas que
restituyas em el honor que le pertenece a tu siervo Felix, y hagas que el pastor
vuelva a la grey dispersada por los feroces lobos, recordando tambien aquello,
que dios ominipotente aleje de vos, que le sucedio a Constantino emperador,
que siendo pagano fue convertido al cristianismo por san silvestre [...].185
Outro exemplo que vai nesse mesmo sentido é a solicitação do arcebispo Elipando ao
rei Carlos Magno – trecho acima – de que o rei devolvesse a Félix a diocese de Urgel, a qual
havia sido abandonada pelo bispo devido às perseguições. De acordo com o próprio Elipando,
Félix estaria vivendo em uma situação de fugitivo, habitando em lugares ermos desde as
decisões tomadas nos concílios de Ratisbona, de 792, e Frankfurt, de 794, que o tornaram
heresiarca. Nessas situações apontadas, notamos que as atitudes dos bispos estavam em
consonância com a decisão do concílio.
[…] Procura no ser tú semejante a Rufino, que, como idólatra, con acciones
salvajes se opuso a San Félix mártir, de la misma manera que también tú
persigues al otro Félix, confesor, a quien conocemos rebosante de caridad
desde joven, casto y ornado de virtudes, y a quien tú persigues teniéndose que
ocultar en los montes, cuevas y cavernas. […]186
É fato, como já dissemos, que os cânones dos concílios ecumênicos funcionaram,
muitas vezes, como testemunhos legitimadores de uma narrativa plana e linear sobre a história
da Igreja, construída a partir de tensões e conflitos que culminaram dentro dessas assembleias
conciliares187. As atribuições hierárquicas definidas por essas normas trabalharam no sentido
de costurar tais discursos que buscavam moderar movimentos religiosos ou políticos exaltados,
criando certa unidade dogmática, litúrgica, etc. Porém, a realidade foi sempre mais dinâmica
do que os cânones poderiam prever e, não é por menos que as mesmas questões costumam
retornar à pauta dos concílios, sejam eles regionais ou ecumênicos. As formas divergentes de
185
Idcirco veluti prostrati coram tuis obtutibus cum lacrymis poscimus ut famulum tuum Felicem in proprio honore
restaures et pastorem gregi a lupis rapacibus disperso reformes, reminiscens et illud quod omnipotens Deus a vobis
longe efficiat, de Constantino imperatore, qui dum esset idololatriae cultor, per beaturn Sylvestrium factus est
christianus. Elipando, Epistola Elipandi ad Carolum Magnum. c789, f3.
186
Et iterurn vide ne tu sis similis Rufino, qui beatum Felicem martyrem ferinis actibus cultor idololatriae extitit,
sicut et tu persequeris alium Felicem confessorem, quem novimus ab ineunte aetate caritate summum, pudicum et
moribus ornatum, quem tu persequeris in montibus et in speluncis et in cavernis terrae latitantem. Elipando,
Epístola Elipandi ad Albinum (Alchvinum). 798, f3.
187
Sabemos que muitos concílios não eram decididos em unanimidade, para esse caso temos o concílio de Nicéia
I, em que há relatos de que alguns clérigos se recusaram a assinar as atas. Desse modo, entende-se que o consenso
é utilizado como uma ferramenta autoritária e compulsória que foi imposta nas decisões conciliares aos grupos
que haviam sido derrotados pela maioria votante. SILVA, Paulo Duarte. op. cit. p. 30.
63
cristianismo nunca deixaram de fazer ondas na superfície plana das narrativas que alicerçaram
aquilo que, mais tarde, será considerado ortodoxia cristã.
O QUE DEFENDEM OS HERÉTICOS?
O historiador espanhol Emilio González Ferrín faz uma afirmação que nos é muito
cara neste trabalho: a de que os dogmas e as ortodoxias se organizaram a partir de uma longa
trajetória que compartilham com várias formas possíveis de uma mesma religião188. Assim,
pode-se dizer que é dentro dessa concorrência que se formam as ortodoxias e, nesse sentido, a
história de determinada religião está completamente ligada àquilo que a memória histórica
construiu sobre o que ela trata como heresia.
No dicionário da língua portuguesa moderna189, a palavra heresia significa: blasfêmia,
divergência em ponto de fé ou de doutrina religiosa, o que a coloca como uma negação ou
dúvida pertinaz de alguma verdade que se deve crer com fé divina. Porém, como conceito, essa
palavra deve ser entendida na sua historicidade, como apontamos acima, e ela aparece bem cedo
nos textos dos eclesiásticos, estando sempre ligada às condenações de ideias ou conceitos, que
iam ao encontro de afirmações de fé defendidas nos concílios da Igreja.190
Na Idade Antiga, uma heresia, ou “hairesis”, era uma palavra grega comumente usada
para indicar a escolha de uma escola. Como exemplo, temos as escolas filosóficas ou seitas do
judaísmo. Essa palavra era designada para aqueles que se afastavam da doutrina da tradição
rabínica e, nesse seguimento, o termo foi empregado pelo povo Judeu de maneira pejorativa
para designar os cristãos primitivos. Desse modo, os cristãos, no princípio, foram considerados
heréticos pelos judeus, pois aqueles haviam se desviado do caminho.191
“O dogma e a ortodoxia se apresentam sempre avalizados pela tradição, mas são, na verdade, inovações ou ao
menos seleções isoladoras, discriminatórias de grande parte dessa tradição. Nessa larga evolução compartilhada e
simbiótica de tantos possíveis judaísmos, cristianismos e islãs forjaram-se determinadas ortodoxias mediante o
processo recorrente que pode ser definido como continuidade retroativa que teremos em conta a todo o momento.
Na realidade, é aquilo que o mundo cinematográfico e literário denomina de prequela. As ortodoxias, assim,
aparecerão como um construto, uma novidade impositiva; uma vitória sobre opções igualmente válidas, não um
cânon original salvaguardado. A questão é – sempre – quem manda aqui, ao que se amolda depois o quem está
mais perto de uma mítica fonte exclusiva de verdade, que mais tarde os weberianos monopolizadores de verdades
absolutas administrarão. Assim, na invenção de uma tradição será essencial administrar a chamada autoridade
discursiva sobre a qual germinara a verdade (cf. Briggs. 1996, p.435).” GONZÁLES FERRÍN, Emilio. op. cit. p.6.
189
Dicionário Online de Português. Disponível em < https://www.dicio.com.br/heresia/ / >. Acesso em: 13 de
dez. de 2017.
190
MENDES, L. Klíscia de Amorim. Em defesa da igreja de pedro? Controvérsias dogmáticas e políticas na
igreja (século VIII). Anais do VIII Encontro de História: Ensino, Metodologias e Práticas Pedagógicas em
História na Sociedade Contemporânea, 28 a 30 de setembro de 2016, Universidade Federal de Alagoas, Instituto
de Ciências Humanas, Comunicação e Artes, Curso de História, Maceió: Ufal, 2016. p.203-211.
191
PARPINELLI, Cristiano; MENDES, Gabriel da Costa. As Heresias Trinitárias e a Prática Eclesial Da Igreja.
Revista Eletronica Theologia Ano 2008, Volume 2, Nº. 1. p2.
188
64
Em sua origem, a palavra já aparece nos primeiros traços literários do cristianismo, em
seu nascimento. Podemos citar o exemplo das cartas do apostolo Paulo192, em que a palavra
carregava o significado literal de "escolha” distante da vontade Deus, ou seja, carregava uma
interpretação de práticas religiosas contrárias àquela que se acredita ser a verdadeira193.
De acordo com Frangiotti 194 , os primeiros Patriarcas da Igreja e seus dignitários
posteriores entenderam que a heresia significava uma visão discordante. Dessa forma, essa
palavra grega, que originalmente poderia significar a “acentuação de um aspecto particular da
verdade”, passou a ter o sentido de negação da verdade original aceita e, do mesmo modo,
também poderia ser interpretada como uma pregação de um evangelho diferente daquele que
foi divulgado pelas verdades apostólicas.195
Nos primórdios do cristianismo, muitas das ideias consideradas como heresias eram
advindas do gnosticismo e continham elementos das culturas egípcias, judaicas e gregas, como
foi o caso do Maniqueismo196, seita que trazia as ideias de dualidade entre o bem e o mal em
concepção universalista e outras por influência judaica 197 , como o caso daqueles que
concordavam em manter as leis de Moises, como o Ebionismo198. Este pregava que Jesus não
abolira a Torá e que, portanto, devia-se seguir os mandamentos do mesmo, assim como a
conservação da circuncisão e da celebração aos sábados. Além disso, havia o Docetismo199, o
qual afirmava que Jesus não havia recebido nada corpóreo, pois ele não havia nascido de Maria,
mas através de Maria.
Para o historiador Dubois, uma hairesis também pode significar “eleger” – remetendo
a um grupo de pessoas que aderem aos princípios de uma mesma corrente de pensamento que
vão contra a fé cristã – ou “tomar”, o que, para alguns teólogos, é uma metáfora que remete ao
gesto que Adão e Eva fizeram (de desobediência) ao estender a mão para “pegar” o fruto
proibido no antigo testamento, dando início, assim, a um pensamento de discordância destes
em relação a Deus200.
192
DUBOIS, Jean Daniel. Polemicas, poder e exegese: o exemplo dos gnósticos antigos no mundo grego. In:
Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da inquisição. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2009. p.40.
193
FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. p. 200.
194
Frangiotti. 1995, p6, apud Barros, 2010, p35.
195
Idem.
196
Teologia fundada por Maniqueu, filósofo cristão do século III.
197
Que ou quem judaíza, praticar as cerimônias judaicas. In: Dicionário Online de Português.
198
MACHADO, Alda da Anunciação; NETTO, João Loyola Paixão. op. cit. p. 219.
199
PADOVESE, Luigi. Introdução a teologia patrística. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p.47.
200
BARROS. José d’assunção. Heresias: considerações sobre a história de um conceito e sobre as discussões
historiográficas em torno das heresias medievais. Revista Fronteiras, Dourados, MS, v. 12, n. 21, p. 33-49,
jan./jun. 2010. p.35.
65
Tem-se, por fim, que, para os cristãos da Antiguidade Tardia, como afirma Weiss, seria
herege aquele que rejeitasse a doutrina de um determinado concílio e, posteriormente, será
herege aquele que não reconhecer uma doutrina fundada sob a tradição cristã católica em sua
totalidade201. A heresia foi entendida, portanto, como um desvio dogmático que colocava em
perigo a unidade de fé em um contexto em que a Igreja do Ocidente estava marcada por diversas
vertentes do cristianismo. Não há dúvidas de que o processo pelo qual essa palavra passou
esteve ligado à necessidade do cristianismo católico que estava estabelecendo seus próprios
limites em relação às outras religiões – incluindo o judaísmo202 e outras formas de cristianismo
concorrentes.
Ao reunir e conciliar várias tradições religiosas 203, a religião cristã tornou-se mais
facilmente assimilável a diversas regiões, porém, também se tornava suscetível a diversas
interpretações. Dessa forma, os mesmos elementos que davam força a essa religião eram,
também, sua fraqueza. Com o crescimento e a organização da hierarquia eclesiástica, as formas
de cristianismos que divergiam das escolhas feitas por esse grupo tornaram-se uma ameaça à
própria existência da Igreja.
Isso se dá pelo fato de que, ao longo da história da Igreja, as heresias passaram a
significar um obstáculo à construção de uma unidade religiosa. A compreensão da palavra
“ortodoxo”, por sua vez, caminhou no sentido contrário à heresia, estando ligada à ideia de um
pensamento que derivaria do próprio Deus. Desse modo, os textos que foram considerados de
inspiração divina, ou seja, os canônicos, tiveram seus comentários autorizados e sobre eles, os
dogmas defendidos perante os concílios regionais, estes passaram aos poucos a serem
entendidos como vontade de Deus e/ou “verdade cristã”.
Todas essas questões aparecem de forma muito clara na documentação da qual tratamos.
As discussões dispostas nas cartas em relação ao corpo eclesiástico e ao próprio Adocionismo
em si se relacionam de forma muito estreita com os termos ortodoxia e heresia, visto que grande
parte da argumentação usada por eles está na órbita de construção desses conceitos, com os
quais a Igreja passou a lidar de forma cada vez mais enfática no percurso que a levou até a
construção de uma fé, em grande medida, unificada por dogmas, rituais litúrgicos, funções
eclesiásticas definidas, etc.
201
Ibid. p.16.
WEISS, Jean Pierre. O método polemico de Agostino no contra Faustum. In: Inventar a heresia? Discursos
polêmicos e poderes antes da inquisição. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2009. p.15
203
BROWN, Peter. op. cit, passim.
202
66
Todas as epístolas que tratam da questão Adocionista têm como princípio a defesa da
ideia da “verdadeira fé” contra “heréticos”. A argumentação essencial dos autores é sempre a
negação da fala do outro, muitas dessas vezes considerando-se a própria existência daquele a
quem acusam de herético como um mal que deve ser eliminado da terra. Temos um exemplo
básico disso na fala do arcebispo Elipando ao defender-se das acusações que lhes são feitas por
Beato de Liébana: “Quien no confesare que Iesucristo es hijo adoptivo en su humanidad, y no
adoptivo en su divinidad, es un hereje y debe ser eliminado. Arrancad el mal de vuestra
tierra.204”
Esse mal, no entanto, parece ser um problema de difícil solução para a Igreja, que vai
para além das narrativas documentais em que esses personagens podem ser negados na sua
humanidade. Ademais, suas afirmações são esvaziadas pela argumentação de que suas ideias
possuem uma raiz humana e corrupta e não tratam da verdadeira vontade de Deus. O fato é que
eles ganhavam adeptos até mesmo entre o próprio clero e suas ideias mantinham-se por
gerações e gerações, como foi o caso do próprio Adocionismo que, de tempos em tempos, com
uma mudança ou outra em sua estrutura, manifestava-se em determinadas regiões da
cristandade. Mais do que um discurso, as heresias podem ser entendidas como formas
divergentes de cristianismo e consideradas heréticas por determinados concílios.
Vê-se, então, que essa questão encheu as páginas das atas conciliares. Porém, como já
dissemos, esses movimentos, em grande parte das vezes, não partiam do povo, mas sim de
dentro do próprio corpo da Igreja. O Concílio de Nicéia I, nos cânones quinze e dezesseis, por
exemplo, legisla sobre a locomoção de uma região para a outra de eclesiásticos condenados por
propagar ideias “corruptas”:
Por conta da grande perturbação e discórdias que ocorrem, é decretado que o
costume prevalecendo em certos locais contrários ao Cânon tem que ser
totalmente abolidos, de modo que nem bispo, presbítero, diácono, nem deve
mudar de cidade para cidade. E se alguém, depois deste decreto do santo e
grande Sínodo, tentar qualquer coisa semelhante, ou continuar em qualquer
curso parecido, sua atuação será absolutamente nula, e ele será reintegrado à
Igreja de que ele foi ordenado bispo ou presbítero.205
204
Qui no fueri confessus Iesum Christum adoptivum humanitate etnequaquam adoptivum divinitate, et haereticus
est et exterminetur. Auferte malum de terrra vestra. Elipando, Epistola ad Fidelem. 785, f43. Qui non fuerit
confessus Iesum Christum adoptivum humanitate et nequaquam adoptivum divinitate, et haereticus est et
exterminetur, Auferte malum de terra vestra.
205
Cânone 15. SCHAFF, Philip.Nicene and Post-Nicene Fathers: Second Series, Volume XIV the Seven
Ecumenical Councils. Estados Unidos da America: Lightning Source, 2007. p. 8-42.
67
Para resolver os impasses do acolhimento de hereges em outras dioceses, o cânone
quinze previa, portanto, um impedimento de transferência, de cidade em cidade, dos bispos,
presbíteros e diáconos que causaram problemas em suas dioceses originárias, das quais suas
ideias sobre o cristianismo opunham-se àquelas que ficaram definidas no concílio em questão.
Visava-se evitar que os clérigos continuassem a propagar suas ideias heréticas em outras regiões
fora das dioceses em que foram condenados:
Nem presbíteros, nem diáconos, nem quaisquer outras pessoas matriculadas
entre o clero, que, não tendo o temor de Deus diante de seus olhos, nem sobre
o Canon eclesiástico, devem temerariamente ser retirados de sua própria Igreja,
deve por todos os meios ser recebido por outra Igreja, mas todas as restrições
devem ser aplicadas para restaurá-los às suas próprias paróquias, e, se eles não
forem, devem ser excomungados. E se alguém ousar sub-repticiamente
proceder ao largo e na sua própria Igreja reservar um homem pertencente a
outra, sem o consentimento do seu próprio bom bispo, apesar de ter sido
alistado por ele à lista de clérigos da Igreja que abandonou, que sua ordenação
seja anulada.206
O cânone dezesseis de Nicéia define bem essa questão sobre os eclesiásticos
condenados como heréticos. Estes deveriam abandonar seus cargos nas Igrejas e cumprir
penitências por seus erros; não deveriam ser admitidos em outras sedes e, caso houvessem
assumido uma nova Igreja de outras regiões, deveriam ser reconduzidos às suas sedes
originárias para que não ganhassem novos adeptos para suas ideias heréticas. Se por acaso os
clérigos considerados heréticos não acatassem as ordens de seus bispos originários, estes
deveriam ser excomungados.
Frente à constante reafirmação dos cânones dos concílios, vê-se a persistência desses
conflitos dogmáticos entre os grupos de cristãos. No Império Carolíngio do século VIII, as
ideias do bispo Félix, como já vimos, haviam sido heretizadas e este não teve outra atitude
senão fugir para as regiões da Hispânia, em Al-Andalus, para continuar a defender suas ideias
Adocionistas, onde a decisão do concílio de Ratisbona e Frankfurt não tivesse validade.
Seguindo o cânone quinze e dezesseis de Nicéia, Félix deveria seguir as ordens dadas pelo bispo
de Roma, seu superior, e retornar à sua sede de origem, onde deveria permanecer calado:
El obispo León dijo: «¿Quién no ve que ese desgraciadísimo e infeliz hereje,
que no sólo se hizo heresiarca hace tiempo ladrando sobre la adopción en el
Hijo de Dios, sino que también se hizo perjuro por una, dos y tres veces? Pues
primero en el concilio de Ratísbona (792), que se realizó por mandato del muy
ilustre y ortodoxo hijo nuestro Señor rey Carlomagno, confesó sobre esta
206
Cânone 16. SCHAFF, Philip.Nicene and Post-Nicene Fathers: Second Series, Volume XIV the Seven
Ecumenical Councils. Estados Unidos da America: Lightning Source, 2007. p. 8-42.
68
herejía que se había equivocado y anatematizando a quien se atreviera a decir
que el Hijo de Díos Señor nuestro Jesucristo era según la carne adoptivo. Y
nuevamente bajo nuestro predecesor de santa memoria Señor Adriano papa,
enviado por el Señor Carlos muy ilustre gran rey, él mismo misérrimo hereje,
infeliz obispo, enseñado por el mismo san-to obispo, hizo en Prisión un librito
ortodoxo anatematizando y confirmando, entre las restantes cosas, que el Hijo
de Dios no era adoptivo, como había dicho, sino "confieso a nuestro Señor
Jesucristo propio y verdadero Hijo de Dios". Por eso poniendo ese mismo
librito ortodoxo suyo sobre los sacrosantos misterios de Dios, en nuestro
Palacio patriarcal, juró que así lo defendía y confesaba. Y de nuevo poniendo
ese mismo ortodoxo librito suyo en el altar de la confesión sobre la tumba de
San Pedro apóstol, de la misma manera también allí juró que nunca se
atrevería a llamarle adoptivo, sino que "sostengo y confieso que es Hijo de
Dios propio y amado". Pero después transgrediendo la ley de Dios excelso se
hizo perjuro, huyendo a vivir entre los paganos que estaban de acuerdo con él.
Pero ni tampoco respetó que aquel santo y ortodoxo concilio, que sobre esta
cuestión se celebró en presencia del muy ilustre Señor Carlos y ortodoxo gran
rey, contuviera suficientemente la recta fe; y lanzándolos a las cadenas del
anatema condena-ron con sus secuaces al mismo Félix, si persistía en su
error.207
Fica claro, até aqui, que, em nosso contexto de discussão, a heresia é apenas uma
questão interpretativa, visto que é considerado herege alguém que foi condenado em um
determinado concílio estabelecido em um reino, sendo ele embasado nos cânones dos concílios
ecumênicos e regionais. Mas quanto à condenação desses personagens pela Igreja, vemos que
isso ficava à cargo das decisões tomadas no âmbito das Igrejas regionais, o que tornava tais
atitudes muito abertas aos jogos políticos daqueles que exerciam o poder em determinada
região.
QUEM SÃO OS HERÉTICOS HISPÂNICOS
207
Leo episcopus dixit: «Quis non videat miserrimum illum et infelicem haereticum, quo non solum haeresiarcha
dudum de adoptione in filio Dei latrans factus est, sed etiam et semel et bis et tertio periuratus effectus est? In
primis namque in Ratisbonensi concilio, quod per iussionem praefulgidi et orthodoxi filii nostri domni Caroli
magni regis actum est, confessus est se ex ipsa haerese male dixisse et in ipso conscripsit concilio, anathematizans
quo ausus fuerit dicere filium Dei dominum nostrum Iesum Christum adoptivum secundum carnem esse. Et iterum
sub sanctae recordationis praedecessore postro domno Hadriano papa, directus a domno Carolo praefulgido magno
rege, ipse miserrimus haereticus, infelix episcopus, doctus ab eodem almo praesule, fecit illum orthodoxum in
vinculis libellum, anathematizans et confirmans inter cetera nequaquam filium Dei adoptivum esse, sicut dixerat,
sed "proprium et verum dominum nostrum Iesum Cristum filium Dei confiteor". Unde et ipsum orthodoxum suum
libellum super sacrosancta Dei mysteria in nostro patriarchio ponens iuravit sic tenere et confiteri. Et iterum in
confessione super corpus beati Petri apostoli ipsum ponens orthodoxum suum libellum similiter et illic iuravit
nequaquam se dicere audere adoptivum, sed "proprium et dilectum filium Dei teneo et confiteor". Et postmodum
transgressus legem Dei excelsi fugiens apud paganos consentaneos periuratus effectus est. Sed nec illud metuit
almum et orthodoxum concilium, quod in conspectu domni Caroli praefulgidi et orthodoxi magni regis pro
huiusmodi re gestum est, satis rectae fidei continere; et anathematis vinculis iaculantes eundem Felicem, si in ipso
errore persisteret, cum sequacibus suis condemnaverunt. Concilium Romanum. Octobr. 23 de 798.
69
A história da Igreja Ibérica ficou marcada por diversos conflitos dogmáticos com
numerosas questões no combate às heresias, fazendo uso do emprego de instrumentos
regulamentadores como arma para manter o caminho “correto” do cristianismo. A experiência
histórica da península é assinalada por uma considerável sucessão de povos – Suevos, Alanos,
Vândalos e os Visigodos –, o que fez com que a Igreja dessa região estivesse sempre muito
suscetível à opção religiosa dos senhores que a dominaram. Uma das disputas dogmáticas mais
significativas, dentro deste contexto, foi aquela entre as vertentes Católica e Ariana 208 do
Cristianismo, durante o domínio Visigodo.
Os líderes dos povos Hispânicos, Vândalos e Visigodos tinham a convicção de que
eles eram capazes de reconhecer a doutrina “correta” quando a encontravam. Nesse pensamento,
os chefes visigodos encheram suas cortes com clérigos arianos e atribuíram a essas crescentes
conversões as vitórias de seu exército na conquista de territórios. Os chefes Vândalos, por sua
vez, aplicaram as mesmas táticas em suas vitórias territoriais, mas as dedicaram aos bispos
católicos209.
Como vimos, a situação das instituições eclesiásticas da península não era homogênea,
mas uma mistura entre as duas vertentes – os Arianos e Nicenos – com muitos problemas
advindos de fora, com disputa entre reinos que utilizavam as diferenças teológicas entre as
Igrejas. Desse modo, haviam dificuldades de convivência entre os reinos que constantemente
invadiam uns aos outros, o que intricava nas problemáticas teológicas das Igrejas regionais dos
reinos rivais. Como vimos no primeiro mapa do primeiro capítulo, no centro da península, em
sua maior parte, estava localizado o reino Visigodo ariano, ao norte, o reino Suevo e, ao sul, os
Bizantinos210, ambos Nicenos.
Com a tomada de todos os territórios na península Hispânica pelo rei Leovigildo e
após a ascensão de seu filho Recaredo, em 586, as disputas interna e externa entre os arianos e
católicos foi dissipada no III concílio de Toledo – considerado pela Igreja Hispânica o primeiro
concílio geral da península.Com a conversão do rei para a vertente Nicena211 e a expulsão de
todos os clérigos arianos da região, a Igreja de toda a península, por fim, se alinhou à vertente
católica de Nicéia.
208
Linha teológica que se constituía na negação da consubstanciação entre Jesus e Deus, ou seja, Jesus e Deus Pai
não seriam a mesma pessoa, e que há apenas um Deus, e que este não seria Jesus. Jesus é filho de Deus e
subordinado a Ele, e não o próprio Deus, ele seria apenas um homem superior aos demais.
209
Na tentativa de ganhar essa disputa territorial, não apenas por guerra, mas também com a conversão de novos
súditos nas regiões por eles dominadas. BROWN, Peter op. cit. 1999. p.77.
210
FELDMAN, Sergio Alberto. Os Visigodos: de saqueadores de Roma a padrão de nobreza. Dimensões, v.37,
jul-dez. 2016, p.38-60. p.47.
211
A união do território deu-se com o rei Leovigildo. Após sua morte, seu filho, o rei Recaredo, unificou as Igrejas
em uma única vertente. Relatamos esse acontecimento no primeiro capítulo.
70
Além da questão ariana, a península trazia outras complicações em relação às crenças
religiosas, mas estas estavam relacionadas às formas não cristãs de fé e, entre elas, podemos
destacar a grande presença dos judeus na região, povo que se recusava fortemente à conversão
imposta pelos cristianismos212.
O crescimento da fé cristã católica na região, apoiada nessa união da Igreja com a
realeza visigoda, colocou a cidade de Toledo, simbolicamente, como a “nova Jerusalém”, um
lugar onde os reis e arcebispos podiam construir uma sociedade apropriada e autônoma, um
lugar de centralidade em relação às decisões tomadas dentro do imenso reino. As leis
determinadas nos concílios toledanos tornaram-se leis que cobriam diversos tipos de assunto
em toda a península.
Um dos assuntos que ocuparam essas assembleias foram, justamente, a questão judaica.
Durante o reinado de Sisebuto213, foi ordenado que todos os judeus fossem batizados à força, o
que gerou uma nova forma de cristianismo, visto que os novos cristãos haviam sido convertidos,
mas continuavam com a prática de ritos judaicos. Para a Igreja solucionar essas questões,
convocou-se o IV Concílio de Toledo, onde foi amenizada a conversão forçada e esclarecido
que a conversão deveria ser feita pelo livre arbítrio, mas mantinha-se o status de pecado aos
cristãos que mantivessem contato com judeus. O fato é que, durante o século VIII, esses cristãos
continuavam mantendo grande parte de suas práticas judaicas, como vemos em uma carta do
bispo de Roma Adriano I:
También nos dio a conocer vuestra caridad lo que con insistencia y
perseverancia en el error predican algunos: que quien no coma la sangre de
animales y cerdo, o la carne sin sangrar (estrangulados), es un necio e
ignorante. Pero nosotros, imbuidos y adoctrinados por las enseñanzas
apostólicas, predicamos confirmando que si alguno come la sangre o la carne
sin sangrar de animales o cerdo, no sólo es ajeno a toda ilustración, sino
también completamente extraño a todo sentido común, y, aherrojado en las
cadenas del anatema, caerá en los lazos del diablo.214
212
Constantemente em concílios, os eclesiásticos colocaram regras de convívio, escravização e conversão forçada
dos povos Judeus.
213
O rei Sisebuto decretou que todos os judeus fossem batizados à força, o que causou uma problemática, pois
agora havia uma espécie híbrida de cristãos judaizantes. Para mais aprofundamento. JOVER ZAMORA, José
Maria; MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. op. cit. p.457.
214
Insinuavit dilectio vestra et hoc, quod quidam pollicentes atque in errore perseverantes praeclicant, ut qui non
ederit pecudum aut suillum sanguinem, et suffocatum, rudis est aut ineruditus. Nos quidem apostolicis praeceptis
imbuti atque eruditi, confirmantes praedicamus, quod si quis pecuclum aut suillum sanguinem vel suffocatum
manducaverit, non solum eruditionis totius alienus, sed ipsius quoque intelligentiae communis prorsus extraneus,
sub anathematis vinculo obligatus in laqueos incidat diaboli. Adriano, Epistola II Adriani papae ad Egilam. c782783, f8.
71
Essa prática relatada pelo Papa se trata do Kasher215, um antigo ritual judaico que se
refere à maneira alimentícia desse povo. O fato de alguns cristãos estarem comendo carne sem
sangrar era uma problemática para o cristianismo, dado o fato de que, ao se tornarem cristãos,
eles estariam cometendo heresia ao continuarem com tais costumes. E pelo fato de essas
práticas estarem ocorrendo na península junto com o Migecianismo, foi necessário ocorrer um
concílio para tratar das mesmas, desencadeando na questão Adocionista. Visto que, quando se
findou tais práticas heréticas, o pensamento Adocionista chegou ao conhecimento de outras
regiões, como a Igreja Franca e Romana, pois elas tinham entrado com a permissão do arcebispo
hispânico na península para findar as práticas heréticas que lhes chegavam em conhecimento.
Desse modo, vemos que, mesmo que a problemática das práticas judaicas não
estivessem conectadas diretamente ao pensamento Adocionista, o judaísmo e seus costumes
entre os cristãos foram o que desencadeou, de certo ponto, as discussões entre os membros da
Igreja sobre o Adocionismo, dado que o descuido das dioceses da Hispânia estavam permitindo
que práticas não cristãs ocorressem dentro de seu território.
Em vista disso, vimos que, na história da Hispânia, os heréticos se qualificam em dois
tipos: aqueles pensamentos tidos por aqueles aquém a nobreza visigoda dominante discordava,
e os costumes judaicos praticados por cristãos. Desse modo, para eliminar tais contendas, a
Igreja Hispânica – aliada à nobreza dominante – utilizava a convocação dos concílios para
findar ideias contrarias, tornando-as heréticas quando estas eram consideradas ortodoxas por
grupos rivais. No século VIII, essas questões ainda eram muito presentes, como fica claro na
atuação da Igreja Franca quanto à questão Adocionista.
Na história da Igreja, desde seus primórdios, mantem-se a ideia de que uma heresia,
em geral, é uma ideia discordante do texto canônico, e a Igreja Hispânica não era exceção nesse
tipo de tratamento de ideias divergentes. Sendo assim, temos uma concepção de como a Igreja,
de forma geral, lidava com esses pensamentos, formando, então, um processo para torná-los
heréticos. Desse modo, tendo visto como esse tópico é relacionado, abordaremos como os
defensores dos diversos adocionismos e suas vertentes eram vistos pela Igreja e exporemos suas
diferenças para que entendamos as causas de as concepções dos clérigos Elipando e Félix terem
ganhado o nome de Adocionismo e por que seriam consideradas ou não heréticas.
215
A comida para a cultura medieval judaica tinha regras e/ou leis diárias bem rigorosas, e o Kasher ou kosher é
uma interpretação rabínica vinda do Talmude. O ritual se trata da maneira como o animal foi abatido, o que envolve
uma complexidade no ritual em que o animal passa, entre outros detalhes. Um cristão, ao se envolver nesse costume,
significava, para a Igreja Medieval, a perda de seu estado de pureza, configurando uma atividade herética.
ROTH, Norman. Medieval Jewish civilization: an encyclopedia. New York: Routledge, 2003. p. 256
72
ADOCIONISMO É UMA HERESIA?
Desde os primeiros séculos do cristianismo, circularam, entre seus adeptos, versões
em que a figura de Cristo era entendida como um simples humano, adotado por Deus como
filho. Essas vertentes que afirmavam ser Jesus de natureza apenas humana foram recusadas
pelos primeiros concílios ecumênicos do cristianismo: Nicéia 216 , Éfeso, Calcedônia e
Constantinopla217. Nessas assembleias, ficou definido que Jesus Cristo era igual ao Pai, mas
tendo duas essências: humana e divina. Porém, a complexidade das ideias religiosas é muito
mais resistente do que podem propor ou impor nos cânones conciliares. Consequentemente, o
consenso obtido não conseguiu silenciar as ideias divergentes, pelo contrário, elas renasceram
ao longo de toda a Alta Idade Média em várias regiões cristãs, como aponta a documentação
em análise para a Península Ibérica.
Um dos primeiros movimentos cristãos que afirmava a ideia da humanidade de Cristo
foi os Ebionistas. Estes negavam a ideia de que Jesus tivesse uma natureza divina, defendendo
que ele era apenas um homem, mais precisamente, um dos profetas de Deus que teria alcançado
um grau de divindade no momento de seu batismo, ocasião na qual o Espírito Santo teria se
manifestado em sua pessoa.
Próximo a essa ideia estava um líder gnóstico da Ásia menor, chamado Cerinto, que
ficou conhecido como um heresiarca218. Sua tese se baseava em uma perfeita distinção entre
Jesus e Cristo, na qual Cristo aparece como um homem perfeito e Jesus, como um simples
homem, filho de José e Maria, que se tornara superior aos outros pela justiça e sabedoria que
adquiriu após seu batismo, momento em que Deus teria lhe enviado o Espírito "Cristo" em
forma de pomba. Desde então, este teria começado a anunciar a mensagem de Deus e operar
Em Nicéia ficou decidido seguir o termo “Homo-ousios” (homos – o mesmo, ousia – essência, ou seja, da
mesma essência ou substância). Entendia-se que, em termos corpóreos e espirituais, a geração do Filho pelo Pai
não produziu cisão ou divisão da divindade, ele seria consubstancia ao Pai, indicando que o Filho de Deus não
teria qualquer semelhança às criaturas criadas por Ele, que Cristo seria completamente semelhante apenas ao Pai
e não seria derivado de outra substâncias além do Pai, portanto, Pai e Filho seriam um só Deus.
217
Essas questões cristológicas continuaram a ser reproduzidas, o fato de Cristo ser uma pessoa com duas
naturezas, humana e divina ao mesmo tempo. Essa questão a respeito, da natureza de cristo não ficou bem
delimitada, o que levou essa ideia a ser debatida em outros concílios. Em Éfeso o ponto de vista teológico deixa
clara a expressão, união hipostática ou dupla natureza, pelo qual a natureza divina e humana de Cristo se funde em
uma só pessoa, no documento usado no concílio, na segunda carta de Cirilo para Nestório, foi constituído uma
explicação para a dupla natureza. A carta foi escrita entre 26 de janeiro a 24 de fevereiro de 430, foi lida e aprovada
no Concílio de Éfeso em 341. DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações da
fé e moral. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p.96-97.
218
Diziam que era contemporâneo e opositor de São João Evangelista ou Apóstolo João. Foi um dos doze
apóstolos de Jesus, sendo o mais novo dos 12 discípulos. Tinha, provavelmente, cerca de vinte e quatro anos de
idade à altura do seu chamado por Jesus. Foi responsável pela escrita do Evangelho segundo João, as
três epístolas de João e o livro do Apocalipse.
216
73
milagres.219 Cerinto, de acordo com Bettenson220, partia apenas do evangelho de Mateus para
defender suas ideias, rejeitando as demais escrituras, principalmente os textos de São Paulo,
quem ele considerava um apóstata.
Na sequência temporal, podemos destacar outros pensadores da Igreja com
semelhantes opiniões à de Cerinto, como Teódoto de Bizâncio 221 , o curtidor de peles, um
mercador de couro que se juntou a seu discípulo Teódoto, o Jovem222. Ambos afirmavam que
Cristo era alguém diferente dos outros humanos por ter nascido de uma mãe virgem e por
vontade de Deus. Além disso, por ter vivido como uma pessoa justa, Deus lhe concedeu poderes
sagrados a partir de seu batismo com o Espírito Santo. Eles certamente seguiam o evangelho de
Mateus ou de Lucas para explicar seu lado humano, os quais basearam suas ideias quando
traziam uma árvore genealógica de Jesus. Nesses evangelhos seguia-se a descendência pela mãe
Maria, utilizando o evangelho de Mateus, que começa a linhagem de Jesus em Abraão, seguindo
até Salomão, filho do rei Davi. Desse modo, Jesus descenderia de José, seu pai.
Os seguidores de Teódoto, porém, dividiram-se em duas vertentes: uma defendia que
Jesus era um homem comum, deificado pelo Espírito que recebera de Deus no momento de seu
batismo; outros defendiam que Jesus havia sido adotado por Deus e não teria se tornado Deus
até depois de sua ressurreição.223 A ideia foi condenada como heresia em 190 pelo Papa Vítor
e Teódoto de Bizâncio foi excomungado. Isso, por sua vez, não impediu que essas ideias
continuassem a circular.
Outro personagem que devemos destacar é Paulo de Samosata224, que viveu no século
III e foi bispo de Antioquia. Ele afirmava que Cristo era um homem onde habitava as virtudes
de Deus e, portanto, ele não seria propriamente Deus. Paulo foi condenado e tornou-se
heresiarca em um concílio em Antioquia, no ano de 269, sendo deposto de seu bispado em 272.
No século VIII, vemos essas ideias retornarem por meio da voz de um arcebispo hispânico. As
219
HERNANDEZ, A. Del Campo. Introduccion. In: Beato de Liébana. Obras Completas y complementares I:
Comentario al apocalipsis himno “o dei verbum” apologético. Madri: Biblioteca de autores cristianos, 2004. p.658.
220
Bettenson, Henry. Documents of the christian church. New York: Oxford university Press, 1947. p.52.
221
Teódoto de Bizancio, defendeu sua doutrina em 190, chamada de Monarquismo dinamista. COSTA, Paulo
Cesar. Salvatoris diciplina: Dionisio de Roma e a regula fidei no debate teológico do III século. Roma: Editrice
pontifica universita gregoriana, 2002. p. 47.
222
Teódoto, o Jovem, ou cambista, foi seguidor de Teódoto de Bizâncio, disseminador do monarquismo em Roma
no início do século III. Junto com outro discípulo de Teódoto, Asclepiódo, organizaram uma comunidade própria
e nomearam um bispo chamado Natálio, conhecido como o primeiro antipapa, mas logo se arrependeu e implorou
perdão ao Papa Zeferino. Com isso, Teódoto, o jovem, foi excomungado por Zeferino, bispo de Roma. Idem. p.47.
223
EHRMAN, Bart D. Como Jesus se tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014. p. 234.
224
Paulo de Samosata foi bispo de Antioquia de 260 a 272, sendo deposto em 269 por um sínodo reunido em
Antioquia, mas a sentença entrou em vigor apenas em 272, quando o imperador Aureliano o depôs. No concílio
de Nicéia (325), seus discípulos foram excomungados e seu batismo, declarado sem valor. MACHADO, Alda da
Anunciação, NETTO, João Loyola Paixão. op. cit. p. 411.
74
discussões sobre o tema tiveram início quando tal arcebispo, de nome Elipando, afirmou, no
“Símbolo de fé” do concílio de Sevilha em 784, que entendia que Cristo era filho gerado de
Deus, mas filho adotado em sua humanidade. Nessa interpretação, entendia-se que a afirmação
“Deus se fez carne” significava, literalmente, “adotou a carne”. De acordo com o que fora
estabelecido nos concílios ecumênicos – Nicéia, Constantinopla, Calcedônia e Éfeso –, Cristo,
sendo a segunda pessoa da Santíssima Trindade, possuía duas essências: uma humana e outra
divina; estas seriam inseparáveis e coexistiriam simultaneamente. Entendia-se que havia
ocorrido um duplo nascimento, primeiramente vindo de Deus – portanto filho gerado de Deus
– e, posteriormente, da Virgem. Deus, por ser um ser imaterial, ao tornar-se humano, teria
adotado a forma de suas criaturas e, por isso, ao se tornar Jesus, teria Ele adotado a essência
humana.
Elipando, juntamente com Félix 225 , bispo de Urgel, foram os dois grandes
protagonistas da defesa do Adocionismo hispânico. Os escritos de Félix sobre a essência
humana de Cristo nos aproximam um pouco da forma como as ideias Adocionistas eram
compreendidas dentro da Igreja Hispânica. Em uma carta ele explica como as Sagradas
Escrituras relatam a concepção do duplo nascimento de Cristo226:
Este es mi Hijo amado en quien me he complacido (Mt 3,17). Porque así como
en el primer nacimiento, en el que nacemos según la carne, ningún hombre
puede existir que tenga su origen en otro distinto de aquel primer Adán, que
fue creado de la Tierra virgen; así en este segundo nacimiento espiritual, en el
que renacemos por el agua y el Espíritu Santo, nadie puede conseguir la gracia
de la adopción excepto aquel que... en Cristo, creado y hecho de la carne de la
Virgen, que es el segundo Adán, recibió los dobles nacimientos: el primero,
el que es según la carne; el segundo, el espiritual, que se realiza por la
adopción; nuestro mismo Redentor, según su humanidad, participa en sí
mismo de ambos: el primero, el que al nacer recibió de la Virgen; el segundo,
que tuvo su comienzo cuando en el bautismo resucita de entre los muertos.
(Lo que se puede confirmar en las genealogías que se leen en el Evangelio,
una según Mateo y la otra en Lucas.).227
225
Félix foi o principal responsável pela difusão da doutrina na província Tarragona e na fronteira dos Pirineus.
Félix. Epistola Felicis ad Alcuinum. 798, f.[s.n.].
227
Hic est filius meus dilectus in quo mihi bene complacui. Quoniam sicut in prima generatione, ex qua secundum
carnem nascimur, nullus homo esse potest, qui aliunde originem trahat, nisi de primo illo Adam, qui ex terra
virgine creatus est; ita in hac secunda generatione sprituali, in qua renascimur ex aqua et Spiritu Sancto, nemo
gratiam adoptionis consequi valet, praeter illum qui ... in Christo ex carne Virginis creatum et natum, qui est
secundus Adam, accepit has geminas generationes: primam videlicet, quae secundum carnem est; secundam vero
spiritualem, quae per adoptionem fit; idem Redemptor noster secundum hominem complexus in semetipso continet:
primam videlicet, quam suscepit ex Virgine nascendo; secundam vero, quam initiavit in lavacro a mortuis
resurgendo. (Quod confirmari potest in genealogiis, quae in Evangelio leguntur, una secundum Mattheum, altera
secundum Lucam).
226
75
Essa era a base do pensamento Adocionista defendido na Península Hispânica do
século VIII. Além disso, o bispo Félix acrescentava a esta o conceito de um último elemento ao
afirmar que Deus, ao adotar a carne/Cristo, teria, na verdade, todos os seus poderes limitados à
carne e seriam, portanto, um Deus nuncupativo228. Como fica explicado no relato em sua carta
para Alcuíno229:
De una segunda manera es llamado Dios nuncupativo, como se dijo arriba de
los santos predicadores, de los que el Salvador dice a los judíos: Si llama
dioses a aquelos a quienes se doté la palabra de Dios (Jn 10,35); pero éstos
no por naturaleza, como Dios, sino por la gracia del Dios, que es verdadero
Dios, fueron deificados dioses llamados a su servicio; ciertamente en este
orden el Hijo de Díos, Señor y Redentor nuestro, según su humanidad, como
en la naturaleza, así también en el nombre., aunque elegido de forma más
preclara que todos, es sin embargo verdaderamente partícipe con ellos, así
como también en todas las demás cosas, es decir, en la predestinación, en la
elección, en la gracia, en lo recibido, en la asunción del nombre de siervo y en
el acampar, y todas las demás cosas semejantes a éstas, para que él mismo,
que esencialmente con el Padre y el Espíritu Santo en la unidad de la divinidad
es Dios verdadero, él mismo en su forma humana con sus elegidos fuese
deificado y Dios nuncupativo por la gracia de la adopción.230
Portanto, na leitura de Félix, Cristo seria deificado, sendo de essência semelhante ao
Pai e ao Espírito Santo, porém, devido ao fato de adotar a forma carnal humana, Cristo não
seria composto de todos os seus poderes de deidade – onipotência, onipresença e onisciência.
Estaria ele, então, limitado, em sua forma carnal, de toda sua potência, sendo, portanto, um
Deus nuncupativo.
As afirmações de Elipando e Félix sobre Cristo foram interpretadas por outros
membros da Igreja como errôneas, o que os levou a um intenso debate em diversos concílios
regionais231 nas Igrejas de Roma e do reino Franco.
228
Deus Nuncupativuus: lat. Deus nuncupativo, i.e., Deus nominal, apenas assim chamado, não real. Nuncupativus
(feito de boca; particípio passado de nuncupare, nomear; de noen = nome+ capere = tomar) e do sufixo ivus. Os
unitários dizem que cristo é Deus nuncunpativo (simplesmente nominal, não essencial, não no sentido metafísico
da palavra). SCHÜLER, Arnaldo. Dicionário enciclopédico de teologia. Canoas: Editora da ULBRA, 2002. p.157
229
Félix. Epistola Felicis ad Alcuinum. 798, f.[s.n.].
230
Secundo autem modo nuncupative Deus dicitur, sicut superius dictum est de sanctis praedicatoribus, de quibus
Salvator Iudaeis ait: Si enim illos dixit deos, ad quos Dei sermo fadus; qui tamen non natura ut Deus, sed per Dei
gratiam ab eo, qui verus est Deus, deiticat dit sunt sub illo vocati; in hoc quippe ordine Dei Filius Dominus et
Redemptor noster iuxta humanitatem, sicut in natura, ita et in nomine, quamvis excellentius cunctis electrus,
verissime tamen cum illis communicat, sicut et in ceteris omnibus, id est, in praedestinatione, in electione, in gratia,
in susceptione, in assumptione nominis servi, atque applicatione seu cetera his similia, ut idem qui essentialiter
cum Patre et Spiritu Sancto in unitate deitatis verus est Deus, ipse in forma humanitatis cum dectis suis per
a.doptionis gratiam deificatus fieret et nuncupativus Deus.
231
Vide: ALBERIGO, Giuseppe. 1995.
76
ELIPANDO: PODE UM BISPO SER HERÉTICO?
Como vimos, é algo comum na história do cristianismo que os conflitos dogmáticos
não fossem interrompidos pela condenação de tais ideias em assembleias conciliares, o que nos
deixa claro que esse assunto não era algo de fácil solução e/ou passível de acordo entre os
diversos grupos de cristãos existentes em todos territórios que, há pouco tempo, compunham o
Império Romano.232 O concílio de Nicéia I, como vimos, foi um dos primeiros espaços em que
se tentou enfrentar questões pertinentes à natureza de Cristo, as quais haviam se tornado
frequentes entre os grupos cristãos: o Filho (Jesus) teria sido gerado de forma semelhante a
qualquer humano?233 Poder-se-ia afirmar que o Filho não teria existido desde sempre? O Filho
teria existido antes de ser gerado?
Essas questões colocavam em ênfase a essência de um vocabulário novo aos cristãos
daquela época, como a palavra “homo-ousios” (homos – o mesmo, ousia – essência, ou seja, da
mesma essência ou substância), sobre as quais desenvolviam-se discussões relacionadas à
geração do Filho pelo Pai. Esse conceito buscava afirmar que não havia cisão ou divisão da
divindade, sendo Cristo consubstancial ao Pai, ou seja, o Filho de Deus não deveria ser
entendido como tendo qualquer semelhança com as criaturas criadas por Ele, posto que era
completamente semelhante apenas e somente ao Pai. Além disso, ele não derivaria de qualquer
outra substância além do Pai. Portanto, Pai e Filho seriam um só Deus (“gerado, não criado” gennênthénta oú poiêthénta).234
Esses debates sobre a temática das essências de Cristo levaram o concílio de Nicéia a
formar o Símbolo da Fé, o que veio a se chamar “Credo Niceno”, que optou, entres diversas
ideias, pela palavra homo-ousios.
Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis
e invisíveis, e em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado, Unigênito
do Pai, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da Luz, Deus verdadeiro de
Verdadeiro Deus, gerado, não criado, consubstancial com o Pai. Por quem
todas as coisas foram feitas, as que estão no céu e na terra. Que por nós homens
232
SCHAFF, Philip.Nicene and Post-Nicene Fathers: Second Series, Volume XIV the Seven Ecumenical
Councils. United States of America: Lightning Source, 2007. p. 8-42.
233
Pois nas escrituras: Deus não é como o homem, como também os homens não são como Deus (Nm 23,19).
CORBELLINI, Vital. A participação de Atanásio no concílio de Nicéia e a sua defesa do Homooúsios.
Teocomunicação, Porto Alegre, v.37, n.157, set. 2007. p. 396-408. p.400.
234
No momento do concílio, existia a vertente Ariana, a qual defendia que ele seria mais uma das criaturas de
Deus, sendo a mais excelente dentre elas, além da vertente semi-ariana, que defendia outra palavra: a homoi-ousios
(homoios - similar, ousia – essência, ou seja, essência semelhante ao Pai). SOUZA, Lúcio Bento de. A fé trinitária
e o conhecimento de deus: abordagem a partir da obra De Trinitate de Santo Agostinho. Belo Horizonte,
2010. p.18.
77
e para nossa salvação desceu e se encarnou e se fez homem. Ele sofreu e ao
terceiro dia ressuscitou e subiu aos céus. E virá para julgar os vivos e os mortos.
E no Espírito Santo. E quem disser que houve um momento em que o Filho
de Deus não existia, ou que ele foi criado daquilo que não existia, ou que ele
é de uma substância ou essência diferente ou que ele é uma criatura, ou sujeito
à mudança ou conversão, todos que assim são anatematizados pela Igreja
Católica. 235
Nunca houve um consenso que ultrapasse a fórmula prescrita nas atas dos concílios
em relação a essa questão. Muitos grupos de cristãos continuaram a formular dúvidas
relacionadas a essa fórmula: qual seria a essência de Cristo? Ele era humano e, ao mesmo tempo,
divino? Cristo e Pai eram uma única pessoa ou duas pessoas distintas? Como Deus poderia ter
uma única natureza e, concomitantemente, ser dividido em três pessoas distintas: o Pai, o Filho
e o Espírito Santo? Como já dissemos, os cânones definidos em Nicéia formaram a base do
cristianismo, mas isso não significou que as decisões tomadas em 325 foram acatadas de forma
definitiva.
Em consequência dessas insatisfações, o concílio de
Constantinopla reafirmou o credo Niceniano (e, por isso,
o
credo é chamado de niceno-constantinopolitano 236 ),
com o diferencial de que o papel divino ao Espírito
Santo coloca-se no mesmo patamar do Filho e do Pai:
sendo, assim, a Santíssima Trindade composta pelo
Pai, que gera o filho, o Filho é gerado pelo Pai e o
Espírito Santo procede do Pai e do Filho, todos em
uma única pessoa.
Figura 1: Representação da Santíssima
trindade, Deus com suas três pessoas
consubstanciais, ou hipóstases.
Fonte: Domínio público.
235
SCHAFF, Philip. Creeds of Christendom, with a History and Critical notes. Volume I. The History of
Creeds. 6°ed. United States of America: Harper & Brothers publisher, [s.d]. p.3.
236
Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de
Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as
coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus: e se encarnou pelo Espírito Santo,
no seio da Virgem Maria, e se fez homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi
sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai.
E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim. Creio no Espírito
Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, ele que
falou pelos profetas. Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica. Professo um só batismo para remissão dos
pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir. - Amém. SCHAFF, Philip. op. cit.
[s.d]. p.28-29.
78
Essa discussão sobre a consubstancialidade de Deus colocou-se, como já vimos,
presente na Igreja Hispânica no século VIII. A falta de uma definição sobre a natureza de Cristo
nos cânones, em larga medida, foi o responsável pelo
retorno dessas ideias em grupos cristãos da Igreja a
Ocidente e, por consequência, o retorno dessa
discussão dentro dos concílios regionais. No concílio
ecumênico de Éfeso 237 , em 431, por exemplo,
conduziu-se um ponto de vista teológico que deixou
claro as essências de Cristo com o uso da expressão
“união hipostática” ou “dupla natureza”, ou seja, a
natureza divina e humana de Cristo se fundiriam em
uma só pessoa, sendo elas inseparáveis e coexistentes
simultaneamente. Durante esse concílio, o
principal texto usado para legitimar tal afirmação
foi a segunda carta de Cirilo para Nestório:
Figura 2: Representação da União
Hipostática de Jesus Cristo.
Fonte: Domínio público.
A encarnação do Filho de Deus
Não dizemos, de falo, que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne,
mas também não que foi transformada em um homem completo, composto de
alma e corpo: antes, porém, que o Verbo uniu segundo a hipóstase a si mesmo
urna carne animada por alma racional e veio a ser homem, de modo inefável
e incompreensível, e foi chamado filho do homem, não só segundo a vontade
ou o beneplácito, nem tampouco como assumindo somente a pessoa: e que são
diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade, mas um só o
Cristo e Filho que resulta de ambas; não porque a diferença das naturezas
tivesse sido cancelada, da pela união, mas, ao contrário, porque a divindade e
a humanidade, mediante seu inefável e arcano encontro na unidade, formaram
para nós um só Senhor e Cristo e Filho ...
Com efeito, não nasceu antes, da santa Virgem, um homem qualquer, sobre o
qual depois desceria O Verbo, mas se diz que este, unido desde o útero
materno, assumiu o nascimento carnal, apropriando-se o nascimento de sua
própria carne.... Por isso. [os santos Padres] não duvidaram chamar a santa
Virgem de Deí para, não no sentido de que a natureza do Verbo ou sua
divindade tenham tido origem da Virgem, mas no sentido de que, por ter
recebido dela o santo corpo dotado de alma racional ao qual também estava
unido segundo a hipóstase, o Verbo se diz nascido segundo a carne.238
237
Fica decidida a designação Theotokos, em que Maria seria a mãe de Deus, já que Cristo era Deus e humano ao
mesmo tempo. Esse concílio foi bastante acalorado e repleto de debates dentro e fora das assembleias, culminando
até em uma cisma, devido à decisão de Theotokos de Maria.
238
A carta foi escrita entre 26 de janeiro a 24 de fevereiro de 430, lida e aprovada no Concílio de Éfeso, em 341.
DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações da fé e moral. São Paulo: Edições
Loyola, 2007. p.96-97.
79
Em Calcedônia, de 451, o concílio reafirma as decisões de Éfeso, Nicéia e
Constantinopla, reiterando a ideia de uma só natureza, na qual o divino sobrepuja o humano.
Essa união hipostática de Cristo, entretanto, foi entendida como possuidora de duas naturezas
que seriam separadas e equivalentes, sendo que a natureza divina não se sobreporia à humana.
Porém, a insistência em se debater esse assunto nos concílios se deveu ao fato de esse tema não
deixar de aparecer nos concílios regionais.
Dessa forma, vemos que os cânones de Nicéia I e Constantinopla I são essenciais para
os debates teológicos posteriores, sendo que eles, junto com Éfeso e Calcedônia, são os
responsáveis por solucionar futuras dúvidas em relação as naturezas de Deus, além das
paridades entre os membros da Santíssima Trindade. Assim, são esses quatro concílios que se
tornaram os pilares da Igreja primitiva239. Por isso, qualquer afirmação dogmática baseia-se em
suas normas canônicas. Devemos lembrar também que as decisões tomadas nesses concílios
colaboravam para a afirmação política das Igrejas regionais, pois para solucionar problemáticas
internas utilizavam-se dessas assembleias e de suas normas para lidar com questões
conflitantes. Um exemplo é o caso do Arianismo na Igreja Hispânica, em que se utilizavam dos
cânones regionais para findá-la, porém, isso foi combatido com os concílios ecumênicos, que
as utilizavam para reafirmar suas ortodoxias ao combateram outras heresias emergentes.
Desse modo, as Igrejas também se moldavam, reafirmando os preceitos ecumênicos,
empregando o papel legitimador dos concílios em relação ao seu processo de definição e
legitimação da hierarquia eclesiástica. Portanto, os soberanos das Igrejas regionais utilizavam
desse poder para decidir quem e o que seria herético, baseado nesses concílios. É nesse ponto
que se encaixa a questão Adocionista.
Analisando tais assuntos dispostos nos concílios ecumênicos, fica, então, nossa
indagação: poderia Elipando ser um herege por causa de suas afirmações Adocionistas?
Refletindo sobre isso, examinamos as falas de Elipando em uma carta endereçada a vários
bispos das regiões da Gália, Aquitânia e Áustria, na qual ele explica por que Cristo é um filho
adotado em sua humanidade:
Nosotros, por el contrario, siguiendo las enseñanzas de los venerables santos
Padres ortodoxos y católicos, Hilado, Ambrosio, Agustín, Jerónimo,
Fulgencio, Isidoro, Eugenio, Ildefonso, Julián y los demás, afirmamos y
creemos en el Dios, Hijo de Dios, antes de todos los siglos engendrado del
Padre, sin comienzo, coeterno, cosemejante y consustancial, no por adopción,
sino por naturaleza según lo atestigua el propio Hijo: El Padre y yo somos uno
239
BELLITTO, Christopher M. História dos 21 concílios da igreja: de Nicéia ao Vaticano II. Tradução: Cláudio
Queroz de Godoy. São Paulo: Edições Loyola, 2016.p. 35.
80
(Jn 10,30), y las restantes afirmaciones que acerca de su divinidad nos
comunicó el mismo verdadero Dios y verdadero hombre. Pero por la salvación
del género humano en la plenitud del tiempo, partiendo dé aquella íntima e
inefable sustancia del Padre y dirigiéndose a lo ínfimo de este mundo sin
separarse del Padre, apareciendo a la vista del género humano, asumiendo el
invisible un cuerpo visible de la Virgen, fue dado a luz por las puras entrañas
virginales de la madre. Segun las tradiciones de los Padres confesamos y
entranas que el, nascido de mujer, nacido bajo la ley, no es Hijo de Dios por
generacion, sino por adocion; no por natureza, sino por la gracia. Es lo mismo
que atestigua el próprio Senor cuando dice: El Padre es mas que yo (jn 14,28);
y el evangelista dice de el: El nino crecia y se fortalecia lleno de sabiduria y
la gracia de Dios estaba em el (Lc 1,80). Y tambien: vimos su gloria, glortia
como del Unigenito del Padre, llemo de gracia y verdad (jn 1,14); de esta
adopcion de la habla San Ambrosio em su libro sobre la Trinidad, diciendo:
“Y como os hábeis convertido a Dios trás Haber abandonado a los ídolos (1
tes 1,9), servid al Dios vivo y verdadero. Pues ellos fingen ser dioses, pero el
por natureza es um Dios vivo y verdadero. Pues tambien em nuestro mismo
uso hay hijo adoptivo e hijo verdadero. No décimos que el hijo adoptivo es
por natureza, sino décimos que lo es por natureza el que es verdadero hijo”. Y
tambien despues de algunas líneas: “el parto de la Virgen no cambio la
natureza, sino que fue uma novedade el modo de engendrar. Em suma, la carne
nacio de la carne; tomo por tanto la virgen de lo suyo para entregar, pues no
proporciono la madre algo ajeno, sino que dono algo próprio de sus entranas
de manera inusitada, pero com la acostumbrada funcion. Por tanto, la Virgen
tomo la carne que transfirio al feto siguiendo la norma de la forma habitual.
Por tanto, la misma natureza segun la carne de la madre Maria y del
Inengendrad no es diferente de la de los hermanos, porque dice de la escritura
que se haria semejante a los hermanos en todo. Ciertamente es semejante a
nosotros el Hijo de nuestro Dios, no segun la plenitud de la divinidad, sino
segun la verdade de la naturaleza racional; y para decirlo de uma manera mas
clara, de nuestro cuerpo humano”.240
240
Ad notionem nostram pervenit lugubris et funesta opinio quae nos usquequaque contrivit, in eo quod intifrasii
Beati nefandi. Asturtensis presbyteri, pseudochristi et pseudoprophetae, pestiferi dogmatis sermo vipereus et nidor
sulphureus arcana pectoris vestri usquequaque foedaverit, ob illud quod carnis adoptio in Filio Dei secundum
humanae servitutis formam nequaquam fuisse asserit nec veram ex virgine visibilem formam susceperit. Nos igitur
e contrario secundum sanctorum venerabilium patrum, Hilarii, Ambrosi, Augustini, Iheronymi, Isidori, Eugenti,
Ildefonsi, Iuliani et ceterorum orthodoxorum atque catholicorurn dogmata confitemur et credimus Deum Dei
Filium ante omnia tempora sine initio ex Patre genitum, coaeternum et consimilem et consubstantialem non
adoptione, sed genere, neque gratia, sed natura, id ipsum eodem Filio adtestante: Ego et Pater unum sumus, et
cetera quae de divinitate sua idem verus Deus et verus homo nobis loquutus est; pro salutem vero humani generis
in fine temporis ex illa intima et ineffabili Patris substantia egrediens et a Patre non recedens, huius mundi infima
petens, ad publicum humani generis apparens, invisibilis visibile corpus adsumens de virgine, ineffabiliter per
integra virginalia matris enixus. Secundum traditiones patrum confitemur et credimus eum, factum ex muliere,
factum sub lege, non genere esse Filium Dei, sed adoptione, neque natura, sed gratia, id ipsum eodem Domino
adtestante qui ait: Pater maior me est, et evangelista de illo: Puer autem crescebat et confortabatur plenus sapientia,
et gratia Dei erat in illo, et iterum: Vidimus gloriam eius quasi gloriam unigeniti a Patre, plenum gratiae et veritatis.
De qua adoptione carnis beatus Ambrosius in libro de Trinitate loquitur dicens: «Quomodo conversi estis ad Deum
a simulacris, servite .Deo vivo et vero. Illi enim dii esse simulantur, natura autem Deus vivus et verus est. Nam et
in ipso usu nostro est adoptivus et verus filius. Adoptivum Filium non dicimus Filium esse natura, sed eum dicimus
natura esse qui verus est Filius». Item post aliqua: «Partus enim virginis non natura mutavit, sed generandi usum
novavit. Denique caro de carne nata est; habuit ergo de suo virgo quod traderet. Non enim alienum dedit mater,
sed proprium e visceribus suis contulit inusitato modo, sed usitato munere. Habuit igitur carnem virgo, quam
naturae sollemnis iure transcripsit in foetum. Eadem igitur secundum carnem generantis Marne genitique natura
nec dissimilis fratribus, quia dicit scriptura ut per omnia fratribus similis fieret. Similis utique Dei Filius nostn non
secundum divinitatis plenitudinem, sed secundum animae rationalis et, ut expressius dicamus, humanae nostrique
corporis veritatem». Elipando, Epistola Elipandi ad episcopos Galliae Aquitaniae atque Austriae. c79[s.d], f1.
81
Elipando baseia suas ideias de acordo com as passagens bíblicas e seguindo a
indicação dos doutores da Igreja. Dentre vários quesitos, ele retrata que não estava em
desacordo com as decisões tomadas no concílio de Nicéia, no qual o termo Homo-ousios deu
forma à relação entre Pai e Filho, não permitindo cisão ou divisão entre eles, ideia que foi
reafirmada no concílio de Éfeso.
Desse modo, as afirmações do arcebispo reafirmam que a união hipostática de Jesus é
um quesito importante para o cristianismo. Portanto, ele deixa claro que eles sustentavam as
ideias Adocionistas com apoio dos cânones do concílio de Constantinopla, onde fica
estabelecida a não divisão entre a Trindade, mesmo ela tendo formas materiais diferentes.
Porém, Elipando também baseava suas defesas em um trecho retirado da Bíblia - El Padre es
mas que yo (jn 14,28). Eles utilizavam essa passagem para explicar a relação de Deus e Cristo,
e como fica estabelecida a sua subalternidade ao ocorrer sua adoção carnal, dado que, ao ter
tomado a forma de suas criaturas, Cristo estaria em um grau de inferioridade para com o Pai,
mas ainda estaria em um grau elevado em comparação às suas criações, porém, jamais
rompendo sua ligação com os membros da Trindade, dado o fato de que ele ainda seria Deus
em forma carnal.
Tendo em vista os detalhes apresentados, vemos que, na visão do arcebispo, ele estava
em acordo tanto nos concílios regionais, como ecumênicos. É a conclusão que se chega se
levarmos sua análise ao pé da letra, porém, a chave do problema se coloca no peso que a Igreja
deu às técnicas de leitura dos textos bíblicos, o que fazia com que suas interpretações se
abrissem em um leque de possibilidades. A bíblia, assim como os textos de forma geral, é
polivalente nas suas possibilidades de leitura, visto que está repleta de metáforas, alegorias,
antíteses, jogos de palavras e argumentações241. Elipando e seus opositores mergulharam nesse
emaranhado de interpretações possíveis a um texto e é daí que vem a acusação de herético que
lhe foi atribuída: sua interpretação da Bíblia a respeito da natureza humana de Cristo estava
equivocadas e, portanto, ele deveria se retratar e seguir o caminho correto.
241
Dado o fato de que uma palavra da Bíblia tem quatro sentidos, o que pode ocasionar erros de interpretação,
tomemos como exemplo a palavra Jerusalém (pois essa interpretação dizia respeito sobretudo à palavra): 1) ela
tem um sentido próprio ou histórico, de cidade onde viveram David, Salomão, etc.; 2) tem, também, um sentido
alegórico, que se refere a Cristo, e Jerusalém significa Igreja; 3) tem um sentido tropológico, ou seja, moral, e
Jerusalém significa a alma do cristão, tentada, castigada, curada; 4) finalmente, há um sentido analógico, relativo
à ressurreição e ao reino de Deus, e Jerusalém significa a cidade de Deus depois do juízo final. Porém, também há
regras para como se dever fazer uma interpretação bíblica. Ticônio escreveu, em meados dos anos 380, o livro
Liber Regularum. Este auxilia na interpretação de textos bíblicos, estabelecendo sete regras para analisar textos,
portanto, não era apenas olhar as falas de maneira literal, elas precisavam ser analisadas. REBOUL, Olivier. op.
cit. p. 78.
82
Mas nos vem uma indagação: como um arcebispo conhecedor das escrituras e dos
atributos necessários para suas leituras adequadas foi acusado de não saber interpretar
corretamente e de propagar esse erro por seus paroquianos? É sobre essa questão que nos
debruçaremos no próximo capítulo deste trabalho.
83
3. EM DEFESA DE CRISTO: ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NA
EPISTOLOGRAFIA DO DISCURSO CLERICAL
Ter grande conhecimento não é a mesma coisa que
ser
inteligente;
inteligência
não
é
apenas
informação, mas também critério, o modo como a
informação é coordenada e utilizada.
(Carl Sagan, Cosmos, 2017)
No primeiro e segundo capítulos, tratamos da geografia política da querela Adocionista
e de questões estruturais da hierarquia e do processo de definição de dogmas em concílios
ecumênicos e regionais que se colocaram como parte das discussões que acompanhamos na
documentação. Nossa tarefa, até aqui, foi mostrar as imbricações políticas que cercavam as
Igrejas partícipes dessa questão e, para tanto, articulamos os indivíduos envolvidos e suas
posições hierárquicas dentro dessas Igrejas regionais, bem como das figuras de poder dentro
dos reinos que também atuaram nesse evento.
Em nossa discussão, até aqui, apresentamos o papel que as decisões sobre questões
dogmáticas tomadas pelos concílios tiveram como legitimadoras do poder político que se
configurou nas regiões da Península Hispânica, Império Franco e parte da Península Itálica.
Caminhamos para o entendimento de que a condenação de um determinado pensamento sobre
o cristianismo e de seus defensores como heréticos tinha por trás um campo de atuação do poder
político, visto que os bispados, em larga medida, eram as bases sobre as quais os reis impunham
sua autoridade sobre as regiões. Isso se dava por meio de acordos entre os reis e a aristocracia
local, que assumia a posição de comando dentro dos bispados, lugar que, desde o século IV, foi
se configurando como quadro administrativo das regiões antes romanas – experiência que a
historiografia destaca muito bem para o caso do Império Carolíngio.
Diante disso, nossa proposta para este capítulo é analisar o processo pelo qual passou
as ideias Adocionistas a partir das estratégias de construção de legitimidade que se configuram
dentro do discurso construído nos dois lados da questão Adocionista. Grande parte da
documentação que dispomos compõe-se por cartas trocadas entre aqueles que estiveram
envolvidos na querela, o que nos permite acompanhar o conflito por uma perspectiva de debate,
já que muitas das cartas dialogam entre si. Nosso trabalho com a documentação teve como fonte
condutora a figura de Elipando, arcebispo de Toledo. Nos prendemos na construção de uma
84
narrativa que mostrasse como e por que esse personagem, mesmo sendo uma pessoa influente
e com notável conhecimento das escrituras e da oratória, terminou sendo acusado de herético.
Para acompanhar esse debate, nos cabe, antes de tudo, fazer algumas ponderações
sobre o gênero da epistolografia na Alta Idade Média, visto que algumas questões comuns a
esse tipo de escritura podem contribuir para maior compreensão dos debates em torno do
Adocionismo. Isso tendo em vista que toda forma de escrita é uma prática sociocultural, o que
significa que existem regras linguísticas específicas atuantes de forma dialética com as
dinâmicas sociais. No caso das cartas medievais, é sabido que elas dispunham de normas com
procedimentos de etiqueta, linguagem, cortesia e polidez, extremamente ligados a questões
dessa natureza, podendo gerar interpretações incorretas por parte dos olhares desatentos da
modernidade, pouco treinados às regras da retórica.
EPISTOLOGRAFIA: A ARTE DA ESCRITA DISCURSIVA
Na Grécia Antiga, a palavra epístola estava ligada a qualquer recado enviado por um
mensageiro, quer fosse oral ou escrito242. Em Esparta, por exemplo, era comum o envio de
mensagens codificadas, contendo informações do comando militar243. Na Antiguidade e na
Idade Média, as mensagens escritas ou orais eram, portanto, o meio mais usado para fazer
circular as informações a longa distância. Segundo Guarniere:
Ela parece ter surgido junto com a escrita. De início, é a necessidade que faz
a carta nascer: ela é escrita quando é possível suprir de outra maneira a
distância que separa os interlocutores: com ela, o autor busca “atravessar os
mares nas quinas que entrecortam as ondas, enquanto, quais vagas por vagas,
os instantes da vida se esvaem”. A carta deve funcionar como uma “ponte”
que liga os interlocutores, fazendo com que eles se apresentem fisicamente
um ao outro — ou pode ser criticada por ser incapaz de realizar esse efeito.
[...] A carta atua, assim, como um substituto, ainda que débil, para uma
conversa presencial. 244
242
Rosenmeyer, Patricia A. Ancient Epistolary Fictions: the Letter in Greeek Literature. Cambridge:
Cambridge University Press, 2001. p.19.
243
Geralmente, essas mensagens militares eram escritas em uma faixa de couro enrolado em um bastão, em um
ângulo chamado σκυταλη (citala ou bastão de Licugo). Quando era tirado do bastão, as palavras pareciam
ininteligíveis, mas o destinatário saberia decodificar, pois tinha com ele uma vara de forma idêntica que, quando
enrolada a tira de couro ao redor de outro bastão, as tornava legível. Ibidem, p.23.
244
GUARNIERI, Felipe de Medeiros. A correspondência entre São Jerônimo e Santo Agostinho: Tradução e
estudo. 2016. Dissertação (Mestre em Letras Clássicas) – Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas,
Universidade de São Paulo, São Paulo. p.26.
85
As cartas eram capazes de unir por meio das letras, transformando em palpável uma
comunicação entre pares distantes. Além disso, ela trazia o senso de presença física ao
possibilitar discussões, muitas vezes acaloradas, entre autores que poderiam nunca ter se
conhecido pessoalmente, como foi o célebre caso de Santo Agostinho e São Jerônimo, que
sempre dialogaram à distância.
Elas tinham duas funções distintas entre o clero cristão: uso particular com conversas
mais íntimas entre os personagens; um outro de foro público, tendo como objetivo de discussão
a própria administração da Igreja. Porém, para ambos os casos, o conteúdo das cartas quase
nunca ficava no universo privado, na maioria das vezes, seu conteúdo tornava-se do
conhecimento de muitos, mesmo tendo sempre um destinatário anunciado logo em suas
primeiras linhas, como no exemplo a seguir:
Ese es el motivo por el que dediqué el trabajo de unos pocos días como alivio
de vuestro santísimo viaje, a fin de que tuvierais en vuestras manos las
piadosas y muy necesarias respuestas a una cierta carta, dirigida a mi nombre
por el obispo toledano Elipando, no sea que quizás la lectura de su carta
manche las mentes de algunos, porque hemos oído que sus letras habían
llegado a manos de otros antes que me fueran entregadas a mí, a quien habían
sido encabezadas.245
Por esse motivo, elas eram compostas com muita eloquência e clareza, já que poderiam
ser lidas em voz alta para uma audiência ou mesmo circular entre as mãos de vários leitores
diferentes.
O gênero da epistolografia246 se caracteriza como um diálogo, uma conversa unilateral,
que parece sempre ter a outra parte dela em cartas enviadas por um interlocutor. 247 Essa
característica, mesmo muito próxima da oralidade, não afasta o gênero de uma série de
princípios estruturais e normativos que, independentemente do grau de erudição de quem
escreve, acaba por apresentar um texto profundamente elaborado. O assunto, por sua vez,
poderia ser dos mais nobres, com profundas discussões dogmáticas, sobre interpretações de
textos bíblicos, tramites burocráticos, opiniões sobre determinados assuntos, anúncios
importantes, discussões, ou mesmo algo corriqueiro, como intrigas e calúnias248.
245
Alcuíno, Epistola Alcuini ad Laidradum et Nefridium epíscopos et Benedictum abbatem et ad fideles Gothiae.
799, f[s.n.].
246
A arte de escrever cartas.
247
GUARNIERI, Felipe de Medeiros. op. cit. p.28.
248
Idem. p. 21.
86
Quanto às partes que compõe uma carta, de acordo com Guarniere, das simples às mais
extensas, elas se dividem, normalmente, em três partes249. Primeiramente, temos um cabeçalho,
também conhecido como epistula-praefatio, que, geralmente, se apresenta como um parágrafo
solto no início do texto, iniciado com uma frase simples de saudação, demonstrando uma prática
de civilismo da amizade cristã, afeto, cordialidade e respeito ao cargo dos eclesiásticos ao qual
se destinava. Isso era como um pequeno prefácio onde se indicava quem seriam os
interlocutores da conversa, como podemos ver no nosso exemplo: “Alcuino, humilde diácono,
saluda al piadoso padre obispo Félix”. Nessa carta, temos uma saudação simples e cordial.
A segunda parte da carta, trata do assunto em si. Compõe a maior parcela do texto,
com dimensões que variam a depender do assunto tratado. No nosso exemplo, o segundo e
terceiro parágrafos correspondem a esse quesito. Na terceira parte, fica a conclusão,
frequentemente formada por um único parágrafo, onde se coloca a finalização das ideias. Cabe
nesse espaço um apelo aos sentimentos do receptor, procurando comovê-lo acerca do assunto
tratado, ocasionando emoções, como revolta, compaixão, etc., o que é possível notar no último
parágrafo da carta de Alcuíno citada acima.
Vê-se que a conclusão vem em uma pequena fórmula, chamada subscriptio250. Esta se
diferenciava conforme a posição social, política ou até do grau de intimidade que havia entre
os correspondentes. Podia variar entre um simples “fique bem”, até frases mais longas, como o
que temos no nosso exemplo: “Saludos y vivid felices en el Señor Jesús, hermanos carísimos”.
E, para terminar, a carta levava a assinatura do autor ou autores251.
Para melhor esclarecimento, tomemos como exemplo252 uma de nossas fontes:253
249
Ibidem, p. 28.
GUARNIERI, Felipe de Medeiros. op. cit. p. 28.
251
Uma outra questão era o tamanho que uma carta deveria ter. Para isso não haviam regras estabelecidas; elas
poderiam ser compostas apenas de algumas linhas, como também poderiam conter várias páginas. Isso ficava a
critério do assunto que seria tratado e de seu autor. O fato é que não poderia ser muito extensa ou deixaria de ser
uma comunicação ágil, passando ao status de livro ou um outro tipo de documentação. Por isso, normalmente os
autores não excediam, em uma quantidade exorbitante, os números de páginas. Sabe-se que no século VIII havia
uma grande liberdade na escrita. Os autores podiam escrever a quantidade que achassem adequado para suas
comunicações, mas, posteriormente, no século XI, foram impostas regras mais rígidas para a maneira como
deveriam compô-las. Dentre os diversos assuntos tratados, os tópicos usuais das cartas poderiam ser desde afazeres
pessoais, até assuntos administrativos, financeiros, políticos e teológicos. Essa prática era bastante flexível em suas
temáticas, mas havia regras de como os temas deveriam ser tratados a depender de seus interlocutores. Se a carta
fosse dirigida a alguém que conhecesse pouco do assunto a ser tratado, deveria ser exposta em uma escrita mais
simples. Entretanto, todas as cartas tinham que manter sempre um caráter amigável e serem escritas de maneira
coesa. DESWARTE, Thomas; HERBERS, Klaus; SIRANTOINE, héléne. Epistola 1. écriture et genre
épistolaires: IVe-XIe siècle. Madrid: casa de Velásquez, 2018.
252
Alcuíno, Epistola prima Alcuino ad Felicem. c789, f[s.n.].
253
Pio patri Felici episcopo Alchuinus humilis levita salutem. Aliquorum fratrum relatione nobis notissimus es
pietate, etsi non facie. Quapropter praesumpsi per fiduciam caritatis, quae est Christus, volens me ipsum tuis
tuorumque fidelium per te sacrosanctis orationibus commendare; non meis meritis exigentibus, sed tuis bonis
rumoribus instigantibus. Quapropter supplex obsecro, ut me ea caritate Salvatori nostro commendetis, qua ille
250
87
Esse modelo era empregado à risca e carregava funções sociais muito claras. No caso
do primeiro parágrafo, praefatio, por exemplo, seu preenchimento correto deixava claro o lugar
social dos interlocutores. A depender do grau na hierarquia, poderiam ser usados títulos como
presbyter, episcopus, consacerdos, diaconus, além das designações carissimus, sincerissimus,
beatissimus (reservado apenas aos bispos), desiderantissimus, eximius, venerabilis, laudabilis,
religiosus, beatus e insignis. A variação se dava de acordo com a relação social254.
omnes suos coniunxit - caritas enim neminem spernit - per eum et propter eum, qui venit in hunc mundum
peccatores salvos facere et veniet ad iudicium iustos coronare; ut tunc ego peccator vel veniam per vestras orationes
accipiam, ubi vos per Dei misericordiam coronarn accipietis State fratres et viriliter pugnate pro eo, qui fortiter
pro vobis vincebat. Quia non qui coeperit, sed perseveraverit usque in finem, hic salvus erit. Et proficiscimini de
die in diem, sicut sancti Dei, qui ibunt de virtute in virtutem. Plura scripsissem vobis, si superfluum non videretur
eos admonere de virtutibus, quos rogare debeo, ut intercedant pro peccatis meis. Sed caritas, quae neminem spernit,
etiam sustinet. Quid plus? Iterum iterumque obsecro, ut me in fraterno amore accipiatis in communionem
orationum vestrarum; quatenus Deus caritatis remunerator vos accipiet in aeternam gloriam regni sui. Valete et
vivite felices in Domino Iesu, fratres carissimi.
254
Ibidem, p.30-31.
88
Naturalmente, o conteúdo e a extensão da carta também deveriam se ajustar ao
destinatário e ao motivo da produção da escritura. Porém, segundo Manuel Ramos, os manuais
medievais apontam para três qualidades que todas as cartas deveriam ter: “(...) narrativa breve,
clara e verossímil (...)”255. Dentre elas, o autor salienta que a falta de clareza seria o maior erro
que o escritor poderia cometer nesse tipo de composição escrita, pois isso quebraria com o
mérito desse tipo de composição escrita, que era o diálogo entre ausentes: “(...) A obscuridade
na carta é mais grave do que no discurso ou na conversação, porque o interlocutor não está
presente e não pode, pela interpelação, satisfazer imediata e claramente as dúvidas
levantadas”.256
Há que se ressaltar quanto à necessidade de adaptação da escrita da carta para o
destinatário: o fato de que toda técnica que define sua escrita estava atrelada às regras
fundamentais da retórica257. Essa proposição traz para nós um elemento importante no que tange
à afirmação de seu uso como suporte dos debates em torno da questão Adocionista: os intuitos
dos interlocutores em legitimar seus poderes sobre os grupos políticos dentro dos quadros
eclesiásticos. A retórica, segundo Roland Barthes, se presta de forma muito clara, sendo ela a
construção de uma rede que entrelaça os conceitos de linguagem e uso social da mesma. É uma:
“(...) técnica privilegiada (pois que é preciso pagar para adquiri-la) que permite às classes
dirigentes garantir para si a propriedade da palavra (...)”258.
Somado a isso, os estudos sobre escrita e poder vêm ressaltando que não apenas o
poder que determinados grupos sociais exercem sobre os textos – o que significa restrições à
escrita e a construção de leituras “autorizadas” que impeçam o poder dos leitores de gerarem
significado – devem ser levado em conta, mas também o poder que se pode exercer por meio
dos textos259. Isso significa que a forma pela qual a escrita é empregada define ou ajuda a definir
os processos de construção de uma memória social e/ou de um código de conduta que, por meio
da organização de feitos e palavras – gênero de escrita – possa controlar/vigiar os desvios da
oralidade (muito mais dado a rebeldias que à escrita institucionalizada).
255
RAMOS, Manuel. Teoria Clássica e Medieval da composição Epistolar: Entre Epistolografia e retórica. In:
CEM Cultura, Espaço & Memória: revista do CITCEM Centro de Investigação Transdisciplinar "Cultura,
Espaço & Memória", Porto, Edições Afrontamento. V. 8, 2017. pp. 25-42. p. 37.
256
GUARNIERI, Felipe de Medeiros. op. cit. p. 37.
257
A retórica é um procedimento técnico, isto é, uma “arte”, no sentido clássico da palavra. Para os greco-latinos,
ela era a arte da persuasão com um conjunto de regras e receitas, cuja aplicação permitia convencer mesmo quando
aquilo com o que se tenta persuadir é falso, ou seja, a retórica é uma arte de persuasão pelo discurso. REBOUL,
Olivier. Introdução à retórica. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Passim.
258
BARTHES, Roland. op cit. p. 6.
259
BOWMAM, Alan K., WOOLF, Greg. Introdução. In: BOWMAM, Alan K., WOOLF, Greg. Cultura escrita
e poder no mundo antigo. São Paulo: Editora Ática, 1998. pp. 5-23, p. 14.
89
Levando em conta a questão da distância geográfica que separava os interlocutores e
a necessária rapidez que a Igreja tinha em tratar de assuntos que considerava essenciais à
manutenção da sua unidade – como o caso do Adocionismo –, as características inerentes a esse
gênero de escrita o tornavam o suporte ideal para carregar tal discussões.
Como já apontamos em outro capítulo, a questão Adocionista teve seu embate
principalmente entre o corpo clerical das Igrejas Romana, Hispânica e Franca, a partir
justamente da troca de cartas que se deram após o concílio de Sevilha de 784 As atas dessa
reunião, portanto, contém a afirmação da qual parte todo o conflito. Nela, o arcebispo Elipando
afirma: “Y por éste al mismo tiempo Hijo de Dios y del hombre, hijo adoptivo en su humanidad,
y no adoptivo en su divinidad, redimió al mundo” 260 . Essa frase polêmica chegou ao
conhecimento das Igrejas das regiões vizinhas, nas quais os clérigos passaram a debater sobre
diversos elementos da fé cristã que estavam implicadas nessa afirmação.261
Das cartas que dispomos sobre o tema do Adocionismo – cerca de dezenove cartas –
apontamos como principais temas tratados: o uso de práticas consideradas pagãs, como antigos
costumes que retornavam ao convívio cristão; práticas dogmáticas que já haviam sido
condenadas como heresias em outros concílios e que retornavam, muitas vezes, repaginadas
com a adição de outros elementos culturais; anátemas, um recurso usado pelos clérigos como
critério para sentenciar a expulsão de alguém da diocese; a consubstancia das essências de
Cristo; duplo nascimento de Jesus; hierarquias; o próprio Adocionismo; perjúrio; fé correta;
universalidade da Igreja (credo); apelo às autoridades, como doutores da Igreja (santos), reis e
clérigos de autoridades superiores, para dar veracidade às suas ideias; tipificação dos poderes
de Cristo (Deus nuncupativo); e, até mesmo, a segurança da comunicação entre os membros da
Igreja por meio das cartas (segurança no seu transporte, entrega à pessoa de destino, a
transcrição para outro idioma, maneira como as mesmas eram lidas, se em privado ou para um
público).
Os debates sobre o Adocionismo, em cartas ou concílios, duraram, aproximadamente,
dezoito anos. Isso nos permite acompanhar como as relações de poder em torno dessa
discordância dogmática foram se configurando, exatamente o que faremos a seguir.
260
Et per istum Dei simul et hominis filium, adoptivurn humanitate, et nequaquam adoptivum divinitate, mundum
redemit. Elipando, Incipt Symbolum fidei Elipandianae. 784, fXLI.
261
Essa afirmação gerou, até onde sabemos, um total de cinco livros contestatórios escritos por Beato de Líebana,
Etério de Osma e Alcuíno de York, que continham: parte da declaração do concílio de Sevilha de 784, uma
confissão do concílio de Roma de 798 e cerca de dezenove cartas que – entre temáticas – também tratavam desse
assunto. Esse material traz registro de que havia outros textos que também tratavam disso, porém, não tivemos
acesso a eles.
90
O QUE AS PRÁTICAS RELIGIOSAS PAGÃS TRAZEM À TONA SOBRE A QUESTÃO
ADOCIONISTA?
O combate às práticas religiosas pagãs é algo presente em toda a história da Igreja
Cristã e, na região da Península Hispânica, isso foi uma constante desde que essa religião
ganhou espaço dentro da geografia que compunha o Império Romano. No período Visigodo,
há diversos concílios regionais 262 em que foi discutido acerca de mecanismos que buscassem
dar fim às práticas referentes a esse universo religioso (prática do sortilégio, encantamentos263,
idolatria, preservação de tradições gentis ou leituras dessas tradições sobre o curso da lua e
estrelas – o que poderia levar a uma datação errônea da páscoa), tais como penitências,
excomunhões, etc.264 O fato é que a resistência a essas práticas religiosas foi sempre mais forte
do que as tentativas de eliminá-las. Isso acabou colaborando para que a Igreja mantivesse uma
relação de constante vigia em relação à fé dos cristãos, o que, em muitas situações históricas,
ganhou ares de interesse político de determinados grupos, legitimando, por exemplo, a
intromissão política de dioceses mais importantes em igrejas sob a custódia de uma outra menos
privilegiada.
Não é por menos que uma das primeiras cartas do fundo documental que trata da
questão Adocionista mostra claramente o uso que Carlos Magno e o Papa Adriano fizeram de
uma suspeita de práticas religiosas não condizentes com o cristianismo para justiçar a presença
de um representante de Roma na Hispânia. Embora isso não tenha sido feito sem a autorização
do arcebispo da região, a ação sinaliza, desde já, para um interesse maior do Império Carolíngio
em ampliar seu poder sobre este território por meio do apoio da Igreja. A narrativa construída
na troca das cartas segue com a confirmação da existência de tal prática e aponta para a fraca
atitude das lideranças cristãs em relação a essa ameaça, que poderia ter como consequência
ameaçar a unidade da própria Igreja:
262
A exemplo disso, temos o III concílio de Toledo, em que, no III cânone deste concilio, temos o combate à
idolatria, em que fica decidido que devia-se destruir os ídolos e que os senhores de escravos deveriam impedir
seus servos de praticar o paganismo.
263
Muitos desses costumes foram assimilados pela Igreja quando ela estava em formação. No que se refere às
diversas condutas culturais providas do povo, vindas de uma tradição mantida há tempos imemoriais, podemos
consolida-las como um costume próprio provido do conhecimento e das vivências das pessoas, que, ao passar das
gerações, podem ter perdido sua referência inicial. Assim, o paganismo era apenas um conjunto de costumes
fragmentados dessas práticas que, por descuido, foram introduzidas dentro das Igrejas pelos cristãos. THOMPSON,
E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998. Passim.
264
BASTOS, Mário Jorge da Mota. Assim na terra como no céu... :paganismo, cristianismo, senhores e
camponeses na alta idade média ibérica (séculos IV-VIII). São Paulo: Editora da universidade de São Paulo,
2013. p.141-142.
91
También nos dio a conocer vuestra caridad lo que con insistencia y
perseverancia en el error predican algunos: que quien no coma la sangre de
animales y cerdo, o la carne sin sangrar (estrangulados), es un necio e
ignorante. Pero nosotros, imbuidos y adoctrinados por las enseñanzas
apostólicas, predicamos confirmando que si alguno come la sangre o la carne
sin sangrar de animales o cerdo, no sólo es ajeno a toda ilustración, sino
también completamente extraño a todo sentido común, y, aherrojado en las
cadenas del anatema, caerá en los lazos del diablo.265
Ao dar início ao assunto da existência de práticas religiosas não cristãs266 nessa região,
o Papa Adriano I ganhou espaço para, em suas cartas, tratar de assuntos que sinalizam
comprometer, ainda mais, a eficácia do trabalho dos bispos hispânicos: as ideias heréticas, que
pareciam circular livremente entre os clérigos dessa região. Esse era o caso, por exemplo, do
Migecianismo, ideia defendida por um clérigo chamando Migecio e que se baseava no
pressuposto de que a Trindade seria composta por três figuras: Davi, Paulo e Jesus Cristo, ao
invés de Pai, Filho e Espírito Santo, como foi acordado nos concílios ecumênicos.
Essa questão, sem dúvida, merecia mais atenção do que as resistentes práticas
religiosas não cristãs. A problemática Migecianista precisou, então, ser atribuída à maior
autoridade da Igreja Hispânica: o arcebispo de Toledo, Elipando. Em uma de suas primeiras
manifestações sobre o fato, vemos o peso das técnicas da retórica como caminho para o
convencimento dos leitores quanto ao valor falso das ideias de Migecio. Elipando parte de uma
tópica moral – arrogância – para esvaziar o conteúdo proposto pelo adversário. Segue afirmando
sobre o lugar vazio de onde vem aquelas ideias: “(...) carta (...) que surge do horrível túmulo
do seu coração (...)”. Em seguida, chama o testemunho do texto bíblico para colocá-lo no seu
lugar de inimigo da “verdade cristã”. Suas mentiras estavam anunciadas pelo Antigo
Testamento: “(...) suas palavras são iniquidade e mentira (,,,)”:
Recibimos ya hace tiempo para su lectura tu carta escrita, no con la súplica
del que pregunta, sino con la arrogancia del que enseña, carta ajustada a la
medida de un librito, surgida del horrible túmulo de tu corazón, manifestación
del ceniciento sepulcro de tus entrañas. Hemos visto, digo, hemos visto y nos
ha producido risa la fatua y necia locura de tu corazón. Hemos contemplado
en ella que habla por medio de tus palabras aquel que dijo: seré un espíritu
falaz en la boca de sus profetas (1 Re 22,22). Hemos visto allí sin duda alguna
que eres tú aquel de quien dice el salmista: sus palabras son iniquidad y
265
Insinuavit dilectio vestra et hoc, quod quidam pollicentes atque in errore perseverantes praedicant, ut qui non
ederit pecudum aut suillum sanguinem, et suffocatum, rudis est aut ineruditus. Nos quidem apostolicis praeceptis
imbuti atque eruditi, confirmantes praedicamus, quod si quis pecudum aut suillum sanguinem vel suffocatum
manducaverit, non solum eruditionis totius alienus, sed ipsius quoque intelligentiae cornmunis prorsus extraneus,
sub anathematis vinculo obligatus in laqueos incidat diaboli. Adriano, Epistola II Adriani papae ad Egilam. c782783, f8.
266
Como o Kasher, a prática da carne não sangrada vinda dos rituais judaicos, considerados heréticos.
92
mentira. No quiso escuchar para obrar el bien; maquinó la iniquidad en su
morada (Sal 36,4-5). Y también de quien en otro lugar dice el profeta:
enseñaron que su lengua hable la mentira; se esforzaron para obrar
inicuamente (Jer 9,5).267
Elipando quebra a regra epistolográfica da polidez, substituindo-a pela técnica retórica
da falácia268 para demostrar sua autoridade perante um clérigo indisciplinado. Ele não começa
com uma breve saudação – epistula-praefatio – demonstrando uma prática de cortesia da
amizade cristã, como seria adequado, já que seu interlocutor não é um cristão, mas um mal e,
como tal, deveria ser tratado.
A falta de cortesia no praefatio não é uma característica recorrente em todas as cartas
do arcebispo. Geralmente, esse hábito de rudez apresenta-se em cartas enviadas àqueles que o
decepcionam ou se opunham a ele. Seus adversários, por sua vez, não deixaram de utilizar a
cortesia exigida, mesmo em momentos de maior tensão dentro do debate. Isso acabou deixando
uma imagem grosseira de Elipando e da Igreja a ele subordinada.
Àqueles que a força política lhe ultrapassa ou ameaça, Elipando prefere utilizar-se da
Falsa Modéstia ao iniciar uma carta. Técnica também muito utilizada na parte inicial do texto,
ele traz a grandeza da humildade do escritor, que sucumbe ao peso do assunto e/ou do
conhecimento que ele possui sobre seu interlocutor:
Quiero, con la ayuda de Dios, glorificar desde lo más íntimo de mi corazón
del nombre célebre y solemne, como brillante esplendor por encima de todos
los reyes de la tierra, cuyo criterio, como el olor precioso del néctar y del nardo
oloroso, llena con su aroma casi todo el mundo, exhala olor en nuestro corazón;
y para que se conserve por largo tiempo como benefactor protegido por la
diestra divina, para la salvación de toda la Iglesia Católica, con larga vida,
postrados rodilla en tierra dirigimos nuestras preces al Rey eterno.269
267
Epistolam tuam, modulo libellari aptatam, de tumulo cordis tui horrífico exortam, de cineroso pectoris, tui
sepulchro prolatam, non voce interrogantis, sed imperio docentis scriptam, olim suscepimus relegendam. Vidimus,
inquam, vidimus et inrisimus fatuam et insipientem cordis tui amentiam. Vidimus et risui dignam reputavimus
sensus tui ignaviam. Inibi prospeximus, quia ille per os tuum loquutus est, qui dixit: Ero spiritus mendax in ore
prophetarum illius. Ibi procul dubio vidimus quia tu es ille de quo psalmista ait Verba oris eius iniquitas et dolus.
Noluit intelligere ut bene ageret; iniquitatem meditatus est in cubili suo. Et iterum de quibus alibi propheta ait.
Docuerunt linguam suam loqui mendacium; ut inique agerent laboraverunt. Elipando, Epistola Elipandi Miigetio
haeretico directa. 784, f1.
268
Um discurso errado que transmite uma mensagem que parece verdadeira. Ela também utiliza, para seus fins,
raciocínios válidos para se chegar a uma veracidade de fatos que não são totalmente verídicos. REBOUL, Olivier.
op. cit. Passim.
269
Celebre ac sollemne nomen illud giorificare, fautore Deo veluti iubar aethereum prae cunctibus regibus terrae,
cuius opinio quasi odor nectareus et nardi. pistici pretiosus toto pene flagrat in mundo, nostro redolet cordi e
pectoris arcano; cuius ut sospitas divina protegente dextera pro saivatione totius ecclesiae catholicae diutino
conservetur per aevum, acclines prostrati humo preces offerimus Repi sempiterno. Elipando, Epistola Elipandi ad
Carolum Magnum.c789, f1.
93
Está claro, aqui, o intuito de aproximar-se do interlocutor, mas não se pode descartar
um efeito que vem a rebote: a vaidade que a Falsa Modéstia pode estar escondendo.
O uso dos procedimentos técnicos da retórica na escrita de cartas nos leva a pensar o
elemento da persuasão como objetivo principal a se alcançar por meio dessas escrituras. Nunca
é demais relembrar que esse conjunto de regras tinha como objeto principal convencer o ouvinte
(ou leitor) sobre determinado discurso, sem mesmo pôr em questão a veracidade do que se
estava afirmando270.
Nas cartas escritas por Elipando, essa é uma característica marcante. A ênfase de suas
argumentações recai muito mais sobre o caráter da pessoa de Migecio – argumentum ad
hominem – do que sobre suas ideias. Essas nasceram mortas porque vieram ao mundo
corrompidas pelo veneno que habita aquele que as escreve: “(...) tu carta sacrílega, corrompia
com letal veneno (...)”; se fazem falsas porque advêm da ignorância daquele que as concebe:
“(...) tenebrosa por las oscuridades de la ignorancia (...)”:
Dicho esto repetidas veces, al releer una y otra vez tu carta sacrílega,
corrompida con letal veneno y tenebrosa por las oscuridades de la ignorancia,
encontré en ella que nosotros afirmábamos que el Señor, Hijo de Dios, nacido
de la Virgen, no era en esencia Dios, de quien dice el propio Hijo de Dios: El
Padre y yo somos uno (Jn 10,30). Debes recordar qué dice la Escritura: El
testigo falso no quedará impune (Prov 19,5). Y aquello: Maldito el hombre
que fabrica el mal en sus corazón y con sus labios habla fingidamente de paz
pero Dios, que lo ve todo, le retribuirá según sus obras (Sal 28,3-4).271
Nos lembremos aqui da afirmação de Foucault de que um discurso, por si só, não
apenas produz uma verdade, mas sim uma história que fica entre a realidade e suas relações de
poder272. Assim, quando um clérigo em um cargo elevado passa a agir com rudez para com um
subordinado que se comportava de maneira inadequada, não há dúvidas em se afirmar que essa
indelicadeza procura impor uma forma concreta de poder. Não podemos deixar de trazer a
Entendemos persuasão como um movimento que: “(...) envolve três espécies de elementos: convencer (docere),
comover (movere) e agradar (delectare). Convencer está relacionado a persuasão logica, ou seja, a persuasão da
mente; comover, por seu turno, é uma persuasão de ordem essencialmente afetiva, em que se procura aturar no
“coração” dos indivíduos, já agradar diz respeito a uma persuasão de natureza estética.” Tringali. 1988, p.20-1,
apud Campato Júnior, 2003, p.63.
271
His saepe dictis cum epistolam tuam iterum atque iterum sacrilegarn, tali veneno corruptam atque ignorantiae
caligine tenebrosam relegissem, repperi ibidem quod nos Deum Dei Filiurn ex virgine natum negaremus
nequaquam esse essentialiter Deum, de quo ipse Dei Filius: Ego et Pater unum sumus. Reminiscere debes quid
scriptura dicat: Testis falsus non erit impunitus, et illud: Maledictus homo qui in corde suo fabricat malum et de
labiis suis ficte loquitur pacifica, sed Deus qui videt omnia reddet illi secundum opera sua. Elipando, Epistola
Elipandi ad Albinum (Alchvinum). 798, f11.
272
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8ed. Rio de Janeiro: Forenses Universitária, 2016. p.155
270
94
observação de Guarnieri sobre a pretensão da escrita ou da fala de uma autoridade clerical
daquela época:
Ele atua como um testemunho dela, devendo provar, por meio de sua conduta,
que é o mensageiro apto a receber e pregar a Palavra, e que sua leitura ou
interpretação das Escrituras é a única correta, estando todas as outras erradas,
pois diferentes e assim excludentes. [...]O ἦθος do autor cristão deve assim
apresentar total submissão à autoridade de Deus e da Bíblia, ao mesmo tempo
em que exige total adesão de seus ouvintes que, ao dar-lhe razão, estão dando
razão também a Deus.273
Essa atitude felina de Elipando, como já dissemos, se repete em outras cartas: “Sin
embargo, antes de que hubiesen sido llevados hasta nosotros los escritos de tu vesania, antes
de que el fetidísimo olor de tus palabras nos hubiese inficionado (…)”274 . Os insultos estão
presentes nas cartas dirigidas a Beato de Liébana, quem recebe algumas alcunhas do arcebispo
como: “antífrasis, Beato, nefando presbítero e Asturias, pseudocristo y pseudo profeta”275,
“discípulo del Anticristo, maloliente por la inmundicia de la carne, alejado del altar de Dios,
falso Cristo y falso profeta”276. Como também naquelas destinadas a Alcuíno de York: “Albino,
diácono, no ministro de Cristo, sino discípulo del fetidísimo por antífrasis Beato, surgido en
los confines de Austria en tiempos del glorioso Príncipe, nuevo Arrio”277.
Um detalhe a acrescentar aqui é que, ao se utilizar da falácia, ele corria o risco de que
a eficácia do discurso fosse apenas momentânea ou inversa ao que ele pretendia alcançar. Seu
teor audacioso tinha grandes vantagens em um discurso oral com o público presente, mas nada
se pode saber sobre o impacto persuasivo dessa técnica em um leitor. Após o impacto inicial, o
tempo da leitura poderia, por exemplo, permitir que o leitor entendesse essa atitude como
leviana, podendo provocar certa perda de confiabilidade argumentativa, interrompendo o
vínculo de confiabilidade entre autor/leitor.
Por outro lado, a autoridade de quem acusa está embutida na estratégia de uso da
falácia, de modo que poderia contribuir para um outro elemento importante para o qual o
discurso persuasivo se volta: a de reformar e/ou conformar hábitos, pontos de vistas ou condutas
pessoais278.
273
GUARNIERI, Felipe de Medeiros. op. cit. p.64.
Elipando, Epistola Elipandi Miigetio haeretico directa. 784, f2.
275
Elipando, Epistola Elipandi ad episcopos Galliae Aquitaniae atque Austriae. c794, f1.
276
Elipando, Epistola Elipandi ad Albinum (Alchvinum). 798, f3.
277
Elipando, Epistola Elipandi ad Albinum (Alchvinum). 798, f1.
278
CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 16.ed. São Paulo: Ática, 2004. p.45-47.
274
95
A palavra persuadir significa submeter, daí sua vertente autoritária. O
indivíduo que persuade leva o seu interlocutor à aceitação de uma determinada
idéia. Para Citelli, na própria etimologia da palavra está embutido um
conselho irônico: per + suadere = aconselhar. ‘Essa exortação possui um
conteúdo que deseja ser verdadeiro: alguém ‘aconselha’ outra pessoa acerca
da procedência daquilo que está sendo enunciado’.279
Sem dúvida, ao construir um discurso cuja ênfase recai sobre a perspectiva de que as
teses de Migecio sobre a trindade não poderiam ser verdadeiras – porque ele não estava à altura
de conhecer a “verdade cristã” – Elipando buscava legitimar-se como autoridade inquestionável
sobre esse saber, se baseando no conceito de que, como arcebispo, suas falas tinham poder. Era
preciso, a partir dessa ação discursiva, em primeiro lugar, reafirmar seu poder como arcebispo,
cuja autoridade sobre os subordinados havia sido questionada pelo Papa Adriano e Carlos
Magno. Em segundo lugar, ele precisava reestabelecer, sobre sua audiência280, certo grau de
confiabilidade.281
Elipando parece ter tido certo sucesso com suas palavras, visto que o caso terminou
com a condenação de Migecio como herético e, com isso, foi banido do clero. Porém, entre
seus argumentos de acusação ao Migecianismo no Concílio de Sevilha, em 785, Elipando
parece ter aberto uma fenda para que suas ideias sobre a natureza de Jesus caíssem sob suspeita
de heresias.
É preciso ter presente, como destaca Dubois282, que, após a metade do segundo século,
a necessidade de construir uma identidade cristã mais hegemônica deu à palavra heresia um
significado que flertava com o verbo desagregar. O herético, muitas vezes, está dentro do corpo
da Igreja e é um de seus doutores, é o lobo que age silenciosamente na pele de cordeiro como
elemento desagregador da unidade da Igreja. Elipando cumpriu seu dever ao defender essa
unidade, partindo da autoridade que os concílios ecumênicos lhe atribuíram, mas suas
concepções sobre a natureza de Cristo acabaram por traí-lo, jogando-o no mesmo campo
discursivo que antes ele havia atribuído a Migecio. Agora, é ele que parece ter as palavras: “(...)
corrompida con letal veneno y tenebrosa por las oscuridades de la ignorância (...)”.
279
ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira. Poder e persuasão no discurso religioso medieval.
Domínios de Lingu@gem. Ano 1, nº1,1º Semestre de 2007. p2.
280
Refletindo-se que o discurso autoritário não tem ligação com dominação, pois esse tipo de discurso não
necessariamente é feito por pessoas com poder dominante.
281
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 13 ed. Editora Cortez: São
Paulo, 2011. Passim.
282
DUBOIS, Jean Daniel. op. cit. p.39.
96
DE ACUSADOR A ACUSADO
Entramos aqui em um novo campo de batalha para Elipando 283 : as controvérsias
ligadas às ideias Adocionistas. Ele, que antes era a figura do acusador, passou a ser personagem
a quem se atribuía o peso de ser defensor de ideias que iam contra a “Verdade Cristã”. Suas
ideias sobre a natureza de Cristo foram expostas durante seus ataques ao Migecianismo, que o
levaram a entrar em uma controvérsia dogmática. Os primeiros a acusá-lo foram os membros
do corpo clerical da Igreja das Astúrias, região subordinada à sua autoridade. As primeiras
discussões ocorreram no concílio de Sevilha, em 785. Os debates tiveram início publicamente
em uma carta que Elipando escreveu para o abade Fidel:
Quien no confesare que Iesucristo es hijo adoptivo en su humanidad, y no
adoptivo en su divinidad, es un hereje y debe ser eliminado. Arrancad el mal
de vuestra tierra (1 Cor 5,13). No me preguntan, sino que quieren enseñar,
porque son siervo del Anticristo.284
O cerne do debate passou a ser a essência humana de Cristo, se ela seria adotada ou
não. Para os defensores do Adocionismo, não crer nessa adoção era uma heresia; para seus
opositores, crer nela era uma blasfêmia. A legitimação de tais proposições – contra ou a favor
à adoção – estava à mercê da arte da escrita, a qual se subordinava às regras da retórica.
As provas de que uma ideia era falsa ou verdadeira se daria, antes de mais nada, pela
linguagem. Segundo Roland Barthes, estas construíam-se por duas grandes vias, constituídas a
partir da proposição inicial – inventio:
(...) uma lógica e outra psicológica: convencer e comover. Convencer (fidem
facere) requer uma aparelho lógico ou pseudológico a que se chama,
globalmente, probatio (domínio das “Provas”): trata-se de, pelo raciocínio,
fazer uma violência justa no espírito do ouvinte, cujo temperamento, cujas
disposições psicológicas não são então levados em conta: as provas têm a sua
força própria. Comover (ânimos impellere) consiste, ao contrário, em pensar
a mensagem probatória não em si, mas segundo o seu destino, no humor de
quem deve recebê-lo, em mobilizar provas subjetivas, morais. (...).285
“Y quien dice no ceden mi gloria a otro (Is 42,8), un hombre entre nosotros, aunado en una sola e idéntica
persona de Dios y hombre y revestido con ropaje de carne. Porque no creo las cosas visibles e invisibles por aqul
que nació de la Virgen, sino por aquel que es Hijo, no por adopción, sino por generación, no por la gracia, sino
por la naturaleza.” Incipit Symbolum fidei Elipandinae.785, f.XL
284
Qui non fuerit confessus iesum Christum adoptivum humanitate et nequaquam adoptivum divinitate, et
haereticus est et exterminetur. Auferte malum de terra vestra. Non me interrogant, sed docere quaerunt, quia servi
sunt Antichristi. Hanc epistalam dornini Ascarici episcopi ideo fraternitati tuae direxi, charissime Fidelis, ut
cognoscas quanta in Christi servis regnet humilitas, quanta in Antichristi discipulis regnet superbia. Elipando,
Epistola ad Fidelem. 785, f.43.
285 BARHTHES, Rolando. op cit. p. 52.
283
97
Assim, percebe-se que nas cartas trocadas entre os personagens envolvidos nessa
questão dogmática, as vias de persuasão ao leitor passavam pelas provas externas aos discursos
e testemunhos (auctoritates286 como os pais das Igrejas, dos Concílios Ecumênicos e textos
bíblicos), mas também pela habilidade de raciocínio do próprio escritor.
É certo dizer que, para a Sé Romana, as ideias sobre a adoção da carne humana de
Cristo não poderiam ser entendidas de outra forma que não fosse herética, e os escritores deixam
passar a ideia de que essa proposição ia contra todas as decisões tomadas nos concílios
ecuménicos, assim como todos os importantes escritores da Igreja e dos textos bíblicos.
Consequentemente, ia, também, contra a própria vontade de Deus:
[…] Y si los principes de los Apostoles le han proclamado Hijo propio del
Dios vivo, como o se atreven lo hereges decir a que es hijo adoptivo de Dios,
afirmación que nada mas oírla se estremece gemiendo todo cristiano ¿ Con
razón San Atanasio, o bispo de Alejandría, predicador ilustre y de tiempos
antiguos, en armonía con el primer concilio santo, que es el de Nicea, acerca
de la divina Encarnación del Verbo, entre sus restantes afirmaciones, dice:
pero si alguno dice en contra de la divina Escritura, llamando a uno Hijo de
Dios, y al otro, el que procede de Maria, hombre adoptado según la gracia,
como vosotros, puesto que son dos hijos uno según la naturaleza Hijo de Dios,
el que procede de Dios, y otro según la gracia, el hombre que procede de Maria;
y si alguno dice que la carne de nuestro Señor procede de arriba y no de la
Virgen, o que la divinidad sufre mutación o confusión o corrupción en la carne,
o que la divinida del señor es capaz de padecer o que no hay que no hay adorar
la Carne de nuestro Senor, por ser un hombre, y no que se debe adorar como
carne de un Dios y hombre, a ese le anatematiza la Iglesia Catolica y
Apostólica, en total conformidad con el divino Apostol, que dice: Si alguno
os anunciare un evangelio distinto del que recibisteis, sea anatemas (Gal 1,8).
[…]287
286
Auctoritates é o plural da palavra Auctoritas.
287 Roma recebeu a notícia de que as ideias eram providas de Elipando e Ascário. Isso é provável devido ao fato
de que a informação do Adocionismo que chegou por lá foi dada por meio dos Asturianos na pessoa de Beato de
Liébana, visto que o nome de Ascário foi citado, já que o mesmo estava no reino das Astúrias e aparece citado na
carta. Et si ipsi principes apostolorum Filium Dei vivi et proprium confessi sunt, quomodo oblatrantes autumant
haeretici, Filium Dei adoptivum dicere, quo solo audito omnis christianus gemens pavescit? Unde beastus
Athanasius alexandrinus episcopus antiquus et egregius praedicator, de divina Incarnatione Verbi consonante
sancta prima synodo, quae in Nicaea, infra cetera ait: quis vero adversus divinam Scripturam dicet, alium dicens
Filium Dei et alium, qui ex Maria hominem secundum gratiam adoptatum, sicut vos quatenus esse duos filios,
unum secundum naturam filium Dei, qui ex Deo, et unum secundum gratiam, qui ex Maria hominem; et si quis
Domini nostri carnem de sursum dicet et non ex Vigine Maria, aut immutatam deitatem in carne et confusam aut
alienatam aut passibilem Domini deitatem aut inadoratam Domini nostri carnem sicut hominis et non adorandam
sicut hominis et Dei camem, hunc anathematizat catholica et apostolica Ecclesia, consentiente divino Apostolo et
dicente: Si quis vobis evangelizaverit praeter quod suscepistis, anathema sit». Adriano, Epistola III Adriani papas
ad episcopos hispanos. c786, f[s.n.].
98
A Igreja Franca comungava das mesmas ideias da Sé Romana. Provavelmente, essa
atitude dos Carolíngios deveu-se à ligação que existia entre Carlos Magno e os papas Adriano
I e Leão III. Assim como nas cartas do papa Adriano I, as cartas enviadas por Carlos Magno e
Alcuíno apontam as ideias de Elipando como um tremor que poderia abalar uma unidade da
Igreja, que teria sido imposta por Jesus quando este deu a Pedro a missão de guiar Sua Igreja:
Evitando, pues, hermanos, esta perniciosa soberbia adhirámonos a las santas
interpretaciones de los Santos Padres y doctores católicos. Aprendamos lo que
escribieron, creamos lo que enseñaron y no nos inclinemos ni a la derecha ni
a la izquierda, sino caminemos por el camino real hacia el Rey y Redentor,
Dios y Señor nuestro Jesucristo, con la profesión unánime de la fe y la verdad.
[…]288
Está claro que, para os Carolíngios, as ideias Adocionistas significavam um obstáculo
às reformas que Carlos buscava implantar nas Igrejas das regiões sob seu controle político ou
de seus aliados. Nesse sentido, as discussões sobre o assunto tornaram-se imprescindíveis no
Império a partir do momento em que o Adocionismo chegou na região de Urgel na figura do
bispo Felix. Esse bispado contava com uma forte presença política dos Carolíngios, mesmo que
ainda fosse uma região de constante disputa com os árabes e sua Igreja estivesse subordinada a
Toledo.
Como vimos antes, a primeira arma da qual se lançava mão para enfraquecer uma
forma discordante de cristianismo, era levá-la para os debates conciliares. O primeiro concílio
chamado pelos Carolíngios para resolver essa questão – que ganhava crescente número de
adeptos devido ao carisma do bispo Felix – aconteceu em Frankfurt, no ano de 794;
posteriormente, repetiu-se em Roma, em 798 – este último solicitado por Elipando289, em uma
tentativa de defesa a Félix, que, naquele momento, estava afastado de sua diocese por ter sido
condenado em 794 Por fim, decidiu-se manter a decisão anteriormente tomada em Frankfurt,
agravando-a com a condenação de anátema a todos que compartilhassem das mesmas.
O processo de afirmação das ideias Adocionistas como uma heresia chegou a um
amplo debate, contudo, Elipando, na tentativa de converter seus adversários ao seu pensamento,
abordou vários tópicos expostos acerca de diversos termos, os quais tinham sido utilizados para
288
Hanc igitur, fratres, pernitiosam devitantes elationem sanctorum patrum et catholicorum doctorum sacris
inhaereamus sensibus. Discamus quae scripserunt, credamus quae docuerunt et non declinemus ad dexteram neque
ad sinistram, sed per viam regiam ad regem et redemptorem, Deum et dominum nostrum Iesurn Christum, concordi
fidei et veritatis curramus professione. Carlos Magno, Epistola Karoli Magni ad Elipandum et Episcopos Hispaniae.
794, f[s.n.].
289
“Por eso, como postrados ante tu presencia, pedimos com lagrimas que restituyas em el honor que le pertenece
a tu siervo Felix, y hagas que el pastor vuelva a la grey dispersada por los feroces lobos.” Elipando, Epistola
Elipandi ad Carolum Magnum. c789. f3.
99
descrever que uma ideia ou determinada pessoa estavam contra a ortodoxia da Igreja. Desse
modo, além da utilização das técnicas de convencimento, muitas indagações feitas pelo
arcebispo foram realizadas para determinar que o Adocionismo era uma heresia por seus
adversários.
As ideias de Elipando são, claramente, colocadas dentro do discurso como um anátema
por seus opositores. Porém, é preciso destacar que, para grande parte dos hispânicos, diante de
sua realidade e cultura, a figura de dois Cristos – um com forma humana, filho de Maria, e um
outro de essência divina, filho de Deus – não parecia um argumento inválido. O fato de Cristo
ter adotado a carne humana não diminuía ou mudava suas essências, nem o transformava em
duas pessoas diferentes. Vê-se que o que temos aqui é, sem dúvida, duas leituras diferentes dos
textos dos Evangelhos. Os defensores do Adocionismo jamais se viram como heréticos. Tanto
na fala de Elipando, quanto de Felix, está claro que eles se sentiam adeptos à ortodoxia definida
em Nicéia, em 325 d. C.
O discurso de todas as cartas escritas em oposição ao Adocionismo, por sua vez, traz
como elemento central da argumentação o universalismo da Igreja Católica Apostólica Romana,
afirmado como vontade de Deus a partir da figura de Pedro e reafirmado pelo concílio de Nicéia
I, o que deveria legitimar a fala daqueles que representavam a Sé Romana como “verdade cristã”
sobre todas as outras interpretações possíveis em relação a qualquer elemento ligado a essa fé.
Na prática política da Igreja, essa relação não se dava sem uma constante tensão entre Roma e
as Igrejas regionais, que resistiam entre o papado e a as Igrejas Hispânicas. Como já apontamos,
havia uma situação delicada, na qual os debates Adocionistas tornaram-se bastante evidentes:
Lo que afirmas, que el poder de Dios está sólo en Roma, en la que Cristo
habita, es contrarío al oráculo del profeta, que dice: Dominará de mar a mar
y desde los ríos hasta los confines de la tierra (Sal 72,8); y que sólo es ésa la
iglesia católica donde todos son santos y sin mancha ni arruga, y que de ella
sola se dice: Tú eres Pedro y sobre esta piedra edificaré mi Iglesia (Mt 16,18),
y que no entrará en ella nada impuro ni que obre abominación y mentira, y
que ella es la nueva Jerusalén, que vio Juan que bajaba del cielo, todas estas
afirmaciones te las enseñó a interpretarlas así aquel demente espíritu y el
entendimiento de tu imprudencia. Pero nosotros por el contrario creemos que
no sólo de Roma dijo el Señor a Pedro: Tú eres Pedro, es decir, la firmeza de
la fe, y sobre esta piedra edificaré mi Iglesia, sino de toda la iglesia católica
extendida por todo el mundo en la paz, de la que el mismo Señor atestigua
diciendo: Vendrán de Oriente y Occidente y se sentarán con Abraham, Isaac
y Jacob en el Reino de los cie-los (Mt 8,11).290
290
Nessa carta, endereçada a Migecio, há uma crítica ao ensino clerical: dado que sem conhecimento adequado, a
interpretação pode levar a um erro, além de uma crítica a posição de poder da Igreja, que ele reside em todas as
suas demais sedes, não apenas em Roma. Quod vero asseris quia in sola Roma sit potestas Dei, in qua m Christus
has bitat, contrarius prophetae oraculo qui dicit: Dominabitur a mari usque ad mare et a flumi-nibus usque ad
100
Vê-se, aqui, que o Primaz da Hispânia deixa transparecer completamente sua
insatisfação com a ideia da centralidade de poder requerida por Roma. Como relatamos
anteriormente, isso não era bem visto pelas demais Igrejas regionais. Usando-se da Falácia da
retribuição – Tu Quoque291 –, ele faz uma crítica a essa “presunção” de superioridade afirmada
na figura de Pedro: “Tú eres Pedro, es decir, la firmeza de la fe, y sobre esta piedra edificaré
mi Iglesia, sino de toda la iglesia católica extendida por todo el mundo en la paz”.
Adriano, por sua vez, rebate as críticas de Elipando invocando a ideia de que todas as
demais sedes pertencem ao legado de Pedro, que tem sua origem em Roma. Portanto, todas elas
estão sob sua sujeição disciplinar:
La institución universal de la naciente Iglesia tomó su fundamento en la
dignidad de San Pedro, en quien reside la dirección y suprema autoridad, pues
de su fuente manó para todas las Iglesias de la región la doctrina eclesiástica
una vez que fue creciendo su difusión. No otra cosa distinta atestiguan las
enseñanzas del Concilio de Nicea, hasta el punto de no atreverse a situar cosa
alguna por encima de ella, reconociendo que nada puede ser dictaminado por
encima de su dignidad. Ciertamente reconoció que todas las cosas le habían
sido concedidas a ésta por palabra expresa del Señor. Por tanto es cosa cierta
que ésta es para todas las Iglesias extendidas por todo el orbe como la cabeza
de sus miembros, y si de ésta alguno se separare, se convierte en desterrado
de la religión cristiana, cuando comienza a no estar entroncado en la misma292
Partindo dessa afirmação de universalidade afirmada na fundação da Igreja por Pedro
em Roma, Adriano aponta o erro que se constituía nas afirmações que extrapolavam as margens
das decisões prescritas dentro dos concílios, lugar de decisão, onde se manifestava a própria
terminar terrae, et quia ipsa sit tantum ecciesia catholica ubi omnes sancti sint absque macula et ruga et quia de ea
sola dicatur: Tu es Peinis et super hanc petrain aen thficabo ectiesiam meam, et quia non intrabit in ea aliqūid
coinquinatum et faciens abos minationem et mendacium, et quia ipsa est Therusalern nova quam vidit Ioannes
descendentem de caelo, haec omnia amens ille spiritus et imprudentiare tuae intellece tus te ista intelligere docuit.
Nos vero e contrario non de sola Roman Dominum Petro dixisse credimus: Tri es Petrus, scilicet firmitas fidei, et
super banc petram aedificabo ealetaw siant meam, sed de universali ecclesia catholica per universum orbem
terrarum in pace diffusa, de qua ipse Dorninus testatur dicens: Venient ab oriente et ab occidente et recumbent
cum Abraham, Isaac et Iacob in regno caelorum. Elipando, Epistola Elipandi Miigetio haeretico directa. 784, f12.
291
Tu Quoque, ou falácia da retribuição, onde se debate um critica recebida, rebatendo-a com uma outra crítica
que leva a uma argumentação mais acalorada. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. Passim.
292
Nessa carta, o Papa se isenta da culpa ao escolher enviar Egila para a Hispânia. Ademais, relata uma possível
independência da Igreja Hispânica em relação à sua ortodoxia. Institutio universalis nascentis ecclesiae de beati
Petri sumpsit honore principium, in quo regimen eius et surnma consistit; ex eius entm ecclesiastica disciplina per
omnes ece clesias, religionis iam crescente cultura, fonte manavit. Nicaenae Synodi non aliud praecepta testantur,
adeo ut non aliquid super eam ausa sit constituere, cum videret nihil supra meritum suum posse conferri, omnia,
denique huic noverat Domini sermone concessa; Hanc ergo ecciesiis toto orbe diffusis velut can put suorum certum
est esse membrorum, a qua si quis se abscidit, fit christianae religionis extorris, cum in eadem non coeperit esse
compage. Adriano, Epistola III Adriani papas ad episcopos hispanos. c786, f1.
101
vontade de Deus e/ou dos textos escritos pelos pais da Igreja, auctoritates, cujas penas eram,
também, conduzidas pela inspiração divina. As heresias ameaçavam a vontade de Deus,
colocavam em xeque a sua unidade. Ameaçavam a salvação das almas dos fiéis, enganados
pelos falsos doutores que, inevitavelmente, permaneciam atuando dentro da Igreja.
A proximidade entre o Império Carolíngio e o papado afirmava-se a partir desse
mesmo preceito. Apoiador do universalismo da Igreja de Roma e, concretamente, mantenedor
do poder político do Papa Adriano em Roma – constantemente ameaçado por seus adversários
Italianos, como vimos no Capítulo I –, Carlos Magno imprimia a imagem de protetor da Igreja
e defensor desse princípio legitimador da Igreja Romana:
Esta fe ortodoxa y entregada por los doctores apostólicos y conservada por la
Iglesia universal, prometemos guardarla y predicarla en la medida de nuestras
fuerzas en todas las Iglesias por doquier, porque no hay salvación alguna en
otra, sino en la que desde el comienzo de nuestra salvación guardaba siempre
con pacífica unanimidad la Iglesia, por la que también, hermanos, vuestra
buena devoción, que os agrada tener en el Señor, cuidasteis dirigir a estas
regiones dos escritos, uno general, dirigido a los santísimos oídos episcopales,
y también otro particular para nosotros. […]293
Sem dúvida, essa premissa da universalidade da Igreja colaborava para que os
Carolíngios encontrassem apoio para impor seu poder na região de Urgel, posto que, como já
dissemos, os bispados eram uma âncora do poder territorial dos reis germânicos nas regiões
conquistadas. O combate ao Adocionismo ganhou, aqui, um aspecto político explícito dessa
realidade.
Assim como Elipando, Felix buscou se defender dos adversários mudando a
perspectiva desse princípio da universalidade:
La Santa Iglesia, cuando, con la ayuda de la grada divina, se le concede la paz
y la tranquilidad, crece en todo el orbe de la tierra, en todas las ciudades y
lugares de fieles, por la unidad de la fe, por la concordia de la caridad, porque
falta el que la perturbe; y así se ve que es considerado como demasiado ciego
y que anda a tientas quien no la ve presente por doquier. Mas a veces la Iglesia
está en unos pocos, pero no recluida en un solo rincón de la tierra, ni en una
sola provincia, o tan o ricino, sino extendida por todo el orbe de la tierra. Pero
vosotros no decís la verdad Cuando afirmáis que todo el mundo, es decir, la
293
Nessa epístola, Carlos relata o quanto não compactua com as ideias de Elipando, do mesmo modo. Hanc igitur
fidem orthodoxam et ab apostolicis traditam doctoribus et ab universali servatam ecclesia nos pro virium nostrarum
portione ubique in omnibus servare et praedicare profitemur, quia non est in alia aliqua salus nisi in illa, quam
pacifica ab initio salutis nostrae unanimitate semper servabat ecclesia, pro qua etiam, viri fratres, et vestra bona
devotio, quam vos habere decet in. Domino, his partibus fidei vestrae litteras dirigere curastis, utrumque, et
generales ad sarcerdota-les sanctissimas aures, ad nos quoque speciales. Carlos Magno, Epistola Karoli Magni ad
Elipandum et Episcopos Hispaniae. 794, f[s.n.].
102
Iglesia universal de Cristo, esta de acuerdo con vosotros, sino sólo nosotros lo
estamos.294
É preciso destacar, quanto a esse argumento da universalidade, a sustentação que ele
traz em relação à sobreposição de Roma na estrutura do poder eclesiástico da Igreja. Embora
as Igrejas regionais estivessem presentes em reinos longínquos, isso não mudava o fato de que,
desde os primórdios da Igreja, o respeito à organização clerical era um dever cristão.
Como vimos, desde o concílio de Nicéia I, havia normas que valiam para toda a Igreja
quanto à sua estrutura organizacional, aos deveres de cada cargo e à subordinação dos membros
inferiores às ordens vindas dos superiores. Os debates mostrados nas cartas, no entanto,
apontam para a violação desses princípios, os quais foram utilizados por meio de força, desde
a própria advinda do cargo, com o uso de força militar – tomando dioceses –, organizacional –
retirando ou afastando de um cargo –, ou persuasiva – por meio dos debates –, assim como a
chamada de outras pessoas que tivessem poderes a quem pudessem recorrer. Elipando, por
exemplo, se vê contestando, várias vezes no seu poder político, acerca da região sob seu
arcebispado:
[…] También San Efrén, pensando anticipadamente en ti y en los tuyos, habló
así diciendo: «Pues alguno que se acerca para ser instruido, antes de su
instrucción ya desea enseñar a otros e instruir antes de aprender, antes de ser
enseñado quiere promulgar la ley, y antes de conocer el orden de las sílabas
comienza a filosofar; antes de someterse por la salvación de su alma, quiere
tener súbditos; y antes de obedecer los mandatos de los ancianos, arrebata la
tarea del que manda, y antes de conocer el sentido y la virtud del
discernimiento, usurpa el instruir y corregir a otros».295
Mesmo sendo um arcebispo, o mais alto cargo das Igrejas Regionais, suas decisões
estavam sendo contestadas por seus subordinados, como era o caso do Beato de Liébana – um
monge na função de presbítero, residente do reino das Astúrias –, que, junto com o jovem Etério,
294
Sancta Ecclesia, siquando ei, divina gratia largiente, pax atque quies collata fuerit, in toto orbe terrarum, cunctis
in urbibus seu locis fidelium, per unitatem fidei, per concordiam caritatis, quia deest qui tenteta, et ita apparet ut
nimium carectis et manu palpans iudicetur, qui eam ubique praesentem non cernit. Aliquan.do vero Ecclesia in
exiguis est, sed non in uno anagulo terrarum exclusa, sed neque in una provincia, aut gente vel regno, sed toto in
orbe terrarum difussa. Vos vero veritatern non dicitis quod totus mundus vobiscum, id est, universalis Ecclesia
Christi consentiat, nisi nos soli. Félix, Epistola Felicis ad Alcuinum. 798, [s.n.].
295
Beatus quoque Efren te et tuos praevidens, ita loquutus est dicens:. «Eteitim qui venit institui, antequam
in.stituatur, iam alios instruere cupit et docere antequam discat; priusquarn erudiatur prornulgare vult Iegem, et
ariequam noscat ordinem sillabarum filosofari incipiet; priusquam subiciatur pro salute animae suae, vult habere
subiectos; et antequam seniorum iussis obtemperet, arripiet iubentis officium., et antequam ratione et virtute
discretionis instruatur, instruere alios ac monere usurpat» Ideoque dignum est ut iste talis magister mendacii tat,
qui discipulus veritatis esse recusat, et doctor erroris appareat, qui docentis.imperium,fronte proterva, adsurnere
non formidat. Elipando, Epistola Elipandi Miigetio haeretico directa. 784, f2.
103
bispo de Osmar, escreveu um livro apologético, repleto de passagens bíblicas, parte de cânones
ecumênicos e documentos espedidos pelo próprio Elipando, que testemunhava contra as ideias
Adocionistas e levantava dúvidas sobre a própria figura de Elipando.
[…] Pero nunca se ha oído que los lebaniegos hayan enseñado a los de Toledo.
Todo el mando sale que esta sede brillo por sus santas doctrinas desde el
mismo inicio de la fe y que nunca fue origen de cisma alguno, Y ahora ¿una
oveja, sarnosa pretende ser nuestro maestro? Sin embargo no quise comunicar
estas cosas a nuestros restantes hermanos, antes re que sea cortado de raíz allí
donde surgió semejante mal. Porque sería para mí una ignominia si esta
afrenta se llega a escuchar en la jurisdicción toledana, que yo y mis restantes
hermanos que hace tiempo juzgamos en las tierras de Sevilla y, con la ayuda
de Dios […].296
O fato de ser contestado por seus subordinados nos leva a um quesito sobre seus
argumentos. Seus subalternos estavam ensinando pensamentos discordantes e, com isso,
questionando sua autoridade. Tal fato, no que lhe concerne, seria um grave problema
hierárquico, dado que era dever do arcebispo cuidar para que suas ovelhas não se desviassem
do caminho. Como relata Foucault, a legitimidade de um líder eclesiástico deriva-se de uma
autoridade previamente estabelecida de uma posição social que ele ocupa, exercendo, por sua
vez, a prática de seus dons persuasivos297.
Diante dessa situação, Elipando precisava provar, perante seus pares e subordinados,
que sua fala era digna de autoridade, que suas leituras das escrituras298 não estavam contra
nenhum dos concílios ecumênicos:
Quien no confesare que Iesucristo es hijo adoptivo en su humanidad, y no
adoptivo en su divinidad, es un hereje y debe ser eliminado. Arrancad el mal
296
Nam nunquam est auditurn ut Libanenses Toletanos docuissent. Notum est plebi universae, hanc sedem sanctis
doctrinis ab ipso exorclio fidei claruisse et nunquam sthismatum quid emanasse. Et nunc una ovis morbida, doctor
nobis appetic esse? Et tamen nolui ea ad aures ceterorum fratrum nostrorum perducere, antequam illic, ubi exortum
est huiuscemodi malum, sit raclicitus amputatam. Quia ignominia erit mihi si intra ditione Toletana hoc malum
fuerit auditum, ut quod ego et ceteri fratres mei in Ispalitanis tanto tempore diiudicavimus et, Deo auxiliante.
Elipando, Epistola ad Fidelem. 785, f43.
297
É possível pensar, aqui, no conceito de Foucault de poder pastoral, dado que temos uma autoridade com o
objetivo de proteger suas ovelhas por meio da salvação, da lei e da verdade, tendo em vista que o poder pastoral é
uma relação de poder entre aquilo a que se governa e seus subordinados e fiéis. CARRETTE, Jeremy. Foucault,
religion, and pastoral power. In: FALZON, Christopher; O'LEARY, Timothy; SAWICKI, Jana: A companion
to Foucault. Malden: Blackwell Publishing Limited, 2013. p. 368-383. Passim.
298
As interpretações bíblicas têm vários sentidos, além de sua definição literal, como deixa claro Reboul:
“Tomemos como exemplo a palavra Jerusalém (pois essa interpretação dizia respeito sobretudo à palavra): 1) ela
tem um sentido próprio ou histórico, de cidade onde viveram David, Salomão, etc.; 2) tem também um sentido
alegórico, que se refere ao Cristo, e Jerusalém significa Igreja; 3) tem um sentido tropológico, ou seja, moral, e
Jerusalém significa a alma do cristão, tentada, castigada, curada; 4) finalmente tem um sentido analógico, relativo
à ressurreição e ao reino de Deus, e Jerusalém significa a cidade de Deus, depois do juízo Final.” REBOUL, Olivier.
op. cit. p. 78.
104
de vuestra tierra (1 Cor 5,13). No me preguntan, sino que quieren enseñar,
porque son siervo del Anticristo. Envio la carta del señor obispo Ascárico a tu
fraternidad, queridissimo Fidel, para que conozcas cuán gran es en los siervos
de Cristo la humanidad, y cuán grande es la soberbia en los discípulos del
Anticristo.
Como el señor Ascárico quiso escribirme estas letras no con la arrogancia del
que enseña, sino con el deseo de preguntar, por eso la verdadera humildad le
instruyó. En cambio éstos, llevándome la contraria o tratándome como un
ignorante, no pretendieron preguntarme sino enseñarme qué era lo ortodoxo,
Y Dios sabe que, aunque hubiesen escrito de forma insolente, yo agradecido
debería obedecer si hubiesen dicho cosas verdaderas, recordando lo que está
escrito: «Sí la revelación la tiene un joven, cállese el anciano». Y también:
“Está cerca de Dios aquel que sabe callar ante la razón” […].299
Com esse objetivo, Elipando, assim como seus adversários, apelou às auctoritates para
que estas testemunhassem a seu favor300. O arcebispo, assim como os demais envolvidos nessa
discussão, se valeram da reputação de alguns nomes importantes na Igreja, até então, para dar
sustentação às suas ideias:
También San Agustín en el comentario del Evangelio según San Juan dice así,
según su condición divina: “No es Hijo de Dios por adopción, sino por
generación; no por gracia, sino por naturaleza”. También en una Hornilla dice
así, según la condición de su servidumbre humana: “El hombre adoptado, cuya
gloria buscó el que es su único Hijo”. Ved que a quien San Agustín llama
adoptado, de él el apóstol Juan dice: Tenemos un abogado junto al Padre,
Jesucristo, que intercede también por nosotros (1 Jn 2,1; Rom 8,34). 301
As Auctoritates são de extrema relevância na concepção de autoria do medievo.
Segundo Roland Barthes, quando pensamos a figura do autor, precisamos ter presente que a
atividade de escrever se divide em quatro funções: a de Scriptor, que tinha a atividade de apenas
copiar as letras – inclusive o rei Carlos Magno era conhecido por ter muitos profissionais dessa
arte quando era necessário enviar muitas cartas com o mesmo conteúdo, sem alteração; o
299
Qui non fuerit confessus iesum Christum adoptivum humanitate et nequaquam adoptivum divinitate, et
haereticus est et exterminetur. Auferte malum de terra vestra. Non me interrogant, sed docere quaerunt, quia servi
sunt Antichristi. Hanc epistalam dornini Ascarici episcopi ideo fraternitati tuae direxi, charissime Fidelis, ut
cognoscas quanta in Christi servis regnet humilitas, quanta in Antichristi discipulis regnet supervia. Cum dominus
Ascaricus mihi non docentis imperio, sed interrogantis voto ea scribere voluit, sicut illum vera humilitas docuite
Isti vero, modo et contraria dicendo modo et quasi ignorantem me quid rectum sit noluerunt interrogare, sed docere
Unde Deus novit quia licet proterve scripsissent, nam si vera dixissent, gratus obedire debui, reminiscendo quoci
scriptum est: «Si iuniori revelatum fuerit, senior taceatt”. Et iterum: «Proximus ille Deo est qui scit rationi tacere».
Elipando, Epistola ad Fidelem. 785, f43.
300
Essa técnica usa a posição de uma figura de autoridade e/ou uma instituição para apresentar um argumento que
valide as alegações propostas no convencimento.
301
Beatus quoque Augustinus in expositione evangelii. ses cundum Ioannem iuxta forrnam deitads ita «Filius Dei
non est adoptione, sed genere, neque gratia, sed natura». Item in homilia secundum humanae servitutis formarn ita
dicit: “Homo adoptatus, cuius gloriam quaesivit qui est ab illo unicus natus». Ecce quern Augustinus dicit
adoptaturn hunc Ioannes apostolus dicit: Advo. catum habemus Patrem lbesum Christum, qui etiam interpellat pro
nobis. Elipando. Epistola Elipandi ad episcopos Galliae Aquitaniae atque Austriae. ca79?, f1.
105
Compilator, cuja função era de acrescentar algo à cópia, quando necessário, mas nada que
viesse dele mesmo, sendo um profissional muito utilizado por compilar cópias de manuscritos,
acrescentando, às vezes, algumas palavras que estavam ilegíveis no original; e o Comentator,
quem introduzia algo próprio no texto que copiava, mas apenas para tornar a leitura
compreensiva. Devido esse detalhe, a função Auctor teria a atividade de escrever suas ideias,
mas colocando suas próprias palavras no papel sempre se apoiando em outras autoridades.
Assim, a utilização das auctoritates é o que possibilitava a legitimação de determinado discurso.
A escrita medieval não tinha um valor de originalidade, como temos na
contemporaneidade. Era muito comum, portanto, que a escrita se apoiasse demasiado em
trechos de obras de autores clássicos, de patriarcas da Igreja, em textos bíblicos etc., podendo
ou não citar a fonte de onde eram retiradas, como vemos nesse trecho de uma das cartas do
bispo Felix:
Y San Agustín en una homilía sobre Juan dice: «El Padre ama al Hijo, pero
corno el Padre al Hijo, no como el Señor al siervo; como al único, no como al
adoptivo». Y esto, quien piense que ha sido dicho de ambas naturalezas de
forma sernejante, enseñe primero, si puede, cómo el Hijo de Dios en su
condición de siervo no es siervo del Padre; así como en su divinidad no es
siervo, sino Hijo, ni es hijo adoptivo, sino que creemos y predicamos que es
verdaderamente propio.
Y hemos cierto su gloria, gloria como del Unigénito del Padre, lleno de gracia
y de verdad (Jn 1,14). La gracia pertenece a la humanidad, mas la verdad a la
divinidad.302
Félix cita Santo Agostinho 303 e trechos bíblicos como forma de dar peso moral e
intelectual à sua afirmação. Aqui, observa-se um outro elemento importante dessas cartas: o
discurso religioso. Utilizando da autoridade inerente a eles próprios – todos parte do corpo
clerical –, e de suas testemunhas ligadas às auctoritates cristãs, os escritores das cartas trazem
para o debate as palavras do próprio Deus. Segundo Citelli, o discurso religioso é:
Etsanctus Augustin in homilia in Ioannem ait: “Pater diligit Filium, sed quo modo Pater Filium, nom quomodo
dominus servum; quomodo unicum, non quomodo adoptivum”. Et hoc, si de utraque natura similiter dictium fuisse
putet, doceat prius, si valet, quomodo Filius Dei in forma servi servus Patris non sit; sicut in divinitate non servus,
sed Filius, neque adoptivus filius, sed proprius veraciter creditur et praedicatur. Et vidimus gloriam eius, gloriam
quase Unigeniti a Patre, plenum gratiae et veritatis: Gratiam ad humanitatem pertinere, veritatem vero ad
divinitatem. Félix, Epistola Felicis ad Alcuinum. 798, f[s.n.].
303
Santo Agostinho era um defensor da utilização da retórica para uma disputa dogmática, dado que, assim, poderia
resolver várias questões conflituosas: “É um fato, que pela arte da retórica é possível persuadir o que é verdadeiro
como o que é falso. Quem ousará, pois, afirmar que a verdade deve enfrentar a mentira com defensores desarmados?
Seria assim? Então, esses oradores, que se esforçam para persuadir o erro, saberiam desde o proêmio conquistar o
auditório e torná-lo benévolo e dócil, ao passo que os defensores da verdade não o conseguiria?” AGOSTINHO.
A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Editora Paulus, 2014. p. IV, 2,3
302
106
Uma das formações discursivas onde se reconhece a presença da persuasão é
a religiosa: nesse caso, o paroxismo autoritário eleva-se: o eu enunciador não
pode ser questionado, visto ou analisado; é ao mesmo tempo o tudo e o nada.
A voz de Deus plasmará as demais vozes, inclusive a daquele que fala em seu
nome: o agente religioso (pastor, padre, rabino etc.). Estamos diante de um
discurso de autoria sabida, porém não determinada, visto que a fala do agente
se constrói como verdade não sua, mas do outro, aquele que, por ser
considerado determinação de todas as coisas, engloba as falas do rebanho.304
Daí a importância dada pelos autores em contrapor o valor universal da sua verdade à
nulidade das afirmações de seus opositores. Carlos Magno, em sua carta à Elipando, afirma
toda a carga de confiabilidade nas ideias que defende por estas serem a fé de homens veneráveis:
(...) Así lo hago com todal certeza, asociándome firmemente, por el don del
Deus Señor nuestre Jesucristo, em la profesión de la verdadeira fe a su
santíssima multitud y seguríssima autoridade, y no me considero aliado de
vosotros pocos em la confesíon de esta nueva afirmación, sino que me uno
com toda la alegría de mi corazón, com todo el anhelo de mi alma, a la sede
apostólica y, desde el inicio, a las antiguas y católicas tradiciones de la
naciente Iglesia. Todos lo que se lee en los libros de las antiguas y católicas
tradiciones de la naciente Iglesia. Todo lo que se lee en los libros de los
doctores que por inspiración del divino Espíritu han sido concebido para todo
el mundo por Cristo Dios, lo sostengo sin dudarlo, creyendo que es suficiente
para la salvación de mi alma lo que enseña la historia de la sacratíma verdade
evangélica, lo que confirma la autorida apostólica em sus cartas, lo que los
exímios exegetas de la Sagrada Escritura y principales doctores de la fe
Cristiana dejaron escrito para perpetua memoria de la prosperidad. También
proclamo la fe verdadeira com esos doctores y pastores de la Santa Iglesia, a
los que para el tempo presente nos ofreció como lumbreras el que dijo: He
aqui que yo estar é com vosotros tudos los días hasta la consumacion de
mundo (Mt 28, 20).305
Também os clérigos de hierarquias inferiores utilizavam desse recurso da escrita para
se imporem perante figuras de poder superior306. A convocação de doutores legitimava a causa
304
CITELLI, Adilson. op. cit. p.61.
Facio certissime, Deo domino nostro Iesu Christo donante horum me sanctissimae multitudini et probatissimae
auctoritati in verae dei professione firmiter associans, nec vestrae me paucitati in confessionse huius novae
assertionis socium admitto, sed apostolicae sedi ae antiquis ab initio nascentis ecclesiae et catholicis traditionibus
tota, me mentis intentione, tota cordis alacri-tate coniungo. Quidquid in illorum legitur libris, qui divino afflati
Spiritu toti orbi a Deo Christo dati sunt doctores, indubitanter teneo, hoc ad salutem animae meae sufficere credens,
quod sacratissimae evangelicae veritatis pandit, historia, quod apostolica in. suis epistolis confirmg. auctoritas,
quod eximii sacra.e scripturae tractatores et praecipui Chrisfianae fidei doctores ad perpetuam posteris scriptum.
re liqueruni tnemotiana. Cum his quoque doctoribus et sanctae ecclesiae, pastoribth veram praectico fidem, quos
in praesenti tempore nobis dedit.luminaria, qui Ecce ego vobiscum sum omnibus diebus usque ad
consummationem saesculi. Carlos Magno, Epistola karoli Magni ad Elipandum et Episcopos Hispaniae. 468-469, .
306
Essa palavra vem do ramo do direito romano, dada a uma autoridade moral advinda do senado romano,
posteriormente dada ao imperador. Essa palavra, para o cristianismo, se define como uma figura conhecida que
tem, socialmente, legitimidade e respeito para ser crível para emitir uma opinião qualificada que resolva a questão.
Para o cristianismo medieval, havia diversas personalidades que possuíam essas qualidades de Auctoritas, como:
Santo Hilário, Santo Atanásio, São Gregório, Santo Agostinho, etc. MINNIS, Alastair. Medieval theory of
305
107
defendida. Como técnica da retórica, Argumentum ad verecundiam – apelo as autoridades -307,
ela também funcionava como uma forma de legitimar uma afirmação que, a princípio, poderia
configurar-se como duvidosa:
[…] Pues en esta obra me he esforzado en probar la verdad de la fe católica
con segurísimos testimonios de los Santos Padres, a saber, San Jerónimo y
San Agustín, Gregorio Papa de Roma, Hilario obispo de Potiers, también de
San León Papa y del obispo Fulgencio, y de Ambrosio obispo de Milán; y del
muy valiente luchador contra Nestorio San Cirilo, y también de Pedro obispo
de Ravena y del presbítero San Beda, y de Gregorio Nacianceno; así como del
hispano Isidoro y Juvenco literato, que son de la misma región (hispanos). Por
eso, si alguien quisiera reprenderme, o con malvado diente roer mis
interpretaciones, necesariamente sucumbirá rendido a la verdad, por los
testimonios de estos Santos Padres; y no puede pensar que está en el error
quien mora con ellos dentro de los campamentos de la fe católica. […]308
Essa noção de autoridade não restringia seu uso apenas aos textos cristãos; as escrituras
dos clérigos não deixaram de usar o apoio dos autores da cultura clássica. Para se utilizar de
uma argumentação teológica, segue-se, posteriormente, a autoridade das Escrituras, em obras
como: os cânones ecumênicos, logo seguidos dos regionais e das falas dos doutores da Igreja.
Esses quesitos, como São Tomás Aquino deixa claro em suas obras, seriam os pilares para
resoluções de questões controversas:
Deve-se afirmar que é muito próprio desta doutrina usar argumentos de
autoridade, pois os princípios da doutrina sagrada vêm da revelação. Assim,
deve-se acreditar na autoridade daqueles pelos quais a revelação se realizou.
Isso, porém, não derroga sua dignidade, porque se o argumento de autoridade
fundado sobre a razão humana é o mais fraco de todos, o que está fundado
sobre a revelação divina é o mais eficaz de todos.
Quando utiliza os argumentos de autoridade da Escritura canônica, ela o faz
com propriedade, tendo em conta a necessidade de argumentar. Quanto à
autoridade dos outros doutores da Igreja, se vale dela como argumento próprio,
authorship: scholastic literary attitudes in the later middle ages. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 2012. Passim.
307
Essa técnica consiste em uma alteração no uso dos auctoritas, nesse método eles são elencados para darem
veracidade para uma afirmação que seja totalmente ou não verídica, mas o uso das autoridades não torna os
argumentos em si confiáveis. BARROS. José d’assunção. Teoria da história: 1 princípios e conceitos
fundamentais. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes. 2011. p.233.
308
In hoc namque opuscuto catholicae fidei veritatem ex sanctorum Patrum certissimis probare testimoniis nite
sus sum, id est, beati Ieronymi, atque sancti Augustini, Gregorii papae Romani, Hia earii Pictaviensis episcopi,
Leonis quoque papae, et Fulgentii episcopi, Ambrosii quoque Medialanensis episcopi; sed et fortissimi contra
Nestorium militis beati Cyrilli; Petri etiam Ravennensis episcopi, et beafi Bedae presbyteri, Gregoriique
Nazianzeni; nec non et Isidori Hispaniensis et Iuvenci eiusdem provinciae stholase-tici. Si ergo me quis
reprehendere velit vel meos sensus improbo dente rodere, hos rum testimoniis sanctorum Patrum convictus veritati
succumbere necesse erit; nec errare putandus est, qui cum talibus intra catholicae fidei castra moratur. Praefatio.
Alcuíno, VII libros adversus felicem. Ad Carolum Magnum. [s.d.].
108
mas provável. É que nossa fé repousa sobre a revelação feita aos Apóstolos e
aos Profetas[...].309
Se o testemunho das autoridades servia para afirmar uma ideia como verdadeira, ele
também estava à disposição para um uso inverso: criar a nulidade de uma proposição. É
justamente o que Alcuíno faz no texto abaixo:
Cuando a tu perversidad le fallaron los testimonios de Dios en los profetas,
favorables a tu error, te imaginaste que un nuevo profeta había dicho: Apiádate,
Señor, de tu pueblo, sobre el que ha sido invocado tu nombre, y de Israel, a
quien igualaste con tu primogénito (Eclo 36,11). Añadiste también a esta frase
esta interpretación: “Esta igualdad, dices, no es en la divinidad, sino sólo en
la humanidad, y en la carne adoptiva, que recibió de la Virgen”. Ved ¡qué
falsedad en nombre del profeta! Ved ¡qué perversidad en la interpretación de
la frase! Y no en vano convenía a un nuevo doctor encontrar para sí un nuevo
profeta. Como el rey Jeroboam, al separarse del culto del verdadero Dios, se
inventó nuevos dioses, para, perdido el, perder al pueblo sometido a él; del
cual mucho antes había sido profetizado en el cántico del Deuteronomio:
Rechazó a Dios su creador y se alejó de Dios su salvador (Dt 32,16); así tú
alejándote del verdadero Dios e Híjo propio de Dios, te inventas un Dios
nuncupativo y un Hijo Redentor adoptivo, que no conocieron nuestros padres.
Tú rechazaste al Dios que te liberó, y te olvidaste de tu Dios Redentor. En el
libro del Sirácida se lee esta citada frase, cuyo libro San Jerónimo e Isidoro
dicen sin duda alguna que hay que considerarlo entre los libros apócrifos, es
decir, dudosas Escrituras. Este libro tampoco fue escrito en el tiempo de los
profetas, sino de los sacerdotes, bajo Simón, sumo sacerdote, reinando
Ptolomeo Evergetes; y se ve que contiene no tanto profecías cuanto disciplinas
morales y alabanzas a la sabiduría; y puede entenderse mejor este primogénito,
del que habla aquí, como el pueblo de Dios sacado de Egipto, del que el Señor
ordenó al Faraón por medio de Moisés su siervo, diciendo: Así dice el Señor:
Israel es mi primogénito. Yo te digo: deja ir a mi hijo primogénito para que
me dé culto, pero como no has querido dejarlo partir, mira que yo voy a matar
a tu hijo primogénito (Ex 4,22-23); que es al que, equiparado el pueblo de dos
tribus liberado por la misericordia de Dios de la cautividad de Babilonia, el
hombre que escribió las palabras de esta, frase, según mi opinión, guiso
referirse; nada profético sobre Cristo hay en estas palabras, como afirmas tú
dándoles una nueva interpretación.310
309
SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica I. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p.150. Suma teológica I,
q.1, a.8.
310
Dum tuae perversitati defecerunt in prophetis Dei testimonia errori tuo convenientia, finxisti tibi novum
quemdam prophetam dixisse: Miserere, Domine, plee. bi tuae, super quam invocatum est nomen tuum, et Israel,
quem coaequasti primogenito tuo. Addidisti quoque huic sententiae talem interpretationem: Aequalitas, inquis,
ista non est in divinitate, sed in sola humanitate et in carne adoptiva, quam accepit de Virgine». Ecce falsitas in
nomine Prophetae! Ecce perversitas in interpretatione. sententiae! Et non frustra oportebat novum doctorem,
novum sibi invenire prophetam. Sicut Ieroboarn rex a veri Dei cultd recedens novos sibi finxit debs, ut perditus
subiectum sibi perderet populum; de quo multo ante praedictum est in Cantiaco Deuteronornii: Dereliquit Deum
factorem suum, et recessit a Deo salutati suoi sic tu a vero Deo et proprio Filio Dei recedens, nuncupativum Deum
et adoptivum filium redemptorem tibi fingis, quem non noverunt patres nostri. Tu vero Deum qui te Iiberavit,
dereliquisti, et oblitus es Dei Redemptoris tui. In libto Iesu filii Sirac haec praefata sententia legitur, quem librum
beatus Hieronymus atque Isidorus inter apocryphas, id est, dubias Scripturas, deputatum esse absque dubitatione
testantur. Qui etiam liber non tempore prophetarurn, sed sacerdotum, sub Simone pontifice magno, regnante
Ptolomaeo Evergete, conscriptus est: nec tantum prophetias, quantum morales disciplinas et laudes sapientiae
109
Como podemos ver, a invocação de autoridade era necessária para vários aspectos da
construção do argumento contra e a favor das proposições a se defender ou criticar. Precisamos
destacar que esses recursos linguísticos não eram apenas recursos formais da escrita, mas
tinham em si um conjunto de ideias de persuasão aos seus leitores/ouvintes em relação a um
modelo de fé defendido por determinado grupo dentro da Igreja.311
Tendo em vista esses pontos, percebemos que, para aquele tempo, não era apenas o
peso do cargo que contava para uma definição sobre determinado assunto; também se levava
em conta a erudição e o conhecimento que alguém tinha sobre as Escrituras. A maneira como
determinada pessoa articulava seus pensamentos e embasava-os nos ombros dos doutores e
Patriarcas da Igreja era, de fato, um aspecto relevante na discussão, dado que, nas
documentações, todos convocavam esses fatores para que suas defesas e ataques fossem mais
efetivos. Se tais elementos foram utilizados contra os Adocionistas, não é menos verdade que,
em sua defesa, os tenham utilizado na mesma proporção. Félix, em meados de 799, em uma
conferência em Aquisgran, onde faz sua confissão de fé312, afirma:
Pues las afirmaciones manifestadas por mí sobre la citada contienda, es decir,
sobre la adopción de la carne o nuncupación, ellos las rebatieron con la
autoridad de los libros de los Santos Padres, Cirilo obispo, San Gregorio, papa
de la ciudad de Roma, y de San León y de otros santos Padres, antes
desconocidos por mí, como también por la autoridad del Concilio, que hace
poco se reunió en Roma con este motivo, según órdenes del gloriosísimo y
piadosísimo señor mío Carlos, en contra de la carta mía que hace tiempo había
escrito al venerable varón Albino, abad de la Iglesia de Tours - en ese sínodo
en presencia del apostólico León, y con él los restantes obispos asistentes en
número de 57, y muchos presbíteros y diáconos con ellos en la casa del
santísimo Pedro apóstol -, por medio de la autoridad de todos ellos rechazaron
las ya citadas afirmaciones nuestras, no como se dijo utilizando algún tipo de
violencia, sino, como convenía, por la razón de la verdad.313
proferre videtur; et melius intelligi, potest pritnogenitus iste, de quo hic dicit, populus Dei de Aegypto eductus, de
quo Dominus ad Pharaonern Moysi famulo suo mandatum dedit, dicens: Haec dicit Dominus: Filius meus
primogenitus Irrael. Dixi tibi Dimitte filium meum primogenitum, ut serviat mihi et noluisti dimittere eum: ecce
ergo interficiam filium tuum primogenitum; cui adaequas tum esse populum duarum tribuum non multo ante de
captivitate Babyloniae Dei misericordia deductum, iste vir, qui haec huius orationis verba composuit, voluit, ut
arbitror intelligi; nec aliquid de Christo, ut tu novo sensu asseris, his verbis prope hetasse putatur. Alcuíno, Beati
Alcuini contra epistolam sibi ab Elipando directam libri quatuor. 799, f18.
311
ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira. op. cit. Passim.
312
Confessio fidei Felicis.
313
Nam prolatas a nobis sententias de superdicta contendone, hoc est de adoptione carnis atcpe nuncupatione, ita
illi ex auctoritate de libris sanctorum. Patrum, id est, Cyrilli episcopi et beati Gregorii papae urbis Romae seu beati
Leonis sive et aliorum sanctorum Patrum, qui nobis prius incogniti erant, seu per auctoritatem synodi, quae nuper
in Roma pro hac intentione, praecipiente gloriosissimo ac piis-simo domno nostro Karolo, adversus epistolam
meam, quam dudurn venerabili viro Albino, abbati Turonensis ecclesiae, scripseram, congregata est sain qua synos
do praesente Leone apostotico et cum eo ceteri episcopi numero LVII residentes et plerique presbyteri ac diaconi
cum eis in domo beatissimi Petri apostoli per quorum omnium auctoritatem istas iam dictas sententias nostras non
110
Mas a quebra de defesa utilizando as estratégias retóricas não ocorreu tão facilmente
com o arcebispo de Toledo. Seu conhecimento das Escrituras lhe permitia uma forte defesa
perante as argumentações usadas contra ele.314 Além disso, houve, dentro dos debates, algumas
equivocações e/ou estratégias utilizadas para danificar os argumentos de Elipando. Uma dessas
questões era as confusões com a palavras nuncupativo.
También encontramos en las cartas del citado padre (Félix): “Cristo, que nació de la Virgen, no es Dios verdadero, sino nuncupativo”, afirmación que
rechaza por completo la fe católica; porque así como uno no puede ser al
mismo tiempo hijo propio e hijo adoptivo, así tampoco jamás puede ser uno
verdadero Dios y Dios nuncupativo. ¿No es cierto que un verdadero Dios es
el que va a juzgar al mundo? Y ¿quiénes el que va a juzgar al mundo? Con
total seguridad, el que nació de la Virgen, según la propia verdad lo atestigua:
Porque el Padre no juzga a nadie, sino que todo juicio lo ha entregado al Hijo
para que todos honren al hijo como honran al Padre (in 5,22).315
A palavra Nuncupativo – Deus nominal – foi um dos termos citados nas
argumentações que se construíram contra as ideias de Elipando. Isso porque um de seus
principais apoiadores, Félix, deixara claro a defesa desse entendimento sobre a figura de Cristo,
afirmando que seus poderes nuncupativos lhe tinham dado uma perda parcial deles, e atrelava
ainda uma servidão dele para com o Pai muito maior do que as definidas nos concílios
ecumênicos. Desse modo, quando foi contestado por Alcuíno de York:
Dices en tu carta: “Con cuántos ejemplos de los Santos Padres podemos probar
esta fe, que Cristo Jesús es verdadero Hijo de Dios Padre, y desde el mismo
momento de su concepción en el seno virginal fue concebido verdadero Díos
y nacido verdadero Dios”, a eso respondo: éstas son afirmaciones de vuestra
qualibet, ut dicturn est, vialentia, sed ratione veritatis, ut ciportuit, excluserunt. Félix, confessio fidei Felicis. 799,
f[s.n.].
314
Podemos dar ênfase, também, à derrocada de Félix, dado que ele estava, nesse momento, sob custódia da Igreja
Franca, que já o havia afastado duas vezes de sua diocese, destituindo-o, assim, de qualquer poder que o ajudasse
a ganhar tal disputa teologicamente dentro ou fora daquelas paredes, ou com a ajuda do arcebispo de Toledo, que
já o havia ajudado anteriormente, apelando tanto para Carlos Magno por carta, quanto para os árabes, quando
tomaram a região de Urgel dos francos. De acordo com Echegaray, Félix estava sendo vigiado e, provavelmente,
essa carta – confissão de Félix – foi escrita sob coação, já que foi feita quando ele estava isolado em Lyon, onde
estava sob vigília de Alcuíno. Isso porque há registros entre os francos de que Félix jamais deixou de ser um
defensor do Adocionismo, pois é relatado por Agobardo de Lyon que, após a morte de Félix (provavelmente na
data de 818), havia sido encontrado em seu escritório um livreto – com perguntas e respostas – em defesa das
ideias Adocionistas.
315
Similiter invenimus in praefati patris epistolis: «Christum, qui ex Virgine natus est, verun non esse Deum, sed
nuncupativurn», quod omnino catholica respuit fides; quia sicut unus esse non potest filius proprius et filius
adoptivus, ita nee, quaquam untis.esse potest verus Deus et nuncupativus Deus. Estne verus Deus qui iudicaturus
est mundum? Et quis est qui iudicaturus est mundum? Vere omnino qui ex Virgine natus est, ipsa veritate attestante:
Pater etenem non iudicat quemquam, sed oning iudicium dedit Filio, ut omnes hononficent Filiton, sicut
bonorificant Patrem. Alcúino, Epistola Albini (Alcuini) ad Elipandum, 798, f3.
111
creencia acerca de las dos naturalezas en Cristo, que mezcláis, con Eutiques,
en la unicidad de la persona de tal manera, que entre Dios y el hombre, entre
el Verbo y la carne, entre el Creador y la criatura, entre el que lo recibe y lo
recibido, no atribuís diferencia alguna.
Que te conozcan a ti, el único Dios verdadera), a tu enviado Jesucristo (Jn
17,3). Y nos, fui asumido y nos La dado inteligencia, para que conozcamos al
verdadero Dios y estemos en el verdulero, en su hijo jesus cristo, este es el
Dios verdadera la vida eterna (1 J n 5,20), De los cuasles procede Cristo según
la carne, el cual está por encima de todas las cosas, Dios bendito por los siglos
(Rom 9,5).
De una segunda manera es llamado Dios nuncupativo, como se dijo arriba de
los santos predicadores, de los que el Salvador dice a los judíos: Si llama
dioses a aquelos a quienes se doté la palabra de Dios (Jn 10,35); pero éstos no
por naturaleza, como Dios, sino por la gracia del Dios, que es verdadero Dios,
fueron deificados dioses llamados a su servicio; ciertamente en este orden el
Hijo de Díos, Señor y Redentor nuestro, según su humanidad, como en la
naturaleza, así también en el nombre., aunque elegido de forma más preclara
que todos, es sin embargo verdaderamente partícipe con ellos, así como
también en todas las demás cosas, es decir, en la predestinación, en la elección,
en la gracia, en lo recibido, en la asunción del nombre de siervo y en el
acampar, y todas las demás cosas semejantes a éstas, para que él mismo, que
esencialmente con el Padre y el Espíritu Santo en la unidad de la divinidad es
Dios verdadero, él mismo en su forma humana con sus elegidos fuese
deificado y Dios nuncupativo por la gracia de la adopción.316
Devido ao fato de que, nas discussões, Felix defendeu o termo nuncupativo, Alcuíno,
por sua vez, rebateu essa questão contra Elipando – em virtude de Félix ser protegido pelo
arcebispo; inclusive este havia feito um apelo para Carlos Magno pedindo sua restituição ao
cargo –, pois, ao defender Félix, ele estaria consciente de suas palavras. Com isso, as
argumentações do bispo de Urgel tornou Elipando vítima dessa afirmação – nuncupativa –
fazendo-o receber ataques acerca desse termo. Para isso, o raciocínio apodítico317 foi utilizado,
no intuito de romper com as defesas do arcebispo:
316
Dicis in tua epistola. «O quantis sanctorum Patrurn exemplis hanc fidem probare possimus, quod Christus Iesus
verus est Dei Patris Filius, et mox a conceptione virginalis uteri verus conceptus est Deus, verus et natus Deus ad
quae respondeo: hae sunt sententiae credulitatis vestrae de geminis in Christo naturis, quas ita in singularitatem
persorme confunditis, cum Eutiche, ut inter Deum et hominern, inter Verbum et carnem, inter creatorem et
creaturam, inter suscipientem et susceptum nullam esse differentiam astruatis. Ut cognoscant te solum vertaz
Deum et uem nith lesum Christum. Et assumpsit nos et dedit nobis sensum, Ut cognoscamus verum Deum et simus
in vero Filio eius Iesu Chtirto; hic est verus Deus et vita aeterna. quibus Christus secundum carnem, qui est super
ominia Deus benedictus in saecula. Secundo autem modo nuncupative Deus dicitar, sicut superius dictum est. de
sanctis praeidicatoribus, de quibus Salvator ait Si enim dixit deos, ad quos Dei sermo factus, qui tamen non natura
ut Deus, sed per Dei gratiam ab eo, qui verus est Deus, deificati dii sunt sub illo vocati, hoc quippe ordine Dei
Filius Dominus et Redemptor noster iuxta, humanitatem, sicut in natura, ita et in nornine, quamvis excellentius
cunctis electus, verissime tamen cum illis communicat, sicut et in ceteris omnibus, id est, in praedestinatione, in
electione, in gratia, in susceptione, in assumptione nominis servi, atque applicatione seu cetera his similia, ut idem
qui essentialiter cum Patre et Spiritu Sancto in unitate deitatis verus est Deus, ipse forma. humanitatis cum electis
suis per adoptionis gratiam deificatus fieret et nuncupativus Deus. Félix, Epistola Felicis ad Alcuinum. 798, f[s.n.].
317
Raciocínio apodítico (apodeiktkós) é um método retórico que possui um tom da verdade inquestionável. Sua
argumentação baseia-se em não deixar espaço para que haja dúvida quanto à verdade dada pelo emissor da
mensagem. CITELLI, Adilson. op. cit. p.19.
112
Y en tercer lugar afirmó que él era Dios nuncupativo junto con los restantes
santos. En esta afirmación no pudo evitar atribuir dos personas a Cristo, una
la de Hijo propio y otra la de adoptivo, una la de Dios verdadero y otra la de
nuncupativo, porque la adopción y el carácter de hijo propio jamás puede
darse en un único Hijo de Dios en referencia a un solo padre, y no puede ser
el mismo Dios verdadero y nuncupativo, como tu santidad podrá saber de
manera óptima, Dice que el hombre asumido por el Hijo de Dios es adoptivo
por la carne asumida, no comprendiendo la absurdo de su afirmación y la de
sus seguidores.318
Mesmo com essa investida sobre o termo, Elipando não utilizava essa expressão. Desse
modo, ela não aparece nas cartas escritas por Elipando, sendo ela uma questão defendida apenas
pelo bispo Félix. Mas, como ficou claro, foi utilizada contra ele em uma tentativa de tornar seus
argumentos Adocionistas heréticos. De certo modo, podemos relatar também que o silêncio de
Elipando possa ter sido uma estratégia do arcebispo no auxílio da defesa de Félix, ou até como
uma defesa própria.
O Adocionismo não foi dado como heresia em termos institucionais no tempo em que
Elipando seguiu como Primaz da Hispânia, até os primeiros anos do século IX. As discussões
em torno da questão Adocionista, no entanto, o colocaram em uma situação de tensão em
relação ao poder que exercia sobre a Igreja na Península Hispânica, alvo do interesse de Carlos
Magno e da Sé Romana. O acompanhamento das discussões pelas cartas trocadas entre os
personagens envolvidos na discussão nos mostra como o exercício da retórica que se configurou
nessa documentação corrobora com as disputas de poder que caracterizaram as relações
políticas entre os diversos grupos que compunham a Igreja latina daquele momento, como
tentamos apontar ao longo do trabalho.
318
Tertio, nuncupativum Deum eum cum ceteris sanctis esse adfirmabat. In qua assertione nullatenus effugere
poterit duas personas in Christo, unam proprii filii, alteram adoptivi, et unam veri Dei, alteram nuncupativi, quia
adoptio et proprietas in uno Filio Dei ad unum patrem nullatenus poterit esse, nec idem potest esse verus Deus et
nuncupativus sicut tua sanctitas optime agnoscere poterit. Dicit quod horno assumptus a Filio Dei adoptivus sit
propter assumptionem, non intellegens absurditatena sui sensus vel sectatorum suorum. Alcuino, Incipit epistola
Sancti Alcuini Thoronesis diaconi. 799, [s.n.].
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito do nosso trabalho foi a análise de uma disputa transcorrida em função de
uma questão dogmática, que ficou conhecida como Adocionismo. Embora tenha ocorrido na
Península Ibérica, essa discussão alcançou diversas regiões de importância considerável dentro
da Igreja Latina e, por isso, torna-se um lugar privilegiado para estudarmos as relações de poder
e o processo de centralização política e dogmática da Igreja que se estende até o final da Idade
Média.
Nosso trabalho apontou, primeiramente, a situação política territorial que caracterizava
os reinos da Hispânia – Al-Andalus e Astúrias –, do Império Carolíngio e do Estado Pontifício.
Procuramos tratar das relações diplomáticas, dando destaque ao complexo vínculo de acordos
e desacordos que, na maioria das vezes, estavam por trás das questões dogmáticas, como é o
caso do nosso objeto de estudo. Ao analisar o contexto das Igrejas regionais envolvidas com a
questão e os reinos aos quais estavam submetidas, identificamos que as nobrezas eram muito
presentes na estrutura daquelas e se utilizavam de seu apoio para afirmar seu poder político na
vastidão territorial.
A partir da análise dos complexos acontecimentos históricos que perpassavam esses
lugares e como eles tiveram influências nas providências e pensamentos dos personagens
envolvidos nos debates em torno da questão Adocionista, passamos a nos preocupar com as
implicações que tais elementos tiveram nas decisões tomadas pelos defensores do Adocionismo
e por seus críticos. Levamos em conta os constantes conflitos territoriais que ocorriam entre as
regiões Hispânicas e Francas, antes e durante os debates, e como esses fatores políticos e
diplomáticos entre os reinos interferiram nas tomadas de atitude e na escrita dos nossos
escritores.
Ao pensar o papel dos homens da Igreja envolvidos nessa questão e as relações de
poder que estavam em jogo diante dessa disputa teológica, ficou clara a necessidade de entender
a estrutura hierárquica da Igreja e a forma como as leis que a definia funcionavam dentro do
mecanismo político de afirmação e descrédito dos envolvidos nos conflitos políticos aqui
apresentados. Os concílios, sem dúvida alguma, tiveram um papel importante nesse processo.
Aqueles de âmbito regional, promovidos por necessidades locais das Igrejas, nos apresentam
as primeiras regras de conduta e moral dos cristãos e de seu corpo eclesiástico. Porém, a ampla
dificuldade em manter uma unidade hierárquica e dogmática os levou a recorrer a concílios
mais globais, como foram os concílios de Nicéia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia. Estes,
114
em teoria, contaram com a participação de representantes de todo o mundo cristão da época e,
além dessa representatividade, seus cânones tiveram tamanha influência em debates conciliares
que foram considerados os pilares da Igreja universal, visto que suas normas valeram para a
Igreja como um todo e seriam uma solução quando havia de se lidar com problemáticas
delicadas, como nossa questão dogmática. É preciso também destacar que os conflitos que os
concílios deixaram em aberto tornaram-se pontos de partida para que se iniciassem
manifestações contrárias ao que ficou definido nos próprios concílios, como foi o caso do
Adocionismo.
Esses conflitos não resolvidos – dado que não havia sempre uma unanimidade nas
decisões – reverberaram em muitos lugares, o que fez a Igreja organizar-se melhor em uma
hierarquia. Esta foi aplicada para lidar com as problemáticas surgidas, evitando, assim, grandes
reuniões para conter problemas internos das Igrejas regionais, além de estabelecer quem deveria
reger os conflitos. Isso nos remeteu, também, a como aqueles que eram intitulados de heréticos
se utilizavam para se defender de tais alegações.
Essas questões de hierarquia colocam-se de forma muito enfática dentro das discussões
que podemos acompanhar nas cartas trocadas entre os personagens. Elipando e Félix, como
apontamos no trabalho, foram considerados heresiarcas por seus opositores, mesmo sendo parte
do alto clero da Igreja. Segundo os cânones, eles seriam figuras inquestionáveis em seu
conhecimento da vontade de Deus. Diante disso, seriam capazes de ter cometido um erro de fé?
Nessa altura, nosso debate passou a buscar pelos vestígios do discurso construído em torno do
Adocionismo e de como as passagens bíblicas lhes permitiram uma nova interpretação das
essências de Cristo.
Na última parte do nosso trabalho, procuramos acompanhar o discurso construído em
torno dessa questão dogmática sob o prisma de um único personagem envolvido no debate: o
arcebispo Elipando. Buscamos pensar as narrativas a partir das regras de retórica que estiveram
na base da arte epistolográfica e como elas eram moldadas no período em questão. Essa
abordagem nos trouxe a possibilidade de examinar a documentação com um olhar um pouco
mais atento às estratégias de escrita características que lhes eram inerentes.
Posto isso, passamos a analisar, a partir das regras de escrita da retórica, a relação entre
o conflito dogmático tratado na documentação e todo o universo de questões políticas e de
relações de poder que se configurava por trás dos discursos que buscavam legitimar
determinado modelo de fé cristã.
O primeiro momento do conflito tem como ponto de partida a suspeita por parte da Sé
Romana de que práticas pagãs estariam acontecendo em território sob a autoridade do
115
arcebispado de Toledo. Em seguida, o questionamento se volta para uma forma de cristianismo
que se contrapunha aos cânones do concílio de Nicéia I e que estaria ganhando espaço na região
– uma heresia que acabou denominada Migecianista. O ponto alto do problema, por fim, é a
acusação de heresia que recai sobre o próprio arcebispo de Toledo.
A questão Adocionista e a forma como ela vai se configurando nos discursos
sustentados pelos personagens divididos em dois grupos de opinião – defensores e críticos a
esse conjunto de ideias sobre a figura de Cristo – foram se configurando na direção da formação
de um conflito entre projetos divergentes de cristianismo que não se limitaram a elementos
ligados à fé, extrapolando as margens desse universo para ganhar o campo da política. Não há
dúvidas de que as acusações de heresia que recaíram sobre Elipando e Felix jogaram a favor da
legitimação de ações da Igreja Franca e romana nas regiões sob suas autoridades. As regras da
retórica se serviram, aqui, portanto, para a construção de um discurso que, claramente,
carregava um projeto de fé cristã, mas que, principalmente, buscava legitimar e/ou definir a
autoridade de determinados sujeitos políticos perante as regiões e as sociedades que se
colocavam dentro de seu campo de interesse de disputa de poder.
116
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GLOSSÁRIO DE CONCEITOS
Abade - Abade é um título dado ao superior da ordem religiosa monástica.
Adocionismo primitivo ou Monarquismo dinâmico - Visão teológica do cristianismo
primitivo que ensinava que Jesus nasceu humano e se tornou divino após o batismo, sendo
adotado por Deus.
Adocionismo Hispânico - Adocionismo, ou Adocionismo Hispânico, defendia a ideia que
Jesus Cristo era igual ao Pai, tendo duas essenciais humana e divina, porém se diferenciava ao
argumentar que Cristo era filho gerado de Deus, mas era filho adotado em sua humanidade.
Ágila II - ou Akhila, foi um Rei Visigodo das regiões de Tarraconese e da Septimânia, foi um
dos responsáveis pela invasão Árabe junto com seus irmãos Ardabasto que lhe sucedeu no trono
e Olemundo.
Anátema - Anátema é a expulsão, condenação, excomunhão e execração, de qualquer pessoa
que segue doutrina contrária à verdade da fé da Igreja.
Anacoretas – Monges cristãos ou eremitas que viveram em retiro, solitariamente; penitentes
que se afastaram do convívio para expiar os pecados.
Arabização - As pessoas se convertiam de vontade própria aos valores dos árabes,
acontecimento semelhante a romanização.
Arianismo - Linha teológica que constituía na negação da consubstanciação entre Jesus e Deus,
ou seja, Jesus e Deus Pai não seriam a mesma pessoa, e que há, apenas um Deus, e que este não
seria Jesus. Jesus é filho de Deus e subordinado a Ele, e não o próprio Deus, ele seria um homem
apenas superior aos demais.
Berberes - Grupo nômade eram de diversas etnias, que habitava regiões montanhosas do
Magreb, eram cristãos, muçulmanos e Judeus.
Cânone 75 do IV Concilio de Toledo - Diz que “o mal rei será anatematizado por Cristo
Senhor, e separado e julgado por Deus”. Desse cânone presumia-se que, por trás de uma
rebelião bem-sucedida, encontrava-se também o aval divino, também sendo possível, que o
monarca deposto havia perdido o favor celestial.
Cidade eterna - Designação dada à cidade de Roma.
Concilio - refere-se a uma reunião ou assembleia de religiosos: bispos ou prelados convocados
para tratar de um ou vários temas específicos.
Concílio ecumênico ou universal – É aquele no qual estiveram presentes representantes de
toda a Igreja, tratava-se de uma reunião de todos os Bispos da Igreja. Geralmente a necessidade
125
de reunir toda a Igreja, tinha como motor propulsor pontos doutrinais que precisam ser
esclarecidos, a discussão de dogmas, e a necessidade de corrigir erros pastorais,
condenar heresias, questões de interesse da Igreja universal. Essas assembleias eram
convocadas e presididas pelo Papa ou por algum Bispo delegado por ele, não era necessário o
Papa estar presente para a realização de um concílio, mas apenas que ele confirmasse as
decisões tomadas naquele momento.
Concílios nacionais ou regionais - Os concílios nacionais ou regionais foram convocados
pelo arcebispo do reino/império, neles participavam apenas os clérigos pertencentes
a província eclesiástica delimitada dentro de uma região ou reino.
Cristianização – Termo utilizado para o processo de conversão de pessoas ao cristianismo.
Deus nuncupativo - Deus Nuncupativuus: lat., Deus nominal, apenas assim chamado, não real.
Nuncupativus (feito de boca; particípio passado de nuncupare, nomear; de noen = nome+ capere
= tomar) e do sufixo ivus. Os unitários dizem que cristo é Deus nuncunpativo (simplesmente
nominal, não essencial, não no sentido metafísico da palavra).
Disputatio - É uma arte do discurso vivo, do discurso a dois, o diálogo aqui é agressivo, tem
por escopo uma vitória que não é predeterminada: é uma batalha de silogismos.
Ebionismo - Pregava que Jesus não abolira o Tora e que deviam seguir os mandamentos do
mesmo, assim como a conservação da circuncisão e da celebração aos sábados.
Édito de Milão - Foi um documento que declarou que o Império Romano seria neutro em
relação ao credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguição, especialmente
ao cristianismo.
Epistolografia - A arte de escrever cartas.
Falácia - Um discurso errado que se transmite como se fosse verdadeiro, ela também utiliza
raciocínios validos para se chegar a uma veracidade de fatos não são totalmente verídicos.
Gerado, não criado - (gennênthénta oú poiêthénta) Nutriam a ideia que o Filho foi gerado a
partir do nada, que ele seria mais uma das criaturas de Deus, sendo a mais excelente dentre ela.
Heresia de Cerinto – Se baseava e uma perfeita distinção entre Jesus e Cristo, onde Jesus era
conhecido como um homem perfeito, Jesus era simples homem, filho de José e Maria, só
superior a outros homens pela justiça e sabedoria. Mas depois do batismo, Deus teria enviado
o Espírito "Cristo" em forma de pomba a Jesus que, desde então, começou a anunciar a
mensagem do Pai desconhecido, e operar os milagres.
Homo-ousios - (homos – o mesmo, ousia – essência, ou seja, da mesma essência ou substância)
Entendia-se que em termos corpóreos e espirituais, a geração do Filho pelo Pai não produzi
cisão ou divisão da divindade, ele seria consubstancia ao Pai, indicando que o Filho de Deus
126
não teria qualquer semelhança as criaturas criadas por Ele, que Cristo seria completamente
semelhante apenas ao Pai, não seria derivado de outra substancias além do Pai, portanto o Pai
e o Filho seriam um só Deus.
Homoi-ousios – Defendido pelos semi-arianos (homoios - similar, ousia – essência, ou seja,
essência semelhante ao Pai).
Judaizantes – Eram deste modo que o cristianismo em seus momentos iniciais declarava as
ideias que mantinham os pensamentos que conservar as leis de Moises
Maniqueísmo - Ideias fundada por Maniqueu, onde disseminava a dualidade entre o bem e o
mal.
Migecianismo – As ideias de Migecio ficaram conhecidas como Migecianismo. Este defendia
que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram interpretados de maneira diferente, a trindade seria
composta pelo Davi Jesus Cisto e Paulo, ao invés de Pai, Filho e Espírito Santo.
Moçarabes - Denominação dada aos cristãos ibéricos que vivia sobre o domínio árabe, ou a
eventos ocorridos durante o período ente os séculos VII e XV.
Monotelismo – Ideia empregada para afirmar que em cristo existia uma so vontade.
Mouros - Mauritanos ou sarracenos, povos vindos do continente Africano, eram muçulmanos
que se aliaram a Ágilla II.
Mulandis - Cristão convertido; descendente de casamento misto entre mulher cristã e homem
muçulmano.
Opúsculo - Livro pequeno com poucas páginas.
Ortodoxo – Linha que segue estritamente as normas e/ou regras estabelecidas pela Igreja.
Primaz - O título de primaz da Espanha, um título que na atualidade é apenas honorifico, no
período estudado esse título concede um status de precedência em relação às outras dioceses.
Priscilianismo - Heresia desenvolvida pelo bispo hispânico Prisciliano (340-385), ela
incorporava elementos gnósticos e maniqueístas, Devido a ser acusado de bruxaria, Prisciliano
foi executado seus adeptos o tornaram um mártir, perpetuando suas ideias na Hispânia, mas sua
prática não se cessou com o resultado do concilio, e novamente no I concilio de Toledo (397)
ela foi debatida.
Rodrigo - ou Roderico foi um Rei Visigodo da Hispânia que reinou entre 710 e 711, governou
parte da Península Ibérica, uma figura maior na lenda do que na história. Crônicas espanholas
relam que ele era neto do vigésimo no rei, Chindasvinto.
Romanização - O conceito de romanização aqui aplicado é baseado nos estudos de Mendes,
onde, o uso do termo é colocado como um modelo, para a mudança cultural iniciada com o
127
domínio romano, numa dinâmica relacional entre as identidades culturais romanas com a adição
dos elementos culturais do povo dominado.
Sínodos – Assembleia eclesiástica convocada pelo bispo para tratar de assuntos da diocese.
Sofista - Profissão de filósofo na Grécia antiga, que tinha o pensamento retórico sofisma, um
raciocínio ilusório ardiloso que aparenta está correto induzindo ao erro.
Subordinacionismo - Teologia que via Jesus como subordinado de Deus.
União hipostática - Ou dupla natureza, é uma expressão teológica que designa a união entre
Deus e Cristo, demostrando a dupla natureza de Jesus sendo humano e divino, as mesmas eram
separadas e equivalentes.
128
ANEXO A – CONCÍLIO DE SEVILHA
El símbolo de la fe de Elipando (Concilio de Sevilla)319
40. Yo, Elipando, arzobispo de la sede Toledana, con todos los que son de mí misma opinión:
Creo en la Trinidad del Padre y del Hijo y del Espíritu Santo, en una sola esencia y naturaleza
divina, es decir, Dios y el Principio y el Espíritu Santo, la Trinidad de personas en una sola
naturaleza divina. porque así como el hombre al a abandonar a su padre y a su madre, y al unirse
a su mujer, siendo dos personas, ya no son dos, sino que se dice que son una sola carne, y así
como las almas de muchos en el amor de-Dios forman un solo corazón y una sola alma, así
también el Padre, el Hijo y el Espíritu Santo, de uno solo se dice que es artífice de todo lo creado,
de uno solo cúmulo de caridad, de uno solo ámbito del amor, ya que son de naturaleza coeterna.
También el mismo Padre descendió por sí mismo a la torre que edificaban los hijos de Adán, y
dijo al Hijo y al Espíritu Santo: Venid, bajemos, confundamos sus lenguas (Gén 11,7). Viniendo
también por sí mismo, libró a Lot de la condena de Sodoma. Bajando por sí mismo al monte
Sinaí, dio la ley a Moisés. Pero si queréis comprender a las personas, cómo un solo Dios sea la
Trinidad, conoced por comparación una piedra y el calor que hay en ella, y permaneciendo el
frío en la piedra, son una sola substancia. Observad en la comparación de esta piedra la Trinidad
indivisa de las Personas; y si sois más aventajados, pensadlo de la divinidad inefable y ved la
invisible Trinidad de un solo Dios. Así como una es la persona del frío que permanece en la
piedra, y otra la del calor que hay en el que lo produce, y, sin embargo, procediendo no deja de
estar con el que lo genera, así también distinta es la persona del Hijo y no deja de estar con el
Padre en una sola naturaleza divina. Y así como la piedra precede a aquel calor que permanece
en ella en el ejemplo, así también el Padre precede al Hijo, no en el tiempo, sino en el origen.
También el mismo Hijo de Dios, que es el esplendor de su gloria e imagen de su naturaleza,
anonadando la divinidad invisible, se apareció con el Padre y el Espíritu Santo bajo forma de
creatura sumisa a Abraham en lo más caluroso del día (Gén - 18,1). Porque, así como las
tinieblas son la ausencia de la luz y la ausencia de la ti-niebla se cree que es la luz, y no se puede
dar entre ambas una tercera realidad, así también en un solo Verbo de Dios, es decir, en su único
Hijo, creemos que está la fortaleza, el honor y la gloría. Y así como el espíritu es la parte del
alma por la que grabamos las imágenes de las cosas corporales, y como la mente es una parte
de la: misma alma por la que se percibe toda razón e inteligencia, así como la memoria recuerda
las cosas que se han pensado, así también en el Verbo de Dios, por sus distintas funciones,
merecieron diversos nombres, que de ninguna manen se distinguen en su naturaleza. De El dice
la sagrada Escritura que por la salvación del género humano anonadó su divinidad, se hizo
hombre., fue circuncidado, bautizado, azotado, crucificado, muerto, sepultado, siervo, cautivo,
peregrino, leproso, despreciado y, lo que es aún peor, hecho menor no sólo que los ángeles, sino
también que los hombres; fue llamado gusano, según dice la Escritura de su persona: soy un
gusano, que no hombre, vergüenza de lo humano, asco del pueblo (Sal 22,7). Y su gloria, según
su divinidad, la admiran los seres celestiales y temen su grandeza los seres terrenos Y quien
dice no ceden mi gloria a otro (Is 42,8), un hombre entre nosotros, aunado en una sola e idéntica
persona de Dios y hombre y revestido con ropaje de carne. Porque no creo las cosas visibles e
invisibles por aquel que nació de la Virgen, sino por aquel que es Hijo, no por adopción, sino
por generación, no por la gracia, sino por la naturaleza.
41. Y por éste al mismo tiempo Hijo de Dios y del hombre, hijo adoptivo en su humanidad, y
no adoptivo en su divinidad, redimió al mundo. El que es Dios entre dioses, el que sabía si había
comido e vivido, el que quiso desconocer algunos misterios de su actuación. Porque si todos
319
Incipit Symbolum fidei Elipandinae.
129
los santos se asemejan a este Hijo de Dios, según la gracia, en verdad son hijos adoptivos con
el adoptivo, y con el abogado abogados, y con Cristo cristos, y con el párvulo párvulos y con el
siervo siervos. Creo también dentro de los mismos carismas de las gracias del Espíritu Santo,
que es adoptivo el Espíritu Santo, en el que clamamos: Abba, Padre (Rom 8,15), y en este
mismo Espíritu afirmo que Cristo hombre es adoptivo. Creemos, pues que en la resurrección
seremos semejantes a él, no en la divinidad, sino a humanidad de la carne, es decir, en la carne
asumida, que recibió de la Virgen.
130
ANEXO B – CARTA
Carta de Elipando a Albino (Alcuino)320
1. Al reverendísimo hermano Albino, diácono, no ministro de Cristo, sino discípulo del
fetidísimo por antífrasis Beato, surgido en los confines de Austria en tiempos del glorioso
Príncipe, nuevo Arrio, contrario a las doctrinas de los venerables Padres Ambrosio, Agustín,
Isidoro, Jerónimo; si se convirtiera del error de su camino, salud eterna en el Señor, y si no
quiere, condenación eterna.
2. Hemos recibido a finales de julio321, para su lectura, tu carta desviada del camino de la recta
fe, horrible por su brillo sulfúreo, escrita con lenguaje supersticioso. Hemos visto, digo, hemos
visto, que no ha hablado por ti el Espíritu aquel que descendió después de la Ascensión del
Señor sobre las cabezas de los discípulos, para proclamar las grandezas del Señor, sino aquel
que dijo: seré un espíritu mendaz (1 Re 22,22), a la manera de sus profetas. Que el mismo Hijo
de Dios, que retira las gotas de lluvia y derrama las aguas a manera de torrente, que convoca a
los fuertes al premio y, haciendo las veces de ellos, da fuerza para la lucha a los débiles, que,
acogiéndolos, premia a unos y a éstos proporciona fuerzas pan el trabajo, con las que puedan
resistir, ponga en mi boca la palabra de la verdad y, bien entonada, que el oído de la Iglesia
Católica, establecida en el nombre de Cristo, sea ablandada por mi austera respuesta.
3. En tu afirmación de que el Hijo de Dios no recibió adopción alguna de la carne de la gloriosa
Virgen de Dios, según su condición de siervo, no sostienes la verdad, sino que muestras que
estás lleno de mentira, como tu maestro, por antífrasis, Beato, discípulo del Anticristo,
maloliente por la inmundicia de la carne, alejado del altar de Dios, falso Cristo y falso profeta
De él dice el doctor egregio San Gregorio (Jerónimo): «Pierde su autoridad para enseñar quien
destruye con su conducta sus palabras». Procura tú, queridísimo hermano, Dios no lo quiera,
que no se haya escrito por ti: De la raíz de serpiente salió la víbora, y de la cueva del áspid
surgió el basilisco (Is 14,29), es decir, Albino, negro como la densa oscuridad. Procura que en
vez de ser partícipe del diácono Esteban, que dijo que vio los cielos abiertos y a Jesús a la
derecha de Dios Padre (Hch 7,55), no lo seas quizás de Nicolás, cuyas ac-dones atestigua el
propio Hijo de Dios, que las odia (Ap 2,6). Y también procura quien, en lugar de ser semejante
al diácono Vicente, no seas semejante a Daciano, que consagró con el martirio a ese mismo,
diácono. Procura no ser tú semejante a Rufino, que, como idólatra, con acciones salvajes se
opuso a San Félix mártir, de la Misma manera que también tú persigues al otro Félix, confesor,
a quien conocemos rebosante de caridad desde joven, casto y ornado de virtudes, y a quien tú
per-sigues teniéndose que ocultar en los montes, cuevas y cavernas. Procura no ser tú de quien
dice el profeta: El necio habla necedades, su corazón maquina vanidades (Is 32,6). Y también:
Han avezado sus lenguas a mentir, se esforzaron por obrar el mal (Jet 9,5). Y el Apóstol: El
hombre carnal no percibe lo que pertenece al espíritu de Dios (1 Cor 2,14). También el salmista
dice: Destruye al enemigo y a su defensor (Sal 8,3). Sabrás que eres enemigo y defensor, porque
al mismo tiempo que muestras defender la divinidad del Hijo de Dios, engendrado del Padre
antes de los siglos, se te ve negar su humanidad recibida en la plenitud del tiempo del vientre
de la Virgen, olvidándote de la? sentencia del Señor, en que dice a sus discípulos que dudaban:
¡Oh insensatos y tardos de corazón para creer todo lo que dijeron los profetas, la ley! ¿No era
necesario que el Cristo padeciera eso y entrara así en su gloria? (Lc 24,25-26). Y el Apóstol:
¡Cálalas insensatos! Quién os fascinó, para no aceptar la verdad? (Gál 3,1).
320
321
Epistola Elipandi ad Albinum (Alchvinum)
Año 798
131
4. Lo que dices en tu escrito, que él solo (Félix), con unos pocos afines a su treencía, está en
contra de lo que defiende toda Hispania, acuérdate que el Señor dijo: Es ancho, espacioso el
camino que lleva a la perdición y son muchos los que transitan por ell. Mas ¡qué estrecho y
angosto es el camino que lleva a la Vida!, y son pocos los que la encuentran (Mt 7,13-14).
Recuerda que el Señor dijo que el pobre Lázaro, lleno de úlceras, yacía a la puerta del rico,
deseando alimentarse de las migas que caían de su mesa y nadie se lo daba; en cambio, los
perros venían y lamían sus úlceras. Pero sucedió que al mismo tiempo murieron los dos. Lázaro
fue llevado por los ángeles al seno le Abrahán, y el rico fue sepultado en el infierno, anhelando
una gota de agua del dedo de Lázaro, él que no le había dado una miga de pan. Procura no ser
tú, que se sabe que tienes 20.000 siervos, uno de ésos, y por eso, ensoberbecido por las riquezas,
tu sabiduría no es la que desciende de lo alto, sino que es terrena, carnal y diabólica (Sant 3,15).
Recuerda que el Señor dijo: Donde estén dos o tres reunidos en mi nombre, allí estoy yo en
medio de ellos (Mt 18,20), como es el caso del confesor Félix y Sus seguidores. Acuérdate qué
dice la Escritura: ¿No eligió Dios a los pobres de este do para hacerlos ricos en la fey herederos
del Reino? (Sant 2,5). Recuerda lo que dice el salmista: Los ricos estuvieron necesitados y
pasaron hambre; en cambio, los que buscan al Señor no carecerán de bien alguno (Sal 34,11).
Y también: Si aumentan las riquezas, no pongáis en ellas vuestro corazón (Sal 62,11). Y
también: Atesora y no sabe para quién lo hace (Sal 39,7).
5. También he creído que había que añadir a este escrito lo que Dios Padre habló a su siervo
David cuando dice: Cuando reposes con tus padres, suscitaré de tu cintura al que se siente sobre
el tronó de Israel Yo seré para él un padre, él será para mí un hijo (2 Sam 7,12-14). Y también.
El fruto de tu seno asentaré en tu trono (Sal 132,11). Y también: La raíz de Jesé, que está
enhiesta como estandarte de los pueblos; a él le suplicarán los pueblos y será glorioso su
sepulcro (Is 11,10). Ahí tenéis al propio Hijo de Dios, según la forma de siervo que tomó de la
Virgen, en la que es menor que el Padre, y no es por generación, sino por adopción el adoptivo
de Dios primogénito entre muchos hermanos según el Apóstol; ¿por qué no se va a llamar
adoptivo el que de tal manera es completo en lo nuestro, como es completo en lo suyo, menos
en el pecado? Mira a Joaquín, cuya hija gloriosa de Dios sabemos que es la Virgen María y
creemos que es adoptiva. ¿Por qué no va a ser llamado adoptivo nuestro Señor Jesucristo,
engendrado de ella? Recuerda que el Señor dijo a sus discípulos: Quien a vosotros os oye, a mí
me gecy quien os desprecia a mí me desprecia (Lc 10,16). Y de aquellos santos doctores, de
quienes aportamos algunos testimonios, dice el profeta: Ata el testimonio y sella la ley en mis
discípulos (Is 8,16).
6. Dicho esto, si no aceptas el testimonio de tan grandes venerables santos padres, apórtame tú
un testimonio de San Atanasio, Mario, Ambrosio, Agustín, Isidoro, que diga que no hubo
adopción alguna de la carne ni verdadera humanidad en el Hijo de Dios, y aceptaré tus errores.
Así como tu maloliente y horrible maestro manchó la Liébana, así tú también el reino de los
reinos de Austria. Pero cesa de abrir en vano los labios, que ladran contra el misterio de Dios.
Procura no ser tú, Dios no lo permita, como aquel Behemot (Job 40,15), a quien los montes
proporcionan hierba como alimento, y con quien duermes en escondite de cañas en marisma
(Job 40,21). Procura no ser tú otro Arrio, que convirtió, por medio de Arrio y su muja, en hereje
al emperador Constantino, a quien había hecho cristiano San Silvestre, y de quien dice San
Isidoro: “¡Ay, qué dolor! ¡Qué buen comienzo y qué mal final!”. Su maldad, la de Arrio,
manchó con su veneno no sólo el reino dé los Godos, sino también liba, Oriente y Occidente,
hasta los tiempos del rey Recaredo, de feliz memoria. Procura no ser tú otro Nabuzardán, jefe
de la guardia, que destruyó los muros de Jerusalén (2 Re 25,8). Procura no hacer tú con el
glorioso príncipe Carlomagno lo mismo que hizo Arrio con Constantino, y se lamente por los
siglos de los siglos. Había que escribirte otras muchas cosas, pero afligidos por la opresión
gentil no podemos comunicarte en el escrito todo. Pero ten en cuenta tú que, si no quieres
escuchar a Moisés, oirás al Faraón. El propio Moisés dijo: El Senior Dios suscitará un profeta
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de entre vuestros hermanos/y le escucharéis como si de mi se tratara (Dt 18,15). Mira que
Moisés, hijo adoptivo de Dios, dice que es semejante a él en su carne, no por generación, sino
por adopción, y ¿tú dices que el Hijo de Dios, de la estirpe de Abrahán Jesé y de la gloriosa
Virgen de Dios, engendrada de Joaquín, hija adoptiva de hijo adoptivo, no recibió la carne, para
ser hijo adoptivo? Esto oí yo con mis propios oídos a un nefando presbítero, partidario de la
doctrina del nefando Beato, que decía: “Cristo Jesús, al asumir la carne en las entrañas maternas,
no la recibió de las entrañas maternas, sino que se le proporcionó una carne nueva”.
7. Comienzan los testimonios de los venerables Santos Padres acerca de la adopción del Hijo
de Dios, según su humanidad, y no según su divinidad. Ellos son de quienes el Señor Jesucristo
habló diciendo: Vosotros sois la luz del mundoy la sal de la tierra. Lo que atéis sobre la tierra,
será atado, y lo que desatéis, será desatado (Mt 5,14; 18,18). San Ambrosio en sus enseñanzas
dice: “Según nuestro uso, hijo adoptivo y verdadero hijo”. Y San Jerónimo (Eutropio): “Este
hijo del hombre por medio de su filiación divina es digno de estar en el Hijo de Dios, y no se
sepan la adopción de la naturaleza, sino que se une la naturaleza con la adopción”. Y también
en su Comentario al Apocalipsis: “La piedrecilla blanca es la adopción como hijo de Dios”. Y
San Agustín dice en relación con su divinidad. ”El Hijo de Dios, engendrado de Dios antes de
los siglos, no por adopción, sino por generación, y no por gracia, sirio por naturaleza, es llamado
hombre adoptado según su humanidad, cuya gloria buscó el que es único hijo suyo”. También
San León Papa dice en sus escritos: “Completo en lo suyo, completo en lo nuestro, brilló con
sus milagros según su divinidad y se sometió a las injurias según la humanidad de la carne”.
Ved que si es completo en lo suyo, sin duda es completo en lo nuestro menos en el pecado, que
no hizo. El propio Señor y Redentor dice en relación con su divinidad: El Padre y yo somos
uno (Jn 10,30), y en relación con su humanidad: El Padre es más que yo (Jn 14,28). También
San Isidoro, prestigio de la Iglesia, brillo de Hesperia, doctor de Hispania, dice en el libro de
las Etimologías: “Es llamado Unigénito según la excelencia de su divinidad, porque no tiene
hermanos; y primogénito según el hombre asumido, en el que se dignó tener hermanos por la
adopción de la gracia, de quienes él es el primogénito”. Y después de algunas cosas dice:
“Cuando llegó la plenitud del tiempo recibió por nuestra salvación la condición de siervo y se
hizo hijo del hombre. Por tanto hay cosas en la Escritura que se dicen de él según su condición
divina, y otras cosas según su condición de siervo. De entre estas dos condiciones recordamos
algunos textos como ejemplo, citándolos uno a uno. Según su condición divina, dice de sí
mismo: El Padre y yo somos uno (Jn 10,30), y según su condición de siervo: El Padre es más
que yo (Jn 14,28). Pero los hombres que no entienden bien qué se dice sobre una y otra realidad,
lo que ha sido dicho según su condición de siervo quieren referirlo a su condición divina; y lo
que ha sido dicho a la manera como las personas se comunican entre sí unas a otras, pretenden
que son nombres de naturaleza y sustancia y cometen error en la fe. Pues de tal manera la
naturaleza humana está unida al Hijo de Dios, que su resultado es una persona de dos
naturalezas. Sólo el hombre llevó la cruz, pero, por la unidad de la- persona, se dice que también
Dios la llevó. Por eso está escrito: Si le hubiesen conocido, nunca habrían crucificado al Señor
de la gloria (1 Cor 2,8). Confesamos que el Hijo de Dios fue crucificado, no en la fortaleza de
su divinidad, sino en la debilidad de la humanidad; no en la permanencia de su naturaleza, sino
de la nuestra asumida”. También el profeta dice: Apiádate, Seriar, de tu pueblo, sobre el que ha
sido invocado tu nombréis y de Israel a quien igualas-te con tu primogénito (Eclo 36,11). Esta
igualdad no es en la divinidad, sino sólo en la humanidad y en la adopción de la carne, que
recibió de la Virgen; ese único y mismo Dios y hombre en dos naturalezas y en una sola persona,
a salvo su divinidad, sufrió el castigo de la muerte. El mismo, según su divinidad, dice: Tengo
poder de entregar mi alma y tengo poder para recuperarla de nuevo (Jn 10,18). El mismo dice
según su humanidad Padre mío, a tus manos encomiendo mi espíritu (Lc 23,46) El mismo Dios,
Hijo de Dios, dice según su humanidad: ¡Dios mío Dios mío! ¿Por qué me has abandonado?
(Mt 27,46), y: que pase de mí este cáliz, pero no sea como yo quiero, sino como quieras tú (Mt
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26,39). Sobre este mismo Hijo de Dios la voz del Padre habló a los discípulos diciendo: Este u
MÍ Hijo amado, en quien tengo mis complacencias. ¡Escuchadle! (Mt 17,5). De él mismo la
voz del Padre dice también: Ved que mi siervo entenderá... Y también: Ved a mi siervo, a
quienyo sostengo, mi elegido, se complació en él mi alma. Puse mi espíritu sobre él (Is 42,1),
aquel espíritu lleno de la gracia septiforme, del que el profeta dice: Espíritu de sabiduría y de
poder, espíritu de consejo y fortaleza, espíritu de ciencia y de piedad y le llenó el espíritu del
temor del Senor (Is 11 ,2). Y sí Dios Padre se complace en el Hijo, se complace en el siervo,
¿podrá sentir desagrado en el adoptivo? De ese mismo Hijo de Dios dice el salmista: Subió a
las alturas y llevó consigo cautiva a la cautividad (Sal 68,19). Y si se le llama cautivo, ¿por qué
no va a decirse adoptivo en su carne? Al mismo Hijo de Díos le dice la voz del Padre: Pídeme
y te daré en herencia las naciones, en posesión los cocines de la tierra. Los quebrantarás con
cetro de hierro, como a vaso de alfarero los despedazaras (Sal 2,8). Y de él mismo dice la voz
del Padre: He aquí quejo iré delante de ti y humillad a los fanfarrones de la tierra (Is 45,2). Y
también: He aquí quejo caminaré delante de ti, y allanare los montes y, romperé los temjoslos
cerrojos de hierro y te proporcionaré tesoros ocultos, para que sepas que yo soy el Señor tu Dios
(Is 45,2-3). Mirad a quién dice el Padre yo soy tu Dios; no se lo dice al Verbo, engendra-do del
Padre antes de los siglos, sino a aquel que en la plenitud del tiempo se hizo hombre de la Virgen
María, de quien dice el Apóstol: Nacido de mujer, nacido bajo la ley, para redimir a quienes
estaban sometidos a la ley (Gál 4,4). El propio Dios, Hijo de Dios según su divinidad, en la que
él y el Padre son una sola cosa, dice: mi gloria no se la daré otro (Is 42,8). No es lo mismo Pedir
que dar, dar pertenece al señor, pedir al siervo. De él dice San Isidoro: «siervo en su condición
de siervo, Señor del siervo en su condición de Señor». Pues también el Apóstol dice: El cual,
siendo de condición divina, no consideró un robo ser igual a Dios, sino que se despojó de sí
mismo tomando condición de siervo. Se humilló hasta la muerte, y muerte de cruz (Flp 2,8-9).
De él se dice en el Evangelio: Hijó de David, ten compasión de mi (Mt 9,27). Y también: Te
dará el Señor Dios el trono de David tu padre (Lc 1,32). Ved que, si según su humanidad es
hijo de David, sin duda sabemos que se trata del hijo adoptivo y siervo de Dios Padre, y del
mismo Hijo y del Espíritu Santo, adoptivo y siervo según su humanidad. Decimos que es
adoptivo sólo en su condición de servidumbre humana, no en la gloria y sustancia de la
naturaleza divina. «Está cerca de Dios quien sabe callar ante la razón». Tú, en cambio, hermano
Albino, mira no seas semejante a aquellos diáconos que recuerda el Antiguo Testamento,
diciendo: Al ofrecer fuego profano, murieron golpeados por el castigo divino (Lev 10,1-2),
como también tú, que introduces una doctrina diabólica, surgida de ese cerdo, por antífrasis
Beato. Tus palabras parecen externamente melifluas, pero interiormente de ajenjo y amargas
como la hiel. Te justificas con las obras y te condenas por la fe que profesas. Tu óleo
emponzoñado no ungirá nuestra cabeza.
8. También los testimonios escritos de los venerables Santos Padres que se utilizan en Toledo
para las oraciones de las misas dicen esto. En la Misa de Jueves Santo: “El cual, porSu pasión
del hombre adoptado, al no perdonar a su cuerpo, en consecuencia”, es decir, a su vez, “no
perdonó tampoco al nuestro”. También en la misa del martes de Pascua: “Mira, Señor, a la
multitud de tus fieles, a la que por la gracia de la adopción te has dignado hacerla hereden con
tu Hijo”. Y en la misa del jueves de Pascua: ‘Nos anticipó el premio en la adopción, pero nos
queda el juicio por la conducta”. Y también allí (en la Inlatio): “Es digno y justo, saludable y
conveniente para nosotros dar gracias, proclamar las alabanzas, comprender las mercedes,
ofrecer ofrendas a ti, Padre omnipotente, y a Jesucristo, Hijo tuyo y Señor nuestro, el cual, sin
salir del cielo, presentó a tu piedad con su triunfo por la pasión del hombre adoptivo, como un
cierto botín por la adquisición del pueblo presente”. También en la misa de la Ascensión del
Señor: “Hoy nuestro Salvador, por la adopción de la carne vuelve de nuevo al trono de la
divinidad; hoy devolvió al Padre su humanidad, que ofreció a la pasión, encumbrándola en los
cielos, a la que había humillado en los infiernos, para contemplar la gloria el que había visto la
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sepultura”. Y en la misa de San Esperanto: “¡Oh Unigénito del engendrado Padre, hijo de Dios,
coeterno y consustancial con el Espíritu Santo!, que, desde la ciudadela del trono celestial,
dirigiéndote a lo más despreciable de este mundo, no aborreciste asumir la vestidura de la carne
de hombre adoptivo y para la liberación de los fieles no desdeñaste en la forma de siervo, a
salvo la divinidad, colgar en el madero de la cruz y soportaste padecer la destrucción de la
muerte”. Y en la misa de Difuntos: “¡Oh Señor Jesucristo!, que eres la verdadera vida de los
creyentes, te! ofrecemos este sacrificio por los fieles difuntos, suplicándote que, purificados por
la fuente de la regeneración y libres de las tentaciones del mundo, te dignes incorporarlos al
número de los santos, y a quienes hiciste participes de la adopción, los mandes participar de tu
herencia». Y también nosotros mismos cantamos en la Vigilia de Pascua, según texto de San
Isidoro: «Revistió la carne, pero no se despojó de la Majestad; participando de nuestra
naturaleza, pero no abandonando la propia”.
9. La carta de León al emperador León dice que en la única persona del Señor Jesucristo hay
que afirmar la doble naturaleza, de la humanidad y de la divinidad: «Por eso todos aquellos que
están tan obcecados y alejados de la luz de la verdad, que niegan la verdad de la carne humana
en el Verbo de Dios desde el momento de su encarnación, que manifiesten en quién adquieren
para sí el nombre de cristiano y con qué sentido concuerdan con el Evangelio de la verdad, si
en el parto de la Santa Virgen apareció la carne sin la divinidad o la divinidad sin la carne. Y
así como no se puede negar, según dice el evangelista, que el Verbo se hizo carne y habitó entre
nosotros (Jn 1,14), así no se puede negar, según predica San Pablo apóstol, que Dios estaba en
Cristo reconciliando al mundo consigo (2 Cor 5,19). Y ¿qué reconciliación puede ser, con la
que Dios se congratule de nuevo con el género humano, si en beneficio de todos el Mediador
de Dios no recibiera también la carne de los hombres? ¿Con qué fundamento cumpliría la
realidad de la mediación, sino porque en su condición de Dios era semejante al Padre y en su
condición de siervo era también participante de la nuestra, para que fuese desatado el lazo de la
muerte, contraído por la prevaricación de uno solo, por la muerte de uno solo, quien él solo
nada debió a la muerte? La efusión de la sangre de Cristo en favor de los siervos fue tan rica,
como precio, que si toda la multitud de cautivos creyesen en su Reden-tor no permanecería en
ellos lazo alguno del diablo; porque dice así el Apóstol: donde abundó el pecado, sobreabundó
la gracia (Rom 5,20). Y nacidos bajo la influencia del pecado, al recibir el poder de renacer a
la justificación, se hizo más eficaz el don de la libertad que la deuda de la servidumbre. ¿Qué
esperanza dejan para sí en la ayuda de este misterio quienes niegan en nuestro Salvador la
realidad del cuerpo humano? Que digan con qué sacrificio son reconciliados, que digan con qué
sangre han sido redimidos, puesto que también dice el Apóstol: El que se entregó a sí mismo
por nosotros como oblación y víctima a Dios en olor de suavidad (Ef 5,2). ¿Qué sacrificio fue
al-guna vez más sagrado que el que el verdadero eterno Pontífice puso sobre el altar de la cruz
por la inmolación de su carne?, pues, aunque sea preciosa ante la presen-cia de Dios la muerte
de muchos santos, sin embargo, la muerte de ningún inocente serviría para la redención del
mundo. Los justos recibieron las coronas del premio, pero no las dieron, y son ejemplo de
paciencia sobre la fortaleza de los fieles, pero no dones de justificación. Las muertes de cada
uno de ellos se dio en todos, pero ninguno de ellos puso fin a la deuda, puesto que entre esos
hombres hubo tino solo, nuestro Señor Jesucristo, que era verdaderamente el Cordero
inmaculado, tts quien todos fueron crucificados, todos murieron, todos fueron sepultados y todos también resucitados. De ellos él mismo decía: Cuando sea levantado de la tierra, atraeré
todas las cosas a mí (Jn 12,32). La fe verdadera, que justifica a los impíos y los Mace justos,
atraída a participar de su humanidad, adquiere en él la salvación, en a Solo el hombre se
descubre inocente, encontrándose libre por la gracia de Dios de gloriarse del poder del que,
enfrentado contra el enemigo del género humano en la humildad de nuestra carne, proporciona
su victoria a aquellos en cuyo cuerpo triunfó. Por tanto, aunque en un solo Señor nuestro
Jesucristo, verdadero Dios e hijo del hombre, haya una sola persona del Verbo y de la carne,
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que realiza todas las acciones inseparable e indivisamente, sin embargo hay que comprender
las cualidades de sus mismas obras, y hay que discernir con la mirada de la fe sincera a lo que
se eleva la humildad de la carne y a lo que se abaja la altura de la divinidad; qué el lo que no
realiza la carne sin el Verbo, y qué es lo que el Verbo no realiza sin la Carne. Pues sin el poder
del Verbo no hubiera concebido ni pando la Virgen, y sin la verdad de la carne no yacería su
infancia envuelta en pañales. Sin el poder del Verbo no habrían adorado los magos al niño
anunciado por indicación de la estrella, y sin la verdad de la carne no se habría ordenado que el
niño se desplazara a Egipto, para ser protegido de la persecución de Herodes. Sin el poder del
Verbo no habría dicho la voz del Padre enviada desde el cielo: Este es mi Hijo amado, en quien
tengo mi complacencia. ¡Escuchadle! (Mt 17,5). Sin la verdad de la carne no proclamaría Juan:
He aquí el Cordero de Dios, que quita el pecado del mundo (Jn 1,29). Sin el poder del Verbo
no se realizaría la curación de los enfermos, ni la resurrección de los muertos; y sin la realidad
de la carne no se da necesario el alimento para el hambriento, di el sueño para el fatigado.
Finalmente, sin el poder del Verbo no se proclamaría el Señor semejante al Padre, y sin la
realidad de la carne no diría él mismo que el Padre era más que él. La fe católica acepta y
defiende una y otra verdad, fe que según la confesión de San Pedro apóstol le confiesa hombre
y Verbo a un solo Cristo, Hijo de Dios vivo. Así que aunque desde aquel comienzo en que el
Verbo se hizo carne en el vientre de la Virgen, nunca hubo división alguna entre una y otra
condición, y durante todo el crecimiento corporal fueron en todo tiempo acciones de una sola
persona, de ninguna manera confundimos con mezcla alguna aquellas cosas que aquí fueron
realizadas inseparablemente, sino que conocemos por sus características cuál pertenece a cada
condición. Que digan, pues, por tanto, estos hipócritas, que no quieren recibir la luz de la verdad
en sus ciegas mentes, en qué condición de las dos fue clavado Cristo, Señor de la Majestad, en
el árbol de la cruz; quién yació en el sepulcro y qué carne resucitó al tercer día, después de
remover la piedra del sepulcro, y en la que después de su resurrección argüía a unos incrédulos
discípulos y disipaba la duda de todos los presentes, al decir: Patriadme y ved que un espíritu
no tiene carne y huesos como veis que yo tengo (Lc 24,39). Y al apóstol Tomás: mete tu mano
en mi costado y mira mis manos, pies, y no seas incrédulo, sino creyente (Jn 20,27). Con tal
aparición de su cuerpo destruía ya las mentiras de los herejes, y haciendo visto la Iglesia de
Cristo que debía de empaparse de sus doctrinas, o dudaba a ella en creer lo que los Apóstoles
habían recibido para predicar Y si en tan gran luz de la verdad la tozudez herética no abandona
sus tinieblas, que muestren cómo prometen la esperanza de vida eterna, a la que no puede
llegarse sino por el mediador entre Dios y los hombres, el hombre Jesucristo. Pues como dice
San Pedro: No hay bajo el cielo otro nombre dado a los hombres por el que nosotros debamos
salvarnos (Hch 4;12), ni existe redención de la cautividad humana en la sangre del que se dio a
sí etilismo como redención por los hombres (1 Tim 2,6), el cual, como predica el san-to apóstol
Pablo: siendo de condición divina, no hizo alarde de ser igual a Dios, sino que se despojó de sí
mismo tomando condición de siervo, haciéndose sedante a los hombres y apareciendo en su
porte como hombre; y se humilló a sí mismo, obedeciendo hasta la muerte, y muerte de cruz.
Por lo cual Dios le exaltó y le otorgó el nombre que está sobre todo nombre, para que al nombre
de Jesús toda rodilla se doble en los cielos, en la tierra y en los abismos, y toda lengua confiese
que Jesucristo es el Seriar para gloria de Dios Padre (Flp 2,7-11). Por tanto, como uno solo es
el Señor Jesucristo, y en él una y completamente idéntica es la persona de la verdadera divinidad
y de la verdadera humanidad, y sin embargo descuella por esa misma exaltación con la que,
como dice el doctor de los gentiles, Dios le exaltó y le dio un nombre que está por encima de
todo nombre, entendemos que pertenece a la condición que iba a ser enriquecida con el aumento
de tal glorificación. En su condición divina era igual el Hijo que el Padre, y entre el engendrador
y el engendrado no hay diferencia alguna en su naturaleza, ni en su Majestad, ni por el servicio
de la Encarnación faltaba al Verbo algo que se le otorgara por donación del Padre. Pero su
condición de siervo, por la que la impasible divinidad satisfizo la paga de su gran compasión,
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es su humana humildad, que fue exaltada a la gloria del poder divino, llevada a término desde
la misma concepción de la Virgen en su divinidad y humanidad en tal grado de unidad, que
nada se realizaba en lo divino sin el hombre, ni nada de lo humano sin Dios. Por esa razón, así
como se dice que el Señor de la Majestad fue crucificado, así también, como desde la eternidad
es igual al Padre, se dice que fue exaltado, porque, permaneciendo inseparablemente la unidad
de la persona, uno y el mismo es completo hijo del hombre por la carne y completo Hijo de
Dios por la única divinidad con el Padre. Todo lo que recibió Jesús en su cuerpo, lo recibió
según su humanidad, dándoselo a quien no lo tuvo. Pero como, según el poder de la divinidad,
todo lo que tiene el Padre también lo tiene el Hijo, lo que recibió del Padre en su condición de
siervo, también él mismo se lo donó a sí mismo en su condición divina. El y el Padre son una
misma cosa en su condición divina; según su condición de siervo no vino a hacer su voluntad,
sino la voluntad del que le envió. Según su condición divina tiene como el Padre la vida en sí
mismo; según su condición de siervo, triste está su alma hasta la muerte. El mismo es, como
proclama, rico y pobre. Rico porque, según dice el evangelista: En el principio la Palabra existía,
y el Verbo estaba con Dios y el Verbo era Dios. El estaba en el principio con Dios. Todo se
hizo por él y sin él no se hizo nada de cuanto existe (Jn 1,1-2). Y pobre, porque por nosotros el
Verbo se hizo carne y habitó entre nosotros (Jn 1,14). ¿Cuál es, pues, su anonadamiento y cuál
su pobreza, sino haber recibido la condición de siervo, por la que con la Majestad del Verbo
ocultada se realizó la dispensación de la redención humana? Mas como no podían desatarse las
ataduras originales de nuestra cautividad, sí no había un hombre de nuestra raza y de nuestra
naturaleza que no estuviese atado por, el vínculo del pecado y que destruyera con su sangre
Inmaculada el mortal decreto, como había sido divinamente establecido desde el principio, así
sucedió en la plenitud del tiempo establecido, para que la promesa indicada de muchas maneras
tuviera su realización, anhelada por largo tiempo, y no pudiese ser puesto en duda lo que había
sido siempre anunciado con continuos testimonios. En un gran sacrilegio muestra encontrarse
la impiedad de los herejes cuando, so pretexto de honrar su divinidad, niegan la realidad de la
carné humana en Cristo y piensan que creen rectamente si se dice que en nuestro Salvador no
es real lo que salva, puesto que el mundo fue, según la promesa que recorre todos los siglos,
reconciliado en Cristo de tal manera, que si no se hubiese dignado el Verbo hacerse carne,
ninguna carne hubiera podido salvarse. Todo el misterio de la fe cristiana se decolora en una
gran oscuridad, como quieren los herejes, sí se piensa que la luz deja verdad se ha ocultado bajo
la falsedad de un fantasma. Por tanto, que ningún cristiano juzgue que debe avergonzarse de la
verdad de un cuerpo domo el nuestro, en Cristo, porque todos los Apóstoles y discípulos de los
Apóstoles y todos los insignes doctores de las Iglesias, que merecieron llegar a la corona del
martirio o a la gloría de ser Confesores, brillaron en la luz de esta fe, Sintonizan-do por doquier
en textos concordes que en el Señor Jesucristo hay que confesar una sola persona de la divinidad
y de la carne. ¿Con qué ficción racional, con qué porción herética de los divinos volúmenes
juzga apoyarse la impiedad, que niega la realidad del cuerpo de Cristo? Como esto no lo testifica
la Ley, no lo anuncian los Profetas, no lo enseñaron los Evangelios, ni el propio Cristo dejó
dicho, busquen por todo el conjunto de las Escrituras la forma de ahuyentar sus tinieblas, no la
de oscurecer la luz verdadera, y encontrarán por todos los siglos la verdad que brilla de tal
manera, que verán que este gran y admirable misterio es anunciado desde el principio y
cumplido en el fin. Y como sobre ello no hay parte alguna de las Santas Letras que lo silencie;
es suficiente dejar patentes algunos signos concurrentes, en los que la diligencia de la fe sea
llevada a su esplendídísíma altura y compruebe con la sincera luz de la inteligencia, que en el
Hijo de Dios, que se proclama incesantemente hijo del hombre y hombre, no tiene que
avergonzarse el cristiano, sino gloriarse constantemente, Y para que conozca tu piedad, que
nosotros estamos de acuerdo con las enseñanzas de los Santos Padres, he creído que debía
añadir a este escrito algunas sentencias del error en las que, sí te dignas examinarlas, encontrarás
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que no predicamos nosotros cosa distinta de lo que nos enseñaron los Santos Padres en todo el
mundo, y que sólo discrepan de ellos los impíos herejes”.
10. Pero también consideré que debo añadir a esta obra lo que dice la Escritura: Darán a conocer
los cielos su iniquidad y se levantará la tierra contra él (Job 20,27). ¿Quiénes son estos cielos
sino aquellos que van a venir con Cristo al juicio? Entre ellos está Ambrosio, Agustín, Jerónimo
y los demás, a quienes tú, Albino, refutas y los consideras herejes, de quienes dice el salmista:
Los cielos cuentan la gloria de Dios (Sal 19,2), También San Agustín, en su carta dirigida a
Evodío, donde habla de la Trinidad y de la Paloma y de la adopción del Hijo de Dios, después
de muchas consideraciones hechas anteriormente, dice así: «Como el Padre en la voz que resonó:
Tú eres mi hijo (Mt 3,17), e hijo (adoptivo) en el hombre, que recibió de la Virgen si y el
Espíritu Santo en figura corporal de paloma». Dice también después: “el Hijo de Dios es
llamado al mismo tiempo (adoptivo) con el hombre (y el hijo del hombre es llamado al mismo
tiempo adoptivo con el Verbo)”. Y también después de unos párrafos: «por tanto el Hijo de
Dios es inmutable y coeterno con el Padre, pero sólo en su condición de Verbo; y padeció el
Hijo de Dios (pero sólo en su condición de hombre adoptivo). En consecuencia, hay que ver las
palabras que se dicen del Hijo de Dios, según qué aspecto se dicen. Pues en el hombre asumido
(o adoptivo), no se aumentó el número de personas, sino que permaneció la misma Trinidad.
Así como en cualquier hombre, excepto aquel solo que fue asumido de forma singular, el alma
y el cuerpo son una sola persona, así también en Cristo el Verbo y el hombre (adoptivo) son
una sola persona». Y después de otras cosas: “Así Cristo, Hijo de Dios, Señor de la gloria,
aunque esto se dice así según el Verbo, sin embargo, rectamente se dice que el Señor de la
gloria fue crucificado a pesar de que esto lo padeció él según su carne (adoptiva), no según
aquello en que es Señor de la gloria». Y después de unas breves reflexiones: «Se dice que el
Espíritu Santo en forma corporal, como una paloma, descendió y se posó sobre él. Así también
se dice que la piedra era Cristo, porque indicaba al Cristo (adoptivo)”. Y a continuación después
de unas cosas: “Esto es lo que te comunico acerca de tus dos preguntas, sobre la Trinidad y la
Paloma, en la que se manifestó el Espíritu Santo no en su naturaleza sino bajo una forma
significativa, como también el Hijo de Dios, no en relación con su nacimiento del que el Padre
dice: Yo te he engendrado del vientre antes del amanecer (Sal 110,3), sino en su condición de
hombre (adoptivo), nacido del vientre de la Virgen, fue crucificado por los judíos”.
11. Dicho esto repetidas veces, al releer una y otra vez tu carta sacrílega, corrompida con letal
veneno y tenebrosa por las oscuridades de la ignorancia, encontré en ella que nosotros
afirmábamos que el Señor, Hijo de Dios, nacido de la Virgen, no era en esencia Dios, de quien
dice el propio Hijo de Dios: El Padre y yo somos uno (Jn 10,30). Debes recordar qué dice la
Escritura: El testigo falso no quedará impune (Prov 19,5). Y aquello: Maldito el hombre que
fabrica el mal en su corazón y con sus labios habla fingidamente de paz, pero Dios, que lo ve
todo, le retribuirá según sus obras (Sal 28,3-4). Yo ciertamente no he negado que el Hijo de
Dios, Dios engendrado del Padre antes de los siglos, por quien fueron hechas las cosas visibles
e invisibles, espirituales y corporales, de quien creo que no lo es por adopción, sino por
generación, y no por gracia, sino por naturaleza, no he negado, digo, que es Dios, sino que
según la sentencia de San Isidoro, que dice que hay algunos que afirman maldades acerca del
Hijo de Dios, y lo que de él se ha dicho según la humanidad, lo transfieren a su divinidad, y lo
que pertenece a su divinidad, lo cambian a su humanidad. Sin embargo, nuestro Julián dice:
“Hombre divinizado y Dios humanado”.
12. Ciertamente debería añadir aún a esta obra otras muchas cosas, pero nos lo prohíbe la
palabra divina, que dice: Haré que se pegue tu lengua al paladar, y te quedarás mudo, para que
no me reprendas como un censor, porque sois una cara exasperante (Ez 3,26). Por eso, ¡ay de
ti, Austria!, nueva Alejandría, que engendraste a un nuevo Arrio, es decir Albino, en tiempos
del glorioso Príncipe, para destruir y oscurecer la fe católica. Oye por último a San Cipriano,
que dice así en su escrito a cierto hereje: “Tú tienes mis cartas y yo las tuyas; unas y otras se
138
leerán en la presencia de Dios”. Recuerda de nuevo al evangelista, que dijo: Muchos de sus
discípulos se volvieron atrás (Jn 6,66). Y ¿dónde se fueron? Que te responda San Gregorio, que
dice: “tras de Satanás”. Y también a uno que le decía al Señor: Te seguiré adonde vayas. El le
respondió. Las raposas tienen madrigueras y los pájaros nidos; pero el Hijo del hombre no tiene
en ti donde reclinar la cabeza (Mt 8,19-20), como sucede en ti. Si estas pequeñas cosas no te
sirven, tampoco te aprovecharán otras más numerosas «Está cerca de Dios quien sabe callar
ante la razón». Lo, que a veces te hemos escrito con dureza, lo hemos hecho por mandato del
Señor, que dice por medio de Moisés: No cocerás el cabrito en la leche de su madre (Ex 34,26).
13. Hay que sugerir de nuevo al glorioso Príncipe que mitigue su indignación contra su siervo
Félix, para que no le demande el Señor su sangre derramada por manos de él; pues debe tener
por seguro que, si desprecia su enseñanza y ratifica la de Albino, tendrá parte con el emperador
Constantino - cosa que Dios no permita -, de quien dice llorando San Isidoro: “¡Oh dolor!, qué
buenos principios y qué mal final”.
139
ANEXO C – LIVRO
Cuatro libros de Alcuino contra Elipando322
Libro primero
1. Está preparado mi corazón, ¡oh Dios!, mi corazón está preparado (Sal 56,8). Por inspiración
de la gracia está preparado para publicar la doctrina de la verdad; está preparado para oponerse
a los errores de la falsedad; está preparado, Señor Jesús, para amarte, alabarte y anunciarte; está
preparado para conocer que tú eres Dios verdadero y verdadero Hijo de Dios, en comunión con
el beato evangelista que, saciando la fe de la verdad católica de la sacratísima plenitud de tu
pecho, ¿ce: Estas costas han sido escritas para que creáis que Jesús es el Cristo, el Hijo de Dios
(Jn 20,31). Y después, para mostrar el premio eterno de la fc, añadió: y para que creyendo
tengáis vida eterna en su nombre; manifestando con la autoridad evangélica que es el Hijo de
Dios el mismo que el arcángel Gabriel, antes de ser concebido, había anunciado a la Santa
Virgen que debía recibir por nombre Jesús e Hijo del Altísimo. Nadie dude que el nombre de
Jesús pertenece a su naturaleza humana, en cuyo nombre, como testifica el santo doctor de los
gentiles, se dobla toda rodilla, en los cielos, en la tierra y en los abismos, y toda lengua confiese
que Jesús es el Señor para gloria de Dios Padre (Flp 240-11). También San Pedro, príncipe de
los Apóstoles, enseña el poder de su nombre en la curación del cojo que estaba tendido en la
puerta del templo llamada Hermosa, cuando dice. En nombre de Jesús Nazareno, levántate y
anda (Hch 3,6), el cual, al instante curado, dio un salto y caminando alababa a Dios. Añadió
también el mismo santo apóstol la excelencia de este nombre cuando, al prohibir los judíos a
los Apóstoles predicar en ese nombre, dice: Porque no hay bajo el cielo otro nombre dado a los
hombres por el que nosotros debamos salvarnos (Hch 4,12). P593 - 595
2. Este mismo, por la misericordia de Dios, es el motivo de escribir contra ti y de destruir tus
infidelidades, padre Elipando, que tuvo San Juan Evangelista para escribir el santo Evangelio,
el de mostrar, con la autoridad de las Santas Escrituras y la verdad de la fe católica, que
Jesucristo es verdadero Hijo de Dios, no sólo en aquella naturaleza que fue engendrada de Dios
Padre en la eternidad, sino también en aquella que en el tiempo fue hecha de la madre Virgen,
a fin de que el único Jesucristo Hijo de Dios no se escinda en dos hijos, propio y adoptivo, cuya
división se entiende que es sin duda la de dos personas.
3. Así como no debemos negar que es posible para Dios hacerse hijo del hombre, perfecto y
propio, cuando quiso, así no hay que llevar la contraria a Dios en su poder de elevar como
propia del Hijo de Dios la naturaleza humana, que asumió en honor de su persona, para ser una
misma persona con el hombre asumido con el carácter de Hijo propio, que tuvo antes de todos
los siglos en su naturaleza divina. Por eso en toda la serie de las Santas Escrituras jamás se lee
que se le impusiera a Cristo el nombre de adoptivo, sino que afirma que nosotros recibimos por
él la gracia de la adopción. De cuya adopción realizada en nosotros dice el citado evangelista:
vino a los estoy los suyos no le recibieron y a los que le recibieron les dio poder de hacerse
huesos de Dios (Jn 1,11). No es conferido este poder de la adopción en los santos por uno
adoptivo, sino por aquel a quien a continuación en la siguiente frase el mismo evangelista llama
unigénito, lleno de gracia y de verdad Y un poco después: pues de su plenitud hemos recibido
todos gracia por grana (Jn 1,16). Y el Apóstol: En él reside toda la plenitud de la divinidad
corporalmente (Col 2,9). Si la adopción pertenece a Cristo, no reside en él toda la plenitud de
la grandeza, porque la adopción de una persona extraña suele recibirse a título de hijo; y ninguno
de los apóstoles, que son lumbreras y doctores de todo el mundo, quiso añadir la adopción al
nombre de Jesús. Por ejemplo, San Agustín, en la disputa que tuvo contra cierto Feliciano
322
Beati Alcuini contra epistolam sibi ab Elipando directam libri quatuor
140
defensor de la secta arriana, distinguió entre los hijos adoptivos y los propios, diciendo así:
“Unos son los hijos adoptivos y otros los propios. Estos, como son hijos desde el principio, son
siempre hijos y propios; aquéllos, al principio ajenos, después hijos cuando vemos ser admitidos
por la adopción en una familia”. ¿Cuándo Cristo hombre nacido de la Virgen fue ajeno a Dios
Padre, para de un ajeno por la adopción ser admitido al título de hijo? ¿No fue en la misma
concepción por obra del Espíritu Santo concebido de la santa Virgen verdadero Dios y
verdadero Hijo de Dios, y nació en el tiempo oportuno? Y si nunca ajeno, por tanto, nunca
adoptivo; porque, corno dice San Agustín, un adoptivo suele hacerse de un ajeno. Queda, en
Consecuencia, ser Cristo al instante de su concepción Hijo propio de Dios, porque nunca fue
ajeno. Y nunca ajeno, porque nunca fue hombre viejo, aunque en vuestro error se llame, en
contra de la fe católica, a Cristo hombre viejo.
4, Y San Jerónimo, en su comentario a la carta a los Efesios: Qué no fue duevo en el hombre
asumido por nuestro Salvador: la concepción, el nacimiento, el parto, la infancia, la doctrina, la
vida, los milagros; y al final la cruz y la pasión, despojándose en ella del principado y sirviendo
de espectáculo a las fuerzas contrarias; y también la resurrección y la ascensión al cielo? El fue
verdaderamente creado en la justicia y santidad de la verdad, porque fue Dios verdadero y
verdadero Hijo de Dios, y toda piedad y justicia en él se cumplió en la verdad de Dios». Veis
qué fielmente este preclaro doctor de la Iglesia de Dios predicó a Cristo siempre nuevo hombre
y verdadero Dios, y que fue creado verdadero Hijo de Dios y afirma que en él se cumplió toda
justicia en la verdad de Dios. Esta sola frase, si se lee fielmente y se entiende verazmente, vacía
las pésimas afirmaciones de vuestro error; pues vosotros decís que Cristo es el hombre viejo,
Dios nuncupativo, hijo adoptivo, mientras que este nobilísimo doctor atestigua sin duda alguna
que nuestro Salvador fue creado hombre nuevo, Dios verdadero y verdadero Hijo de Dios.
5. Ved que un cierto acaloramiento por testificar la verdad me ha llevado fuera del orden de las
respuestas. Pero comencemos antes por refutar las afirmaciones de tu librito; y dense cuenta los
que lean que mis letras fueron escritas a tu regencia, padre Elipando, con la pluma de la piadosa
exhortación y de la caridad, y las tuyas con las de la impía maledicencia que te afanaste en
dirigir a mi nombre procazmente con tu bocea. venenosa, y procedentes de qué espíritu quisiste
ya en el mismo encabezamiento de tus letras dirigirme inmediatamente palabras de crudelísima
maledicencia. Yo con la total sencilla caridad de mi cariño dirigí ruegos a tu reverenda,
deseando salvar por Cristo tu ancianidad y devolverte a la católica concordia de la paz, sin la
que nadie, ni siquiera la propia gloria del martirio, es agradable a Dios, como dice el santo
apóstol Pablo; tú, por el contrario, te lanzaste en palabras de nefanda injuria, según la verídica
frase de Salomón: En la boca del necio sus armas y espada (Prov 22,5). Y también: Corrige al
necio, te odiará (Prov 9,7). Respondiste a mi bendición con la maldición, manifestando qué
tenías en el corazón, qué espíritu te poseía por completo. Mas el Señor, que ilumina a los ciegos
y sana a los de corazón dolorido, ilumine las tinieblas de tu ignorancia y sane las heridas de la
infidelidad en tu corazón, y te convierta en prudente, piadoso, pacífico y católico pastor de tu
pueblo.
[…]
13. Llegaste por fin a la promesa de Dios, que fue anunciada a David: Cuando te acuestes con
tus padres, dice Dios, una descendencia saldrá de tus entrarlas, que se sentará en el trono de
Israel. Yo seré para él Padre y el será para mí Hijo (2 Sam 7,12 y 14). ¡Padre Elipando!, dónde
has perdido tus ojos. ¿Por qué has aducido un testimonio fortísimo en tu contra? Quizás por tu
dignidad sacerdotal como Caifás dijiste sin saberlo la verdad Es promesa paterna y testimonio
paterno, como tú mismo dijiste: Yo seré para él Padre, y él será para mí Hijo. En esta promesa
paterna nada de la adopción se encuentra en estas palabras. Hay gran diferencia entre «seré> y
«soy llamado». Lo verdadero se sostiene solo, sin utilizar imaginación alguna; decir adoptivo
no procede de la verdad, sino de la imaginación de uno que lo quiere así. Hay una gran distancia
entre vuestras mentiras y las promesas de Dios Este dijo: será para mí Hijo; vosotros decís que
141
sólo es nuncupativo, pero que no es propio. También has citado la profecía de Isaías sobre
Cristo, donde dice: La raíz de Jesé que estará enhiesta para estandarte de pueblos, las gentes le
suplicarán, y su sepulcro será glorioso (Is I 11,10). ¿Para qué pueblos será estandarte, y qué
gentes le buscaran, si sólo en Hispania unos pocos en voz baja le suplican con sentido católico?
Ciertamente él no acepta súplica de nadie, a no ser que sean dichas en la caridad de la paz
católica; y su sepulcro, que vosotros consideráis innoble, el profeta predijo que sería glorioso.
Si su sepulcro es glorioso, ¡cuánto más glorioso es el que durmió en el sepulcro, de cuya persona
cantó en otro tiempo el profeta: Yo me acosté, ¡dormí resucité! (Sal 3,6). Y añades la frase
católica de los Padres: «todo en lo suyo y todo en lo nuestro», dando tu interpretación: “¿por
qué no va a ser llamado adoptivo el que de tal manera es todo en lo nuestro, como todo en lo
suyo, menos en el pecado?” ¡Ojalá hubieses entendido mejor las palabras de los santos doctores!
“Todo en lo nuestro”, es decir, pleno hijo del hombre; «todo en lo suyo», es decir, pleno Hijo
de Dios, en ambas naturalezas pleno y perfecto. Tú, en cambio, quieres que sea Hijo de Dios
parcialmente, en parte verdadero y en parte de nombre. Desearía que me respondieras: si todo
Cristo en ambas naturalezas es en sentido verdadero y propio Hijo de la Santísima Virgen; y si
la Santa Virgen María engendró verdaderamente a Dios, como todos los católicos creen y
confiesan, que ella es la madre de Dios; y si el eterno Hijo de Dios es verdaderamente Hijo de
la Santa Virgen, y no por adopción. Si dices que, por adopción, de ninguna manera la Santísima
Virgen María fue verdaderamente madre de Dios. Pero si según la confesión católica quieres
proclamar que ella es verdaderamente madre de Dios, ¿qué queda, sino que sea en las dos
naturalezas todo Cristo verdaderamente Hijo de Dios, con la misma verdad que en las dos
naturalezas es verdaderamente hijo de la Santísima Virgen? Pero si su humanidad es adoptiva
en relación con Dios Padre, la consecuencia lógica es que la divinidad sea adoptiva en relación
con la madre Virgen. Y esto ningún fiel ignora lo impío que es decirlo.
14. Me instas a que utilice testigos de “que no hay adopción alguna en la carne de Cristo”, lo
cual haré a su debido tiempo con ayuda del Espíritu Santo, que inspirará de interpretación
católica nuestros corazones, y que quien no desprecia leer nuestros escritos sabe que lo he hecho
abundantemente en otros escritos nuestros, que redacté en contra de vuestro error. Y de lo que
me pides, que dé argumentos de “que no hay verdadera humanidad en Cristo”, sobre eso no
puedo ofrecer argumento alguno, porque soy católico, nacido y criado en la Iglesia católica;
pero sí te ofreceré la serie de testimonios de mis escritos, si te dignas leerlos, que proclaman en
Cristo Jesús una verdadera divinidad y una verdadera humanidad. Y me admiro por qué quieres
echarme en cara lo que jamás leíste que hubiera dicho. Me exhortas que no sea Arrio, que
mancilló con su perversidad muchos corazones, a fin de que no creyeran lo que es recto. Yo,
por la gloria de Jesús Dios, nunca he caído en el abismo de Arrio; en cambio, tú, o demuestras
que eres Arrío, o te verás obligado a condenar tu sentencia, que afirma que el único Hijo de
Dios, Unigénito, y sin duda una única persona, es adoptivo. ¿Acaso no afirmas tú que es
adoptiva la misma persona de la que en otro tiempo con detestable impiedad afirmó Arrio que
era adoptiva? O si te esfuerzas en evitar esa blasfemia, inmediatamente caes en el lazo de
Nestorio, que divide a Cristo en dos personas, una propia y otra adoptiva. Pues Nestorio no
habló abiertamente de dos personas en Cristo; pero todo lo que, según un malvado entender, es
necesario que se dé en dos personas, es decir, filiación propia y adoptiva, lo afirmó en Cristo.
Pues sin duda en sus escritos se encuentra el nombre de adopción de Cristo; son palabras del
propio Nestorio después de oscuras interpretaciones y nebulosas sentencias e impías
infidelidades sobre la humanidad de Cristo. Dice así: “Por eso también muchos, según San
Pablo, somos llamados hijos, pero él solo tiene como peculiar el ser partícipe de la unión y
adopción del Verbo de Dios”.
15. Ved, hermanos, ved vuestro peligro, y alejaos por fin ahora del error de la infidelidad,
huyendo de la doctrina dual acerca de nuestro Redentor. Y si no queréis hacerlo utilizando la
predicación católica de los Santos Padres, corregid vuestra doctrina utilizando la impía
142
incredulidad y justa condena de Nestorio, que afirma sobre la humanidad de Cristo, como
podéis oír en sus palabras, la misma adopción que vuestra ignorancia pertinaz se esfuerza en
afirmar. Que extirpe el Señor, dice el profeta, al maestro y al discípulo que enseña tales cosas
(Mal 2,12). Mas también el ángel del Señor hace vibrar la espada de la venganza sobre vuestra
cabeza, para dividiros en dos, si vosotros dividís a Cristo en Hijo propio y adoptivo, y pondrá
vuestra suerte con los hipócritas, donde será el llanto] crujir de dientes (Mt 25,30). Y tú,
venerable padre Elipando, procura que unos jóvenes no se mofen de tu edad y digan con Daniel:
Envejecido en la iniquidad, ahora han llegado al colmo los delitos de tu vida pasada (Dan 13,52),
por desviar del camino a los inocentes, al no predicar rectamente sobre el Salvador del mundo.
Oímos, en la carta que dirigiste al antes citado Félix, que eras ya un octogenario. Escucha a
Cristo que te dice: Todavía, por un poco de limpio, está la luz en camina, mientras tengas lúa,
para que no te sorprendan las tinieblas, porque el que camina en tinieblas no sabe adónde va.
Mientras tengas lúa, cree en la lura para que seas bajo de la luz (Gn 12,35-36). Todo lo que en
tu carta elaboraste sacándolo del tenebroso sentimiento de tu corazón, se ve que todo emana de
la hiel de la maledicencia y de la falsedad. Pero quizás por desconocer la verdad proferiste la
falsedad. Aprende primero y ensaya después, no te convictas en maestro del error. Es preferible
la humildad de discípulo que la temeridad de maestro. No te envanezcas de tu sabiduría. La
ciencia hincha, el amor en cambio edifica (1 Cor 8,1). Y el que se ensarta será humillado, y el
que se humilla será ensalzado (Mt 23,12).
16. Me amonestas, como se ve, no con ánimo benigno, sino con el severo castigo de la invectiva,
que no corrompa al glorioso rey Carlos. No vine yo a Francia para corromper a quien no puede
ser corrompido, sino a ayudarlo en la fe católica, en que desde niño fue educado y muy bien
enseriado por sus cristianísimos padres y por maestros católicos. Es imposible que alguien le
corrompa, porque es católico en la fe, rey en el poder, pontífice en la predicación, juez en la
justicia, filósofo en las artes liberales, preclaro en las costumbres e insigne en toda honestidad
Antes de venir yo a Francia, por mandato del mismo sapientísimo rey Carlos, esta misma secta
de vuestro error fue examinada en un celebérrimo lugar llamado Ratisbona, siendo presidente
el mismo glorioso príncipe, estando presente Félix, a quien sueles alabar mucho, en ese tiempo
defensor de vuestro grupo, y condenada con eterno anatema por la sinodal autoridad de los
obispos, que se habían reunido de diferentes regiones del imperio cristiano; incluso también
completamente aniquilada por el papa Adriano, de santa memoria, que gobernaba entonces la
sede de la Iglesia de Roma con su autoridad apostólica, hasta que el mismo Félix
desgraciadamente, de vuelta de nuevo a vuestras regiones, por vuestros ruegos pretendió
reanimar las dormidas cenizas de la infidelidad Cuando regresé yo a estas regiones me esmeré
en dirigirle, utilizando la pluma de la caridad, una carta exhortatoria, para que se adhiriera a la
unidad católica. A la que él se empeció en responder no con la brevedad de una carta, sino con
la amplitud de un libro, en el que abrió al máximo todas las grietas de vuestra perfidia,
afirmando que Cristo es el hombre viejo, Dios nuncupativo, hijo adoptivo, y necesitado de una
segunda regeneración, y atrás muchas afirmaciones impropias de la doctrina eclesiástica. A ese
libro suyo le respondimos con siete libros fruto de nuestra devoción, vaciando de sentido todas
las doctrinas de vuestra falsedad. Y estos escritos de nuestra devoción fueron también leídos y
aprobados en presencia del senior Rey y de los sacerdotes de Cristo. Pero también el mismo
Félix en el año 32323 del citado glorioso Príncipe, al ser convocado, viniendo voluntariamente
al palacio de Aquisgrán, omití en presencia del señor Rey y de Suez consejeros y sacerdotes de
Dios, habiendo oído sus razones y convencido de verdad, dando gloria a Dios, proclamó la
verdadera fe y retornó con sus discípulos, que estaban entonces allí presentes, a h paz de la
unanimidad católica; te aconsejo, venerable padre, que imites tú con tus discípulos su humildad.
323 Ano 799, fecha de la Conferencia de Aquisgrán.
143
17. Únete tú y las ovejas a ti encomendadas al rebano de la cristiana caridad, por aquel que dijo:
Yo soy, la puerta; si uno entra por mí, estará a salvo, entrará y saldrá (Jn 10,9). Debes vigilar
con cuidadoso esmero no ser del número de quienes la misma Verdad subraya en el mismo
texto: Todos los que han venido, dice, son ladrones y salteadores (Jn 10,8); dice los que han
venido, no los que han sido enviados. Y el. Apóstol: Cómo predicarán si no son enviados? (Rom
10,15). Quién te envió, padre Elipando, a predicar la adopción en Cristo ‘Hijo de Dios? Luego
si, sin enviarte nadie, has venido por ti mismo y has predicado, demuestras ser ladrón y salteador.
El ladrón no viese más que a robar, matar y destruir (Jn 10,10). Que tengan cuidado tus
discípulos, no sean matados y destruidos por ti. Les es mejor sacarse el ojo derecho que ser
enviados con todo su cuerpo a la gehena de fuego. Si un ciego gula a otro ciego, caen ambos en
el hoyo (Mt 15,14). Escucha también la comparación que hace el santo Apóstol entre Moisés y
Cristo, de los que tú diste que son semejantes, donde afirmó la excelendo de la majestad de
Cristo sobre su siervo Moisés. Ciertamente, dice, Moisés fue fiel en toda su casa, como servidor;
pero Cristo lo fue como Hijo, al frente de fie propia casa (Heb 3,4-5); Hamando a Moisés
servidor y a Cristo Hijo. La misma diferencia que hay entre un siervo dei paterfamilias y un
híjo, ésa es la que hay entre Moisés y Cristo. Nunca cl mismo Apóstol dice de Moisés, sino de
Cristo. Encumbrado por encima de los ciclos (Heb 7,26), a quien también al principio de la
misma carta no dudó anteponerlo a los ángeles: con una superioridad dice, sobre los ángeles
tanto major cuanto más les supera en el nombre que ha heredado. En efecto, a qué ángel dijo
alguna vez: Hijo mío eres tu, yo te be engendrado hoy? Y de nuevo: Yo seré para él Padre, y él
será para mí Hijo. Y nuevamente, ahí introducir a su Primogénito en el mundo, dice: Y adórenle
todos los ángeles de Dios (Heb 1,4-6). Dice, pues, Hijo mío eres tú (Sal 2,7), del que en el
versículo siguiente afeador, coma tú rúsmo un poco antes manifestaste: Pídeme, y te daré en
hereda las naciones (Sal 2,8). Dice Hijo mío eres tú, a aquel a quien dice: Pídeme, y te daré las
«dona. Pero también San Gregorio, doctor eximio y aceptado por todas las Iglesias de Cristo,
al distinguir entre la divinidad de los santos y la de Cristo, en una Homilía sobre la primera
parte del profeta Ezequiel, dice así, cuando trató del poder nuncupativo de los santos y la
divinidad propia de Cristo: «Por eso, dice, el apóstol Pablo, queriendo distinguir el nombre
nuncupativo de Dios del esencial, habló de nuestro Redentor, diciendo: De los cuales los
Patriarcas, de los que también procede Cristo según la carne, el cual está por encima de todas
las cosas, Dios bendito por los sitios (Rom 9,5) El que es llamado Dios nuncupativo está entre
todas las cosas; en cambio, el que es por esencia Dios está por encima de todas las cosas. Por
tanto, para mostrar que Cristo es por naturaleza Dios, no un Dios de cualquier manera, sino que
recordó que era Dios por encima de todas Las cosas; porque también un elegido, como antes
dijimos, puesto como ejemplo de justicia por prerrogativa, puede ser llamado Dios, pero entre
todas las cosas, porque es Dios nuncupativo; en cambio, Cristo es Dios por encima de todas las
cosas, porque es por naturaleza Dios». No dudó en afirmar que era Dios por naturaleza el mismo
de quien el doctor de los gentiles afirmaba que procedía de la descendencia de los santos
patriarcas según la carne.
18. Cuando a tu perversidad le fallaron los testimonios de Dios en los profetas, favorables a tu
error, te imaginaste que un nuevo profeta había dicho: Apiádate, Señor, de tu pueblo, sobre el
que ha sido invocado tu nombre, y de Israel, a guíen rallaste con tu primogénito (Eclo 36,11).
Apiadaste también a esta frase esta interpretación “Esta igualdad, diste, no es en la divinidad,
sino sólo en la humanidad, y en la carne adoptiva, que recibió de la Virgen”. Ved ¡qué falsedad
en nombre del profeta! ¡Ved qué perversidad en la interpretación de la frase! Y no en vano
convenía a un nuevo doctor encontrar para sí un nuevo profeta. Como el rey Jeroboam, al
separarse del culto del verdadero Dios, se inventó nuevos dioses, para, perdido a, perder al
pueblo sometido a él; del cual mucho antes había sido profetizado en el cántico del
Deuteronomio: Recató a Dios su creador y se algo de Dios su salvador (Dt 32,16); así tú
alejándote del verdadero Dios e Hijo propio de Dios, te inventas un Dios nuncupativo y un Hijo
144
Redentor adoptivo, que no conocieron nuestros padres. Tú rechazaste al Dios que te liberó, y te
olvidaste de tu Dios Redentor. En el libro del Sirácida se lee esta citada frase, cuyo libro San
Jerónimo e Isidoro dicen sin duda alguna que hay que considerarlo entre los libros apócrifos,
es decir, dudosa Escrituras. Este libro tampoco fue escrito en el tiempo de los profetas, sino de
los sacerdotes, bajo Simón, sumo sacerdote, reinando Ptolomeo Emergentes; y se ve que
condene no tanto profecías cuanto disciplinas morales y alabanzas a la sabiduría; y puede
entenderse mejor este primogénito, del que habla aquí, como el pueblo de Dios sacado de Egipto,
del que el Señor ordenó al Faraón por medio de Moisés su siervo, diciendo: Así dice el Señor:
Israel es mi primogénito. Yo te digo: deja ir a mi hijo primogénito para que me dé culto, pero
como no has querido dejarlo partir, mira que yo voy a matar a tu hijo primogénito (Ex 4,22-23);
que es al que, equiparado el pueblo de dos tribus liberado por la misericordia de Dios de la
cautividad de Babilonia, el hombre que escribió las palabras de esta, frase, según mi opinión,
guiso referirse; nada profético sobre Cristo hay en estas palabras, como afirmas tú dándoles una
nueva interpretación.
19. A continuación, yendo de un lado para otro según tu costumbre, vas a buscar a lo largo de
la Santa Escritura testimonios sobre qué se refiere a la divinidad de Cristo y qué a su humanidad,
como si pareciera que alguno de nosotros negara en Cristo su verdadera humanidad y su
verdadera divinidad. Y en primer lugar aduces que el Hijo de Dios según su divinidad dice:
tenso poder para entregar mi alma, y tengo poder para recuperaría de nuevo (In 10,18),
minusvalorando qué entendió San Agustín de esta frase, que guiso interpretar así estas palabras
del Senior en sus homilías evangélicas: “Quién entrega su alma, dice, y la recupera de nuevo?
Cristo, en cuanto el Verbo, o por el hecho de que el alma humana ella misma se entrega y ella
misma se recupera de nuevo? o porque es carne entrega el alma y Ia recupera de nuevo? He
puesto tres posibilidades; examinemos todas y chinamos lo que esté de acuerdo con la regia de
Ia verdad. Si dijéramos que el Verbo entregó su alma y la recuperó de nuevo, habría que temer
que contenga un depravado pensamiento, y se nos diga: por tanto, en algún momento aquella
alma estuvo separada del Verbo, en algún momento ese Verbo, del que recibió el alma, estuvo
sin alma. Sé que el Verbo estuvo sin alma humana, pero fue cuando en el principio existía el
Verbo, y el Verbo estaba junto a Dios y el Verbo era Dios. Pero desde el momento en que el
Verbo se hizo carne para habitar entre nosotros y fue recibido por el Verbo el hombre, es decir,
todo el hombre, cuerpo y alma, ¿qué consiguió la pasión, qué realizó la muerte, sino separar el
cuerpo del alma, pero no separar el alma del Verbo? Si el Señor murió, más bien porque murió
el Señor —pues murió por nosotros en la cruz—, sin duda su carne expulsó el alma, por poco
tiempo el alma dejó la carne y regresando el alma resucitó. Pero no digo que el alma se separó
del Verbo... Todos los hombres, cuando mueren, entregan el alma, pero no todos la entregan
por Cristo. Y nadie tiene el poder de recuperar lo que entregó. En cambio, Cristo la entregó por
nosotros, y la entregó cuando guiso, y cuando guiso la recuperó Entregar el alma es morir. Así
dice Pedro al Señor: Entregaré mi alma por ti (Jn 13,37), es decir, moriré por ti en la carne”. Y
un poco después: “¿Cómo entregó Cristo el alma? Pero ¿es que la carne no es Cristo?
Ciertamente la carne es Cristo, y el alma es Cristo, y el Verbo es Cristo; pero estos tres no son
tres Cristo, sino un solo Cristo”, y un solo Unigénito Dios y hombre. ¿Acaso no te ha entrado,
oh nuevo intérprete de las Santas Escrituras, un depravado pensamiento, cuando dices que
cuando el alma de Cristo estuvo separada del Verbo estas mismas palabras (Jn 10,18) las
pronunció el Señor según su divinidad?, afirmación que este egregio doctor te advierte con
compasión, conforme a razón, que debes temer en gran medida.
20. También con similar perversidad quieres dividir a Cristo, en aquella voz que el Padre en el
monte santo dirigió a los discípulos que la escuchaban, que decía: Este es mi Hijo amado, en
quien me complatco, escuchadle (Mt 17,5), como si esto únicamente hubiese sido dicho de la
divinidad, y no más bien de su humanidad. Por tanto, si piensas que so fue dicho sólo de la
divinidad, intentas dividir a Cristo, y que sólo la naturaleza divina es el Hijo; qué perverso sea
145
esto, ningún católico lo desconoce. Sobre un único Hijo sobrevino esta voz del Padre desde el
ciclo, y de ese único Hijo se dice. Este es mi Hijo amado. Todo lo que hay en Cristo tiene el
nombre de Hijo, y según testimonio del mismo Padre es llamado hijo mío amado, no, corno tú
afirmas, adoptivo. Tres cosas se escucharon en la voz del Padre. “Hijo”, “mío” y “amado” es
llamado. Y apiade más: en quien me complazco. La voz del Padre clama desde el ciclo, “mío”;
y tú desde la tierra gritas, “no es tuyo”. ¿Qué salvación puedes esperar tú, si no crees el
testimonio de Dios? Ni se te ofrece aquí siquiera ocasión para la división; lo dijo de un único
Hijo, señala a uno, como si dijera: ni busques a otro, ni creas que no es éste. O si quizás tienes
algún duda, sobre si esto se dijo de la naturaleza humana de Cristo, lee la interpretación de esta
paterna voz que hace San Gregorio. El antes citado padre en las Homilías sobre Ezequiel, quien,
después de muchas reverendas simbólicas de la humanidad de Cristo y misterios de la visión
profética, relata la excelencia de la voz paterna, diciendo: «Tú eres mi Hijo amado, en li me
complazco (Lc 3,22); o como otro evangelista dice: Este es mi Hijo amado, en él me complace
(Mt 3,17)”. Y después de unas pocas frases: “Pues sólo en el Unigénito nuestro Senior
Jesucristo se complace, porque no lamentó hacerlo timbre entre los hombres, en quien no halló
nunca pecado, como de él dice el salmista: Jurá el Seifory no se arrepentirá: Tú eres sacerdote
para siempre según el orden de Melquisedec (Sal 109,4). Por tanto, sólo en nuestro Redentor
se complace el Padre, porque sólo en él no encontró pecado”. También en la misma Homilía“Cuando se oye la voz, dice, sobre el firmamento, se ponen en pie los vivientes y pliegan sus
alas, porque los santos todos, al ver también al mismo Unigénito flagelado en este mundo,
renuncian a ello si esperan algo por sus méritos”. Ciertísimamente este eximio doctor
comprendió que esta voz fue emitida sobre el Senior bautizado. Sin lugar a dudas pudo recibir
el bautismo su humanidad, no la divinidad; y no ternó mar Unigénito al que vino sin pecado y
padeció azotes por nuestros pecados. Si es el Unigénito, de ninguna manera es adoptivo.
21. Sabemos que San Isidoro dice de Cristo: «Es el Unigénito en la dad y el primogénito en la
humanidad; sin embargo, no icemos que haya contradicción en que él sea también el
primogénito en la divinidad y el Unigénito en la humanidad, para que no parezca que él mismo
afirma algo en contra de las Santas escrituras. Ambas cosas fue nuestro Senior Jesucristo en
ambas naturalezas, Unigénito y primogénito. Unigénito en la divinidad, porque sólo él fue
engendrado del inengendrado Padre; también en la misma naturaleza el Primogénito, como dice
el Apóstol: El primogénito de toda criatura (Col 1,15). También de la madre Virgen es
primogénito y Unigénito: primogénito, porque la Santa Virgen no tuvo ningún hijo antes que
él; y Unigénito, porque no engendró ningún hijo después de él. Y el mismo que nació de la
Virgen es el Unigénito Hijo de Dios. Padre, como en el Evangelio el mismo Señor dito de sí
mismo. Pues de tal numera amó Dios al mundo, que le dio a su Hijo unigénito (Jn 3,16) El que
fue entregado a la Pasión, es llamado Unigénito, como en otro tiempo el profeta Zacarias
profetizó: ¿Y mirará?: a aquella quien traspasa harán lamentación por él como lamentación por
un hijo unigénito, y le llorarán amargamente como se llora amargamente a un primogénito (Zac
12,10). A quien el profeta y el evangelista llamaron Unigénito, a ése el Apóstol, maestro: de los
gentiles, quiso llamado sin dudarlo Hijo propio: El que no perdonó ni a su propio Hijo, antes
bien le entregó por todos nosotros (Rom:8,32). Dado y entregado significa lo mismo. El
Unigénito fue dado por la salvación del mundo, y el Rijo propio entregado a la muerte. El
mismo cs el Unigénito que el propio, el mismo el pasible e impasible, el mismo Dios y hombre,
un solo Hijo y un solo Cristo en una sola persona.
22. Di, di, oyente de las palabras de Dios, que como Balaam tienes los ojos abiertos y no ves;
el corazón racional, y no entiendes, quién es la persona dei Dios Hijo nacido eternamente de
Dios Padre, si es propia o adoptiva. Pienso que no estás tan alejado de la fe, que te atrevas a
decir que es adoptiva la persona del nacimiento eterno del Hijo de Dios Unigénito, para que no
te condene con Arrio todo el mundo. Ten con absoluta certeza y cree con total veracidad que
en aquella persona en su totalidad, que tuvo antes de los siglos, el Hijo de Dios asumió una
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naturaleza humana, para ser todo él una sola, propia y perfecta persona en la dignidad de Hijo,
no teniendo nada adoptivo en la divinidad ni en la humanidad, ei único Hijo del único Padre.
No puede ser propio v adoptivo. O todo es propio, o todo es adoptivo, O es preciso que afirmes
que Cristo es dos hijos en dos personas. Ia propia la de la adopción, corno el impío Nestorio. O
si diste que Cristo es uno solo, que es Hijo pronto en una sola persona como los católicos, es
preciso que tú confieses que el Hijo de Dios es en su totalidad propio en la única persona de la
Suma Verdad, porque toda verdad reside en él, v nada hay de fantasía, como sucia suceder en
los hijos de la adopción. Asumió la verdad de nuestra naturaleza, no ya persona de nuestra
adopción, no cambiando la naturaleza de nuestra humanidad en la naturaleza de su divinidad,
sino que cambió la persona de nuestra adopción en la persona de la suya propia, no
disminuyendo la suya, sino aumentando la nuestra. Permaneció lo que era cuando asumió lo
que no era. Sí por la aserción consideras su humanidad adoptiva, como lo olmos de Félix (de
Urgel), mientras persistió en la defensa de vuestra infidelidad, en consecuencia, es adoptivo de
aquella persona, que asumió la humanidad, y es nieto del Padre por la adopción del Hijo; pienso
que ninguno de vosotros ignora qué blasfemo es pensar así. Pero a fin de que lo propio de mi
discurso no genere hastió en el lector, finalicemos aquí este libro y, recuperadas por la gracia
de Dios las fuerzas, convencemos con mayor generosidad lo que debo decir desde una nueva
introducción.