DA IMITATIO CHRISTI ÀS NORMATIVAS FRANCISCANAS: O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM DOS FRADES MENORES (1209-1228) - José Carlos Santos do Carmo

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                    UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

JOSÉ CARLOS SANTOS DO CARMO

DA IMITATIO CHRISTI ÀS NORMATIVAS FRANCISCANAS: O PROCESSO DE
INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM DOS FRADES MENORES (1209-1228).

Maceió
2019

JOSÉ CARLOS SANTOS DO CARMO

DA IMITATIO CHRISTI ÀS NORMATIVAS FRANCISCANAS: O PROCESSO DE
INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM DOS FRADES MENORES (1209-1228).

Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de
Pós-graduação em História da Universidade Federal de
Alagoas (UFAL) como pré-requisito parcial para
obtenção de título de mestre em História.

Orientadora: Dra. Raquel de Fátima Parmegiani.

Maceió
2019

Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale – CRB4 - 661
C287d

Carmo, José Carlos Santos do.
Da imitatio christi às normativas franciscanas : o processo de institucionalização
da ordem dos frades menores (1209-1228) / José Carlos Santos do Carmo. – 2019.
182 f. : il.
Orientadora: Raquel de Fátima Parmegiani.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Alagoas.
Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes. Programa de Pós-Graduação
em História. Maceió, 2019.
Bibliografia: f. 137-142.
Anexos: f. 143-182.
1. Francisco, de Assis, Santo, 1182-1226. 2. Franciscanos – História – Séc. XVIII.
3. Movimento franciscano. 4. Franciscanos – Regras. 5. Igreja católica. I. Título.

CDU: 930.85:271.3

Dedico este trabalho a minha mãe, Maria das Dores, por
sempre estar ao meu lado e por me apoiar, não apenas na
realização deste trabalho, mas em todos os momentos da
minha vida.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus por ter me guiado durante minha vida acadêmica e
por ter colocado pessoas tão especiais em meu caminho, durante a graduação e o mestrado. A
professora Dra. Raquel de Fátima Parmegiani, pela acolhida a minha pesquisa, pela dedicação
na orientação desta dissertação e pelo incentivo a continuar a pesquisar. A FAPEAL
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas) pelo financiamento deste trabalho,
possibilitando minha participação em congressos, onde tive a oportunidade de representar
meu amado estado de Alagoas. Aos docentes do programa de pós-graduação em História da
Universidade Federal de Alagoas, em especial as professoras Dra. Flávia Maria de Carvalho e
Dra. Arrisete Cleide de Lemos Costa, que nos auxiliaram nas disciplinas obrigatórias do
PPGH-AL.
Ao Professor Dr. Alexandre Torres Fonseca, pela disponibilidade de participar da
minha qualificação e defesa, mostrando-se sempre um professor preocupado com a pesquisa,
indicando livros e realizando ponderações importantes para a produção desta dissertação. A
professora Dra. Verônica Aparecida Silveira Aguiar, que participou deste trabalho desde a
elaboração do projeto indicando algumas referências, obrigado por indicar os possíveis
caminhos que deveriam ser seguidos e pelas bibliográficas que foram aqui utilizadas.
Aos funcionários da biblioteca do Instituto Teológico Franciscano e do Seminário
Seráfico São Fidélis de Piracicaba, pela disponibilização de material para a realização desta
pesquisa quando estive in loco e durante a produção do texto quando precisei de material,
prontamente fui atendido pelas equipes das instituições acima destacadas.
Aos meus companheiros do programa de pós-graduação do ano de 2017, em especial
Benjamim Oliveira e Luanna Klíscia, pelo apoio e por sempre estarem dispostos a ouvir e
debater alguns aspectos da minha pesquisa, aos colegas do grupo de pesquisa Vivarium, era
ali que apresentávamos nossas pesquisas e discutiamos textos que foram utilizados nesta
produção acadêmica. Agradeço aos meus amigos de graduação que sempre estiveram ao meu
lado, em especial Anderson Fernando e Jaíres Melo por sempre terem uma palavra de
incentivo e alegria para mim. A Cynthia Kassia, Tayna Souza e Lucas Batista, pelo
companheirismo. Aos meus amigos do Colégio Isaac Newton: Adolfo Silva, Any Deyse,
Antônio Marcos, Josiano Figueiredo, Maria Luana e Wedja de Souza, por me incentivarem no
início da pesquisa, vocês e todos os professores desse país são os grandes heróis brasileiros,

pois com todos os desafios inerentes a nossa profissão, continuam a acreditar na poder
transformador da educação.
A minha família, tios e tias, primos e primas em especial Rafaela Milena e José
Rafael, Drielly Larissa, pelo incentivo a prosseguir em minha trajetória acadêmica, a minha
prima Mariana Tiburcio e seu esposo Fernando Oliveira, pelo suporte, quanto estive por duas
vezes em São Paulo para realizar pesquisa e para evento, obrigado pelo carinho e pela
cordialidade que sempre me receberam. A minha mãe Maria das Dores, aos meus avôs Gessi
Ferreira e Cicero Tiburcio (in memoriam) e minha Tia Benedita Tiburcio pelo carinho, os
ensinamentos de vocês me trouxeram até aqui, obrigado por estarem sempre ao meu lado, me
apoiando e comemorando minhas conquistas, eu amo vocês. Sou grato aos meus irmãos
Thiago dos Santos, Ericka Luany e Elayne Lúcia pelo apoio, minha sobrinha Rebeca Sophia,
meu primos Gabriel Santos, Jonathan Cassiano, Maria Eduarda e Eduardo da Silva pela
alegria e amor que vocês me proporcionam todos os dias, espero que quando vocês crescerem
encontrem um mundo mais justo, mais fraterno, com mais respeito às diversidades e as
escolhas dos indivíduos.

Os governos, o sistema econômico, as escolas, tudo na
sociedade, não se destina ao benefício das minorias
privilegiadas. Nós podemos cuidar de nós mesmos. É para
o benefício da grande maioria das pessoas, que não são
particularmente inteligentes ou interessantes (a menos que,
naturalmente, nos apaixonemos por uma delas), não têm
um grau elevado de instrução, não são prósperas ou
realmente fadadas ao sucesso, não são nada de muito
especial. É para as pessoas que, ao longo da história, fora
de seu bairro, apenas têm entrado para a história como
indivíduos nos registros de nascimento, casamento e
morte. Toda sociedade na qual valha a pena viver é uma
sociedade que se destina a elas, e não aos ricos,
inteligentes e excepcionais, embora toda sociedade em que
valha a pena viver deva garantir espaço e propósito para
tais minorias. Mas o mundo não é feito para o nosso
benefício pessoal, e tampouco estamos no mundo para
nosso benefício pessoal. Um mundo que afirme ser esse
seu propósito não é bom e não deve ser duradouro. (Eric
Hobsbawn)

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo, analisar o processo de institucionalização da Ordem
dos Frades Menores no decorrer do século XIII e entender as mudanças que ocorreram no
propósito inicial de Francisco de Assis. Para esta análise partimos da Reforma Gregoriana,
que iniciou no século XI e que por meio da ascensão do direito canônico criou uma jurisdição
própria para a Igreja Romana, transformando-a na instituição reguladora da cristandade e dos
grupos religiosos que a compunham. Esta normatização afetava diretamente os franciscanos,
inicialmente organizados em uma fraternitas, mas que devido ao aumento do número de
adeptos e ao estreitamento da sua relação com ao papado, logo caminharia para uma Ordo.
Estas são questões importantes para entendermos as mudanças que vemos ocorrer na
experiência religiosa de Francisco. É nesse sentido que analisamos a documentação referente
ao processo de institucionalização da Ordem, que iniciou em 1209 e se estendeu até 1228,
dessa forma, utilizamos as Regras de 1221 e 1223, o Testamento (1226), as bulas Quo
Elonganti, Ordinem Vestrum, Expositio super Regulam Fratrum Minorum e Expositio
Quatuor Magistrotum Super Reguluam Fratrum Minorum. Fica claro em nosso estudo que,
apesar das alterações impostas ao movimento, o conteúdo de vida minorítico baseado em um
modelo apostólico, manteve-se de uma normativa a outra, todavia sem o rigor que havia sido
pensado pelo Poverello. Foi necessário conciliar o franciscanismo desde os primórdios com as
mudanças institucionais resultantes da transformação das fraternitas em Ordo, esse processo
ocorreu por meio de interpretações em torno da documentação franciscana no decorrer do
século XIII.

Palavras- chave: regras, Igreja, movimento franciscano, institucionalização, Francisco de
Assis.

ABSTRACT

The present work aims to analyze the process of institutionalization of the Order of Friars
Minor during the thirteenth century and understand the changes that occurred in the initial
purpose of Francis of Assisi. For this analysis we start with the Gregorian Reformation, which
began in the eleventh century and which, through the rise of canon law, established a own
jurisdiction for the Roman Church, transforming it into the regulatory institution of
Christendom and the religious groups that composed it This normalization directly affected
the franciscans, initially organized in a fraternitas, but that due to the increase of the number
of adepts and the narrowing of its relation with the papacy, soon would walk for an Ordo.
These are important questions for us to understand the changes we see occurring in Francis'
religious experience. It is in this sense that we analyze the documentation concerning the
process of institutionalization of the Order, which began in 1209 and extended until 1228, in
this way we use the Rules of 1221 and 1223, the Testament (1226), the Bulls Quo Elonganti,
Ordinem Vestrum, Expositio super Regulam Fratrum Minorum and Expositio Quatuor
Magistrotum Super Regulus Fratrum Minorum. It is clear in our study that, despite the
changes imposed on the movement, the content of minority life based on an apostolic model
has remained from one norm to another, however without the rigor that had been thought by
the Poverello. It was necessary to reconcile the franciscanism from the beginnings with the
institutional changes resulting from the transformation of the fraternitas in Ordo, this process
occurred through interpretations around the franciscan documentation in the course of the
thirteenth century.

Keywords: rules, Church, Franciscan movement, institutionalization, Francis of Assisi.

LISTA DE ABREVIAÇÕES

1 Cel- Primeira hagiografia, escrita por Tomas de Celano para o momento de canonização de
São Francisco de Assis em 1228.
2 Cel- Segunda Primeira hagiografia, escrita por Tomas de Celano datada entre 1246-1248.
LM- Legenda Maior- Hagiografia escrita em 1263 por Boaventura.
Lm- Legenda menor- Hagiografia escrita em 1263 por Boaventura. Recebeu este nome para
distinguir-se da legenda maior.
LTC- Legenda dos Três Comapnheiros (Frei Ângelo, Rufino e Leão).
Rnb- Regra não bulada- Escrita em 1221, que não chegou a ser confirmada pelo papa.
Rb- Regra bulada- Escrita em 1223, e foi aprovada pelo papa por meio da bula Solet Anunere.
Test- Testamento de São Francisco de Assis escrito em 1226.
OFM- Ordem dos Frades Menores.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
2 DA FRATERNIDADE À ORDEM. ......................................................................... 16
2.1. Reforma Gregoriana e a centralização política-religiosa da Igreja. ........................ 16
2.2. O desenvolvimento do direito canônico e normatização das práticas religiosas. .... 26
2.3. De 1205 a 1209: O momento de ajustamento da fraternitas. ................................... 31
2.4. De 1209-1210 a 1223: O movimento franciscano entre a expansão e a crise. ........ 38
3A EVOLUÇÃO DA ORDEM: UM ESTUDO COMPARATIVO DAS REGRAS.56
3.1. O que separa a Regula sine bulla da Regula bullata? .............................................. 56
3.2. Pobreza, identidade e trabalho: uma comparação entre a Regra de 1223 e a 1221. 58
3.3. Da Regra bulada para a não bulada: Penitência, hierarquia e pregação. ................. 75
3.4 Fragmentos da Regra 1221 que não foram integrados ao texto definitivo. .............. 87
3.5 A Regra definitiva e a canonização de Francisco. .................................................... 91
4 DEBATES JURÍDICOS APÓS A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM. .. 96
4.1. Papa Gregório IX e a norma de 1223. ..................................................................... 96
4.2. Pobreza e a regra franciscana segundo Inocêncio IV. ........................................... 104
4.3. Alter Franciscus: Boaventura e a reafirmação da normativa. ............................... 115
4.4. Comparação entre a Regra bulada e a Exposição de Boaventura. ......................... 122
4.5. É possível definir o franciscanismo das origens? .................................................. 129
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. ................................................................................. 133
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 137
ANEXOS...................................................................................................................... 143

12

1 INTRODUÇÃO
A Ordem Franciscana nasceu em um contexto de intensa movimentação religiosa de
cunho laico que tinha como modelo de vida a “Imitatio Christi”. A proposta de vida
apresentada por Francisco foi uma entre tantas que existiram entre os séculos XII e XIII. Filho
de um rico mercador da Comuna italiana de Assis, ele optou por viver uma vida próximo ao
que essa sociedade entendia como vida evangélica, marcada pela adesão a pobreza voluntária.
Francisco, como afirma Michel Mollat, não aderiu a um modelo, ele viveu e tomou o lugar
dos excluídos pela sociedade como local de fala.
Sua escolha não era uma novidade, homens e mulheres anteriores a ele, já haviam
optado por esse modelo de experiência religiosa, como destacou Stanislao da Campagnola.
Entretanto, as críticas que esse modo de vida cristã trazia para a estrutura e as ações da Igreja
acabaram por colocar muitos desses grupos como dissidentes e/ou heréticos. O Assisense
realizou o caminho oposto, visto que, desde sua conversão sempre colocou-se em uma relação
de obediência com a Sé Romana, o que de toda forma, não significou ausência de críticas à
estrutura hierárquica dessa instituição, posto que, mesmo com as diretrizes do IV Concílio de
Latrão proibindo a fundação de novas ordens religiosas, ele estabeleceu um novo grupo
pauperístico, que no decorrer do século XIII precisou passar por um processo de
institucionalização devido a forte política centralizadora oriunda da Reforma Gregoriana,
onde o papado havia concentrado para si o poder espiritual e tentava controlar os grupos
religiosos que surgissem.
Nosso trabalho que tem como tema: Da imitatio Christi às normativas franciscanas: O
processo de institucionalização da Ordem dos Frades Menores (1209-1228), tem como
objetivo analisar as consequências da Reforma Gregoriana que ocorria desde o século XI e
como este processo de ascensão do papado refletiu na adequação das condutas dos Irmãos
menores ao direito canônico, ou seja, a imposição institucional que Roma realizou sobre a
Ordem dos Frades Menores.
A análise da relação entre a Reforma Gregoriana e a Ordem franciscana, nos fez
compreender as mudanças ocorridas no propósito de vida inicial de Francisco e as alterações
feitas pela Igreja para integrá-los aos seus quadros. Foi preciso compreender este momento
em que a Sé Romana almejava construir uma unidade institucional e se impor como
autoridade regulamentadora da cristandade para acompanhar a atuação de Roma na
institucionalização dos Irmãos menores. Para nos aproximarmos do problema levantado pela

13

nossa pesquisa, precisamos destacar as fontes primárias utilizadas no decorrer deste trabalho.
Fizemos uso das Regras franciscanas de 1221 e 1223 e do Testamento, obra que mesmo tendo
seu valor legislativo negado pelo papa Gregório IX em 1230, em nossa visão, possui grande
importância para as apreensões da espiritualidade franciscana, visto que ali está contido o teor
de vida que Francisco pareceu desejar para seu grupo de Irmãos, contrastando dessa forma,
com o caminho que seus companheiros tomaram no momento seguinte a sua morte. O IV
Concílio de Latrão nos ajudou a vislumbrar o rumo tomado pela Igreja em relação à
normatização das ordens religiosas e compreender as interferências do papado na escrita da
Regra Bulada e na própria organização administrativa desse grupo religioso.
No período após morte de Francisco que foi marcado por um intenso movimento de
interpretação da Regra, utilizamos a bula papal Quo Elongati (1230) de Gregório IX por se
tratar da primeira exposição oficial da normativa, também recorremos a Expositio Quatuor
Magistrorum Super Regulam Fratrum Minorum (1241-1242) pelo fato deste texto ter sido
elaborado por universitários, o que o torna importante para percebermos como diversos
grupos de franciscanos, agora vivendo em ambientes diferentes – universidades, paróquias
etc. - percebiam alguns aspectos da espiritualidade da Ordem. Estivemos atentos à produção
da bula Ordinem Vestrum (1245) de Inocêncio IV, visto que este documento papal diferente
da bula de Gregório IX abre espaço para acompanharmos o processo de mudança mais radical
da Regra bulada, pois trazia uma releitura da normativa mais mitigada. Por fim, nos
debruçamos sobre os escritos de Boaventura de Bagnoregio em especial a Expositio super
Regulam Fratrum Minorum, para entender as legitimações das metamorfoses do
franciscanismo nos anos sessenta do século XIII.
Nossa pesquisa partiu do posicionamento dos franciscanos dentro dos diversos
movimentos laicos, que tinham como forma de vida uma releitura das narrativas dos
Evangelhos, a qual se caracterizou pela adesão a pobreza voluntária. Por meio de estudos
como os de Elio Peretto, André Vauchez e Giovanni Miccoli, pudemos perceber que esses
grupos leigos tiveram um papel importante na reestruturação da Igreja, visto que no decorrer
do período que vai do século XI ao XIII, os indivíduos criaram uma consciência religiosa
como salientou Herbert Grundmann, com isso direcionaram críticas a estrutura eclesiástica,
que viu-se frente à necessidade de uma reforma que a aproximasse das novas demandas
sociais, culturais e espirituais dos séculos XI e XIII que tinham como modelo a chamada vida
apostólica e o modelo de Igreja dos primeiros tempos do cristianismo apontados pelos textos
evangélicos.

14

Desse processo deu-se aquilo que a historiografia tem denominado como Reforma
Gregoriana a qual trataremos no nosso primeiro capítulo. Destacaremos aqui a ascensão do
direito canônico nas universidades e na própria estrutura administrativa da Igreja. Esta área do
conhecimento, diretamente ligada ao controle e a normatização dos indivíduos e das
instituições, foi essencial dentro da Reforma no que tange a sua relação com os grupos
religiosos que afloravam por grande parte das regiões cristãs e que em larga medida
questionavam o poder do clero, como era o caso de muitos grupos de mendicantes. Desta
forma, não nos coube dúvidas de que o direito canônico foi à base do processo de
regulamentação da vida religiosa no século XIII, portanto, é um elemento essencial para
entendermos o processo de transformação pelo qual o franciscanismo passou neste contexto
histórico.
O ajustamento de condutas do mundo cristão ocidental a jurisdição de Roma, foi de
encontro com a proposta de vida de Francisco para seus Irmãos, visto que seu grupo, a
princípio intitulado de fraternitas, era pautado por uma experiência religiosa e não pelo
campo do conhecimento jurídico para o qual toda a Igreja de Roma se voltava naquele
momento. O processo de normatização da Ordem franciscana para a esfera jurídica ocorreu
em três momentos; o primeiro entre os anos 1205-12091 e caracterizou-se como um período
de ajustamento da fraternitas, culminando na escrita da Proto-regra; o segundo de 1209-1223
foi o período de expansão da fraternidade, o qual trouxe a necessidade da escrita de uma
segunda Regra em 1221 que não foi aprovada por não conter a base jurídica que a Igreja
necessitava, sendo reescrita uma nova normativa, confirmada pelo Papa Honório III em 1223;
a última etapa ocorreu de 1223-1228 e corresponde ao momento da escrita do Testamento em
1226 mesmo ano da morte do Francisco e sua canonização em 1228.
No segundo capítulo - por meio de uma análise que leva em conta o binômio rupturas
e continuidades no qual nos propomos compreender as transformações do movimento
franciscano – buscamos confrontar as Regras de 1221 e 1223 para percebermos os impactos
que a imposição institucional de Roma ocasionou sob a fraternidade franciscana. Ao
compararmos as normativas, verificamos que o conteúdo não sofreu nenhuma transformação
que colocasse em questão todo o propósito de vida do Assisense, as mudanças deram-se no
campo organizacional e não no campo das ideias. No entanto, encontramos rupturas em
relação às práticas minoríticas, principalmente após a morte de Francisco de Assis, período no

1

Utilizamos o ano de 1209 como o momento em que Francisco viajou para Roma e teve seu primeiro contanto
com o papa Inocêncio, mas sabemos que este encontro pode ter ocorrido entre a primavera de 1209, ou em 1210.
Cf. VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 79.

15

qual foi possível verificar que as disputas entre os Frades Espirituais e os Conventuais,
direcionaram a Regra para o campo interpretativo.
Na última etapa do trabalho buscamos fazer uma análise direta da documentação a
partir das reflexões apontadas nos dois primeiros capítulos, com o intuito de buscar nelas
informações que possam contribuir para a discussão historiográfica que recai sobre nosso
objeto de estudo. Nos voltamos para os documentos com a seguinte indagação: Como as
experiências cotidianas dos Frades colocaram em xeque a Regra escrita por Francisco, como
essa realidade ia ao encontro e/ou de encontro com os objetivos do papado para com a
Ordem? Nós partimos do pressuposto de análise de que essa documentação que permeou a
normatização da Ordem deve ser entendida como uma “obra aberta”, conceito utilizado por
Umberto Eco que nos propõe que textos sofrem diversas interpretações quando colocados sob
a ótica dos indivíduos. As interpretações são possíveis, pois os escritos quando separados de
seu autor e de seu contexto, tomam diversos caminhos de leitura/interpretação. Não há
dúvidas para nós de que as escrituras atribuídas ao Poverello estavam ligadas aos conceitos
teológicos dos Frades Espirituais e que esta abordagem sobre a Ordem foi colocada em
dúvida em seu momento histórico seguinte, quando os próprios franciscanos já estavam
envolvidos na hierarquia da Igreja de Roma e nas cátedras das universidades. Foi preciso
nesse momento, uma nova leitura dos documentos franciscanos que possibilitassem uma
aproximação com essa nova realidade do grupo religioso, ou seja, a partir de uma base
jurídica.
A motivação que culminou nas interpretações da Regra bulada e do Testamento, era a
pulsante imagem dos primeiros tempos da fraternitas, ou seja, o franciscanismo das origens
que continuava presente em parcela dos Frades e contrastava com a nova realidade
institucional que a Ordem dos Frades menores passou a possuir nos anos trinta do século XIII.
Dessa forma, os processos interpretativos em torno da Regra e do Testamento que fazem parte
do terceiro momento de nossa pesquisa, estiveram repletos de conflitos, visto que estava em
jogo a codificação de uma experiência espiritual que foi testemunhada por diversos
indivíduos, que por sua vez, possuíam interesses em torno da memória de São Francisco de
Assis para legitimar as posições e as mudanças que ocorriam no interior do grupo minorítico.
Os conflitos entre os Frades tornaram-se cada vez mais corriqueiros durante o século XIII e
foi em decorrência deles que a Igreja precisou com certa frequência deliberar sobre os
princípios franciscanos, visto que isto causava debates e embates entre os Irmãos menores.

16

2 DA FRATERNIDADE À ORDEM.
2.1. Reforma Gregoriana e a centralização política-religiosa da Igreja.

O processo de institucionalização da Ordem franciscana no decorrer do século XIII
enquadrou-se em um projeto amplo de reforma que estava em curso no interior da Igreja
Romana desde o século XI e que ficou conhecido como Reforma Gregoriana. Esse processo
histórico, foi durante muito tempo reduzido a uma luta política entre papas e imperadores,
como destacou Baschet2. De acordo com José D‟Assunção Barros 3, ambos os poderes
objetivavam controlar a cristandade. No entanto, sabemos que a reforma extrapolou a
dicotomia entre os poderes espiritual e temporal, uma vez que no transcorrer deste movimento
foi possível perceber uma ascensão das atividades jurídicas por meio da utilização do direito
para o reordenamento das questões políticas e religiosas.
A reforma neste contexto de reorganização da sociedade deve ser compreendida como
uma resposta às provocações políticas e religiosas ocasionadas pela luta entre o poder
espiritual e temporal e a conduta inadequada dos clérigos, que respectivamente culminaram
em críticas à Sé Romana por parte da sociedade. Devemos assim enquadrá-la e pensá-la como
um período de reestruturação da Sé Apostólica frente aos ataques políticos provocados pelas
aristocracias romanas e por muitos movimentos religiosos de cunho popular que colocavam
em questão os dogmas e a função da Igreja.
Dessa forma, o que nos propomos a pensar neste primeiro momento foram às
motivações religiosas e políticas que iniciaram o processo da Reforma Gregoriana, mostrando
a dialética da Igreja com o contexto que ela estava inserida. É necessário levar em
consideração a relação entre a Sé Apostólica e as demais esferas sociais, pois os reflexos da
Reforma recaíram sobre toda a cristandade, seja no ajustamento de condutas dos seculares, na
centralização do poder papal ou na normatização dos movimentos religiosos a partir do século
XI, alavancado pelo desenvolvimento do direito canônico.
A primeira provocação que resultou na necessidade de uma organização da Igreja diz
respeito à própria estrutura eclesiástica, considerada inadequada para a sociedade daquele
período. A crítica recaía principalmente sobre o modo de vida dos religiosos, pois os clérigos
2

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006,
p. 190.
3
Barros defende a ideia de que durante toda a Idade Média, existiam dois projetos universais, antagônicos que
duelavam pelo controle da sociedade: os imperadores e a Igreja, quem por meio da chamada Reforma
Gregoriana, obteve o controle de toda vida espiritual da sociedade. Cf. BARROS, José D'assunção. Papas,
Imperadores e Hereges na Idade Média. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012, pp. 150-173.

17

seculares estavam envolvidos em práticas como a simonia caracterizada pela aquisição ilícita
de bens sagrados e o nicolaísmo que se traduzia pelos casamentos e concubinatos por parte
dos religiosos seculares. De acordo com Baschet 4, o combate a simonia deve ser entendido
como a rejeição a interferência da aristocracia nos negócios da Igreja, já a condenação do
nicolaísmo não deve ser compreendida apenas como uma questão moral, mas como uma
definição de estatuto, uma vez que a castidade passou a ser o elemento definidor do estado
clerical, o que o separava dos laicos.
As críticas não recaíam apenas sobre as práticas ilícitas destacadas acima, os clérigos
seculares também estavam envolvidos com a política temporal que representava um risco para
a Sé Romana, pois não existia um controle por parte do papado das atividades desses
religiosos. De acordo com Vauchez5, por serem oriundos das classes aristocráticas, bispos e
abades viviam como grandes senhores e não como representantes da Igreja, pois obtinham
seus cargos eclesiásticos por meio de indicações políticas.
Dessa forma, o combate a simonia e o nicolaísmo deve ser entendido como parte do
processo de moralização do clero, questão que se fazia presente no programa reformador, o
qual tinha como um dos seus objetivos reverter a influência da aristocracia laica sobre a
Igreja. Por meio das condenações acima citadas, podemos perceber duas provocações que
deram início a reforma. A primeira diz respeito à imoralidade que o clero estava envolvido, a
segunda era referente aos vínculos que existiam entre os poderes temporal e espiritual que
colocavam a Igreja como subordinada aos interesses aristocráticos.
Esta forma de vida que caracterizava em grande medida o clérigo secular,
desencadeou diversos ataques a Sé Apostólica. As críticas a Igreja ocorreram principalmente
devido às mudanças na espiritualidade cristã entre os séculos X ao XIII, a qual tinha como um
dos seus princípios a necessidade de melhor viver a fé 6 e Imitatio Christi7. Ambos os
conceitos faziam referência a necessidade de voltar às origens do cristianismo, momento em
que na perspectiva de leitura dos Evangelhos, feita pelos homens e mulheres deste período os apóstolos teriam vivido em comunidades cristãs simples, sem hierarquias e bens materiais.
Portanto, a espiritualidade deste período manifestava-se entre outras expressões, por meio da
vita apostolica e Ecclesiae primitivae forma, primícias que estavam ligadas a ideia de uma
4

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006,
p. 192.
5
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed, 1995, pp. 31-32.
6
Ibidem. p. 70.
7
BARROS, José D'assunção. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2012, p. 179.

18

“comunidade de cristãos perfeitos” e traduzia-se por uma experiência de uma Igreja que
deveria estar livre das interferências temporais nas suas decisões internas.
Como destacou Giovanni Miccoli8, os princípios religiosos que norteavam as ações
dos diversos grupos que surgiram nesse momento, possuíam certo rigor em muito das suas
ações e perspectivas religiosas. É fato que as apropriações em torno das experiências dos
apóstolos, descritas nas sagradas escrituras, tendiam a direcionar os indivíduos que se
propunham a colocá-las em ação no limite entre a ortodoxia9 e heterodoxia. Segundo
Vauchez10, as mudanças no âmbito da espiritualidade no decorrer do século VIII ao XIII
estavam diretamente ligadas à valorização da humanidade e da experiência de Cristo, a qual
desembocou em uma valorização do Novo Testamento, tornando assim os textos em um
indicativo para as práticas religiosas.
É inegável que as apropriações11 que o século XI fez das sagradas escrituras
proporcionaram uma série de movimentos religiosos que direcionavam condenações às
estruturas da Sé Romana. A reprovação do modo de vida do clero secular desencadeou uma
valorização das instituições monásticas, que no século X devido ao seu modo de vida,
passaram a possuir uma conotação de perfeição cristã. O prestígio dos mosteiros levou ao
surgimento de instituições de extrema importância para o enfrentamento da crise de
representatividade que ocorria na Sé Romana. O mosteiro mais importante nascido dentro
desta perspectiva foi Cluny. Este foi criado por volta de 910 em Borgonha e em 998 colocado
sob a jurisdição direta do papado, deixando de responder ao bispo local12.
Segundo Barraclough13, o movimento reformista encabeçado por Cluny os colocou na
posição de resposta às críticas direcionadas a Igreja, colaborando para que a soberania de
Roma se colocasse como um poder que sobressaísse a presença das aristocracias laicas nas
Igrejas e dioceses, assim como sobre a moral do clero secular. Este historiador destacou ainda,
8

MICCOLI, Giovanni. Francisco: O santo de Assis na origem dos movimentos franciscanos. São Paulo:
Martins Fontes, 2015, p. 29.
9
A palavra “ortodoxia”, neste caso, estará em referência à ideia de um “caminho reto” associado a um
pensamento fundador original, no caso do cristianismo a um pretenso pensamento que derivaria do Cristo e de
seus apóstolos, bem como dos textos bíblicos naquelas de suas interpretações que queriam considerar as únicas
corretas. Cf. BARROS, José D'assunção. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2012. p, 55.
10
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 1995, p. 73.
11
Por apropriação utilizamos a definição apresentada por Roger Charter: [...] compreender como um texto pode
<<aplicar-se>> à situação do leitor, por outras palavras, como é que uma configuração narrativa pode
corresponder a uma refiguração da própria existência. Cf. CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre
Práticas e representações. 2. ed. Lisboa: Difusão Editorial, 1988, p.24.
12
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006,
p. 185.
13
BARRACLOUGH, Geoffrey. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, pp.73-83.

19

que esta reforma só poderia partir dos mosteiros, pois os seculares não possuíam autoridade
para conduzir tal reformulação da estrutura eclesiástica por estarem ligados às elites locais.
Desse modo, os novos estabelecimentos monásticos que foram fundados neste período,
deram-se em regiões estratégicas como Borgonha e Lorena, pois eram nestas áreas que a
Igreja deveria enfrentar com mais ênfase os costumes locais e os hábitos mundanos do clero
secular.
Para alcançar esse objetivo de estabelecer a soberania de Roma, Cluny expandiu sua
área de atuação para as regiões da Aquitânia, Espanha, Normandia e Itália, porém essa
expansão geográfica não deixou de contar com a resistência por parte dos bispos e
comunidades beneditinas que temiam modificações de seus hábitos tradicionais, já que
segundo Vauchez14, apesar dos cluniacenses também serem beneditinos, existia uma diferença
na liturgia e na leitura das sagradas escrituras, enquanto São Bento fixava a recitação de
quarenta salmos por dia, os cluniacenses diziam duzentos e quinze diariamente.
Deve-se destacar, entretanto, que Cluny, devido à importância dada à liturgia e às
celebrações em memória dos mortos, manteve uma relação com as aristocracias que faziam
muitas doações para que os monges os ajudassem na questão de sua salvação15. Este
elemento, por sua vez, transformou seus mosteiros em grandes instituições detentoras de
propriedades e riquezas, dignas de críticas do próprio movimento que lhe deu origem. Isto os
transformará em alvo das mesmas críticas sob as quais nasceram e que acabou dando origem
em seguida, aos monges cistercienses. Segundo Vauchez16, estes almejavam um retorno a
regra primitiva de são Bento marcada pela simplicidade, valorização do trabalho e aspirações
a pobreza.
A vida nos mosteiros, embora buscasse se adaptar a realidade sociocultural dos novos
tempos, mostrou-se inadequada às demandas espirituais dos séculos XII e XIII, pois os
monges estavam afastados da sociedade, vivendo reclusos e em locais que normalmente
ficavam distantes das cidades17, onde os fiéis demandavam por uma experiência religiosa
mais próxima do cotidiano agitado da vida urbana.
A reforma, que desde seu início procurou separar os laicos dos religiosos, esbarrou em
uma espiritualidade que exigia um diálogo da Igreja com a sociedade. Surgiu daí, no fim do
14

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 1995, pp. 36-37.
15
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006,
p. 185.
16
VAUCHEZ, André. Op. cit., p. 87.
17
Características apresentadas por Giovanni Miccoli para definir os indivíduos que dedicavam-se as práticas
monásticas. Cf. MICCOLI, Giovanni. Os Monges. In: LE GOFF, J. (Dir.). O homem medieval. Lisboa:
Presença, 1989, p. 36.

20

século XI, o problema de como definir o espaço que os leigos deveriam ocupar na Sé
Romana. Segundo Vauchez18, Roma que convocou os laicos a participarem das cruzadas e da
própria reforma denunciando as práticas ilícitas nas quais os clérigos poderiam estar
envolvidos, passou a receber críticas por parte desses indivíduos que outrora haviam ajudado
a Sé em seus projetos políticos, logo foram realizadas exigências em relação à moralidade que
os clérigos necessitavam possuir, o denominador comum desejado por esses homens era a
pobreza voluntária.
Para este historiador, no século XII as críticas ao clero passaram dos costumes para o
dinheiro, visto que a demanda por uma Igreja simples e desapegada de bens materiais tornouse uma tópica da fé cristã. A impossibilidade por parte do clero secular de renunciar aos seus
bens, acabou desenvolvendo um sentimento anticlerical por parte dos leigos, isso significou
uma crise de representatividade a qual trouxe a Sé Romana a necessidade de mudanças, uma
vez que se colocaram em questão os ensinamentos e a missão da Igreja como intermediária
entre Deus e os homens19.
Para Elio Peretto, ocorreu uma participação ativa dos leigos na espiritualidade do
período que vai do XI ao XIII. Esse movimento de religiosidade se afirmava na ideia de um
retorno a forma de vida que se apresentava nos Evangelhos do Novo Testamento. O que o
autor chama de literalidade das sagradas escrituras, aqui entendemos como apropriações,
leituras que homens e mulheres fizeram desses textos e trouxeram para sua própria
experiência de vida cristã. Logo, as interpretações dos Evangelhos levaram a uma
ressignificação das práticas religiosas, direcionando alguns desses movimentos leigos à
margem da Igreja, devido o teor radical de suas ideias, como foi o caso dos catáros, valdenses,
os passagini, Tanchelmo, Ugo Speroni, Arnaldo de Brescia, os beguinos e a Pataria Milenesa.
Seguindo a mesma linha de análise sobre o surgimento de grupos religiosos no
século XIII, encontramos os estudos de Herbert Grundmann20. Para ele, a Reforma
Gregoriana consolidou a necessidade de um clero sacralizado. A impossibilidade dos
seculares abandonarem os vícios mundanos que praticavam, levou ao surgimento de uma
consciência religiosa que não via a essência do cristianismo apenas nas Igrejas. Os clérigos
tinham de provar sua validez e compromisso com normas bíblicas que exigiam dos cristãos a
pobreza evangélica, uma vida apostólica e desenvolvimento de algum tipo de trabalho.
18

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 1995, p. 94.
19
PERETTO, Elio. Movimenti Spirituali Laicali del Medievo. Tra ortodossia Ed eresia. Edizioni Studium.
Roma. 1985.
20
GRUNDMANN, Herbert. Religious movements in the middle ages. London: University of Notre Dame
Press, 1995, pp. 7-8.

21

Deve-se destacar que em sua maioria esses grupos religiosos surgidos entre os séculos
XI e XIII, partiam da mesma premissa, que se traduzia pela adesão a pobreza, pregação
itinerante e o desejo de acesso às sagradas escrituras. Estas ideias estavam presentes tanto
entre os leigos religiosos considerados heréticos pela Sé, como nas ordens religiosas
reconhecidas pela Igreja, como foi o caso de Francisco e seus companheiros. Apesar da
semelhança com grupos leigos considerados heréticos, o Poverello e sua fraternidade se
diferenciavam por não negarem os sacramentos, nem desprezarem as hierarquias eclesiásticas
publicamente, uma vez que os sacerdotes eram vistos por eles como os responsáveis pela
substanciação21.
Francisco, embora não tenha feito críticas à hierarquia da Igreja, não deixou de
mostrar insatisfação com a forma como ela se organizava. Isto está claro no fato de seu grupo
de seguidores estarem constituídos numa irmandade – ideia de igualdade fraterna - e não em
um mosteiro, o que na nossa apreensão significava que a estrutura de Roma era inadequada
para o propósito de vida do Poverello. Dessa forma, pode-se afirmar que embora não tenha
atacado a hierarquia publicamente, suas escolhas religiosas seguiam os conceitos de vida
apostólica e Igreja primitiva que estava no cerne da reforma.
Diante do panorama apresentado acima, no qual grupos religiosos formados por leigos
foram considerados heréticos e grupos que possuíam certa similaridade com eles foram
aceitos pela Igreja, faz-se necessário um esclarecimento do conceito de heresia empregado
neste trabalho. Para Monique Zerner22, o papado no século XIII, caracterizou como heréticos
aqueles que não reconheciam as decisões da Sé Apostólica. Esta definição enquadra-se em
nosso recorte temporal, visto que, como destacamos anteriormente, as críticas em relação à
estrutura eclesiástica, seus dogmas e funções foram às principais questões que movimentaram
essas experiências religiosas e caracterizaram os indivíduos como dissidentes em relação à Sé
Romana. Portanto, o que a Sé Apostólica denominou como heresia nos séculos XII e XIII, em
alguns casos eram grupos que exigiam mudanças estruturais por parte da Igreja. Essas críticas
estavam diretamente ligadas à mentalidade religiosa do período que tinha Cristo e suas
práticas de pobreza e simplicidade como pedra angular dos que faziam oposição a Roma.
Como vimos, à espiritualidade que se desenvolveu a partir do século XI, norteou e
influenciou as ações religiosas do decorrer de aproximadamente dois séculos. Essas
influências não se deram apenas nas formulações de condenações as estruturas da Igreja, elas

21

O conceito representa a simbologia de transformar o pão e vinho, em corpo e sangue de Cristo.
ZERNER, Monique. Heresia. In: GOFF, Jacques Le; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do
Ocidente medieval. São Paulo: Editora Unesp, 2017, pp. 561-581.
22

22

ocorreram também na formação dos grupos religiosos. Isto nos remete a pensar as
delimitações religiosas que os homens deste período estavam inseridos. Ao tomarmos como
base a afirmação de Marc Bloch23, de que as práticas humanas estão ligadas aos seus
respectivos contextos, daí se concluiu que a originalidade possui limites. Dessa forma,
podemos dizer que os grupos religiosos que surgiram no decorrer do XII ao XIII possuíam
originalidades, mas o seu teor de vida advinha das experiências socioculturais do século XI,
as quais apontamos brevemente aqui.
Dentro dessa perspectiva podemos compreender que a adesão à pobreza, a pregação
em língua vulgar e uma vida apostólica não foram escolhas aleatórias realizadas por
Francisco, mas aspectos religiosos presentes no período de formação de sua fraternidade. A
proposta de vida do Poverello possuía suas delimitações temporais, mas também sua
originalidade que consistia em uma prática pauperística ascética mesmo nas atividades
itinerantes. Assim quando abordamos a experiência do Assisense não podemos desvinculá-la
das demais formas de vida religiosa que surgiram no contexto do século XIII, logo Francisco
e sua fraternitas são herdeiros da mentalidade espiritual anterior à sua formação.
José D‟assunção Barros24, afirmou que existe um incontestável traço de unidade
referente ao surgimento do franciscanismo no seio de uma grande quantidade de propostas
religiosas de cunho laico, tanto no âmbito do movimento reformador quanto no herético, que
desejava viver uma vida verdadeiramente apostólica. Para Gemelli, a religiosidade de
Francisco estava ligada a este florescer da espiritualidade laica, que desejava delimitar seu
lugar no interior da cristandade:
Las herejías se infiltraban en las massas populares, señaladamente en el artesanado
menudo de sutores, sartores y textores, que deban la máxima contribución a lãs
sectas. A fines del siglo XII los pueblos Cristianos sienten um doble apremio:
uniformar la vida más estrechamente al evangelio, avalorar cristianamente las
nuevas formas de vida, em especial aquella que va a ser el distintivo de La
civilización moderna: La acción. Y entonces El señor envió a San Francisco. 25

Seguindo a mesma linha de Gemelli, Lázaro Iriarte salientou que as Ordens
Mendicantes eram grupos religiosos que melhor respondiam às questões da mentalidade
religiosa do período:
Pero la verdadera etapa nueva em la vida de consagración da comienzo com los
franciscanos y los dominicanos, las dos famílias gemelas que supieron dar la
respuesta a las urgencias del momento histórico, aunque com diferentes medios y

23

BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 115.
BARROS, José D'assunção. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2012, p. 177.
25
GEMELLI, Agustín. San Francisco y su época. En: El Franciscanismo. Barcelona, 1940, pp. 1-43.
24

23

diferentes táctica. Comenzaba así la era de las que más tarde serían llamadas órdenes
mendicantes.26

Grado Merlo27, também destacou a influência da espiritualidade dos séculos XI e XII
sobre a proposta de vida do Poverello. Para este historiador, Francisco foi um entre tantos
indivíduos de sua época, que iniciou sua experiência religiosa convertendo-se a pobreza
voluntária28, inspirando-se em modalidades religiosas tradicionais como os eremitérios e o ato
de fazer penitência. Não é sem razão que as primeiras práticas do Poverello ao converter-se,
ou seja, ao abandonar as práticas mundanas, foi o afastamento, a priori, dos centros urbanos e
o direcionamento para lugares solitários e grutas próximas a Assis. Para Stanislao da
Campagnola29, a ideia da “imitatio Christi”, nasceu do fervor evangélico que antecedeu a
experiência de Francisco e ao longo de um século o acompanhava em seu desenvolvimento, já
a relação entre o Poverello e a Igreja ocorreu talvez por veneração à hierarquia eclesiástica ou
por uma intenção inconsciente, mas clara de se distinguir daqueles que entraram em conflito com a Sé
Apostólica. Sua aproximação com a Sé Romana o diferenciava dos grupos leigos que não

acreditavam na possibilidade de serem fiéis a vida evangélica em comunhão com a Sé
Romana.
Até o presente momento tratamos da influência dos conceitos de vita apostolica e
Ecclesiae primitivae forma na vida religiosa e no processo inicial de reestruturação da Sé
Romana a partir das críticas recebidas por parte dos leigos. Mas a Reforma não possuía
apenas um viés religioso, ela também estava imbuída de conteúdo político, pois os
reformadores visavam libertar a Igreja da influência dos laicos e centralizar o poder do papa,
que como líder de Roma deveria possuir uma administração eficiente da cristandade. Segundo
Barraclough30, o modelo de organização empregado pela Igreja nesse momento advinha das
cortes francesa e inglesa, onde se buscava embasar o poder da Sé Romana em um modelo de
governo monárquico. Isto só seria possível de se alcançar com a separação entre o poder
temporal e poder espiritual, algo que os reformadores buscaram fazer de forma muito
enérgica, tendo em vista o risco sempre iminente de que a Igreja caísse nas mãos das
26

IRIARTE, Lázaro.Historia franciscana, Valencia, Editorial Asís, 1979.
MERLO, Grado Giovanni. Historia del hermano Francisco y de la Orden de los Menores. En: Francisco de
Asís y el primer siglo de historia franciscana. (Col. Hermano Francisco, n. 37). Oñati (Guipúzcoa), Ed.
Franciscana Arantzazu, 1999, pp. 3-35.
28
Ao aderir à pobreza voluntária o indivíduo professa a pobreza independente de qualquer laço com uma
comunidade, trata-se de um estilo de vida carismático, oriundo da iniciativa espontânea do indivíduo, que
renuncia aos bens e o direito a propriedade. Cf. HARDICK. Lothar. “Pobreza, pobre”. In: CAROLI, Ernesto
(org). Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 586.
29
CAMPAGNOLA, Stanislao da. La povertà nelle “regulae” di Francesco d‟Assisi. In: La povertà del secolo
XII e Francesco d’Assisi. Assis: Atti del II Convegno Internazionale, 1975, pp. 220-221.
30
BARRACLOUGH, Geoffrey. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 111.
27

24

aristocracias locais31, caso inclusive do próprio papado, cujo cargo de papa estava sempre a
mercê dos conflitos da aristocracia romana.
A Sé Apostólica estava vinculada a uma tradição aristocrático-dinástica32, Roma
encontrava-se governada pelo poder temporal. O esforço para inibir a atuação das famílias
Tusculani e os Crescenzii33, que rivalizavam entre si e levavam ao trono pontifício e aos
bispados seus parentes, fez com que o rei do Sacro Império Germânico Henrique III (10391056) interferisse nesse conflito sangrento entre as elites italianas. Ele reuniu o sínodo de
Sutri em 1046 e indicou papas de origem alemã para governar Roma. Segundo Rust34, entre
1046-1054 todos os papas (Clemente II 1046-1047, Dâmaso II 1048, Leão IX 1049-1054),
foram homens de confiança deste monarca. Isto aponta para o fato de que o apoio de Henrique
III a Reforma, agiu em dois âmbitos, em primeiro lugar ajudou os reformadores a enfrentarem
as resistências advindas dos bispos de diversas regiões da cristandade, em segundo lugar criou
impedimentos para que às elites romanas voltassem a controlar o papado. Dessa forma, vê-se
que a reforma, ao libertar a Igreja das políticas locais romanas, não evitou que ela continuasse
sofrendo interferências de poderes políticos vindos do laicado.
Com a transição de governo para o imperador Henrique IV (1056-1106), a Instituição
religiosa, percebeu o momento propício para libertar-se também do jugo imperial,
desencadeando um conflito aberto entre Gregório VII (1073-1085) e o imperador. Este
embate ficou conhecido como Querela das investiduras e culminou na excomunhão do
monarca germânico por parte do pontífice, este por sua vez, não foi reconhecido como cabeça
da Cristandade por parte do Imperador do Sacro Império Romano-germânico. Esta situação só
foi resolvida em 1122 quando Henrique V assinou a Concordata de Vórmia.
Foi atribuído a Gregório VII destaque no processo reformador. De acordo com Rust 35,
foi com o esforço deste pontífice em mostrar a supremacia do poder espiritual sob o temporal,
que a reforma deixou de ser chamada de reforma papal e passou a ser chamada de Gregoriana.
No entanto, mesmo com todo empenho, ao morrer em 1085, Gregório deixou em aberto o
movimento reformador. Seus sucessores esforçaram-se para levar adiante o programa da
31

De acordo com Geoffrey Barraclough, nos séculos IX e X, o trono pontifício foi ocupado por famílias
aristocráticas como a casa dos Albericos e dos Crescentti dos montes da Sabínia, condes de Tusculum. Cf.
BARRACLOUGH, Geoffrey. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 73.
32
Ibidem. p. 81
33
RUST, Leandro Duarte. “COLUNAS VIVAS DE SÃO PEDRO”: concílios, temporalidades e reforma na
história institucional do Papado medieval (1046-1215). 2010. 548 f. Tese (Doutorado) - Curso de História,
Universidade Federal Fluminense Programa de Pós-graduação em História, Niterói, 2010, p. 90.
34
RUST, Leandro Duarte. Mitos Papais Política e Imaginação na História. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 124.
35
[...] Nascia o projeto reformador do papado para a civilização cristã [...] A radicalização exigia, segundo Fliche,
que o acontecimento histórico passasse a carregar o nome do homem que levou às últimas conseqüências. A
Reforma Papal se transformou na Reforma Gregoriana. Cf. Ibidem. pp. 126-127.

25

reforma institucional, logo foram inseridas importantes mudanças na estrutura eclesiástica,
principalmente no que tange a centralização política do papado no período de Urbano II
(1088-1099). Este pontificado foi o responsável por conceder ares de monarquia36 a Sé
Romana e a formar um conselho consultivo de cardeais para auxiliar o papa em suas decisões.
Essa importante posição adquirida pelos cardeais iniciou durante o governo de Urbano, mas
conquistou ampla adesão no pontificado de Pascal II (1099-1118).
No governo do papa Alexandre III (1159-1181), o papado entrou em colisão com o
imperador Frederico Barba Roxa que subiu ao trono em 1152 e desejava reocupar a região da
Itália, o conflito finalizou-se por meio do Tratado de Veneza em 1177. Entretanto, em meio a
esse conflito o papa Alexandre III precisou deixar Roma e refugiou-se na França e levou
consigo grande parte das rendas pontifícias, fazendo com que a administração da Igreja se
tornasse deficitária, pois ao morrer deixou seus sucessores em uma situação financeira
marcada por dívidas, instalando em Roma um descrédito em relação à cadeira pontifícia.
O problema só foi resolvido com a eleição de Inocêncio III (1198-1216), que com sua
teoria absoluta reafirmou a supremacia de Roma sob a cristandade. De acordo com Rust37, o
papado ao lançar as bases da reforma desejava assumir o controle da cristandade e assim com
a sua soberania corrigir os vícios tanto dos clérigos como dos laicos, restabelecendo uma
ordem social. Esses objetivos apenas foram possíveis no século XIII, pois segundo
Barraclough38, Inocêncio III não hesitou em demonstrar a sua autoridade sobre a estrutura
eclesiástica.
Ainda de acordo com Rust, a ideia de uma soberania propagada pelo papado estava
ligada a uma descentralização política que imperava desde século XI, a qual impedia que a
Igreja e os Imperadores impusessem sua autoridade sobre as regiões que teoricamente
estavam sob sua proteção. Dessa forma, a análise historiográfica da Reforma Gregoriana
atribuiu às ações romanas um voraz apetite de centralização, que nem sempre foi
prioritariamente dotado de assuntos clericais, mas deve ser compreendido como um
movimento da Igreja em relação à “anarquia feudal”, como salientou Rust 39. É, portanto, esta
Igreja reformada e centralizada que nos interessa, pois ela simbolizava uma instituição com
autoridade para governar a cristandade.

36

BARRACLOUGH, Geoffrey. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, pp. 110-111.
RUST, Leandro Duarte. Mitos Papais Política e Imaginação na História. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 121.
38
BARRACLOUGH, Geoffrey. Op. cit., p. 132.
39
RUST, Leandro Duarte. “COLUNAS VIVAS DE SÃO PEDRO”: concílios, temporalidades e reforma na
história institucional do Papado medieval (1046-1215). 2010. 548 f. Tese (Doutorado) - Curso de História,
Universidade Federal Fluminense Programa de Pós-graduação em História, Niterói, 2010, pp. 127- 131.
37

26

Enfim, por meio da Reforma a Igreja criou e propagou um poderoso mito40, no qual
estava vinculada a ideia de que em tempos de crise, a Sé Romana pautada em sua tradição
política e experiências anteriores, era a única com força institucional suficiente para realizar a
manutenção da ordem nas sociedades ocidentais. Assim, os papas do século XII e XIII
continuaram com o programa reformador, centralizando todas as questões em suas mãos,
normatizando a vida de toda a cristandade e separando por fim o poder temporal do poder
espiritual.
Destacamos até aqui o desenvolvimento da Reforma em virtude das demandas laicas
que ao criticarem a Sé Romana, sinalizaram para a Igreja a necessidade de se reestruturar, no
que tange a moralização do clero e a liberdade da Igreja frente ao poder temporal. Contudo,
como afirmamos anteriormente, a Reforma não se resumia a estas duas questões, um dos
aspectos do movimento reformador foi à burocratização da Igreja e o desenvolvimento de
normas e leis, ou seja, o direito canônico, que a partir desse momento deveria nortear as
práticas religiosas dos homens e mulheres do medievo.

2.2. O desenvolvimento do direito canônico e normatização das práticas religiosas.

Uma das consequências da Reforma gregoriana foi o aumento progressivo da
autoridade papal que passou a ser responsável pelo controle das tarefas religiosas de toda a
cristandade. Este processo gerou a necessidade de todo um aparato intelectual baseado no
direito, cujo objetivo estava em regulamentar as diversas formas de vida religiosa que
surgiram entre os séculos XI e XII. Logo o que se verificou no transcorrer desse período, foi o
desenvolvimento de decretos papais como o Decretum de Graciano de 1140 que buscava
estabelecer uma “concordância dos cânones discordantes” 41, tornando possível a formulação
de um Corpus juris canonici. Além disso, como reflexo das atividades legislativas, foram
realizados concílios, como o II Concílio de Latrão, cujo alvo era a melhor organização da
cristandade:
[...] Tudo está submetido à autoridade primordial da Santa Sé; não é por acaso que,
no tempo de Celestino II (1143-1144), começa a introduzir regularmente, em todos
os privilégios pontifícios, a cláusula Salva sedis apostolicae auctoritate. Exprime a
suprema autoridade legislativa do papa ou, pelo menos, o seu poder de compor ou

40

RUST, Leandro Duarte. Mitos Papais Política e Imaginação na História. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 139.
CHIFFOLEAU, Jacques. Direito(s). In: GOFF, Jacques Le; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do
Ocidente medieval. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 385.
41

27

modificar as leis, não mediante uma disposição legal, mas por meio da interpretação
de pontos duvidosos ou decisões de casos concretos. 42

A soberania adquirida pelo papado no decorrer da reforma possibilitou que suas
deliberações passassem a possuir peso de lei. Grande parte da autoridade legislativa do
pontífice, na visão de Barraclough43, era fruto da evolução jurídica-religiosa na qual a Sé
Apostólica estava inserida. O desenvolvimento e a utilização do direito advinham de petições
exteriores a Cúria Romana, mais especificamente dos clérigos oriundos das universidades,
pois com as novas demandas burocráticas que a Igreja precisou enfrentar, os juristas foram de
fundamental importância para as deliberações normativas no século XIII. O direito como os
demais campos do saber, estava a serviço da sociedade, pois como destacou Jacques Verger44,
o conhecimento que os homens possuíam, tinha uma aplicação prática em seu cotidiano, era
um saber que estava em função de seu tempo, sendo rejeitada a noção de um conhecimento
utilizado para benefício próprio.
Falar sobre o direito canônico nos coloca sem dúvida alguma frente à necessidade de
pensar a atuação das universidades que surgiram no século XIII45 e seus integrantes, que
tiveram um papel importantíssimo no desenvolvimento do campo jurídico. Jacques
Chiffoleau, afirmou que o direito tanto geral quanto canônico, que era tratado dentro das
universidades, quando confrontado com o direito romano respondia às exigências da teologia
e dos dogmas cristãos, garantindo eficácia às práticas jurídicas46. Logo os professores de
direito rapidamente ganharam estima dos príncipes e do papado. É fato que a existência e
funcionamento das universidades estavam vinculados a uma vontade política dos poderes
locais, bispos e príncipes47.
A ligação dos magistri com a Igreja e/ou com os reis e imperadores, foi sem dúvida
alguma uma forma de mecenato, que custou aos profissionais universitários a produção de
textos que legitimassem o poder de seus financiadores – fossem eles sagrados ou laicos. O
papa Inocêncio III (1198-1216), por exemplo, já havia reconhecido a importância das escolas
bolonhesas na renovação do direito, por isso mantinha contato com os seus mestres para que
as coleções canônicas fossem compiladas e divulgadas 48. As instituições ligadas ao campo do
42

BARRACLOUGH, Geoffrey. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 121.
Ibidem. p. 122.
44
VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru: Edusc, 1999, p. 137.
45
GOFF, Jacques Le. Os intelectuais na Idade Média. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 93.
46
CHIFFOLEAU, Jacques. Direito(s). In: GOFF, Jacques Le; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do
Ocidente medieval. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 386.
47
VERGER, Jacques. Op. cit., p. 83.
48
VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. Bauru: Edusc, 2001, p.
214.
43

28

saber, foram fundamentais para os níveis constitutivos da sociedade do século XIII, como
destacou Fresneda49, visto que as universidades encerraram três grandes objetivos
socioculturais: o bem-estar intelectual com o ideal de moral, o direito com a concepção de
justiça e constituição das leis e a medicina com a integridade física. Assim estas instituições
normatizaram o corpo, o espírito e a sociedade.
O desenvolvimento e uso do direito canônico foram de grande valor, sobretudo no
século XIII momento de consolidação da Reforma Gregoriana, no qual a Santa Sé passou a
definir-se como uma instituição autônoma. Na separação entre os clérigos e a laicos, a Igreja
tornando-se independente, passou a necessitar de respaldo nas leis e em sistemas normativos
próprios. De acordo com Jacques Chiffoleau; “[...] Os gregorianos fazem da Igreja uma
„instituição à parte‟, ou seja, produtora de normas e legitimidade novas, criadora de um
espaço e uma esfera jurídica específicos50”.
O direito canônico, portanto, assumiu alta estima por parte da Cúria Romana, pois era
um instrumento indispensável na organização da vida religiosa do século XIII e reforçava a
supremacia da Igreja e do papa. Era um mecanismo de fundamental relevância para a
regulamentação dos diversos movimentos religiosos laicos que estavam baseados nas
apropriações dos Evangelhos. Dessa forma, por meio de uma legislação própria o papa passou
a possuir autoridade para normatizar determinados grupos, tornando possível sua supremacia
sobre os cristãos católicos, visto que foi atribuído a eles um caráter jurídico de submissão.
Francisco, nascido entre 1181-118251 na Comuna italiana de Assis. Surgiu como
figura religiosa em meio a este processo reformador. As mudanças ocorridas no Ocidente
chegaram rapidamente a essa região da Europa. O forte movimento de urbanização,
monetarização da economia em decorrência das práticas comerciais, valorização do trabalho,
surgimento da burguesia e as respostas religiosas a todas essas mudanças fizeram parte da
vida de Francisco desde muito cedo. Filho de um mercador do ramo têxtil resolveu abdicar de
sua confortável vida burguesa para seguir à prática da pobreza voluntária e viver em
obediência à Igreja e em castidade como muitos grupos leigos, cujo modelo de vida baseado
na vita apostólica, impregnavam as cidades italianas.

49

FRESNEDA, Francisco Martínez. Textos e Contextos da Teologia Franciscana. In: FRESNEDA, Francisco
Martínez; MERINO, José Antônio (Org.). Manual de Teologia Franciscana. Petrópolis: Vozes: FFB, 2005, pp.
39-40.
50
CHIFFOLEAU, Jacques. Direito(s). In: GOFF, Jacques Le; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário analítico do
Ocidente medieval. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p, 384.
51
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, p. 35.

29

O Poverello como demonstra seu Testamento52, fez sua opção pelos excluídos da
sociedade, escolheu viver em meio aos pobres e doentes, tomando o local dos marginalizados
como espaço de fala. Francisco encontrou entre os necessitados a possibilidade de praticar a
pobreza de Cristo53, de ser menor54 em conjunto com uma vida apostólica, de acordo com as
reinterpretações dos Evangelhos. Sua opção religiosa pelos marginalizados e pela pobreza
radical, o colocava entre os grupos de inspiração pauperista-evangélica, nascidos fora das
consolidadas tradições do monaquismo e da vida canonical55, ou seja, juridicamente o
Assisense não pertencia a nenhuma ordem.
O ato de não possuir uma definição institucional, colocava Francisco a margem da
Igreja, pois em um período de centralização política dos pontífices, o modo de vida do
Poverello, necessitava de um enquadramento por parte da Sé Romana, visto que a produção
de discurso precisa ser controlada, selecionada e organizada56, sendo sempre necessário ligar
as práticas e os discursos as suas devidas instituições57. Dessa forma, em um momento no
qual a Igreja tentava controlar as atividades religiosas, a fraternidade que se organizava em
torno de Francisco, possuía práticas que fugiam do controle da Sé Romana e precisavam de
uma adequação institucional.
A indefinição institucional em que o Poverello se encontrava, nos leva a afirmar que
se por um lado não conseguimos descobrir as verdadeiras intenções de Francisco, podemos ao
menos aferir que a sua opção em não aderir a uma ordem religiosa já estabelecida pela Igreja,
como encontramos nas hagiografias, corrobora com a ideia de que ele não desejava fundar
uma nova ordem, mas almejava apenas viver o Evangelho. Para Raoul Manselli, esta escolha
reforçava que: “Francisco não queria ser nem monge nem sacerdote nem herege, mas filho da
Igreja, no momento em que, tendo escolhido Deus como Pai e os homens como Irmãos, devia
trabalhar pela própria salvação e pela dos outros58”. Omer Englebert59, também apresentou o
Poverello como um humilde filho de Deus, que não condenava nem os clérigos, nem os leigos
e sua única ambição consistia em comunicar sua alegria interior, no entanto, atribuiu a
52

Cf. Test. 1-4. Cf. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes,
2004, pp. 188-189
53
MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 117.
54
MATURA, Thaddée. O Projeto Evangélico de São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes/ Cefepal, 1979, p.
24.
55
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do Franciscanismo
até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 32-33.
56
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Trad. Laura F. A. Sampaio. São Paulo: Loyola, 1999, p. 8-9.
57
CERTEAU, Michel de. A Linguagem Alterada A Palavra Da Possuída. In: A escrita da História. Trad. de
Maria de Lourdes Menezes, rev. tec. de Arno Vogel. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1982, p. 246.
58
MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, p. 73.
59
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, pp. 98-99.

30

confirmação de seu modelo de vida a uma necessidade política da Igreja, que viu no
Assisense uma possível ajuda para as cruzadas ou na luta contra os heréticos.
A Igreja precisou investir para normatizar os grupos religiosos e impor sua autoridade
sobre eles, logo o que entendemos aqui como Ordem franciscana foi fruto de uma imposição
institucional, que iniciou com uma confirmação ao modo de vida de Francisco e pouco a
pouco a Sé foi moldando o modo de viver do Assisense de acordo com a sua jurisdição,
transformando a fraternitas em uma ordo. A falta de um enquadramento jurídico e a
possibilidade de ser associado às ideias heréticas que poderiam recair sobre seu propósito,
foram as principais motivações que Francisco e seus primeiros companheiros encontraram
para o primeiro contato com Roma, pois para que o Poverello e os Irmãos menores
continuassem a atuar, era necessário que eles conseguissem o consentimento do pontífice.
O desejo de Francisco de viver de acordo com o santo Evangelho, em um estado de
pobreza absoluta, só poderia ocorrer com a autorização da Igreja. Quando os grupos religiosos
possuíam um teor de vida simples, as confirmações poderiam ser realizadas pelos bispos
locais, como era o caso dos monges, porém se a forma de viver exposta possuísse um
conteúdo que aparentemente estava margem da instituição religiosa e indícios de não ser
concretizado, com possibilidades de desvios, os bispos deveriam submeter os indivíduos que
propunham tal modelo ao papa. Para Boni60, este era justamente o caso do modo de vida do
Poverello, que pelo seu teor teológico aproximava-se de movimentos já condenados como
heréticos, portanto, fugia da alçada dos bispos, passando a necessitar da permissão direta do
papa para continuar exercendo suas pregações.
Francisco viu-se obrigado a apresenta-se perante o papa Inocêncio III no ano de 1209,
para obter a permissão para continuar com sua experiência religiosa. Este pontífice foi o
responsável pelo passo inicial no processo de institucionalização da fraternitas, enquadrando
o Poverello e seus companheiros em normas que convergiam para as reformulações
institucionais propostas pela Cúria. Inocêncio, que era um grande jurista, desde o início de seu
pontificado mostrou-se favorável a aprovação de propostas religiosas de cunho pauperístico,
pois ele tinha a convicção de que apenas por meio da utilização do direito canônico, a Igreja
conseguiria normatizar as diversas práticas religiosas que representavam a nova
espiritualidade do século XIII e necessitavam de um enquadramento jurídico por parte da Sé
Romana.

60

BONI, Andrea. As Três Ordens Franciscanas. Petrópolis: FFB, 2002, p. 55.

31

O ajustamento da fraternidade aos moldes do direito canônico foi abordado pelo
historiador Vauchez61, como um processo doloroso para Francisco, pois ele sabia que uma
aproximação com o papado, resultaria em normatizações e mudanças no seu propósito de
vida. Este processo de institucionalização do grupo minorítico, em nossa compreensão,
corresponde a três momentos distintos vividos pela fraternidade: o primeiro diz respeito aos
anos de 1205 a 1209, estes foram os anos iniciais das ações religiosas de Francisco, marcados
pela chegada dos primeiros companheiros e a escrita da Proto-regra; o segundo momento
corresponde ao período de 1209 a 1223 e foi marcado por uma expansão do número de
Irmãos na fraternidade, por uma crise organizacional e pela redação da Regra de 1221, que
dois anos depois foi reformulada e aprovada em 1223, por que já se encaixava aos preceitos
jurídicos condizentes com o direito canônico; por fim destacamos os anos de 1223-1228, fase
ligada ao último e definitivo momento de institucionalização dos Irmãos menores, marcado
pelo processo de canonização de Francisco.

2.3. De 1205 a 1209: O momento de ajustamento da fraternitas.
A conversão religiosa de Francisco que iniciou provavelmente em 1205 trouxe com
ela a definição do modo de vida assumido por ele. Segundo Chiara Frugoni 62, neste primeiro
período ocorreram episódios como: o encontro do Poverello com o leproso, a restauração 63
das Igrejas de São Damião, São Pedro e Porciúncula situadas ao redor de Assis, por fim, a
mudança de hábitos por parte do próprio Francisco que parece ter ocorrido após o contato dele
com a seguinte passagem de Mateus: “[...] não possuam ouro ou prata, nem dinheiro nem
cintos nem bolsa pelo caminho nem tenham duas túnicas nem tragam calçados nem bastão
(Mt 10, 9-10)64”. Esta frase, segundo a tradição franciscana, moveu o Assisense a abandonar o
hábito eremítico que usava desde que tornou-se um homem religioso e usar uma veste
comum.
Para Desbonnets65, esta passagem refletia uma necessidade de ajustamento da
fraternitas, a qual inicialmente estava confusa. O texto bíblico parece ter servido aqui para dar

61

VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 133.
FRUGONI, Chiara. Vida de um homem: Francisco de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp.
34-54.
63
Segundo suas fontes quando São Francisco decidiu reformar as Igrejas ele estava obedecendo o comando de
uma voz que vinha do crucifixo presente em São Damião. Cf. LM 2, 1. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.).
Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 558-559.
64
Cf. LM. 3, 2. In: Ibidem. p. 564.
65
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 19.
62

32

um leme sobre a forma de vida que Francisco buscava seguir. A aproximação em relação aos
Evangelhos, não foi suficiente a partir do momento em que a fraternidade foi crescendo. O
aumento do número de companheiros mostrou que o grupo já nesses primeiros anos, havia
ganhado grande importância na região da Úmbria, o que os colocou rapidamente sob a
iminente necessidade de uma melhor definição de suas normas de vida.
Um dos primeiros questionamentos que se impôs a fraternidade foi a questão das
propriedades. A atitude do Assisense frente a esta indagação foi à realização de uma consulta
aos Evangelhos usando de um método chamado “Sortes Sanctorum”, que segundo
Desbonnets66 e Chiara Frugoni 67, era uma prática realizada no âmbito da religiosidade
popular. De acordo com as fontes, Francisco junto com o irmão Bernardo e outro de nome
Pedro dirigiram-se a Igreja de São Nicolau em Assis e após orarem e ouvirem a palavra que
estava sendo ministrada naquele momento, abriram as sagradas escrituras por três vezes,
tendo sido direcionados para os Evangelhos de Mateus e Lucas:
Terminada a oração, o bem aventurado Francisco, tomando o livro fechado [pondose] de joelhos diante do altar, abriu-o. E, na primeira abertura deste, ocorrei aquele
conselho do senhor: Se queres ser perfeito, vai e vende tudo o que possuis e dá aos
pobres e terás um tesouro no céu (Mt 19,21; cf. Lc 18,22) tendo constatado isso, o
bem aventurado Francisco alegrou-se muito e rendeu graças a Deus. Mas, porque
[era] verdadeiro adorador da Trindade, quis que [o conselho] fosse confirmado por
tríplice testemunho. Abriu o livro pela segunda e pela terceira vez. E na segunda
abertura, ocorreu aquele [texto]: Nada leveis pelo caminho etc. (Cf. Lc 9,3). E na
terceira, aquele: Quem quiser vir após mim, renucie a si mesmo etc. (Cf. Mt 16,24;
Lc 9,23) o bem aventurado Francisco, tendo dado graças a Deus (...) disse aos
mencionados senhores, a saber Bernardo e Pedro: “Irmãos, esta é nossa vida e
regra.68

Esta passagem reforçava o ideal de pobreza que Francisco desejava viver,
consequentemente resolvia a questão dos bens para este primeiro momento de crescimento da
fraternitas, pois se reafirmava a negação da propriedade e de qualquer bem por parte da
fraternidade e dos Irmãos. Desse modo, a sobrevivência desses religiosos que em sua maioria
eram oriundos da burguesia, iria depender do trabalho manual, da mendicância e de ofertas
espontâneas dos fiéis69. Abrimos aqui um parêntese para salientar que a pobreza adotada pelo
Assisense, não deve ser analisada de forma radical, pois se ele negasse todos os meios de
66

Segundo este historiador francês trata-se de uma prática de religiosidade popular que comporta ordinariamente
a esculta da missa, a oração em comum e depois a abertura do livro ao acaso, com o intuito consultivo. Cf.
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 22.
67
Chiara Frugoni nomeou esta pratica como sortes apostolorum, onde se acredita que depois as orações, ao abrir
o livro sagrado, era o próprio Deus que ali estava a falar. Cf. FRUGONI, Chiara. Vida de um homem:
Francisco de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 55.
68
Cf. LTC. 8, 29. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes,
2004, p. 810.
69
GRATIEN, de París. Plan de San Francisco de Asís y organización primitiva de su Orden (1209-1219). En:
Historia de la fundación y evolución de la Orden de Frailes Menores en el siglo XIII. Buenos Aires: Ed.
Desclée de Brouwer, 1947, pp. 49-75.

33

subsistência, isso o levaria a morte70, a pobreza para o Poverello estava ligada a representação
de Cristo. Para David Flood 71, Francisco e seus primeiros companheiros sempre dispuseram
das coisas necessárias para sua vida, eles não corriam o risco de morrer de fome ou frio,
estavam imunes ao sofrimento do pobre, por se reunirem em uma fraternidade.
Os Evangelhos neste primeiro momento de formação da fraternitas assumiram um
papel de destaque na organização da vida dos Irmãos menores, visto que, enquanto
autoridade/palavra do próprio Deus foram usados por Francisco como legitimador das suas
decisões sobre a fraternitas. As práticas ascéticas e a valorização da pobreza proposta pelo
Assisense ganhavam valor ao tornar-se semelhante à própria experiência de Cristo, ou seja,
suas decisões construídas dentro do campo simbólico das atividades que Jesus realizou na sua
existência humana, colocaram-se como elemento formador de uma autoridade inquestionável.
Isto culminou na aproximação de Francisco em relação aos leprosos e os homens
marginalizados pela sociedade de seu tempo. Estes elementos são uma chave para a leitura
das práticas religiosas não apenas dos Irmãos menores, mas da espiritualidade do século XIII.
Para David Flood72, o Evangelho podê ser explicado por Francisco, porque Francisco se
explicava por meio desses textos, ou seja, os Evangelhos atribuíam significados as escolhas
do Assisense devido a sua representação de mundo73 que se baseava em Cristo.
A imitação dos passos de Cristo estava inclusive no número de homens que seguiram
Francisco nos primeiros anos, além do próprio nome que o movimento carregava nesse
momento: fraternidade. De acordo com Grado Merlo74, entre os primeiros adeptos da religião
estavam Bernardo de Quintavalle, Pedro, Edígio, Sabatino, Morico, João de Capela, Felipe,
João de São Constâncio, Bárbaro, Bernardo de Vigilante e Ângelo Tancredi.
O termo fraternitas que caracterizou o primeiro momento da experiência de Francisco
na percepção de Desbonnets75, possuía como objetivo o estabelecimento de um laço de
caridade entre pessoas de origens muito diferentes, reunidas em torno de um programa de vida
religioso idêntico para todos. Para Edith Pásztor76, a fraternidade apresentava-se com uma

70

HARDICK. Lothar. “Pobreza, pobre”. Cf. CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano. Petrópolis:
Vozes, 1993, pp. 586.
71
FLOOD, David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 49.
72
Ibidem. p. 35.
73
BARROS, José D'assunção. O Campo da História: Especialidades e Abordagens. Petrópolis, Rj: Vozes,
2004, p.76.
74
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do Franciscanismo
até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 28-32.
75
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 34.
76
“C‟è um cenno sulla composizione sociale dei frati, che è eterogenea- <<ricco, poveiro, nobile, umile,
spregevole, onorato, prudente, simplece, dotto, ignorante >>” cf. PÁSZTOR, Edith. La Fraternità di Francesco e

34

composição social heterogênea, com indivíduos ricos, pobres, letrados, ignorantes, nobres e
humildes. Para John Moorman77, não podemos utilizar nesses primeiros anos da fraternidade a
palavra ordem para defini-los, devido o fato dos Irmãos não possuíam uma regra ou
hierarquia, suas condutas eram guiadas pelo texto dos Evangelhos bíblicos como vimos o
exemplo acima quanto à questão dos bens.
Estas características nos remetem a pensar nos desafios jurídicos que estavam
implicados aos grupos que se enquadravam no perfil fraternal, ou seja, o caminho que deveria
ser percorrido pelos Irmãos em busca da legitimidade de suas práticas no interior da Igreja,
principalmente porque como mencionou Desbonnets78, existia uma desconfiança em torno de
alguns grupos de caráter fraterno, sobretudo devido à concepção de poder, uma vez que as
hierarquias geralmente eram negadas pelos adeptos deste modelo vida. Não há dúvidas de que
esta estrutura, que em muitos aspectos lembravam as fraternidades romanas, fugiam do
controle eclesiástico e citadino. Segundo David Flood 79, Francisco e seus companheiros
colocaram-se na contramão da ordem social que se estabelecia em Assis ao negaram o espaço
urbano, no momento em que sua terra natal acabara de se constituir como comuna em 1210.
Assim, ao abandonarem o perímetro urbano eles se colocaram a margem dos serviços
materiais e espirituais prestados pela comuna e seus súditos.
A fraternidade representava uma estrutura arcaica que fugia do discurso institucional
que a Igreja estava realizando desde a Reforma Gregoriana e da normatização dos centros
urbanos. Foi com este modelo que Francisco dirigiu-se a Roma em busca de autorização para
prosseguir com seu propósito de vida. Ao se direcionarem a Sé Apostólica no ano de 1209, o
Poverello e seus primeiros Irmãos não possuíam uma regra nos moldes jurídicos, ele
apresentou como fundamento do seu movimento religioso algumas passagens dos
Evangelhos, este documento ficou conhecido como Proto-regra.
Na visão de Andrea Boni 80, o primeiro encontro entre o pontífice e Francisco estava
ligado a um ato constitutivo da Ordem dos Frades Menores. O Evangelho enquanto lei de vida
já existia na fraternitas desde a descoberta dos trechos do Novo Testamento em São Nicolau,
quando os Irmãos se colocaram na obrigatoriedade de observá-lo. O que Francisco apresentou
Tommaso da Celano. In: I compagni di Francesco e la prima generazione minoritica. Atti del XIX Convegno
internazionale, Assisi, 17-19 ottobre 1991. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull'alto Medioevo, 1991, p. 95.
77
“<<Fraternità>> è meglio di<<ordine>>, poiché questo piccolo gruppo di uomini non aveva daprimma
nessuna organizzazione e nessuma Regola, fuorché le parole di Gesù Cristo riportate nel Vangelo. Cf.
MOORMAN, John. L'espanzione Francescana dal 1216 al 1226. Spoleto: Atti della Società Internazionale di
studi francescano, 1977, p. 268
78
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, pp. 84-88.
79
FLOOD, David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, pp. 23-28.
80
BONI, Andrea. As Três Ordens Franciscanas. Petrópolis: FFB, 2002, p. 42.

35

a Inocêncio foi apenas um conjunto de intenções que continham trechos das sagradas
escrituras. No decorrer do processo de desenvolvimento do grupo foi necessário escrever um
documento que normatizasse as práticas de sua fraternidade, o que culminou nas Regras
atribuídas a Francisco. É fato que elas foram escritas a partir das experiências que o grupo
franciscano vivenciou desde a sua fundação, incluindo nesse processo sua relação cada vez
mais próxima com a cúria romana e com as universidades.
A aprovação do propósito de vida de Francisco por Inocêncio III, segundo Boni, dava
consistência a um propósito de vida que existia desde 1205. O papa ao fazer o
reconhecimento dos Irmãos e autenticar suas práticas de pregação, aproximava a fraternidade
franciscana de sua estrutura e conferia a esses religiosos uma subjetividade jurídica 81, ou seja,
eles não receberam uma aprovação definitiva, eles se tornaram sujeitos jurídicos que tiveram
sua experiência religiosa admitida pela Igreja82, passando a possuir direitos e deveres com a
Sé Romana de acordo com as coleções canônicas e as legislações dos concílios do século
XIII. Desbonnets83 afirmou, que a acolhida do papa consistia antes em “boas palavras”, que
numa aprovação jurídica precisa, dessa forma esses religiosos foram colocados na mesma
condição de outras entidades religiosas.
Portanto, a primeira década do século XIII marcada pela aproximação de Francisco e a
Igreja, deve ser entendido como o primeiro passo no processo de institucionalização da
fraternidade. Esta abertura da Sé Romana aos movimentos espirituais leigos, deu-se devido à
formação pessoal de Inocêncio III (1198-1216), que como destacou Barraclough84, estudou
direito em Bolonha, o que convergiu para que suas ações de governo à frente de Roma fossem
dotadas de aspectos políticos e jurídicos. Essa tentativa de diálogo e aproximação com os
movimentos religiosos que surgiram no século XIII, era advinda desde 1201 quando ele
tentou reunir sob uma mesma regra os religiosos missionários da Livônia na península báltica
da Rússia85:
[...] no aceitar, proteger e defender estes movimentos espontâneos, geralmente
formados por leigos, não contra o clero, mas frequentemente com o seu apoio,
Inocêncio III e os seus sucessores procuraram antes de tudo propor- se não imporuma forma de vida, uma regra juridicamente firme, pela qual a direção, a
organização, a estrutura sustentadora do movimento eram controladas pelo clero ou
a ele confiada.86

81

BONI, Andrea. As Três Ordens Franciscanas. Petrópolis: FFB, 2002, p. 42.
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, p. 99.
83
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 41.
84
BARRACLOUGH, Geoffrey. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 131.
85
DESBONNETS, Théophile. Op. cit., p. 89.
86
MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, pp. 102-103.
82

36

Não devemos entender a aprovação do propósito de vida do Poverello por Inocêncio
III como uma conquista fácil. Devido o modo de viver de Francisco situar-se a margem da
instituição religiosa, a cúria romana provavelmente em concílio87 durante o período da visita
do Assisense a Roma, mostrou-se bastante preocupada com os rumos de tal propósito
religioso, assim como em relação ao número de adeptos que a fraternidade ganhava por toda
aquela região da Itália. Tomás de Celano88 nos relatou que ao chegar a Roma Francisco e seus
Irmãos encontraram-se com Guido bispo de Assis e João de São Paulo Bispo de Sabina e que
este a todo custo tentou convencer o Assisense a adotar uma das ordens religiosas já
instituídas pela Igreja, como a vida monástica e eremítica. Percebendo a firmeza deste leigo
em levar adiante seu modo de vida, o mesmo se propôs a ser o interlocutor entre a fraternitas
e o pontífice.
Mas a atuação de João de São Paulo, Bispo de Sabina, não deu-se apenas na tentativa
de englobar a proposta de Francisco a alguma ordem religiosa já existente na Santa Sé. A
defesa desempenhada por ele em prol da pobreza apresentada pelo Poverello ao papa foi de
fundamental importância para a aprovação do modelo de vida proposto pelo Assisense e para
o seu recebimento da tonsura89:
Se rejeitarmos o pedido deste pobre como muito rigoroso e novo, quando ele pede
[apenas] que lhe seja confirmada uma forma de vida evangélica, devemos cuidar
para não ofendermos o Evangelho de Cristo. Pois, se alguém diz que dentro da
observância da perfeição evangélica e do voto está contido algo novo ou irracional
ou impossível de se observar, está provado que blasfema contra Cristo, autor do
Evangelho.90

Os laços entre os importantes homens da cúria e Francisco foram fundamentais para
que o Poverello conseguisse a aprovação de seu propósito de vida, pois como destacou
Manselli91, a cúria romana também era um instrumento de apoio do papado para a
normatização da vida religiosa do século XIII. Estes dois homens foram os responsáveis, não
apenas pelo primeiro contato entre o Assisense e as dignidades religiosas reunidas na Sé
Romana naquela ocasião, mas também pela defesa do modelo de vida de Francisco diante do
87

Segundo, durante o pontificado de Inocêncio III os cardeais se reuniam-se três vezes na semana para ouvir e
resolver as questões de direito. Cf. BARRACLOUGH, Geoffrey. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Editorial
Verbo, 1972, p. 124.
88
Cf. 1 Cel. 13, 32: 33. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis:
Vozes, 2004, pp. 218-219.
89
Por tonsura entendemos a permissão de Francisco e seus Frades desempenharem suas pregações penitenciais,
segundo Vauchez, existem dois tipos de tonsura: “<<a tonsura ministerial>>, conferida por um bispo a todo
aquele que pedisse para ser clérigo e receber ordens sacras, e a <<tonsura de conversão>>, que asssinalava a
entrada na vida religiosa para se consagrar a Deus, não importando quem lha pudesse conferir, superior religioso,
abade ou prior.” Cf. VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto
Piaget, 2009, p. 87.
90
Cf. LM. 3, 9. In: TEIXEIRA, Celso Márcio. Op. cit., p. 568.
91
MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, p. 105.

37

consistório, tornando possível o aval da cúria para que aqueles religiosos desenvolvessem
suas atividades, com uma relação direta com Roma a partir daquele momento. Vauchez92,
atribuiu a aprovação do modo de vida de Francisco a seu carisma e sua proximidade com os
seus contemporâneos, que viram nele o ideal de um religioso que respondia as expectativas de
seu tempo, mas não podemos deixar de acrescentar que, no mesmo grau de importância estava
o auxílio dado pelos cardeais dos quais ele se tornou próximo.
Podemos perceber que o primeiro encontro entre Francisco e o papa Inocêncio III
criou um laço institucional com a Sé Romana. Inocêncio forneceu à fraternidade a aprovação
papal, mas ordenou que em caso de crescimento eles deveriam voltar a Roma para que fossem
realizadas novas deliberações a seu favor. Esta atitude do pontífice de realizar novas
concessões a fraternitas, na verdade, deve ser entendida como um mecanismo de controle do
papado que desejava acompanhar de perto o desenvolvimento daqueles religiosos.
Passado o momento de ajustamento abriu-se um novo tempo na vida interna da
fraternidade e em sua estruturação, a qual caminhou para a construção de uma estabilidade no
interior da Igreja. Este novo período trouxe muitas mudanças em relação ao modelo de vida
proposto inicialmente pelo Poverello, pois o caráter espiritual e espontâneo dos primeiros
tempos foi substituído por normatizações jurídicas. A aproximação com a Sé Apostólica
permitiria a interferência pontual do papado em todas as esferas do grupo, principalmente em
relação às deliberações em favor da fraternitas, como ocorreu com os Irmãos que estavam em
missões na França entre 1219-1220 e não eram aceitos nas dioceses, uma vez que os seculares
não confiavam neles, logo o papa Honório III (1216-1227) interveio por meio da carta cum
dilecti filii, atestando que esses religiosos eram fiéis à Igreja 93 e eles foram acolhidos em
Paris.

92

VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 108.
Bolla Pro Dilectis di Onorio III- Onorio vescovo, servo dei servi di Dio, ai venerabili fratelli arcivescovi e
vescovi e ai diletti figli abati, priori, e agli altri prelati delle chiese, costituiti per il Regno di Francia, [invia]
salute e apostolica benedizione. Rammentiamo d'aver indirizzato a voi uma nostra lettera in favere dei diletti
figli, i frati dell'ordine dei frati minori, perché li riteneste come raccomandati, nella luce del divino Amore. ma
come ci è stato riferito, alcuni tra vai, come se avessero una coscienza dubbidosa nei riguardi di questo ordine
pur non trovando in essi ragione di sospetto, come abbiamo udito da altri ai quali possiamo concedere piena
fede, non permettono ad essi di rimanere nello loro diocesi sebbene, per il solo fatto che noi abbiamo consegnato
loro nostre lettere, non si dovrebbe pensare nulla di sinistro nei loro riguardi. perciò vogliamo che sia noto a tutti
voi che riteniamo il loro ordine tra quelli aprovatti e riconosciamo i frati di questo ordine come cattolici e devoti
[alla chiesa romana]. Abbiamo perciò ritenuto di ammonirvi ed esortarvi rendendovi noto mediante lettere
apostoliche ciò che comandiamo: che cioè li ammettoate nelle vostre diocesi come uomini veramente fedeli e
religiosi, e li abbiate come raccomandati in modo tutto particolare, per riverenza al Signore e a noi. CAROLI,
Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di san Francesco d’Assisi. Cronache e
altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di santa Chiara d’Assisi. Testi
normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed. Padova: Editrici Francescane, 2011, p. 1710.
93

38

Superado os desafios iniciais e com uma fórmula de vida já definida, a partir do ano de
1209 iniciou o que entendemos como o segundo momento do processo de institucionalização
desses religiosos, que começou com a aprovação papal do propósito de vida de Francisco e
desembocou em um momento de expansão da fraternidade e crise entre os Irmãos, o que
desencadeou na necessidade de uma melhor estruturação organizacional do grupo minorítico
que levou a aprovação da Regra bulada em 1223 pelo papa Honório III.

2.4. De 1209-1210 a 1223: O movimento franciscano entre a expansão e a crise.

Com o reconhecimento da fraternitas Francisco e seus companheiros puderam
dedicar-se as atividades de pregação e passaram a percorrer a Europa levando seus sermões a
toda a cristandade. Boaventura94 fez questão de destacar este ativismo missionário, um dom
que sempre esteve presente neste grupo religioso, ele chegou a destacar que na ocasião da
entrada do sétimo Irmão na fraternidade, eles foram distribuídos em duplas para desempenhar
suas pregações.
Grado Merlo95, também confirmou esta proposição de Boaventura. A documentação
de forma geral, apresenta a vontade de Francisco em dirigir-se à Terra Santa onde ele
almejava, através da pregação alcançar o martírio, obtido como consequência da missão de
converter os infiéis96. A mobilidade geográfica que caracterizou os primeiros anos da
fraternitas desencadeou em um processo de crescimento e expansão dos Irmãos menores na
Itália e fora de suas fronteiras.
Em aproximadamente dez anos, o grupo liderado pelo Poverello obteve um aumento
quantitativo de uma dezena para cinco mil indivíduos presentes no Capítulo das Esteiras97.
Esse crescimento numérico culminou na definição de reuniões periódicas. Para Le Goff98, o
ato de reunir os Irmãos em capítulos gerais, iniciou por volta de 1216, enquanto o número de
adeptos ainda era pequeno, eles se encontravam duas vezes ao ano, porém com o aumento de
pessoas, essas reuniões passaram a ocorrer uma vez ao ano. Com isso, tivemos a
institucionalização de dois encontros, um que ocorria anualmente na festa de São Miguel 99
94

Cf. LM. 3, 7. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes,
2004, p. 567.
95
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do Franciscanismo
até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 58.
96
MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, p. 204.
97
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 91.
98
GOFF, Jacques Le. São Francisco de Assis. 14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 82.
99
Cf. LM. 4, 10. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). op. cit., p. 576.

39

(setembro) e o Capítulo de Pentecostes100 realizado de três em três anos (maio). O capítulo de
Pentecostes acontecia em Porciúncula, à escolha deste lugar foi ao encontro da ligação de
Francisco com este local, visto que tratava-se da região em que se localizava a Igreja de Santa
Maria, aquela que foi reformada por ele no início das suas atividades religiosas. Além disso,
ao voltar de Roma com a aprovação de seu modo de vida, o Assisense, após uma permanência
em Rivortorto, se fixou nessa região deixando claro seu apreço pelo lugar.
A princípio, o capítulo geral dos Irmãos possuía um caráter essencialmente
religioso101, no entanto, com o desenvolvimento do grupo, as reuniões passaram a ter um
significado legislativo, visto que ali eram apresentadas e deliberadas às dificuldades que os
religiosos enfrentavam em seu cotidiano, além de serem apresentados textos complementes a
Proto-regra. Para Conti102, o capítulo geral foi um instrumento normal para completar as leis
de vida dos Irmãos menores. Essas reuniões faziam parte de um mecanismo de normatização
e controle da vida minorítica, pois eram ambientes propícios para os debates em relação aos
principais aspectos da vida minorítica. Contudo, os capítulos gerais como salientou
Desbonnets103, possuíam algumas diferenças em relação aos outros religiosos. No caso dos
monges, apenas os abades participavam das reuniões e estas possuíam como finalidade
organizar, vigiar e sancionar o modo de vida monástico.
Os encontros periódicos dos Irmãos menores, por sua vez, possuíam certa igualdade,
já que até a escrita da primeira Regra (1221) todos os adeptos do movimento poderiam
participar. Além das atividades normativas, essas reuniões também eram momentos de
confraternização da fraternitas. Para Desbonnets104, as comemorações que ocorriam durante
os capítulos gerais, evidenciam que o grupo religioso ainda possuía estruturas fraternais, que
haviam sido condenadas pelos decretos papais do século IX.
Outro aspecto do crescimento dos Irmãos que merece ser destacado foi à fundação e a
divisão de territórios em províncias. As províncias, que eram governadas por Ministros,
representavam as primeiras estruturas funcionais105 da fraternidade, com uma visível

100

De acordo com David Flood, os frades se reuniam várias vezes, no entanto com o crescimento da Ordem os
encontros passaram a ocorrer duas vezes no ano, em Pentecostes (maio/junho) e o outro na festa de São Miguel
(setembro). Cf. FLOOD, David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 116.
101
SABATIER, Paul. Vita Di S. Francesco D'assisi. Porziuncula: Edizioni Porziuncula, 2018, p. 197.
102
CONTI, Martino. Estudos e pesquisas sobre o franciscanismo das origens. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 185.
103
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 45.
104
Ibidem. p. 85.
105
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 35.

40

hierarquização106 entre os religiosos. De acordo com John Moorman, a configuração
geográfica do grupo em 1217, possuía a seguinte característica:
L‟Italia era allora divisa in sei province- Toscana, Lombardia, le Marchedi Ancona,
Terra di Lavoro, Pulia e Calabria. La Francia fu divisa in due province, una per Il
nord e una per Il sud. Una província fu creata per La Germania, benché nessun frate
fosse ancora andatolà. In Spagna fu creata una província, come anche in Terra
Santa.107

Com o aumento do número de Irmãos, as missões ultrapassaram o território da
Úmbria. No ano de 1217 foi instituída a primeira missão fora da Itália, porém sem muito
sucesso devido à falta de recomendação do papa e de conhecimento linguístico das regiões
para onde os religiosos partiram em missões, como foi o caso da Alemanha, salientado por
Odulfo Van108. Ainda segundo este historiador, superado o fracasso das primeiras missões de
1217, em 1219 foi organizado um novo projeto missionário direcionado ao Oriente. Apesar do
aparente fracasso das primeiras missões na própria Itália e em outras regiões da Europa, estas
não deixaram de proporcionar uma expansão no número de adeptos à fraternidade,
principalmente homens que advinham de Bolonha e Paris, importantes centros de estudos do
direito.
Para Omer Englebert109, o momento do ingresso de homens letrados na fraternidade
trouxe como consequência, a necessidade de se pensar sobre as questões ligadas ao
conhecimento, a princípio algo não tão bem-visto entre os Irmãos. Esses homens advindos das
universidades, em grande parte juristas, sabiam o papel que o direito tinha no sentido de
regulamentar as práticas dos indivíduos e não tardou até que estes novos integrantes
desejassem uma normatização que assemelhasse a fraternitas às outras congregações
religiosas, para que pudessem praticar seus estudos em consonância com uma pobreza menos
estrita e valendo-se dos privilégios eclesiásticos tão presentes nas universidades. Para Odulfo
Van110, a chegada dos universitários no segundo decênio do século XIII, foi o sinal da
necessidade de superar a primeira fase da história dos franciscanos, no que se refere a uma
organização e hierarquia mais definida, pois havia um ideal de vida, mas faltava uma

106

O fato de possuir ministros que estavam à frente da Ordem não significava concentração de poder por parte
destes líderes, eram responsáveis pela organização deste território, no entanto sua atuação tinha limites, pois as
relações entre os franciscanos possuíam um viés democrático. Cf. FLOOD, David. Frei Francisco e o
Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, pp. 120-128.
107
MOORMAN, John. L'espanzione Francescana dal 1216 al 1226. Spoleto: Atti della Società Internazionale
di studi francescano, 1977, p. 272.
108
VAT, Frei Odulfo Van Der. História Franciscana. Belo Horizonte: Prov. Franciscana de Santa Cruz, 2001,
p. 67.
109
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, p. 254.
110
VAT, Frei Odulfo Van Der. Op. cit., 68-69.

41

sistematização para vivê-la. Tornava-se necessária, assim, uma nova reformulação das regras
de vida do grupo religioso.
Mesmo após a aprovação do modo de vida do Poverello pelo papa em 1209, a
fraternidade continuou com uma estrutura fraternal, sem uma definição hierárquica precisa. A
liderança era desempenhada por Francisco, que coordenava os Irmãos por meio de seu
carisma, contudo faltava uma legislação clara e rígida, ou seja, um conjunto de leis que
padronizasse as práticas desta irmandade religiosa. Os Evangelhos que até a primeira década
do século XIII, continuaram sendo as únicas normas para regulamentar a vida minorítica,
esbarraram nos anseios dos universitários que desejavam ter suas práticas melhor definidas,
pois enquanto clérigos ligados ao campo do saber precisavam alternar seu tempo entre estudos
e orações. Não demorou muito até que esses Irmãos se mostrassem insatisfeitos com o teor da
vida mendicante proposta por Francisco, o qual em nada contemplava suas atividades
intelectuais.
A defesa da redação de uma regra orgânica por um grupo de intelectuais evidencia o
quanto o movimento minorítico havia modificado a sua fisionomia e se afastado da
simplicidade dos primeiros tempos. O fato dos Irmãos universitários lançarem as
prerrogativas para a escrita de um documento legislativo tornava perceptível a formação de
dois grupos distintos dentro da fraternidade: os letrados e os iletrados. Apenas os primeiros
compunham uma categoria social que detinha o conhecimento necessário às atividades
intelectuais. A escrita neste contexto se colocava como um mecanismo de poder, uma vez que
estava concentrada nas mãos de uma camada social111. Para Grado Merlo112, a presença de
homens letrados na fraternidade criou condições para intervenções disciplinadoras entre os
religiosos.
Mesmo com a integração dos universitários na fraternidade, a sinalização para
transformações profundas na estrutura do grupo religioso, apenas foi reforçada no momento
que os Irmãos se viram longe da presença de Francisco, que fez uma viagem ao Oriente em
1219, deixando a fraternidade sob os cuidados de Gregório de Nápoles e Mateus de Narni.
Estes vigários causaram uma confusão ao modificarem as normas já existentes, sobre as
práticas do jejum. Essas mudanças, por sua vez, trouxeram implicações em outras atividades
do grupo como a itinerância e o empenho dos religiosos no trabalho. As alterações foram
possíveis pelo fato de que não existir uma legislação e nem paramentos jurídicos consistentes
111

CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 1982, p.186.
112
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 31-32.

42

dentro da fraternidade. As mudanças realizadas na ausência do Poverello como destacou
Merlo, pareciam levar a fraternidade para o monasticismo113.
Francisco ao saber das modificações que seus vigários realizaram, regressou
rapidamente de sua missão, dirigiu-se a Roma e solicitou o apoio do papa Honório III (12161227). Ao pontífice foi requisitado um cardeal que desempenhasse o papel de conselheiro,
cabendo ajudar a corrigir os desvios que a fraternidade parecia caminhar a contragosto de seu
líder espiritual. A escolha para exercer tal tarefa recaiu sob Hugolino, bispo de Óstia, que as
hagiografias franciscanas apresentam como um grande amigo de Francisco.
Parte da documentação aponta para o fato de que a opção do Poverello por este
religioso, não teria sido realizada de forma aleatória. De acordo com as hagiografias, os laços
existentes entre Francisco e o bispo citado, teriam iniciado quando o Assisense visitou sua
casa em 1217 e desde então eles mantiveram contato, como demonstram os escritos
franciscanos. Maria Pia Alberzoni 114, no entanto, problematizou a amizade entre Francisco e o
então protetor dos Irmãos menores mostrando por meio da confrontação dos relatos dos
companheiros do Poverello que o cardeal de Óstia, na verdade, não compreendia as
inspirações pauperísticas de Francisco. Isto esta presente, por exemplo, na narrativa que se
conta de Francisco ter escolhido mendigar pedaços de pães ao invés de almoçar com os
parentes do cardeal, o que parece demonstrar claramente à insensibilidade de Hugolino a
pobreza franciscana.
Essas contradições entre o bispo de Óstia e Francisco foram silenciadas nas fontes,
pois Hugolino tornou-se papa com o nome de Gregório IX (1227-1241) e passou a possuir o
controle sobre o processo de escrita das hagiografias franciscanas, isto o colocou num lugar
privilegiado para propor/impor sua participação na história do Santo. Devemos estacar que
coube a ele a encomenda da escrita da vida de Francisco a Tomás de Celano, na qual são
descritos episódios que reforçam a familiaridade entre este papa e o Poverello, tendo como
contraponto da narrativa o contato negativo deste último com outros religiosos da Cúria
Romana, como teria sido o caso do Cardeal Leão - este o teria convidado para ficar em um
aposento confortável, mas o Assisense sentiu-se desconfortável com aquela situação, pois ela
iria contra seus princípios de pobreza115. A construção narrativa tentava mostrar que as visitas
113

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 36.
114
ALBERZONI, Maria Pia. Dalla Domus Del cardinale d‟Ostia Alla curua di Gregorio IX. In: Gregorio IX e
Gli Ordini Mendicanti. Spoleto: Centro Italiano di Studi Sull'alto Medievo, 2011.
115
Tutti i soggiorni di Francesco presso i Cardinali sembrano dunque segnati da esperienza negative [...] un altro
motivo merita di essere considerato. Nella Vita Beati Francisci manca qualsivoglia riferimento all‟ammirazione
e alla venerazione manifestata da altri cardinali nei confronti di Francesco, nonché alla benévola ospitalità da

43

de Francisco ao Cardeal, foram importantes para o desenvolvimento dos Irmãos menores e da
mesma forma que cardeal guiou o Poverello em alguns momentos de sua experiência, era
necessário que os Irmãos mantivessem esse mesmo relacionamento com o então papa
Gregório IX. Assim a descrição da relação entre o pontífice e o Assisense era um mecanismo
empregado por Hugolino para que após a morte de Francisco ele continuasse controlando e
deliberando sobre os problemas do grupo religioso.
A construção hagiográfica em torno da amizade de Francisco e Hugolino trazia
legitimidade às ações do cardeal protetor em relação aos assuntos minoríticos, assim são
necessários alguns apontamentos no que tange aos redirecionamentos da fraternidade a partir
da atuação do bispo de Óstia. De acordo com as fontes franciscanas, o momento de ação do
Bispo em relação à fraternidade foi mais acentuado na primeira crise interna dos Irmãos que
ocorreu em 1219, mesmo ano que foi escolhido cardeal governador, protetor e corretor116 do
movimento minorítico. Ele passou a ser o representante da Sé Romana para as questões da
Ordem117 e foi o responsável por acompanhar o desenvolvimento dos religiosos. Sua escolha
veio acompanhada do abandono de Francisco do governo da fraternidade em 1220,
entregando o controle do grupo a Pedro Cattani.
Neste período a fraternitas apresentava três problemas principais: o primeiro era a
fragilidade em relação à hierarquia que visava uma igualdade entre os seus integrantes, o
segundo a falta de uma autoridade para liderar os Irmãos, pois como destacamos
anteriormente, a direção da fraternidade resumia-se ao exemplo de vida de Francisco, ou seja,
estava ligada a uma experiência espiritual e não jurídica e o terceiro era a falta de uma
legislação, visto que a fraternidade ainda não havia adotado uma regra para normatizar suas
práticas religiosas.
Ao ser tomado como protetor-corretor Hugolino cuidou das perseguições118 que alguns
Irmãos vinham sofrendo, o bispo de Óstia escreveu aos prelados para que os religiosos fossem
recebidos nas províncias em que se encontravam. Um segundo elemento abordado pelo
protetor dos religiosos, foi aconselhar Francisco a redigir um documento normativo para guiar
as ações dos seus companheiros. Esse caminho transformaria aquela imagem de fraternidade
costoro a lui oferta. Si trata di scelte narrative dell‟agiografo che sembrano rispondere alla precisa volontà di
Gregorio IX (il committente della vita), di non dare spazio al ruolo giocato da altri membri del collegio
cardinalizio, in particolare da Leone di S. Cf. ALBERZONI, Maria Pia. Dalla Domus Del cardinale d‟Ostia Alla
curua di Gregorio IX. In: Gregorio IX e Gli Ordini Mendicanti. Spoleto: Centro Italiano di Studi Sull'alto
Medievo, 2011, pp. 101-102.
116
Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
164.
117
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, p. 216.
118
Cf. LTC. 16, 66. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). op. cit., p. 834.

44

que caracterizou os religiosos dos primeiros anos e os introduziriam na mentalidade jurídica
do período, com a construção de normas que deveriam ser tomadas como lei e em
conformidade com as diretrizes da Igreja.
É fato que os conselhos de Hugolino quanto à escrita de uma regra, iam ao encontro
das medidas tomadas pelo papado no IV Concílio de Latrão119 em 1215, que no cânone treze
deste sínodo proibia a fundação de novas ordens. A Igreja determinava que novos grupos
religiosos deveriam aderir às ordens já existentes120. Este concílio trazia importantes
mudanças para a continuidade tanto da fraternidade franciscana como para a Ordem dos
Pregadores, por isso especula-se que Francisco participou desta reunião e tenha encontrado
São Domingos121.
A partir destas deliberações do IV Concílio de Latrão Domingos e Francisco seguiram
caminhos distintos como destacou Le Goff 122, o primeiro em 1216 aderiu à regra de Santo
Agostinho, já Francisco agiu mais discretamente e não se preocupou em transformar seus
companheiros em uma verdadeira ordem. O ato de Domingos em optar por adotar uma regra,
simbolizava um enquadramento de seu projeto a política organizacional da Igreja naquele
momento. A atitude de Francisco em não aderir a nenhuma normativa, mostrou-se difícil de
ser assimilada pelos integrantes de seu grupo, principalmente pelos universitários que
integravam seu movimento religioso, causando dessa forma, diversas reações negativas entre
os Irmãos.
Os problemas ocorridos na fraternidade no momento do afastamento de Francisco
evidenciaram a necessidade de um ajustamento dos religiosos à legislação lateranense, quatro
anos após a negação de Francisco em aceitar as determinações do IV Concílio de Latrão. Para
Manselli123, diante das dificuldades organizacionais apresentadas em 1219, período de
ausência do Poverello, tornou-se visível que a regra exposta a Inocêncio III em 1209 que
consistia em alguns trechos dos Evangelhos, era incapaz de reger e guiar a vasta fraternitas,

119

Entre outros assuntos abordados nesta reunião, encontramos o combate a heresia, que determinava a
excomunhão dos desviantes, a supremacia da Igreja para tratar os suspeitos e a convocação dos católicos para
lutarem contra os heréticos. Cf. FOREVILLE, Raymonde. Latran I, II, III et Latran IV. Paris: Éditions de
L‟Orante, 1965.
120
Cânone 13 do Concílio de Latrão- De peur qu'une trop grande diversité d'ordres religieux n'intro duise une
grave confusion dans l'Église de Dieu, nous interdisons formellement de fonder à l'avenir tout nouvel ordre :
quiconque entend se vouer à l'état religieux doit choisir un ordre approuvé. De même, quiconque veut fonder une
nouvelle maison religieuse, doit recevoir la Règle et l'institution des ordres religieux approuvés. Nous interdisons
également de se faire recevoir moine en plusieurs monastères, et à tout abbé de présider à plusieurs monastères.
Cf. Ibidem. p. 354.
121
MUSCAT, Noel. Vita di San Francesco d’Assisi. Shkodër: Arra e Madhe, 2003, p. 60.
122
LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017, p. 81.
123
MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, p. 238.

45

que se apresentava articulada em atividades pastorais. Para Le Goff124, o Assisense percebeu
que não resolveria os problemas de seu grupo sem o apoio da cúria, assim nas decisões
tomadas entre 1221 e 1223, período de escrita das regras, fica difícil distinguir o que de fato
teria sido desejo do Poverello e o que lhe teria sido imposto pela Igreja para que eles viessem
a ter estabilidade jurídica no interior da Santa Sé.
A fraternidade que possuía como princípios governamentais o carisma e o exemplo de
vida do Assisense mostrou-se inadequada nos anos vinte do século XIII, frente aos demais
grupos religiosos que já haviam adotado uma composição mais rígida, como foi o caso dos
dominicanos que juridicamente já estavam organizados como ordem religiosa. A escrita de
um documento padronizador convergia não apenas para uma melhor organização das relações
dos indivíduos no interior do grupo, mas também para o reconhecimento das práticas
minoríticas como, por exemplo, a expressão: “o Senhor vos dê a paz”. Este cumprimento
enquanto saudação religiosa causava admiração a quem escutava, visto que tal ato de saudar
não havia sido proferido anteriormente por um religioso125.
Com a regra este problema seria resolvido, pois todas as normas e práticas dos Irmãos
seriam apresentadas a sociedade. O documento normatizador seria o responsável por atribuir a
estes religiosos uma nova fisionomia e funcionalidade mais próxima da realidade de Roma,
projetando estes religiosos a toda cristandade, uma vez que no decorrer do segundo decênio
do século XIII, os Irmãos menores tornaram-se através de sua pregação um braço de apoio
para a Igreja.
A redação da regra, no entanto, não foi um procedimento fácil, era preciso transpor
todo o conteúdo da experiência de Francisco para essa nova e importante etapa no processo de
institucionalização dos Irmãos. Esse trabalho, em sua primeira etapa, foi realizado em 1221
pelo Poverello com a ajuda de Cesário de Espira que era grande conhecedor das sagradas
escrituras e colaborou com Francisco no enriquecimento do escrito de citações dos
Evangelhos. O documento foi apresentado aos Frades no capítulo geral onde eles estavam
reunidos. Eram justamente nesses encontros que se apresentavam e experimentavam-se várias
regras126. Contudo, esta normativa não chegou a ser aprovada pelo papa e ficou conhecida
como Regra não bulada.
Apesar da afirmação de que o texto da Regra de 1221 foi perdido por Frei Elias,
sabemos que o desaparecimento deste documento estava ligado à insuficiência que este
124

LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017, p. 83.
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 90.
126
Cf. LTC. 9, 35. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes,
2004, p. 814.
125

46

escrito possuía para normatizar os franciscanos. A inaptidão da Regra de 1221 deu-se de
acordo com Vauchez127, devido Francisco não ter concebido tal escrito dentro das regras
jurídicas, mas como um memorial de princípios fundamentais a vida minorítica. Com a
anulação de seu primeiro escrito, Francisco se direcionou ao eremitério de Fonte Colombo em
conjunto com Frei Leão e Bonício que era perito em direito canônico com o intuído de
escrever um novo texto, este último recebeu o nome de Regra bulada, por ter recebido a
aprovação do pontífice por meio da Bula Solet Annuere.
Paul Sabatier128, ao analisar a construção dos documentos normativos, destacou que o
processo de produção da Regra iniciou com a Proto-regra em 1210, passou por um momento
intermediário com o documento de 1221 e finalizou com a Regra de 1223. Para Sabatier, a
primeira foi colocada como verdadeiramente franciscana, pois ali encontramos a liberdade e
espontaneidade da experiência de Francisco, a segunda surgiu em virtude do desenvolvimento
dos franciscanos, por isso foi caracterizada como uma proposta de lei apresentada por um
governo representativo ao seu parlamento e a última representava o trabalho indireto da Igreja
que tentava controlar os franciscanos, ao mesmo tempo em que transformava e desviava os
religiosos de suas intenções iniciais.
As mudanças da Regra de 1221 para a de 1223, são perceptíveis em primeiro lugar no
que se refere à estrutura dos textos. A primeira era mais longa, composta por vinte e quatro
capítulos, com diversas citações bíblicas e sem normas precisas. Já a segunda com doze
tópicos mais concisos, foi marcada pela supressão das citações evangélicas e aplicação de
normas mais objetivas. Essas modificações que amenizavam o propósito de vida de Francisco
partiram de agentes internos e externos a Ordem, os primeiros representados pelos Frades
universitários e o segundo por Hugolino que era porta-voz de Roma e realizou interferências
no texto da Regra de 1223 para que a normativa tivesse fórmulas jurídicas como salientou Le
Goff129. Mesmo com essas alterações e interferências, devemos destacar que essa Regra
continuou marcada por uma inspiração apostólica130.
Para Grado Merlo131, a Regra bulada abrandava e modificava alguns pontos do texto
da Regra não bulada. Para Manselli, as mudanças corresponderam à superação de um período
no qual o franciscanismo esteve restrito à região da Úmbria italiana e ao serem projetado para
127

VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 145.
SABATIER, Paul. Vita Di S. Francesco D'assisi. Porziuncula: Edizioni Porziuncula, 2018, p. 229-230.
129
LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017, p. 86.
130
CONTI, Martinho. Regra, monaquismo. In: CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano. Petrópolis:
Vozes, 1993, pp. 639-653.
131
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 40.
128

47

num plano macro, isto os obrigou a pensar o cotidiano dos Frades nas missões que iriam
realizar fora da Itália: “[...] A regra dos frades menores devia necessariamente perder o
originário caráter umbro-italiano para tender a uma abrangência a mais geral possível num
plano europeu132”. Assim, as mudanças na Regra devem ser entendidas como reflexo do
crescimento da fraternidade, visto que a partir do momento que o número de adeptos cresceu
e a complexidade das atividades pastorais aumentou, a Igreja investiu para normatizar as
práticas do grupo minorítico. Para Vauchez133, o processo de institucionalização da
fraternidade era necessário, pois o movimento franciscano havia ultrapassado a imagem de
seu fundador. Fica claro que esse crescimento trouxe a necessidade de uma transição da
fraternitas para uma Ordo, que implicava em uma hierarquia representada pela valorização e
institucionalização dos Ministros e do cardeal protetor, que passaram a desempenhar papéis
de autoridade no interior da Ordem.
É preciso destacar que a palavra ordem estava associada a uma estabilidade e definição
de status do grupo minorítico na estrutura eclesiástica. Para Desbonnets134, apesar de possuir
muitas definições no campo semântico, há certa unidade em relação a sua significação, a
palavra ordo tem como ponto de partida a ideia de ordenação, assim em oposição à
fraternidade, a palavra ordem designava uma melhor organização religiosa.
O status de Ordem, ao mesmo tempo em que trouxe uma maior definição das práticas
dos Frades, desencadeou mudanças profundas em relação às ideias do Poverello, e estas não
foram aceitas sem encontrar resistência por parte do seu fundador. Para Francisco render-se a
obediência de uma Regra escrita, o colocava na contramão de um propósito de vida aberto a
novas vivências, uma vez que este escrito assumiria o indicativo da vida que deveria ser
seguida pelos Irmãos, excluindo dela a flexibilidade dos primeiros anos do seu movimento
religioso.
As dificuldades em torno da redação de uma Regra por parte de Francisco colocavam
em evidência o problema da codificação de uma experiência religiosa que nasceu longe das
estruturas tradicionais, uma vez que o modelo de vida franciscano não se enquadrava em
padrões monásticos, nem eremítico, como destacamos anteriormente. Era justamente a
categorização do movimento franciscano que o texto normativo visava propor, pois a escrita
de um documento com um víeis jurídico viria acompanhada de uniformizações das práticas
dos Irmãos, uma estruturação hierárquica com uma melhor distribuição de atribuições entre os
132

MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, p. 245.
VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 135.
134
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, pp. 76-77.
133

48

líderes minoríticos e o encerramento de uma experiência religiosa a um texto. A redução de
uma experiência religiosa a escrita que recebeu o nome de Regra, veio acompanhada de
diversas implicações políticas e principalmente culturais trazidas pelo binômio oralidade
versus escrita.
Não podemos nos esquecer que o século XIII, período de institucionalização da
Ordem franciscana, enquadrava-se em um momento de ascensão da escrita, tanto para as
práticas comerciais como para as questões jurídicas. O crescimento da utilização da escrita
não significava que a oralidade havia perdido espaço. Segundo Paul Zumthor135, quando
falamos de escrita e fala na idade média, devemos empregar o conceito de oralidade mista,
que pode ser definida como a existência de determinado texto que precisava da voz para ser
reproduzido, a oralidade se sobressaia a escrita que permanecia com uma influência atrasada e
parcial. De acordo com este historiador, a escrita era uma forma de fixar as mensagens
inicialmente orais. Para Paul Sabatier, a Regra tinha justamente este papel de fixar em escrito
o pensamento religioso do Poverello136. Portanto, é dentro desta perspectiva que o processo de
escrita da normativa deve ser analisado.
Quando o Assisense iniciou sua experiência de vida em 1205, período de crescimento
da utilização da escrita, ele não realizou nenhuma alusão a escrita enquanto termo jurídico,
suas práticas religiosas eram marcadas pela oralidade e pelo seu exemplo de vida, a utilização
da escrita apareceu por volta de 1209, momento em que se apresentou a Inocêncio III e expôs
alguns trechos dos Evangelhos, que foram escritos de forma simples e que seriam tomados
como base de seu modelo de vida. Francisco não escreveu algo novo, ele apenas reproduziu
os textos sagrados. Em contrapartida, no decorrer dos anos vinte do século XIII, o Poverello
viu sua fraternidade aproximar-se da Igreja que passava por um apogeu jurídico e necessitava
de documentos escritos para um maior controle do grupo minorítico e uma uniformização das
ações franciscanas que estivessem de acordo com as forças religiosas tradicionais.
É certo que a escrita modificou a experiência dos Irmãos menores e essas mudanças
foram perceptíveis já antes da morte de Francisco, uma vez que com a redação de um texto
normativo, existia a tendência de que a imagem de Francisco enquanto norteador do grupo
fosse enfraquecida para muitos adeptos da Ordem, posto que os Frades já não tinham contato
direto com o Assisense, mas apenas com a Regra.

135

ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A "Literatura" Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp,
93-120
136
SABATIER, Paul. Vita Di S. Francesco D'assisi. Porziuncula: Edizioni Porziuncula, 2018, p. 229.

49

Além do mais, é preciso destacar que a escrita abria margem para diversas leituras. No
caso da Regra, é visível a multiplicidade de interpretações que acompanharam a trajetória da
Ordem. Sem dúvida este texto foi direcionado para o campo da interpretação e se moldou aos
contextos e os diferentes interesses dos grupos que o utilizaram. A história da leitura nos
ensina que uma escritura ao separar-se de seu autor e das circunstâncias que permitiram a sua
criação, costuma flutuar e potencializam-se as possibilidades de interpretação, como bem
destacou Umberto Eco137.
Walter Ong138, em seu estudo sobre a oralidade e a escrita, destacou brilhantemente, as
dificuldades que existem em torno dessas duas modalidades de comunicação. A primeira faz
parte do presente real, é dirigida por um indivíduo vivo a outros indivíduos também vivos,
portanto, existe a possibilidade de questionamentos e esclarecimentos imediatos por parte dos
que falam. No que se refere à escrita, afirmou que esta é um instrumento artificial e que foge
ao cenário do real em alguns casos, ou seja, o contexto extratextual que pode ser definido
como as inquietações e as motivações que levaram a redação de um texto estão ausentes, logo
a um desvio em relação à conjuntura e as intenções da obra.
Deve-se destacar também que a escrita de um documento normatizador, trazia consigo
a possibilidade do enfraquecimento das testemunhas. Segundo Ong, nos séculos XI ao XII os
escritos não inspiravam confiança nas pessoas, a fonte de credibilidade estava nas
testemunhas que podiam defender suas ideias quando confrontadas. Com o passar do tempo,
foram desenvolvidos métodos de autenticidade para conferir autoridade aos documentos e os
escritos ganharam certa importância. No caso da Ordem franciscana não podemos dizer que
as testemunhas perderam espaço com a escrita da Regra, porém em caso de necessitar recorrer
à memória de Francisco, seus escritos possuíam grande estima principalmente por se tratar de
um documento que foi escrito pelo Poverello e sancionado pelo papa.
Como podemos verificar, os problemas inerentes a escrita da Regra se resumia a
transição de uma experiência de vida religiosa que a princípio não possuía uma escrita nos
moldes de normas e leis, para um texto jurídico. A Regra era um documento que estava ligado
a uma instituição139, logo através da atuação da Igreja, a Regra que deveria codificar a
experiência franciscana foi utilizada como instrumento de amenização do propósito de vida
do Assisense e como um mecanismo para trazer uma institucionalidade a um modo de viver
137

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução MF: revisão da tradução e texto final
Mônica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p, 48.
138
ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998.
139
De acordo com Certeau, todo relato histórico esta ligado a um corpo social e uma instituição de saber. Cf.
CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1982, pp. 93-94.

50

que estava à margem da instituição religiosa, portanto, a Regra foi situada no cerne de um
projeto legislativo mais amplo da Sé Romana.
Assim, ao mesmo tempo em que a Ordem foi institucionalizada o propósito
franciscano sofreu alterações. Sem o processo de institucionalização o modo de viver do
Poverello teria morrido, como destacou Desbonnets140. A normatização desses religiosos
corroborou para sua sobrevivência, mas permitiu por outro lado que a Igreja passasse a
controlá-la através de modificações no modo de viver minorítico. Em seus trabalhos sobre o
franciscanismo Ana Paula Magalhães141 destacou que a institucionalização ampliou os
direitos dos Frades, mas restringiu suas práticas, visto que a partir do momento em que a
Ordem dos Frades Menores passou a possuir uma Regra confirmada pelo papa, estes
enquadraram-se em uma instituição religiosa que já possuía uma vida legislativa definida. A
restrição que seria imposta a Ordem, de acordo com o direito canônico, frente à liberdade que
Francisco sempre possuiu para dirigir seu grupo, como já dissemos, foi vista de forma
negativa por ele. Não podemos negar, sem dúvida que a Regra enquanto lei, poderia matar o
espírito142.
Contudo, o processo de normatização dos Menores que culminou na redação da Regra
não representou o processo final de institucionalização da Ordem franciscana, visto que com a
morte do Poverello em 1226, a Igreja utilizou a canonização de Francisco como a última fase
da integração do grupo a sua estrutura eclesiástica e passou a ter o controle sobre os Frades.

2.5. 1223-1228: Francisco entre Testamento e a canonização.

Os problemas em torno da escrita do documento normatizador, símbolo da passagem
da fraternidade ao formato de uma Ordem, não ficaram despercebidos nas narrativas
hagiográficas. Na Legenda Maior de Boaventura, o Poverello após a escrita da Regra,
apareceu afastado do movimento que deu origem, sua atuação resumia-se a participar dos
capítulos gerais, alternando com uma vida mais contemplativa.
Aprendera, pois a dividir tão prudentemente o tempo que lhe fora concedido para
[seu] mérito que gastava um tempo às laboriosas conquistas do próximo e dedicava
outro aos tranqüilos arroubos da contemplação. Donde, depois de ter descido,
segundo a exigência dos lugares e tempos, para cuidar da salvação alheia, tendo
deixado as inquietações das multidões, buscava os esconderijos de solidão e de

140

DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 14.
MAGALHÃES, Ana Paula Tavares. A ordem franciscana e a sociedade cristã: centro, periferia e
controvérsia. Revista Ágora,Vitória, v. 23, n. 23, p.154-168, 19 jun. 2016, p. 162.
142
CROCOLI, Aldir; SUSIN, Luiz Carlos. A Regra de São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 23.
141

51

tranquilidade em que, dedicando-se mais livremente ao senhor, se purificasse, se
143
algum pó lhe tivesse aderido (cf. Lc 10,11) a partir do convívio com os homens.

Sua opção de viver isolado a partir de 1224, contrastava com a realidade dos Frades,
que tendiam a ocupar cada vez mais espaço na estrutura eclesiástica através de atividades
como a pregação, instalando-se assim nos centros urbanos. Sua escolha por uma vida mais
contemplativa sinalizava uma volta às origens de sua experiência, visto que quando iniciou
sua jornada religiosa, Francisco afastou-se de Assis, permanecendo sozinho em grutas aos
arredores de sua cidade natal durante longos dias. A necessidade de um retorno aos aspectos
mais importantes da identidade franciscana pode ser percebida por meio da escrita do
Testamento do Assisense.
Francisco que sofria a bastante tempo com suas enfermidades, teve uma piora em seu
quadro de saúde, logo se propôs a ditar suas últimas vontades em um Testamento 144, que
contrastavam com as transformações de sua Ordem. Para Martino Conti 145, o Testamento
possuía um gênero literário marcado pelos “discursos de despedidas”, e por pertencer a este
campo da literatura não pode ser catalogado entre os textos legislativos do Poverello, no
entanto, o fato de não ter peso de lei, não diminui o valor histórico, moral e informativo que
este documento nos apresenta.
O valor que atribuímos ao Testamento em nosso trabalho está ligado ao fato de que
nele encontramos muitos dos problemas inerentes ao crescimento do grupo minorítico, em
decorrência da institucionalização dos Irmãos menores. Nessa escritura é possível perceber
até certa medida, como Francisco vivenciou essas mudanças que tanto impactaram o espírito
original do seu movimento religioso. Ele sabia que os Frades em caso de crescimento
poderiam modificar alguns aspectos da Regra bulada, por isso ele determinou que nada fosse
diminuído, acrescentado ou comentado em seu Testamento. Percebe-se que para Francisco a

143

Cf. LM. 13, 1-3. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes,
2004, p. 635.
144
Segundo Vauchez, mesmo doente, Francisco continuou a pregar na região da Úmbria e nas Marcas, porém
tendo piorado das doenças que sofriam, precisou parar em São Damião, onde recebeu os cuidados de Clara e
suas irmãs, segundo este foi neste momento que o Poverello se iniciou o Cântico do Irmão Sol. Para que
obtivesse um melhor acompanhamento médico foi direcionado a Sena onde devido a mais um agravamento de
seu quadro de saúde redigiu seu primeiro e breve Testamento. Após uma ligeira melhora foi direcionado ao
eremitério das Celle, junto a Cortona onde ditou seu Testamento. No fim de junho de 1226 Francisco pediu que
fosse levado a Porciuncula, local tomado como berço de sua Fraternidade, lá ficou hospedado no palácio do
Bispo Guido II, devido o medo que o corpo do santo sofresse algum dano, devido a mentalidade religiosa do
período em relação as relíquias sagradas. Cf. VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e
Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, pp. 177-186.
145
CONTI, Martinho. Testamento de São Francisco. Cf. CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano.
Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 740-747.

52

interpretação do Testamento e da Regra 146 não estava em técnicas intelectuais, mas na
espiritualidade dos Irmãos, pois para ele estes textos eram um produto mais espiritual que
jurídico, visto que as fontes apontam para o fato de que o modo de viver da fraternitas foi
revelado a Francisco pelo próprio Cristo.
As últimas palavras de Francisco foram sem dúvida uma tentativa de contornar as
mudanças do grupo. Para Paul Sabatier147, a Regra de 1221 e o Testamento, devem ser
entendidos como o último esforço do Assisense de lembrar aos seus Irmãos a base de sua
espiritualidade, por isso estes documentos demonstram um pouco da personalidade de
Francisco como líder da Ordem, vê-se neles uma clara indicação de que ele concebia a Ordo
como fruto de sua experiência pessoal148.
O referido escrito reafirmava a trajetória do Poverello desde o momento de sua
conversão e apontava para alguns aspectos de sua experiência inicial. É clara a defesa que faz
quanto à integralidade da Regra:
E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer,
mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo
Evangelho. E eu o fiz escrever com poucas palavras e de modo simples, e o senhor
papa mo confirmou. E aqueles que vinham para assumir esta vida davam aos pobres
tudo o que podiam ter (cf. Tb 1,3); e estavam contentes com uma só túnica,
remendada por dentro e por fora, com o cordão e calções. 149

A normativa bulada era apresentada por Francisco como um instrumento que era fruto
de sua relação com o divino, logo para ele suas últimas palavras não deveriam significar uma
nova Regra, mas um texto complementar150 a ser lido nos capítulos junto com o texto
normatizador da Ordem. Francisco indicou três funções para seu Testamento: recordação,
admoestação e exortação151.
Composto por quarenta e um artigos, o Testamento tratava de temas importantes para
o Assisense. A fidelidade que ele prometeu ao papa em 1209, por exemplo, apareceu aqui na
valorização dos sacerdotes que deveriam ser considerados os únicos responsáveis pela
substanciação. Aos Frades caberia apenas pregar nas paróquias com o consentimento dos

146

A regra mesmo sofrendo alterações e se enquadrando no campo jurídico, continua refletindo a experiência
religiosa de São Francisco, logo na lógica do fundador do grupo minoritário o documento normatizador nunca
deixou de pertencer ao campo espiritual. A regra tem um enquadramento jurídico, mas não perdeu o conteúdo do
propósito inicial do Assisense.
147
SABATIER, Paul. Vita Di S. Francesco D'assisi. Porziuncula: Edizioni Porziuncula, 2018, p. 285.
148
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, p. 297.
149
Cf. Test. 14-15. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes,
2004, p. 189.
150
Para Conti, devido o Testamento não possuir peso de lei, a determinação de Francisco para que as suas
últimas palavras fossem um complemento a Regra, tonarva-se inviável. Cf. CONTI, Martinho. Testamento de
São Francisco. Cf. CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 743.
151
Cf. Test. 34. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). op. cit., p. 188- 191.

53

religiosos responsáveis por tais locais. Tem-se aqui uma obediência por parte de Francisco ao
manter a separação entre clérigos e laicos, os primeiros deveriam rezar o ofício como
determinado a eles, já os segundos deveriam dizer o pai-nossos conforme competia aos leigos.
O papel do trabalho também foi trazido à tona pelo Testamento. Ele servia como meio
de combater o ócio, o texto deixava claro a diferença entre o labor e as práticas mendicantes,
visto que em caso de trabalho e não recebimento de salário, os Irmãos poderiam recorrer à
prática de esmolas. O ato de relembrar a importância do trabalho para a manutenção da
identidade franciscana tornava perceptível o receio de Francisco de que seus companheiros ao
enquadrarem-se na estrutura eclesiástica, se desviassem da austeridade e passassem a viver de
outras alternativas, como doações, já que segundo Grado Merlo152, no decorrer dos anos vinte
do século XIII todos os lugares que estes religiosos se estabeleceram, estavam vinculados a
iniciativa de leigos e eclesiásticos, homens e mulheres de elevado nível social.
Em um momento de crescimento e de institucionalização da Ordem, o Poverello
ressaltou que os Irmãos fossem fiéis à pobreza nas habitações e que vivessem como
forasteiros ou peregrinos quando as casas construídas para eles não condissessem com tal
prática. Também ordenou aos seus Frades que não solicitassem nenhum favor a Cúria
Romana, pois as deliberações que esta instituição poderia realizar, sob o argumento da
atuação dos Menores nas atividades pastorais, poderiam posicionar os religiosos em situação
de conforto e conexão com os ambientes de poder. Esta fala de Francisco convergia para a
importância que sua Ordem possuía na Igreja, pois a atuação e estima dos Frades fizeram
surgir conflitos com o clero secular, à medida que os franciscanos ganharam destaque na Sé
Romana. O fato de proibir qualquer interferência do papa e seu consistório em possíveis
conflitos do grupo minorítico foi um desejo de neutralizar a Santa Sé como intermediadora
das ações dos Irmãos.
No que se refere à governabilidade da Ordem, ele destacou a obediência necessária em
relação aos Ministros gerais e atribuiu correções aos Irmãos menores que não rezassem o
ofício segundo a Regra. Os desvios deveriam imediatamente ser apresentados aos custódios,
que teriam o poder para manter o Frade como prisioneiro até ser direcionado ao governador
dos Menores. Este por sua vez, o submeteria a alçada do cardeal protetor e corretor da Ordem.
O Testamento e a Regra não deram conta de unificar o grupo franciscano naquele
momento. Após a sua morte em 1226, os Frades dividiram-se entre os membros radicais que
ficaram conhecidos como Espirituais - defendiam a literalidade da Regra e Testamento -, e os
152

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 58.

54

moderados, chamados de Conventuais, estes mais abertos às mudanças em relação aos
escritos deixados por Francisco.
O conflito entre estes dois grupos no interior da Ordem nos permite dizer que o
esforço de Francisco em demonstrar o significado de sua experiência religiosa, de forma
geral, não assegurou a manutenção da espiritualidade franciscana dos primeiros tempos.
Após a sua morte, abriu-se um período de debate em torno dos seus escritos e de suas
verdadeiras intencionalidades em questões como, por exemplo, a pobreza.
A divisão da Ordem após 1226 destacava a necessidade de uma ação da Igreja para
um maior controle do grupo minorítico, esse ato ocorreu em 1228 com a canonização de
Francisco, um ato político que nos coloca de frente a terceira e definitiva fase do processo de
institucionalização da Ordem.
O processo de canonização neste período era um ritual que estava concentrado nas
mãos do Papa e possuía um rito jurídico, para o qual se instaurava um processo de
investigação dos milagres e audição de testemunhas que pudesse provar a santidade de
determinado indivíduo, a isto se seguia a obtenção do aval da Igreja e posteriormente a escrita
de uma hagiografia.
A santificação de São Francisco, em nossa apreensão foi mais um mecanismo de
controle sobre a Ordem, Gregório IX (1227-1241) conhecia bem os problemas internos do
grupo e sabia que após a morte de seu líder os Frades poderiam dissipar-se ainda mais, assim,
ao mesmo tempo em que a canonização do Poverello, reafirmava o sucesso da experiência
franciscana, o papa criava um artifício para continuar interferindo na Ordem.
Para Vauchez153, a canonização de São Francisco constituiu ao mesmo tempo a
primeira metamorfose de sua identidade e uma etapa decisiva da integração do movimento
franciscano no seio da instituição eclesiástica, pois a santidade do Pobre de Assis convergiu
para uma notoriedade que estes religiosos não tinham fora Itália. David Flood 154, salientou
que a santificação também trazia um elemento contraditório da experiência de São Francisco,
pois ela representava uma forma de imposição de modelo de vida, que era condenada pelo
Poverello. Se por meio da sua canonização a Igreja tentou unificar a Ordem, há de se afirmar
que esta estratégia mostrou-se insuficiente para manter o equilíbrio dos diversos interesses
que estavam em conflito no interior do grupo minoritário.
Como verificamos o processo de institucionalização da Ordem franciscana foi
realizado a partir de mudanças no propósito inicial de São Francisco e as Regras foram onde
153
154

VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 193.
FLOOD, David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 131.

55

mais rápido se refletiram as transformações do grupo minorítico. É isto que procuraremos
mostrar no próximo capítulo.

56

3 A EVOLUÇÃO DA ORDEM: UM ESTUDO COMPARATIVO DAS REGRAS.

3.1. O que separa a Regula sine bulla da Regula bullata?

No decorrer da elaboração das Regras de 1221 a 1223, podemos encontrar diversos
momentos preparatórios para a elaboração do documento normatizador dos franciscanos. De
um lado encontramos Francisco escrevendo a Proto-regra de 1210 que comportava o
propósito inicial desse movimento religioso, do outro a Igreja que a partir de 1220, buscava
regulamentar a vida e as práticas desse grupo por meio da bula cum secundum155, documento
que em muitos pontos, segundo Paul Sabatier156, já antecipava a Regra que se tornou
definitiva.
Não há dúvidas de que a escrita dessas normativas contou com a participação tanto de
Francisco como da cúria papal, entretanto, é preciso destacar que eles possuíam intenções
distintas e em muitos aspectos, contraditórias que precisavam ser conciliadas. Para o primeiro
o grupo deveria viver a mesma experiência cristã que entendiam ter vivido Jesus e seus
apóstolos, o que parecia excluir qualquer forma de propriedade e hierarquia; o segundo
almejava subordinar os franciscanos a uma política centralizadora, atribuindo-lhes uma Regra
de vida que estivesse em conformidade com a estrutura eclesiástica.
O maior esforço da Sé Romana esteve em moderar o modo de vida da fraternitas e
controlar institucionalmente o discurso dos Menores. Para isso era necessária uma Regra mais
concisa, com um teor mais objetivo que permitisse um melhor governo, disciplina e
organização da Ordem que estava em constante crescimento157. Em comum, Francisco e a
Igreja perceberam a necessidade da escrita de um documento que abrangesse todas as práticas
franciscanas, tamanha a importância que a ordem havia ganhado.
O processo de escrita das Regras franciscanas, devido a sua complexidade, foi
marcado por diversas mutações do texto. Essas alterações são importantes para entendemos o
155

Bula cum secundum- [...] Le esperimentino prima per qualche tempo e siamo provati in esse, perché non ci sai
poi motivo di pentimento, che non si potrebbe scusare dalla taccia di leggerezza. Perciò, com l‟autorità della
presente lettera vi proibiamo di ammettere qualcuno alla professione del vostro Ordine, se non avrà fatto prima
l‟anno di prova. E uma volta fatta la professione, nessun frate osi lasciare Il vostro Ordine e a nessuno sai lecito
accettare conlui che há lasciato l‟Ordine. Cf. CAROLI, Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione.
Scritti e biografie di san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano.
Scritti e biografie di santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed.
Padova: Editrici Francescane, 2011, p. 1711.
156
SABATIER, Paul. Vita Di S. Francesco D'assisi. Porziuncula: Edizioni Porziuncula, 2018, p. 229.
157
GRATIEN, de París. Plan de San Francisco de Asís y organización primitiva de su Orden (1209-1219). En:
Historia de la fundación y evolución de la Orden de Frailes Menores en el siglo XIII. Buenos Aires: Ed.
Desclée de Brouwer, 1947, pp. 49-75.

57

percurso dos Menores até sua transformação em uma Ordo, logo a análise das mudanças da
Regra não bulada para a Regra bulada nos evidenciam os aspectos da fraternidade que
sofreram mudanças durante a institucionalização do grupo religioso no século XIII158. Uma
das primeiras questões que se ressalta é aquela que já destacamos ao longo do nosso trabalho,
a oscilação de um escrito de caráter religioso para outro cujo teor baseava-se no elemento
jurídico.
Em uma comparação entre estes documentos, Desbonnets159, afirmou que a distinção
entre eles deram-se mais na maneira de viver dos Frades, do que no espírito original de
Francisco. Para Manselli160, partindo do princípio de que as ideias do Poverello estavam
associadas à sua personalidade, era inimaginável que ele tivesse sofrido qualquer pressão
oriunda da cúria para distorcer seu ideal. Concordamos com Manselli no que se refere à
presença da personalidade do Assisense em tais documentos e as fontes são enfáticas ao
demonstrar a presença dele em todo o processo de produção de seus escritos.
Partindo dessa ideia, podemos afirmar que, se ocorreram mudanças, elas foram
realizadas com o consentimento do Assisense, devido às necessidades postas pelo crescimento
do número de Frades. Basta nos direcionarmos ao seu Testamento161, para verificarmos que
ele, usando a primeira pessoa, continuava a afirmar que a Regra era fruto da sua relação direta
e íntima com Cristo, isso encaminha para a confirmação de que as modificações de um
documento para o outro foram acompanhadas por Francisco.
Porém, discordamos de Manselli quanto a sua afirmação de que não ocorreram
pressões por parte da Igreja em relação à fraternitas de Francisco. Na verdade, de acordo com
as discussões historiográficas, sabemos que existia um movimento reformador no interior da
Sé Romana - a Reforma Gregoriana e o IV Concílio de Latrão em 1215 -, que pressionavam
os grupos religiosos a moldarem-se as normas da Instituição Eclesiástica. Essa pressão sob
Francisco pode ser percebida na sua relação com membros da Sé Romana, como foi o caso do
cardeal Hugolino.

158

De acordo com José D‟assunção Barros158, ao contrapor as informações trabalhamos sempre com a ideia de
alteridade, ou seja, estamos projetando questões sob os objetos ou situações, a partir de observações dos outros,
logo por meio da comparação é possível identificar as semelhanças e diferenças entre duas realidades e até
perceber as variações de um mesmo modelo. Cf. BARROS, José D ‟Assunção. História Comparada: um novo
modo de ver e fazer a história. Revista de História Comparada,v. 1, n. 1, p. 1-30, 2007, p. 5.
159
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 98.
160
MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, p. 244.
161
Cf. Test. 15. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes,
2004, p. 189.

58

É importante destacar, no entanto, a questão levantada por Raoul Manselli 162 como
conclusão do seu trabalho de comparação entre as normativas de 1221 e 1223. Para ele a
primeira apresentava uma atuação pessoal e individual de Francisco, já a segunda Regra, tem
pouco de sua influência, a qual deve ter sido refreada pela necessidade de normas claras e
precisas, universalmente válida, as quais se oponham a qualquer caráter personalista.
Portanto, o que separa um documento do outro é a atenuação do propósito de Francisco. Para
Omer Englebert163, embora não exista nenhuma contradição manifesta entre os dois
documentos, não podemos afirmar que a Regra bulada exprimia todas as intenções do
Poverello. A questão da pobreza, por exemplo, foi apresentada na Regra de 1221 como um
modo de ser e sentir, já na normativa de 1223, foi tratada como uma maneira de ser, mas
variava no modo de sentir, como salientou Stanislao da Campagnola164, ou seja, se na Regra
de 1221 os Frades deveriam viver como pobres sem dinheiro, a partir da Regra de 1223 se
admitia que os Menores utilizassem moedas por intermédio de terceiros, que seriam
responsáveis por administrar as ofertas que os Irmãos recebessem, mas sempre fazendo alusão
a pobreza franciscana.

3.2. Pobreza, identidade e trabalho: uma comparação entre a Regra de 1223 e a 1221.
A Regra deve ser entendida como um conjunto de normas que padronizavam a vida
dos Frades, neste documento encontramos um modelo de vida abrangente que atingia todos os
aspectos do cotidiano dos religiosos, por isso já no primeiro capítulo do texto normativo
dispomos dos elementos constitutivos do franciscanismo. No artigo I da Regra bulada que
recebeu o título: Começa a vida dos Frades Menores e I da Regra não bulada: Os irmãos
devem viver sem propriedade, em castidades e em obediência, traziam determinações sobre os
principais conceitos que deveriam nortear a vida dos Irmãos menores, que estava baseada na
vida de Jesus e dos apóstolos, conforme descrita nos Evangelhos.
Os itens apresentados no primeiro capítulo das Regras - pobreza, castidade e
obediência165-, são onde podemos perceber com maior clareza a influência que as normativas

162

MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, pp. 247-249.
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, p. 251.
164
CAMPAGNOLA, Stanislao da. La povertà nelle “regulae” di Francesco d‟Assisi. In: La povertà del secolo
XII e Francesco d’Assisi. Assis: Atti del II Convegno Internazionale, 1975, p. 246.
165
Para Esser, o conceito de obediência para a composição de um capítulo da regra segundo evidencia que a
submissão à Sé Romana, era um dos elementos fundamentais da espiritualidade franciscana e foi o responsável
pela concretude do apostolado dos irmãos e também sua proteção fora da clausura. Cf. ESSER, Kajetan.
163

59

sofreram da Reforma Gregoriana166. Neste sentido, na abertura das Regras dispomos do
esforço que Francisco realizou no sentido de conciliar o modelo de vida que se propunha
inicialmente, com as diretrizes jurídicas da Igreja, ou seja, o Poverello tentou reunir as
questões dogmáticas da Santa Sé e as representações culturais de seu tempo, como a imagem
de Cristo, em um só propósito de vida.
Todavia, apesar de possuírem a experiência de Cristo como núcleo, o artigo I da Regra
bulada e não bulada divergem quanto a sua formulação. No texto não bulado o conteúdo está
disposto de forma longa: “A Regra e vida destes irmãos é esta: viver em obediência em
castidade e sem propriedade e seguir a doutrina e as pegadas (cf. 1 Pd 2.21) de Nosso Senhor
Jesus Cristo que diz...167”; já na Regra bulada encontramos a seguinte composição: “A Regra
e vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo,
vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade168”.
Ao comparar os dois trechos percebemos que os termos pobreza, castidade e
submissão que orientavam a vida dos Frades foram mantidos em ambos os escritos, no
entanto, o de 1223 mostrou-se mais reduzido e preciso. Se na normativa aprovada estavam
dispostos apenas os três norteadores da vida dos Irmãos menores e uma promessa de
obediência à Igreja e seus representantes, na Regra não bulada, encontramos as descrições de
como os Irmãos deveriam realizar essas práticas. O texto de 1221 foi construído a partir do
exemplum, assim, após citar os itens que direcionariam o modo de viver desses religiosos,
seguia-se uma descrição pedagógica, por meio das citações bíblicas, de como os franciscanos
deveriam proceder. No texto de 1223 as extensas citações dos Evangelhos de Lucas e Mateus
que orientariam a vivência dos Menores, presente na Regra não bulada, foram substituídas
pela expressão “observar o santo Evangelho”.
Apesar da Regra bulada ser mais definida enquanto seu conteúdo, o ato de resumir as
citações bíblicas sob o enunciado “observar o santo Evangelho”, possuía uma amplitude
maior, pois não existia nenhuma definição do que deveria ser mais explorado por parte dos
Frades. Era necessária uma melhor demarcação do que precisava ser ressaltado dos escritos
bíblicos pelos Irmãos em seu cotidiano, pois da forma que a Regra bulada estava disposta
deixava margem para dúvidas e diversas interpretações, uma vez que a vida dos franciscanos
estava vinculada a bíblia, logo os questionamentos giravam em torno do que de fato esses
Características y espiritualidad de la Regla franciscana. En: Selecciones de Franciscanismo, vol. IV, núm. 10
(1975) 5-10.
166
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, p. 95
167
Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004,
pp. 165-166.
168
Cf. Rb. In: Ibidem. p. 158.

60

religiosos teriam de observar, eles estavam obrigados a todos os conselhos evangélicos
contidos nas sagradas escrituras ou apenas aqueles que estavam dispostos na normativa? A
resposta a este questionamento seria fornecida a partir de 1230 com as bulas papais.
A abordagem que encontramos nas primeiras linhas das Regras demonstrava a
finalidade de se regular as práticas minoríticas. As normas tratariam desde o modo de vestir, a
questão das propriedades, do dinheiro, realização de ofícios, jejuns, até as exigências feitas a
quem se interessasse em aderir à Ordem, a normativa, portanto, tinha como objetivo
padronizar todos os níveis da vida dos Irmãos. No entanto, mesmo com toda interferência da
cúria papal, é possível perceber que no documento de 1223 algumas questões continuaram
muito imprecisas e genéricas, um exemplo disso é a fórmula “observar o santo Evangelho”,
que citamos acima, e que demonstra as dificuldades que os produtores desse texto tiveram em
englobar a diversidade e dinâmica desse grupo de religiosos em uma regra de vida.
As imprecisões presentes na Regra aprovada por Honório III levaram a Igreja, após a
morte de Francisco, a ter de tratar de alguns pontos da Regra bulada que ainda suscitavam
dúvidas quanto ao uso prático das normas. Parte-se daí, uma tentativa da Santa Sé, por meio
dos seus conselhos jurídicos e dogmáticos, em fazer uma discussão sobre as intenções de
Francisco quando da escrita do texto normatizador. Isto marcava claramente, uma das
principais características dessa terceira fase dos franciscanos, não se tratava mais de escrever
uma Regra, os ajustes ocorreriam no campo da interpretação. Este era o único mecanismo
possível, visto que após a aprovação, esta normativa passou a ser caracterizada como um
escrito legislativo não podendo ser modificada.
Como já dissemos, as Regras também tratavam de regulamentar a entrada de novos
adeptos na vida minorítica. Era neste momento, por exemplo, que acontecia uma das coisas
mais importante em relação aos princípios de vida do grupo: as desapropriações matérias dos
aspirantes a Ordem. A Regra não bulada que traz o seguinte título: A recepção e as vestes dos
irmãos e texto bulado: Os que querem assumir esta vida e como devem ser recebidos,
abordaram todas as exigências feitas pela fraternidade para que os indivíduos fossem aceitos,
há inclusive um caminho que deveriam percorrer até a total integração aos franciscanos.
Na passagem de uma normativa a outra, a mudança nesse tópico demonstrava a
tentativa desses religiosos de abandonarem a estrutura fraternal e adotarem parâmetros
jurídicos condizentes com o status de ordem religiosa. Podemos perceber neste item as
alterações em relação à hierarquia e as atribuições de funções entre os Menores. Segundo

61

Grado Merlo169, a questão da recepção dos sujeitos que almejavam aderir ao propósito de vida
minorítico, já possuía uma padronização desde 1220, ou seja, antes da escrita da Regra não
bulada, o papado já havia regulamentado a recepção dos novos Frades, instaurando o ano de
noviciado para estes religiosos, por meio da carta cum secundum consilium, citada
anteriormente.
Para este historiador a regulamentação de um período de estágio, tinha como intuito
impedir a livre e imediata admissão de novos membros a Ordem. Esta padronização
necessitava de uma liderança que fosse capaz de instruir esses indivíduos em seus primeiros
passos na comunidade franciscana. No entanto, na Regra de 1221 as disposições para receber
novos adeptos estavam mais ligadas a uma inspiração divina, nela encontramos a seguinte
proposição:
Se alguém, por divina inspiração, querendo assumir esta vida, vier procurar nossos
irmãos, seja por eles recebido benignamente. Se ele estiver firme em assumir a nossa
vida, cuidem muito os irmãos para não se intrometerem em seus negócios temporais,
mas apresentem-no, o mais depressa que puderem, ao seu ministro. O ministro, no
entanto, receba-o benignamente, conforte-o e exponha-lhe diligentemente o teor de
170
nossa vida.

Aqueles que queriam fazer parte da Ordem passavam por avaliações: primeiramente
eram recebidos pelos Irmãos, que atestavam as verdadeiras vocações dos ingressantes. Depois
eram encaminhados aos Ministros provinciais, que tinham a competência de expor o teor de
vida franciscana. Dessa forma, na Regra de 1221, o trabalho dos Ministros era secundário,
uma vez que os primeiros contatos com os adeptos poderiam ser realizados pelos Frades. Já
na normativa de 1223, os Ministros aparecem como os responsáveis por realizar o trabalho de
recepção dos novos religiosos:
Aqueles que quiserem assumir esta vida e vierem procurar nossos irmãos, estes os
enviem aos seus ministros provinciais, aos quais unicamente, e não a outros, seja
concedida a licença de receber irmãos. Os ministros, no entanto, examinem-nos
diligentemente sobre a fé católica e sobre os sacramentos da Igreja. 171

Neste texto, os Ministros provinciais aparecem como líderes exclusivos na acolhida
dos novos simpatizantes da Ordem, principalmente por que estava sobre sua responsabilidade
à investigação das percepções que os principiantes tinham dos dogmas e sacramentos cristãos.
A atuação dos Frades na recepção dos recém chegados também apareceu neste texto, no
entanto, se comparamos o documento de 1221 com o de 1223, podemos perceber que a

169

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 39.
170
Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
166.
171
Cf. Rb. In: Ibidem. p. 158.

62

atuação deles diminuiu consideravelmente, visto que eles não participavam dos testes de
vocação, apenas os encaminhavam para seus líderes.
Este artigo demonstrava, claramente, a ênfase dada à organização no interior da
Ordem, grande parte dessa arrumação interna dos franciscanos, passava pelos Ministros que
eram os responsáveis por determinados espaços geográficos. Desde 1216, com a divisão dos
Frades em províncias, esse poder atribuído a figura dos Ministros foi se tornando cada vez
maior frente ao restante dos Irmãos menores. O exame que deveria ser realizado pelos líderes
provinciais, passou a existir em decorrência da espiritualidade que imbuiu-se de uma
mentalidade individual, orientada por experiências pessoais e livres 172, logo era preciso
entender como os novos Irmãos estavam assimilando e entendendo os dogmas cristãos.
A ascensão dos Ministros simbolizava, portanto, um amadurecimento da Ordem em
relação a sua fisionomia anterior173, mas também uma forma de proteção, pois a Regra de
1223 impunha uma análise cuidadosa das questões e convicções religiosas dos novos
integrantes. Em um tempo de conflitos dogmáticos, como aqueles do século XII e XIII,
tornou-se necessário um cuidado maior com as perspectivas religiosas que questionavam as
normas da cúria romana. Esse cuidado que os líderes deveriam ter com os desvios dos dogmas
católicos e da pobreza franciscana, estavam bem definidos na Regra Bulada, principalmente
por superar o caráter espiritual do primeiro documento normatizador. De acordo com Crocoli
e Susin174, na Regra de 1221 apareceu a ideia de que, para adentrar na Ordem era necessária
apenas uma inspiração divina175, ou seja, a entrada na fraternitas estava ligada a um desejo
religioso por parte dos indivíduos; já no texto de 1223 o “desejo” só não bastava, era
necessário que o sujeito comungasse dos preceitos católicos. Não bastava querer participar da
vida religiosa, era preciso acreditar e professar 176 o conteúdo e os dogmas que faziam parte do
cotidiano dos Frades. Esta mudança mostrava a impossibilidade de praticar o modo de vida
franciscano apenas no âmbito espiritual, havia agora uma fórmula de vida e religião que
precisava ser do conhecimento do interessado.
Passado o momento de investigação quanto ao conhecimento das questões dogmáticas,
os postulantes à vida minorítica deveriam realizar a distribuição de seus bens aos pobres, visto
que os franciscanos não poderiam possuir nenhum tipo de propriedade. Após esta doação, eles
172

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 1995, p. 81.
173
VAT, Frei Odulfo Van Der. História Franciscana. Belo Horizonte: Prov. Franciscana de Santa Cruz, 2001,
p. 72.
174
CROCOLI, Aldir; SUSIN, Luiz Carlos. A Regra de São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 66.
175
Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
166.
176
Cf. Rb. In: Ibidem. p. 158.

63

recebiam as vestes e a permissão para passar um ano de provação como determinado pelo
papa e, só então, eram recebidos definitivamente na Ordem dos Frades Menores 177. No que se
refere à doação dos bens aos pobres, a primeira Regra abria um parêntese para que, em caso
de necessidade, os Irmãos como os demais pobres pudessem receber coisas necessárias ao
corpo, exceto dinheiro, como aparece na normativa não aprovada:
venda todas as suas coisas e procure distribuir tudo aos pobres (cf. Mt 19,21).
Cuidem os irmãos e o ministro dos irmãos para não se intrometerem de maneira
alguma nos negócios dele e para não receberem qualquer dinheiro nem por si nem
por pessoa intermediária. Contudo, se estiverem sofrendo indigência, por causa da
necessidade os irmãos podem receber,como os demais pobres, outras coisas
necessárias ao corpo, com exceção de dinheiro.178

O segundo documento, por sua vez, recebeu um tom mais rígido nesse aspecto, pois
não permitia o envolvimento dos Ministros na distribuição dos bens do aspirante. Os líderes
provinciais não poderiam dar conselhos aos novos Irmãos sobre como deveriam se desfazer
de seus bens, sua função resumia-se ao encaminhamento deles a quem pudessem aconselhálos como melhor doar suas propriedades:
[...] vão e vendam todos os seus bens e procurem distribuí-los aos pobres (cf. Mt
19,21par.).7Se não puderem realizar isto, basta-lhes a boa vontade. E cuidem os
irmãos e seus ministros para não se preocupar com as coisas temporais deles, de
modo que eles livremente façam suas coisas o que o Senhor lhe inspirar. Se, porém,
for pedido algum conselho, tenham os ministros a licença de enviá-los a algumas
pessoas tementes a Deus, a cujo conselho distribuam seus bens aos pobres.179

Além da questão de liderança desempenhada pelos Ministros e da rigidez em relação à
doação dos bens dos novos ingressos na Ordem, outra mudança perceptível, diz respeito à
questão das vestes. No texto de 1221, as roupas recebidas pelos aspirantes a Menor
apareceram em dois momentos na Regra, o primeiro no ano da provação e após este período:
E quando [o candidato] tiver voltado, o ministro conceda-lhe as vestes de provação
por um ano, a saber, duas túnicas sem capuz, o cíngulo, calções e o caparão [que vá]
até ao cíngulo. Terminado, porém, o ano de provação, seja recebido à obediência.
[...] Os outros irmãos, no entanto, os que prometeram obediência , tenham uma
túnica com capuz e, se for necessário, outra sem capuz, o cíngulo e calções. E todos
os irmãos se vistam com vestes baratas e possam, com a bênção de Deus, remendálas de sacos e de outros retalhos, porque diz o Senhor no Evangelho: Os que vestem
roupas preciosas e vivem no luxo (Lc 7,25) e os que se vestem com vestes macias
estão nos palácios dos reis (Mt 11,8) E, conquanto sejam chamados de hipócritas,
não cessem, contudo, de fazer o bem; e não procurem roupas caras neste mundo,
para que possam obter a vestimenta no reino dos céus.180

177

Segundo Desbonnets, a palavra religio está associado a ideia de vida religiosa ou grupo aprovado
reconhecido e aprovado dentro do qual se vive a vida religiosa. Cf. DESBONNETS, Théophile. Da intuição à
instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 76.
178
Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
166.
179
Cf. Rnb. In: Ibidem. pp. 158-159, grifo do autor.
180
Cf. Rnb. In: Ibidem. p. 166.

64

A Regra bulada por sua vez, ressaltava a necessidade de utilização de roupas simples,
mas permitia o uso de vestes macias, finas e coloridas, além de comidas e bebidas
sofisticadas:
Depois disto, concedam-lhes as vestes de provação, a saber, duas túnicas sem capuz
e o cíngulo, calções e o caparão [que vá] até ao cíngulo, a não ser que, uma ou outra
vez, aos mesmos ministros outra coisa pareça melhor segundo Deus. E terminado o
ano de provação, sejam recebidos à obediência, prometendo observar sempre esta
vida e regra. [...] E os que já prometeram obediência tenham uma túnica com capuz e,
aqueles que o quiserem, outra sem capuz. E os que são premidos pela necessidade
possam usar calçados. E todos os irmãos se vistam com vestes baratas e possam,
com a bênção de Deus, remendá-las de sacos e outros retalhos. Eu os admoesto e
exorto a que não desprezem nem julguem os homens que virem vestir roupas macias
e coloridas e usar comidas e bebidas finas, mas cada qual julgue e despreze antes a si
mesmo.181

Podemos perceber que ambos os textos coincidem quanto ao padrão das vestes no ano
da provação, no entanto, para os anos seguintes a segunda Regra abria espaço para o uso de
calçados em caso de necessidade. A normativa de 1223 também concedia liberdade para que
os Ministros escolhessem quais roupas eram mais adequadas para o uso dos religiosos, em
relação ao clima das regiões em que os Frades se encontravam, diferindo da primeira Regra
que só admitia o uso de vestes baratas. Não há dúvida de que a questão das vestes era um
reflexo do crescimento da Ordem, a qual trouxe para seu interior além de homens simples,
outros com cultura e modo de vida burguesa182, os quais traziam consigo um modo próprio de
vestir-se.
O tema causava polêmica entre os primeiros Frades que viveram a simplicidade dos
primórdios. Francisco, na tentativa de amenizar esses conflitos, aconselhou que os Irmãos não
julgassem ou desprezassem os que optassem por usar vestes e alimentos caros. Os Menores
deveriam se ater a julgar e desprezar a si mesmo, visto que a crítica ao comportamento alheio
contrariava o espírito da humildade que era elemento constitutivo minorítico.
A questão da utilização das vestimentas baratas reapareceu no Testamento183 de
Francisco. Nesse texto ele pediu que a indumentária dos Frades fosse reduzida a uma túnica
simples que deveria ser utilizada com um cordão e calções. Se entendemos o Testamento
como a última tentativa do Poverello reconduzir a Ordem ao seu espírito original, esta
afirmação parece configurar que a vontade dele era de que a simplicidade da vida franciscana
deveria também se dar na indumentária, visto que em suas derradeiras palavras ele não citou a

181

Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
159.
182
FLOOD, David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 56.
183
“[...] túnica, remendada por dentro e por fora, com o cordão e calções” 183. Cf. Test 16. In: TEIXEIRA, Celso
Márcio (org.). Op. cit., p. 189.

65

questão das vestes finas e coloridas, apenas concentrou sua fala no uso de roupas pobres como
nos primeiros tempos da fraternidade.
Além do mais, deve-se destacar que a normatização dos trajes era importante no
século XIII, pois as roupas eram símbolos sociais que identificavam a que grupo os
indivíduos pertenciam. Dessa forma, Francisco se preocupou em suas palavras finais, em
destacar o local social ocupado pelos Frades, o qual devia ser em meio aos pobres184. O
redirecionamento dos Irmãos aos indivíduos marginalizados pela sociedade perpassava por
um ajustamento no modo de vestir desses religiosos.
Ainda referente aos acessórios que os Frades poderiam utilizar, nos deparamos na
Regra bulada com a questão dos calçados. No texto de 1221 não ocorreu nenhuma citação em
relação à utilização de tal adereço. Apenas no documento de 1223 foi citado que em caso de
necessidade os Menores poderiam fazer uso de sapatos, esta permissão, no entanto, não
especificava em que circunstâncias seriam permitidas seu uso. Assim, o conceito de
necessidade acabou caindo em um campo amplo de discussão, onde poderia ser aplicado tanto
a situação de doenças, como em casos de dificuldades cotidianas que pudessem ser
enfrentadas pelos Frades. Novamente é preciso dizer que essa Regra foi escrita num momento
em que a Ordem ganhava contornos geográficos mais amplos, não restringindo-se mais a
Itália, logo ela levava em consideração as dificuldades que os Irmãos poderiam enfrentar em
suas missões185. Devemos destacar que a palavra necessidade não fornecia uma situação
fechada, portanto, abria margem para diversas interpretações, uma vez que não é possível
definir o que Francisco entendia por ela.
Outro aspecto importante a se destacar nestas Regras são as práticas da oração, do
jejum e do modo como os Frades deveriam se portar nas atividades corriqueiras do seu
cotidiano. O capítulo que tratava desse assunto ganhou um peso muito grande dos elementos
jurídico, visto que buscava trazer legalidade as atividades dos clérigos, mas também dos
leigos que compunham a Ordem. O capítulo III da Regra bulada intitulado: O ofício divino e o
jejum e como devem os irmãos ir pelo mundo, foi produto da união de vários fragmentos da
Regra não bulada que são: O artigo III: O ofício divino e o jejum; o inciso XIV: Como devem
ir os irmãos pelo mundo; e o item XV denominado: Que os irmãos não andem a cavalo.
Na composição final do capítulo III da segunda Regra, encontramos a saudação que os
Frades deveriam utilizar nos locais em que chegassem: “Em qualquer casa em que entrarem,
184

FRUGONI, Chiara. Vida de um homem: Francisco de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

57.
185

VAT, Frei Odulfo Van Der. História Franciscana. Belo Horizonte: Prov. Franciscana de Santa Cruz, 2001,
p. 73.

66

digam primeiramente: Paz a esta casa (cf. Lc 10.5). E, segundo o santo Evangelho, seja-lhes
permitido comer de todos os alimentos que forem colocados diante deles (cf. Lc 10.8) 186”.
Este comando foi retirado do item XIV da Regra não bulada que também destacava: “E, em
qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa (cf. Lc 10,5). E,
permanecendo na mesma casa, comam e bebam do que eles tiverem (cf. Lc 10,7)187”. Ambos
os artigos faziam alusão a saudação pacificadora que os religiosos deveriam utilizar nos locais
que passassem, a Regra reconhecia e projetava para a cristandade este aspecto que fazia parte
da identidade dos franciscanos. Este mesmo trecho também reforçava a humildade que os
Frades deveriam possuir, assim permaneceu de uma Regra a outra o mandamento de que ao
chegarem a qualquer residência os Irmãos poderiam comer todas as coisas que lhes fossem
oferecidas.
O artigo III do texto de 1223 também tratava do uso de animais para transporte dos
Frades: “E não devem andar a cavalo, a não ser que sejam obrigados por manifesta
necessidade ou por enfermidade188”. Esta norma era um resquício do item XV do escrito de
1221 que também trazia tal proibição: “Nem lhes seja permitido andar a cavalo, a não ser que
sejam premidos pela enfermidade ou por grande necessidade189”, esta proibição da utilização
de animais, era uma forma de evitar as comodidades que os Irmãos viessem a usufruir. Mas a
maior parte do artigo III da Regra de 1223 advinha do capítulo III do texto não aprovado, o
qual abordava a questão do divino ofício e dos jejuns, no escrito bulado estava disposta da
seguinte forma:
E jejuem desde a festa de Todos os Santos até ao Natal do Senhor. A santa
quaresma, porém, que começa com a Epifania e se prolonga por quarenta dias (cf.
Mt 4.2), a qual o Senhor consagrou com seu santo jejum, os que nela jejuarem
voluntariamente sejam abençoados pelo Senhor, e os que não o quiserem não sejam
obrigados. Jejuem, porém, na outra [que se estende] até à Ressurreição do Senhor.
Em outros tempos, não sejam obrigados a jejuar, a não ser na Sexta-feira. 190

O escrito de 1223 continha o mesmo núcleo da normativa de 1221, no que diz respeito
à abstinência, pois o documento aprovado pelo papa seguia as mesmas datas utilizadas na
Regra não confirmada e determinava que em caso de necessidade, o jejum corporal deixava
de ser obrigatório, a não ser na sexta-feira, como verificamos abaixo:
E todos os irmãos igualmente jejuem desde a festa de todos os Santos até ao Natal e
desde a Epitania, quando Nosso Senhor Jesus Cristo começou a jejuar, ate à Páscoa.

186

Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
160, grifo do autor.
187
Cf. Rnb. In: Ibidem. p. 175, grifo do autor.
188
Cf. Rb. In: Ibidem. p. 160.
189
Cf. Rnb. In: Ibidem. pp. 175-176.
190
Cf. Rb. In: Ibidem. p. 160.

67

Em outros tempos, no entanto, de acordo com este modo de vida, não sejam
obrigados a jejuar, a não ser na sexta-feira. 191

Na questão do ofício divino a Regra de 1223 trazia uma ligeira diminuição da
participação dos leigos nessas atividades. Sabemos que a Ordem sempre foi aberta aos
indivíduos que desejavam fazer parte dela, essa disponibilidade de integrar todos aqueles que
almejavam aderir ao grupo minorítico desembocou no crescimento dos Frades e muitos
clérigos passaram a integrar o grupo minorítico. Como estes religiosos eram mais preparados
para as atividades pastorais e sabiam ler, passaram a desempenhar os ofícios em
conformidade com as diretrizes da Sé Romana192. Quanto aos leigos, por possuírem pouca
instrução sobre o assunto, tiveram que se adequar a participação apenas nas orações. Há nesse
neste capítulo uma clara tentativa de definição e distinção dos ofícios que seriam realizados
por leigos e clérigos193, esta diferença era um dos reflexos da clericalização dos franciscanos e
um alinhamento deles às determinações do cânone quarenta e dois das constituições de Latrão
que afirmava que clérigos e laicos pertenciam a jurisdições diferentes194.
Está claro que a Regra de 1223 trazia uma divisão mais rígida entre clérigos e leigos:
“Os clérigos rezem o oficio divino conforme o diretório da santa Igreja Romana, com exceção
do saltério; por isso, poderão ter breviários. Os leigos, no entanto, digam vinte e quatro Painossos195”.
A formulação acima citada diferia da noção apresentada por Francisco na Regra de
1221, onde a participação dos leigos – aos menos daqueles que sabiam ler – aparece muito
mais atuante:
Os clérigos rezem o ofício e orem pelos vivos e pelos mortos segundo o costume dos
clérigos. E pela falta e negligência dos irmãos rezem cada dia o Miserere mei Deus
(Sl 50) com o Pai-nosso (Mt 6,9-13); e pelos irmãos defuntos rezem o De profundis
(SI 129) com o Pai-nosso. E possam ter somente os livros necessários para
desempenhar o seu oficio. E também aos leigos que sabem ler o saltério, seja-lhes

191

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
168.
192
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 80-86.
193
Aguiar, Verônica Aparecida Silveira. A construção da norma no movimento franciscano. Regulae e
Testamentum nas práticas jurídicas mendicantes (1210-1323). 2010. Dissertação (Mestrado em História).
Departamento de história da Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da Universidade de São Paulo, São
Paulo, p. 62.
194
Cânone 42 no IV Concílio de Latrão- Nous entendons que les laïcs n'usurpent pas les droits des clercs:
appliquons-nous de même à empêcher les clercs de s'arroger les droits des laïcs. C'est pourquoi nous interdisons
à tout clerc, sous couleur de liberté ecclésiastique, d'étendre à l'avenir sa juridiction, au préjudice de la justice
séculière. Que chacun s'estime satisfait des constitutions écrites et des coutumes jusqu'ici approuvées: ainsi, « ce
qui est à César sera rendu à César et ce qui est à Dieu sera rendu à Dieu » [Mt 22, 21 ; Mc 12, 17 ; Le 20, 25],
conformément à la justice distributive. Cf. FOREVILLE, Raymonde. Latran I, II, III et Latran IV. Paris:
Éditions de L‟Orante, 1965, p. 367.
195
Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Op. cit., pp. 159-160, grifo do autor.

68

permitido tê-lo. Aos outros, porém, aos que não sabem ler, não lhes seja permitido
ter o livro. Os leigos rezem o Creio em Deus e vinte e quatro Pai-nossos.196

Portanto, se no texto de 1221 foi utilizado o ordenamento de que os clérigos deveriam
rezar conforme os costumes dos clérigos, no escrito aprovado pelo papa, esta norma foi
substituída pela autoridade da Igreja. Outra diferença a se destacar, diz respeito à posse de
livros sagrados, se a princípio o saltério era permitido aos que sabiam ler, esse direito não
apareceu mais no texto de 1223, onde a atividade religiosa dos leigos resumia-se apenas a
oração. Por fim, é possível perceber a troca do saltério pelo breviário como livro base das
orações na Regra bulada. Para Crocoli e Susin197, isto representava uma consonância dos
franciscanos com a Igreja, que desde IV concílio de Latrão (1215) havia reformado o ofício
divino da Cúria Romana, para combater a diversidade de ritos que existiam no interior da
Igreja198.
Podemos observar que as mudanças de uma Regra a outra ressaltavam um conjunto de
práticas fechadas e distintas para os diferentes grupos de indivíduos que integravam a Ordem
franciscana, mostrando assim que a igualdade, base dos primeiros tempos dos franciscanos,
nos anos vinte do século XIII caminhava para uma fase mais clerical que leiga199. Deve-se
salientar que as questões relacionadas com as divisões entre os clérigos e leigos, também
podem ser encontradas no Testamento200 de Francisco que, na tentativa de reforçar a
necessidade de seguir as normas previstas na Regra bulada, estipulou penalizações para os
que descumprissem o documento normativo no tocante aos ofícios.
No que tange ao assunto da pobreza, esta apareceu em muitos elementos das normas,
destacaremos aqui como ela refletia na questão do uso do dinheiro. Este assunto foi tratado no

196

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
167, grifo do autor.
197
CROCOLI, Aldir; SUSIN, Luiz Carlos. A Regra de São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 81.
198
Cânone 9 do IV Concílio de Latrão- En plusieurs régions se trouvent mêlées à l'intérieur de la même cité et du
même diocèse des populations de langues différentes ayant des rites et des usages divers dans une foi commune;
nous ordonnons formellement aux évêques de ces cités et diocèses de désigner des hommes capables pour
célébrer le service divin dans les divers rites et langues, pour leur distribuer les sacrements et les instruire par la
parole et par l'exemple. Nous interdisons formellement qu'à la tête d'une même cité ou d'un même diocèse il y ait
plusieurs évêques, car un corps à plusieurs têtes ressemble à un monstre. Si pour les motifs sus-indiqués la
nécessité l'exige, l'évêque du lieu, après mûre délibération, s'adjoindra un prélat catholique de leur nation, le
constituant vicaire dans les matières susdites, de sorte qu'il lui soit soumis et obéissant en toutes choses.
Quiconque se comporterait différemment, serait passible d'excommunication, qu'il le sache; s'il ne vient à
résipiscence, il sera déposé du ministère, l'appui du bras séculier fût-il nécessaire pour réprimer une telle
outrecuidance. Cf. FOREVILLE, Raymonde. Latran I, II, III et Latran IV. Paris: Éditions de L‟Orante, 1965,
p. 351-352.
199
VAT, Frei Odulfo Van Der. História Franciscana. Belo Horizonte: Prov. Franciscana de Santa Cruz, 2001,
p. 73.
200
Cf. Test, 31-33. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Op. cit., p. 190.

69

capítulo IV da Regra bulada e no VIII do texto não bulado, neles enfaticamente se
condenaram o recebimento de pecúnia, no texto de 1221 encontramos:
Ordena o Senhor no Evangelho: Cuidado! Guardai-vos de toda malícia e avareza
(cf. Lc 12,15); 2e: Estai atentos quanto à solicitude deste mundo e às preocupações
desta vida (cf. Lc 21,34). “Por isso, nenhum dos irmãos, onde quer que esteja e para
onde quer que vá, de modo algum apanhe nem receba nem faça receber dinheiro ou
moedas, nem por motivo de vestes nem de livros nem como salário de algum
trabalho, absolutamente por nenhum motivo, a não ser por causa de manifesta
necessidade dos irmãos enfermos, porque não devemos ter nem considerar no
dinheiro e nas moedas maior utilidade do que nas pedras [...]E, se acharmos moedas
em algum lugar, não nos preocupemos com elas mais do que com o pó que calçamos
com os pés, porque elas são vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Ecl 1,2). E se
por acaso acontecer- o que não suceda- que algum irmão chegue a recolher ou ter
dinheiro ou moedas, exceção feita unicamente na referida necessidade dos enfermos,
nós, todos os irmãos, consideremo-lo como irmão falso e apóstata, assaltante e
ladrão, e como aquele que tem a bolsa (cf. Jo 12,6), a não ser que se arrependa
verdadeiramente.201

O texto de 1223 apresentava o seguinte arrazoado:
Ordeno firmemente a todos os irmãos que de modo algum recebam dinheiro ou
moedas, nem por si nem por pessoa intermediária. No entanto, só os ministros e
custódios exerçam diligente cuidado, através de amigos espirituais, para com as
necessidades dos enfermos e para vestir os demais irmãos de acordo com os lugares,
tempos e regiões frias, como virem que seja conveniente à necessidade; salvo
sempre que, como foi dito, não recebam moedas ou dinheiro. 202

O documento de 1223 é um artigo de caráter jurídico que normatizava a relação da
Ordem e do dinheiro. Na tentativa de enfatizar a importância legislativa deste inciso, o texto
iniciou com o emprego do verbo “ordeno” e do advérbio “firmemente” para demonstrar a
necessidade de obediência a esta lei. Observamos que a proibição de manuseio de dinheiro foi
mantida de um escrito ao outro, mas a relação dinheiro-necessidade foi ampliada para os
doentes e em caso das necessidades de vestes dos Irmãos, em decorrência das adversidades
climáticas que viessem a ser enfrentadas pelos Menores nas missões em que se encontravam.
Porém, como estava mantida a proibição em relação à admissão de moedas, o
mecanismo encontrado no campo jurídico para suprir as necessidades dos enfermos e demais
Frades que precisassem, foi à institucionalização dos amigos espirituais. Estes eram os
intermediários entre a Ordem e o dinheiro, pois em caso de dificuldades os Ministros e
Custódios deveriam dirigir-se a esses agentes, que tomariam as devidas precauções para a
resolução dos problemas apresentados a eles.

201

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
171, grifo do autor.
202
Cf. Rb. In: Ibidem. p. 160.

70

O texto não aprovado deve ser caracterizado como uma mistura de normas e
conselhos203. O tom normatizador foi marcado pelo emprego do verbo “ordeno”, os
conselhos, por sua vez, são oriundos das citações bíblicas que foram utilizadas com o intuito
de recomendar os Irmãos manterem distância do dinheiro. Parece claro neste documento que
para Francisco a pecúnia não possuía nenhuma utilidade, ele iniciou este item alertando sobre
os riscos das malícias e avarezas que poderiam ser acarretadas pelo recebimento de moedas.
No entanto, admitia-se o recebimento de pequenas quantias para as necessidades dos
enfermos e em virtude dos leprosos.
Também é possível ver a recusa do Poverello em relação ao dinheiro, na utilização que
ele fez de substantivos como pedra e pó para exemplificar a inutilidade das moedas. Os
Menores deveriam se abster do contato com dinheiro, visto que as pecúnias não passavam de
vaidades. A Regra não bulada também deixava claro que em caso de desvios morais na
questão do manuseio do dinheiro, os que possuíssem moedas estariam enquadrados no mesmo
patamar dos usurários, que desde o século XII vinham sendo combatidos e condenados pela
legislação eclesiástica. Esta preocupação de Francisco em condenar as relações entre os
Frades e o dinheiro estava ligada a própria composição da Ordem, pois muitos homens que
aderiram ao seu modelo de vida eram burgueses.
Segundo Le Goff204, por volta do século XII, período de intensa monetarização da
economia, a usura passou a ser bastante praticada pelos burgueses. Frente a esta realidade, a
Igreja por meio do direito canônico se esforçou para reordenar as relações sociais deste
período e reprimir as ações dos usurários. A avidez presente em sua época levou o Assisense a
condenar também tais práticas entre os Frades, visto que existia a possibilidade dos indivíduos
de origem burguesa, que abriram mão de seus bens, trazerem consigo suas ambições205. Esta
condenação dos usurários não se encontrava na Regra bulada, provavelmente devido a uma
melhor administração das questões dogmáticas e morais daqueles que ingressavam a Ordem,
mudança derivada de duas medidas: a imposição de um ano de noviciado aos novatos (partir
de 1220) e a atuação dos Ministros na investigação da fidelidade ao modo de viver
franciscano e dos dogmas da Igreja de quem se candidatava a este modelo de vida religiosa.
Contudo, é perceptível que de um documento para o outro, o dinheiro passou a ser admitido
na Ordem através de determinados indivíduos que eram os responsáveis por sanar as
203

Quanto ao estilo, a Regra de 1221 evoca os Evangelhos no aquele do Evangelho no qual preceitos e
proibições se misturam com conselhos e palavras de encorajamento ditadas pela mais viva ternura. Cf.
ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepal-sul, 1978, p. 221.
204
Le GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Media. 2. ed São Paulo: Brasiliense;
1989.
205
FLOOD, David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 56.

71

dificuldades dos religiosos, assim essa relação deixou de possuir um aspecto rigoroso que se
encontrava no primeiro documento escrito por Francisco, passando a ser uma ferramenta que
os Irmãos poderiam recorrer em momentos de extrema dificuldade por meio de outros.
A questão do trabalho também nos levava ao elemento da pobreza. Pilar do
franciscanismo essa discussão apareceu no capítulo V da Regra bulada: O modo de trabalhar
e no VII da Regra não bulada: O modo de servir e trabalhar. Se observarmos o título do
capítulo no documento aprovado pelo papa, há referência apenas a questão do trabalho, já
naquele que não recebeu a confirmação pontifícia, nos deparamos com o acréscimo do verbo
servir. O emprego desse verbo deve ser entendido como uma indicação de humildade e
obediência, servir ao próximo, estar a serviço de outros. Para David Flood206, a palavra servir
estava ligada a necessidade dos Frades escaparem da forma tradicional de trabalho em Assis,
pois se na terra natal de Francisco, os homens trabalhavam em troca de parte da produção, os
Frades desenvolveram uma economia de subsistência e de serviços.
Devemos entender este artigo sob a perspectiva da mudança de mentalidade207 em
relação ao trabalho que ocorreu no século XIII. Antes associado ao pecado, agora o labor
passou a ser visto como algo produtivo. Essa alteração iniciou lentamente no século IX com a
difusão da Regra de São Bento, que insistia na importância das atividades manuais como
forma de penitência e de oração. Posteriormente os monges cistercienses, representantes do
novo monaquismo do século XII também valorizaram as tarefas físicas. O labor associado ao
tempo como destacou Le Goff 208, passou a ser visto como algo produtivo. Com a importância
atribuída as atividades desempenhadas pelos homens, à ociosidade passou a ser depreciada
nos canteiros citadinos, o trabalho revestiu-se de um sentido moral para os homens, pois era
por meio do desempenho de atividades que se combateria a falta de ocupação e os indivíduos
ajudavam na produtividade e bem-estar das cidades209.
Ao normatizar as práticas laboriosas dentro da Ordem, segundo a documentação
indica, pretendia-se combater qualquer sintoma de ociosidade e egoísmo, que pudesse
empobrecer e limitar os franciscanos210. O trabalho colocava-se dessa forma, entre um dos

206

FLOOD, David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 33.
Le GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Editora Unesp, 1998, pp, 47-49.
208
A contagem dos minutos era um mecanismo utilizado para organizar as redes de comércio e as horas dos
trabalhadores do ramo têxteis, logo o controle do tempo era uma importante ferramenta para regular o cotidiano
nos burgos e nos negócios econômicos que burguesia estava envolvida. Cf. Le GOFF, Jacques. Para um novo
conceito de Idade Média: Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1979, pp. 5152
209
FLOOD, David. Op. cit., p. 30.
210
BERTINATO, Pierdamiano. “Trabalho, operar, agir”. In: CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano.
Petrópolis: Vozes, 1993, p. 749.
207

72

principais elementos constitutivos da vida desses religiosos. No documento não bulado
dispõe-se da seguinte formulação:
Todos os irmãos, em quaisquer lugares em que estiverem para servir ou trabalhar em
casa de outros, não sejam nem tesoureiros nem despenseiros nem tenham cargo de
direção nas casas em que servem; nem aceitem algum oficio que provoque
escândalo ou que cause dano à sua alma (cf. Mc 8,36); mas sejam os menores e
submissos a todos que estão na mesma casa. E os irmãos que sabem trabalhar
trabalhem e exerçam a mesma arte que conhecerem, se não for contra a salvação da
alma e se puderem executá-la honestamente. Pois diz o profeta: Comerás do
trabalho de tuas mãos; serás feliz e terás bem-estar (Sl 127,2): e o apóstolo: Quem
não quer trabalhar não coma (cf. 2Ts 3,10); 6e: Cada um permaneça naquela arte e
oficio em que estava quando foi chamado (cf. 1Cor 7,24). E pelo trabalho possam
receber todas as coisas necessárias, exceto dinheiro. E, quando for necessário, vão
pedir esmola, como os outros pobres. E seja-lhes permitido ter as ferramentas e os
instrumentos apropriados ao seu oficio. Todos os irmãos procurem empenhar-se nas
boas obras, porque está escrito: "Faze sempre algo de bom, para que o demônio te
211
encontre ocupado". E também: "A ociosidade é inimiga da alma".

O texto bulado em comparação com o não bulado tratava a necessidade do labor de
forma mais amena:
Aqueles irmãos aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar trabalhem fiel e
devotamente, de modo que, afastado o ócio que é inimigo da alma, não extingam o
espírito (cf. ITs 5,19) da santa oração e devoção, ao qual devem servir as demais
coisas temporais. Quanto ao salário do trabalho, recebam para si e para seus irmãos
as coisas necessárias ao corpo, exceto moedas e dinheiro; e isto humildemente,
como convém a servos de Deus e a seguidores da santíssima pobreza. 212

Apesar de mais conciso na sua abordagem sobre o trabalho, a normativa de 1223
possuía o mesmo núcleo que o texto de 1221. Em ambos apareceu o combate a ociosidade e a
norma de que os Frades deveriam abster-se de receber dinheiro como forma de remuneração
pelos serviços prestando, obtendo apenas coisas necessárias ao seu cotidiano. No entanto, a
Regra bulada não admitia à prática de esmolas em caso de necessidade extrema, como
encontramos na Regra não bulada, esta proibição provavelmente ocorreu devido ao crescente
número de clérigos que passaram a fazer parte dos franciscanos. Acreditamos também que foi
em virtude dos sacerdotes que a Regra bulada não enfatizava a necessidade do trabalho.
Portanto, se na Regra de 1221, Francisco afirmou que os Menores que não trabalhassem não
poderiam comer213, na Regra de 1223 não encontramos esta passagem, sua eliminação
evidenciava que os Frades poderiam dedicar-se tanto ao labor manual como aos trabalhos
pastorais.
Outro aspecto sobre o trabalho presente no escrito de 1221 e suprimido do texto de
1223, diz respeito à classificação de ofícios honrosos e outros que poderiam provocar
211

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
170, grifo do autor.
212
Cf. Rb. In: Ibidem. p. 161, grifo do autor.
213
“[...] Quem não quer trabalhar não coma (cf. 2TS 3,10).”. Cf. Rnb. 7. 5. In: Ibidem. p. 189.

73

escândalos. Entre estes últimos encontravam-se cargos de tesoureiro, despenseiros e de
direção de casas. Essas tarefas contrariavam o princípio de “ser menor” e a questão da
submissão que os Frades deveriam integrar ao seu comportamento. Os Irmãos estavam livres
para desempenhar tarefas manuais que não estivessem em oposição com a vida humilde
proposta por Francisco. A ênfase sobre trabalhos manuais trouxe a necessidade de que a
Regra não bulada permitisse a posse de ferramentas e instrumentos que fossem apropriados ao
desenvolvimento de cada ocupação, ponto que também não foi citado no escrito aprovado.
Deve-se destacar, que o Poverello valorizou o trabalho manual em seu Testamento,
assim como havia feito em sua primeira Regra. No documento de 1226, o labor recebeu um
tom pessoal por parte de Francisco. Este afirmou que ele mesmo havia trabalhado e desejava
que os Irmãos assim fizessem. As atividades desempenhadas pelos Menores não deveriam ter
como finalidade apenas o recebimento de um salário, os ofícios desenvolvidos eram um
instrumento de combate a ociosidade, assim ele os aconselhava a aprender um ofício e viver
do seu próprio trabalho, evitando a mendicância, que deveria ficar em segundo plano.
Outro desdobramento da pobreza franciscana, diz respeito à propriedade e a esmola,
este debate apareceu no capítulo VI da Regra bulada: Que os irmãos não se apropriem de
nada: o modo de pedir esmola e os irmãos enfermos, junção de dois textos da Regra não
bulada, o item IX: O pedir esmola e o X: Os irmãos enfermos. Diferente de alguns capítulos
que tiveram referências bíblicas suprimidas, neste artigo elas permanecem, ainda que algumas
citações não sejam as mesmas, no geral podemos afirmar que o caráter original do texto foi
preservado. Na Regra bulada encontramos:
Os irmãos não se apropriem de nada, nem de casa, nem de lugar, nem de coisa
alguma. E como peregrinos e forasteiros (cf. 1Pd 2,11) neste mundo, servindo ao
Senhor em pobreza e humildade, peçam esmola com confiança; e não devem
envergonhar-se, porque o Senhor se fez (cf. 2Cor 8,9) pobre por nós neste mundo.
Esta é aquela sublimidade da altíssima pobreza (cf. 2Cor 8,2) que vos constituiu,
meus irmãos caríssimos, herdeiros e reis do reino dos céus, vos fez pobres (cf. Tg
2,5) de coisas, vos elevou em virtudes. [...] E com confiança um manifeste ao outro
a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho (Cf. 1Ts 2,7) carnal,
quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?
E se algum deles cair enfermos, os outros irmãos devem servi-lo como gostariam de
ser servidos (cf. Mt 7,12).214

Parte dessa norma, vinha do artigo IX do texto não aprovado, o qual tratou da questão
da pobreza e humildade:
Todos os irmãos se esforcem por seguir a humildade e a pobreza de Nosso Senhor
Jesus Cristo e recordem-se de que nenhuma outra coisa nos convém ter de todo o
mundo, a não ser, como diz o Apóstolo, tendo os alimentos e com que nos
cobrirmos, com estas coisas estejamos contentes (cf. 1Tm 6,8). [...] E quando for
214

Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, pp.
161-162, grifo do autor.

74

necessário, vão pedir esmolas. 4E não se envergonhem, mas antes se recordem de
que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo (Jo 11,27) e onipotente, expôs
sua face como pedra durissima (Is 50,7) e não se envergonhou; [...] E a esmola é a
herança e direito que se deve aos pobres, a qual Nosso Senhor Jesus Cristo
conquistou para nós. [...] E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade,
para que lhe encontre e sirva as coisas necessárias. E cada qual ame e nutra a seu
irmão, como a mãe ama e nutre seu filho (cf. 1Ts 2,7); nestas coisas Deus lhe
concederá a graça.215

Para a composição do capítulo VI Regra bulada, também foi utilizado o inciso X da
Regra não bulada que tratava do ato dos Frades servirem uns aos outros:
Se algum dos irmãos cair enfermo, onde quer que estiver, os outros irmãos não o
abandonem, a não ser que se constitua um dos irmãos ou mais, se necessário for, que
o sirvam como gostariam de ser servidos (cf. Mt 7,12).216

O primeiro aspecto que devemos destacar na comparação dos dois textos diz respeito à
utilização das passagens bíblicas, que possuíam objetivos diferentes nas normativas. Sabemos
que durante a produção da Regra bulada, o Poverello contou com a ajuda de Bonício217 que
era perito em direito canônico, as referências sagradas neste caso foram utilizadas com a
finalidade de melhor explicar alguns aspectos da vida minorítica aos Frades. Chegamos a esta
conclusão, devido o emprego da conjunção “porque” antes de algumas citações como no caso
do item nove do capítulo VI da Regra bulada, que se refere ao amor fraternal: “E com
confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho
(Cf. 1Ts 2,7) carnal, quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão
espiritual?”. Fica claro aqui que a citação bíblica foi utilizada para esclarecer que o amor
espiritual deve ser como o amor materno, ou seja, fraternal.
Já na normativa não bulada, a ajuda que Francisco recebeu para escrevê-la, vem de
Cesário de Espira, um grande conhecedor das sagradas escrituras, pouco dado ao direito
canônico. As utilizações das passagens dos Evangelhos neste texto funcionam como um
exemplo a ser seguido, visto que antes delas aparece o advérbio “como”, que nos traz a ideia
de: faça como. Temos um exemplo disso no item onze do capítulo IX, que também trata do
amor fraternal: “E cada qual ame e nutra a seu irmão, como a mãe ama e nutre seu filho (cf.
1Ts 2,7); nestas coisas Deus lhe concederá a graça.”; podemos perceber que o advérbio aqui
foi utilizado para introduzir um exemplo de amor fraterno que deveria virar ação, ou seja, o
amor materno é tomando como base para nortear as ações dos Menores.
215

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004,
pp. 172-173, grifo do autor.
216
Cf. Rnb. In: Ibidem. p.173, grifo do autor.
217
CONTI, Martino. Estudos e pesquisas sobre o franciscanismo das origens. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 188.

75

O sentido da pobreza enquanto herança de Cristo, o cuidado com os enfermos, o modo
como os doentes deveriam ser servidos, a defesa e legitimidade da prática da esmola, foram
aspectos que se mantiveram de um texto ao outro.
No documento de 1223 a pobreza e a esmola, elementos constitutivos da Ordem nos
seus primeiros tempos, estavam ligadas a experiência de Cristo, que colocavam esses
religiosos como herdeiros e reis do reino dos céus, visto que eram filhos de Deus, que se fez
pobre por nós nesse mundo. No texto de 1221, encontramos esta mesma defesa da pobreza de
Cristo e a práxis da esmola que foi caracterizada como uma questão de justiça, uma vez que
ela era uma herança e um direito que os homens deviam aos pobres e que foi conquistada por
Cristo. Neste caso as questões da pobreza e das práticas de esmolas, estavam ligadas a
mentalidade religiosa oriunda do século XII, que tentava vincular os desfavorecidos, que eram
fruto das relações econômicas, com a experiência pobre de Cristo. A pobreza não era fruto do
pecado, ela era produto das desigualdades sociais que foram causadas pela evolução
econômica da sociedade, dessa forma, se alguns homens ao produzirem bens ficavam com a
maior parte dos produtos, isso significava que faltariam alguns gêneros para uma parcela da
população. Logo, o modo de combater as injustiças na visão de Francisco era por meio das
práticas de caridade218.
Por fim devemos destacar que tanto a Regra bulada como a não bulada, condenavam
qualquer forma de propriedade. No entanto, no documento aprovado pelo papa encontramos
uma forma jurídica mais objetiva em oposição à generalização feita no escrito de 1221. Se no
texto bulado encontramos a expressão: “Os irmãos não se apropriem de nada, nem de casa,
nem de lugar, nem de coisa alguma.”; no escrito não bulado tal norma estava disposta da
seguinte forma: “[...] e recordem-se de que nenhuma outra coisa nos convém ter de todo o
mundo.”; vê-se portanto, que o documento aprovado deixava muito mais claro o que os
Frades poderiam ou não possuir.

3.3. Da Regra bulada para a não bulada: Penitência, hierarquia e pregação.

Estas duas Regras trataram em muitos aspectos de questões ligadas a distribuição de
poder dentro da Ordem, tanto relacionadas às áreas administrativas, como nas funções
pastorais. Sobre estes pontos, destacaremos três elementos: penitência, hierarquia e pregação.

218

MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 125.

76

Começaremos pela penitência, elemento discutido no capítulo VII da Regra bulada: A
penitência a ser imposta aos irmãos que pecam:
Se alguns dos irmãos, por instigação do inimigo, pecarem mortalmente- no caso
daqueles pecados sobre os quais fora estabelecido entre os irmãos que se recorra
somente aos ministros provinciais-, sejam obrigados os referidos irmãos a recorrer a
eles o mais depressa que puderem, sem demora. Os ministros, no entanto, se são
presbíteros, com misericórdia lhes imponham a penitência; se, porém, não são
presbíteros, façam com que lhes seja imposta por outros sacerdotes da Ordem, como
lhes parecer melhor segundo Deus. E devem acautelar-se para não se irar ou se
perturbar por causa do pecado de alguém, porque a ira e a perturbação impedem a
caridade em si e nos outros.219

O texto citado acima utilizou para sua composição o artigo V do escrito não bulado: A
correção dos irmãos na ofensa, onde encontramos:
Guardai, portanto, vossas almas e as de vossos irmãos, porque é terrível cair nas
mãos do Deus vivo (Hb 10,31). Se, porém, um dos ministros ordenar a algum dos
irmãos algo contra nossa vida ou contra sua alma, este não esteja obrigado a
obedecer-lhe, porque não há obediência onde se comete delito ou pecado.
Entretanto, todos os irmãos que estão sob os cuidados dos ministros e servos
considerem com bom-senso e diligentemente as ações dos ministros e servos. E se
virem um deles proceder carnalmente e não espiritualmente segundo a retidão de
nossa vida, depois da terceira admoestação, se não se emendar, denunciem-no no
Capítulo de Pentecostes ao ministro e servo de toda a fraternidade, sem nenhum
obstáculo que o possa impedir. No entanto, se houver entre os irmãos, em qualquer
lugar, algum irmão que queira proceder carnalmente e não espiritualmente, os
irmãos, com os quais está, admoestem-no, instruam-no e repreendam-no com
humildade e diligência. Se ele, após a terceira admoestação, não quiser emendar-se,
enviem-no ou denunciem-no, o mais depressa que puderem, ao seu ministro e servo,
o ministro e servo faça dele como segundo Deus Ihe parecer conveniente. E cuidem
todos os irmãos, tanto os ministros e servos como os demais, para não se
perturbarem ou se irritarem por causa do pecado ou do mal do outro, porque o
demônio quer, por causa do pecado de um só, corromper a muitos. 220

Para a composição do item VII da Regra bulada, também foi usado o inciso XX do
texto não aprovado: A penitência e a recepção do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus
Cristo:
E os meus irmãos benditos, tanto os clérigos quanto os leigos, confessem seus
pecados aos sacerdotes de nossa Religião. E se não o puderem, confessem-nos a
outros sacerdotes discretos e católicos, sabendo firmemente e estando atentos a que,
quando receberem penitência e absolvição de quaisquer sacerdotes católicos, estarão
absolvidos sem qualquer dúvida daqueles pecados, se procurarem cumprir humilde e
fielmente a penitência que lhes foi imposta. Se no momento, porém, não puderem ter
um sacerdote, confessem ao seu irmão, como diz o apóstolo Tiago: Confessai um ao
outro os vossos pecados (Tg 5,16).221

Nas duas Regras a penitência apareceu como elemento de fundamental importância,
visto que ela apontava o caminho para que os homens pudessem abandonar seu “eu” e

219

Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
162.
220
Cf. Rnb. In: Ibidem. p. 168, grifo do autor.
221
Cf. Rnb. In: Ibidem. p. 179, grifo do autor.

77

colocar-se sob a vontade de Deus222. Essa proposição vai ao encontro da obediência que
Francisco prometeu a Inocêncio III em sua primeira ida a Roma.
Esta obediência à Igreja estava disposta no texto de 1223 por meio da valorização dos
sacerdotes que compunham a Ordem223. Já na primeira Regra esse elemento também estava
presente, embora de forma mais sutil, visto que se afirmava que os franciscanos deveriam
confessar-se com os sacerdotes, no entanto, em caso de não haver um sacerdote na Ordem, os
Frades poderiam confessar a outro Irmão, mas este não poderia fornecer a absorção dos
pecados, visto que este sacramento era algo da alçada dos padres.
Destaca-se ainda a utilização do capítulo V do texto não bulado, que tratou sobre
como o pecado poderia atrapalhar o exercício da caridade. O núcleo central deste capítulo
consistia na questão do pecado entendido como um tema de interesse coletivo, visto que a
vigilância sobre os erros de cada religioso era uma questão a ser tratada pelo grupo, ou seja,
cada um deveria sempre estar atento as necessidades do outro, servi-los, apoiá-los para que
não cometessem erros224. O fato do cuidado com o pecado ser de interesse público, abria
margem para a desobediência à hierarquia, uma vez que uma ordem dos Ministros poderia ser
entendida como algo ilícito: “Se, porém, um dos ministros ordenar a algum dos Irmãos algo
contra nossa vida ou contra sua alma, este não esteja obrigado a obedecer-lhe, porque não há
obediência onde se comete delito ou pecado”; estes poderiam inclusive, ser denunciados no
Capítulo de Pentecostes.
No texto do capítulo VII da Regra bulada, a possibilidade de denúncia dos Ministros
desapareceu, a questão das acusações dos pecados dos Frades ficou sob a alçada dos líderes,
que deveriam encaminhá-los a um sacerdote para que ocorresse a imposição penitencial. A
retirada da permissão para acusar os líderes nas reuniões periódicas da Ordem, provavelmente
ocorreu devido à possibilidade de criar-se uma situação de desordem, visto que, no item V do
texto não bulado não se especificavam quais os pecados poderiam acarretar em denúncias
contra um governador provinciano.
Um aspecto novo que apareceu no texto de 1223, é que os Irmãos já possuíam uma
legislação sobre as práticas pecaminosas, como podemos perceber na expressão: “Se alguns
dos irmãos, por instigação do inimigo, pecarem mortalmente no caso daqueles pecados sobre
os quais fora estabelecido entre os Irmãos que se recorra somente aos ministros provinciais”.
O termo mortalmente, presente no escrito 1223, foi utilizado para substituir a sentença
222

PAZZELLI. Raffaelle. “Penitência, mortificação”. In: CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano.
Petrópolis: Vozes, 1993, p. 552
223
VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 156.
224
David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 131.

78

“práticas carnais” presente no texto não aprovado pelo papa, ela simbolizava um esforço para
criar um código de condutas lícitas e ilícitas entre os Frades. Assim, é visível a existência de
um programa condenatório, onde poderiam ser identificadas ações que contrariavam a vida
dos Irmãos menores e que recebeu o nome de “pecados mortais”.
O segundo ponto a discutir é a questão da hierarquia. A forma de organização dos
Frades foi definida no artigo VIII da Regra bulada: A eleição do ministro geral desta
fraternidade e o capítulo de Pentecostes, que teve como base o item XVIII da Regra não
bulada: Como os ministros devem reunir-se. Ambos os escritos tratavam basicamente da
periodicidade que os Irmãos deveriam se reunir nos capítulos gerais. A abordagem deste tema
foi uma imposição institucional da Sé Romana225, pois a organização e a regulamentação dos
capítulos dos Menores simbolizavam uma aproximação com o cânone doze do IV concílio de
Latrão226, que entre outros assuntos, determinava o período que os monges deveriam se
reunir. Isso significava um ajustamento dos franciscanos com as demais ordens religiosas
existentes na cristandade. O texto do artigo VIII da normativa aprovada determinava:
Todos os irmãos devem ter sempre um dos irmãos desta Religião como ministro
geral e servo de toda a fraternidade e estejam firmemente obrigados a obedecer-lhe
[...] Afastando-se este [do cargo], faça-se eleição do sucessor pelos ministros
provinciais e custódios no Capítulo de Pentecostes, no qual os ministros provinciais
estejam sempre obrigados a reunir-se, onde quer que for estabelecido pelo ministro
geral; e isto uma vez em três anos ou em outro prazo maior ou menor, como for
ordenado pelo referido ministro E se em algum tempo parecer à totalidade dos
ministros provinciais e custódios que o mencionado ministro não dá conta do serviço
e da comum utilidade dos irmãos, estejam obrigados os ditos irmãos, aos quais
compete a eleição, a eleger para si, em nome do Senhor, um outro como
custódio.Depois do Capítulo de Pentecostes, no entanto, pode cada ministro e
custódio, se o quiser e se lhe parecer conveniente, convocar seus irmãos para um
Capitulo em sua custódia, uma vez no mesmo ano.227

As datas das reuniões afirmadas no texto de 1223 permaneciam as mesmas do
documento de 1221, as diferenças entre os escritos ocorreram no que tange ao conteúdo do
que deveria ser discutido nos capítulos gerais. Na Regra não bulada dispomos da seguinte
formulação:

225

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 60.
226
Canône 13 do IV Concílio de Latrão- En chaque royaume ou province on tiendra tous les trois ans, sauf le
droit des évêques diocésains, un chapitre général des abbés et des prieurs sans abbé, qui jusqu'ici n'en célébraient
pas. [...]On instituera également en ce chapitre des religieux de conseil avisé pour visiter chaque abbaye de
moines et aussi de moniales du royaume ou de la province, selon des formes prescrites et en notre nom, afin de
corriger et réformer ce qui requiert correction et réforme ; s'ils jugent que le supérieur du lieu mérite d'être
déposé, ils le dénonceront à l'Ordinaire pour que celui-ci le dépose ; s'il ne le fait pas, les visiteurs soumettront le
cas au Siège apostolique. Cf. FOREVILLE, Raymonde. Latran I, II, III et Latran IV. Paris: Éditions de
L‟Orante, 1965, pp. 353-354.
227
Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, pp.
162-163.

79

Todo ano, cada ministro pode reunir-se com seus irmãos onde lhes aprouver, na
festa de São Miguel Arcanjo, para tratarem das coisas que se referem a Deus. Todos
os ministros, no entanto, que estão nas regiões ultramarinas e ultramontanas,
venham ao Capítulo de Pentecostes junto à igreja de Santa Maria da Porciúncula
uma vez em três anos, e os outros ministros, uma vez ao ano, a não ser que pelo
ministro e servo de toda a fraternidade tiver sido estabelecido diferentemente.228

Ao compararmos os textos, observamos que a Regra bulada defendia a necessidade da
Ordem manter sempre um líder, por isso definiu as regras de eleição dos Ministros e a
periodicidade dos encontros da Ordem. A afirmação da legitimidade dos líderes não estava
presente na normativa de 1221, provavelmente, porque Francisco, no momento de escrita da
Regra não bulada, não tinha percebido a necessidade de atribuir importância a um líder, visto
que o mesmo ainda estava preso a uma estrutura fraternal onde não existiam relações de
poder229. Parece ser esse também o motivo para os capítulos serem tratados na primeira Regra
como um lugar mais disposto a prática da oração, onde os religiosos abordavam os aspectos
da espiritualidade franciscana. Desta forma, se na Regra bulada os encontros periódicos
deliberavam sob a organização e hierarquia, na não bulada destacava apenas o trato das
questões espirituais, ou como afirma David Flood 230, o institucional estava a serviço do
fraterno.
No que tange a periodicidade dos Capítulos, o artigo VIII da normativa bulada
determinava que o Capítulo de Pentecostes deveria ocorrer de três em três anos, sendo esta
data modificada apenas quando um Ministro assim ordenasse. Porém, se os Frades
percebessem que determinado líder não estava correspondendo às funções de seu cargo, os
Ministros e Custódios, deveriam convocar um novo capítulo e realizar a eleição de um novo
Ministro geral. Após o capítulo de Pentecostes, os líderes provinciais poderiam reunir-se
anualmente onde desejassem.
No inciso XVIII do texto não aprovado, as reuniões locais deveriam acontecer
anualmente, onde os Ministros desejassem, no período do ano que correspondia à festa de São
Miguel Arcanjo. Após a realização dos encontros provinciais, o texto não bulado ordenava
que todos os Ministros das regiões ultramarinas e ultramontanas deveriam se reunir no
Capítulo de Pentecostes na Igreja de Porciúncula, no período de três em três anos. A este
capítulo era atribuído um caráter “universal”.

228

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
178.
229
FLOOD, David. Frei Francisco e o Movimento Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 131.
230
Ibidem. p. 117.

80

Observamos nos documentos que as periodicidades das reuniões foram mantidas, no
entanto, é possível perceber como havíamos destacado anteriormente, o caráter legislativo dos
capítulos a partir da normativa de 1223. Se na Regra não bulada as reuniões eram para tratar
da adequação da espiritualidade franciscana ao cotidiano dos Frades, na Regra bulada recebeu
um tom hierárquico e organizacional, visto que os encontros estavam direcionados a questão
da escolha dos Ministros, pois como explicitado no início do texto, a Ordem precisava de uma
autoridade, onde todos eram obrigados a respeitar, logo no escrito de 1223 é perceptível a
importância que os Ministros gerais ganharam no grupo minorítico.
Na Regra bulada, é possível perceber a existência de uma restrição à participação dos
Frades nas reuniões gerais da Ordem. Se antes todos os Ministros, independente da região em
que se encontravam podiam participar do Capítulo geral, com o documento aprovado pelo
papa, ocorreu uma limitação, bastante aberta a questionamentos, quanto a quem poderia estar
nos capítulos gerais. Ao empregar no texto a expressão “aos quais compete à eleição”; não
ficava claro a quem competia participar das reuniões para a eleição de um novo líder, sendo
necessário esclarecimento sobre este aspecto.
Outro aspecto organizacional que perpassava a questão da hierarquia estava no
capítulo X da Regra bulada: Admoestação e correção dos irmãos; este item abordava a
autoridade dos Ministros. Pode-se perceber uma maior disposição dos deveres e funções
desses líderes, cabendo a eles visitarem as sedes da Ordem e admoestar e corrigir os erros
cometidos pelos Frades. Este capítulo foi formado a partir da junção de três artigos do texto
não bulado, o item IV: Como deverão ser dispostos os ministros e os outros irmãos, o VI: O
recurso dos irmãos aos ministros e que nenhum irmão se chame de prior e o XXII:
Admoestação aos irmãos.
Como já dissemos, a obediência era um elemento essencial para Francisco, os
indivíduos que entravam na Ordem deveriam abrir mão de suas próprias vontades e colocar-se
em estado de submissão aos Ministros. A principal base dessa relação entre os Frades e seu
Ministro estava no pilar da humildade que sustentava a obediência. Se por um lado os Irmãos
eram obrigados a respeitar seus líderes, os Ministros, por sua vez, não poderiam se esquecer
que eram servos dos Irmãos menores e estavam na liderança para servir a todos. A Regra de
1223 ainda admoestou os Frades a manterem-se longe de pecados como soberba, vanglória,
inveja e avareza:
Os irmãos que são ministros e servos dos demais irmãos visitem e admoestem seus
irmãos e corrijam-nos com humildade e caridade, não lhes ordenando nada que seja
contra sua alma e a nossa Regra. Os irmãos, porém, que são súditos, recordem-se
deque, por amor de Deus, renunciaram às suas próprias vontade. Por isso, ordenolhe firmemente que obedeçam a seus ministros em todas as coisas que prometeram

81

ao Senhor observar e que não sejam contrárias à alma e à nossa Regra. E onde quer
que estejam os irmãos que souberem e reconhecerem que não podem observar
espiritualmente a Regra, devem e podem recorrer a seus ministros. Os ministros,
porém, recebam-nos caritativa e benignamente e tenham para com eles tanta
familiaridade que eles possam falar-lhes e agir como senhores com seus servos; pois
assim deve ser: que os ministros sejam servos de todos os irmãos. Admoesto, no
entanto, e exorto no Senhor Jesus Cristo a que os irmãos se acautelem de toda
soberba, vanglória, inveja, avareza (cf. Le 12,15), cuidado e solicitude deste mundo
(cf. Mt 13,22), detração e murmuração; e os que não sabem ler não se preocupem
em aprender: mas atendam a que, acima de tudo, devem desejar possuir o Espírito
do Senhor e seu santo modo de operar, rezar sempre a ele com o coração puro e ter
humildade e paciência na perseguição e na enfermidade.231

Quanto à ordem da Regra bulada, para que os Ministros visitassem e admoestassem
espiritualmente os Frades, esta já aparecia no item IV do documento não bulado:
Em nome do Senhor! Todos os irmãos que são constituídos ministros e servos dos
demais irmãos distribuam os seus irmãos nas províncias e nos lugares nos quais
estiverem, visitem-nos frequentemente e admoestem-nos e confortem-nos
espiritualmente. E todos os outros meus irmãos benditos obedeçam-lhes
diligentemente naquelas coisas que se referem à salvação da alma e que não são
contrárias à nossa vida. [...] E recordem-se os ministros e servos do que diz o
Senhor: Não vim para ser servido, mas para servi. 232

Do capítulo VI da Regra não bulada, foi extraída a ordem para que os Irmãos
recorressem aos Ministros em caso de não conseguirem observar a Regra franciscana. Este
artigo também ressaltou a humildade que os Frades deveriam ter, por meio da utilização do
pronome indefinido “todos”, o Poverello destacava a relação de igualdade entre os religiosos.
A palavra prior não deveria ser usada, todos deveriam ser chamados de Irmãos menores:
Os irmãos, em qualquer lugar em que estiverem, se não puderem observar a nossa
vida, recorram ao seu ministro o mais depressa possível, dando-lhe a conhecer esta
situação. O ministro no entanto, procure de tal modo atendê-lo como ele próprio
gostaria que lhe fosse feito, se estivesse em circunstância semelhante (cf. Mt 7,12).
E ninguém se denomine prior, mas todos, sem exceção, sejam chamados de irmãos
menores. 4E um lave os pés do outro (cf. Jo 13,14).233

Do capítulo XXII do documento não bulado, o texto de 1223 acolheu as observações
sobre os vícios e as práticas mundanas que os Frades poderiam possuir. Também encontramos
neste texto a defesa do amor para com o próximo e os inimigos – era por meio destes últimos
que os Frades alcançariam a salvação. Francisco fez um alerta para que os Irmãos tivessem
cuidado para não se afastar de Cristo, ao receber recompensas e ajudas:
Atendamos, irmãos todos, ao que diz o Senhor: Amai vossos inimigos e fazei o bem
aqueles que vos odeiam (cf. Mt5,44 par), porque Nosso Senhor Jesus Cristo, cujas
pegadas devemos seguir (cf. 1Pd 2,21), chamou de amigo a seu traidor (cf. Mt
26,50) e ofereceu-se espontaneamente aos que o crucificavam. Amigos nossos,
portanto, são todos aqueles que injustamente nos causam tribulações e angústias,
231

Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
163, grifo do autor.
232
Cf. Rnb. In: Ibidem. p. 168, grifo do autor.
233
Cf. Rnb. In: Ibidem. p. 170, grifo do autor.

82

vergonha e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte; a estes devemos amar
muito, porque, a partir disto que nos causam, temos a vida eterna. E odiemos o nosso
corpo com seus vícios e pecados; porque, vivendo carnalmente, o demônio quer tirar
de nós o amor de Jesus Cristo e a vida eterna e perder a si mesmo com todos no
inferno; porque nós, por nossa culpa, somos fétidos, míseros e contrários ao bem,
mas prontos e com vontade inclinada ao mal, como diz o Senhor no Evangelho: 234

Podemos afirmar que grande parte das ideias contidas nos capítulos IV, VI e XXII da
Regra não bulada foram inseridas no item X da Regra bulada. No entanto, encontramos
alterações em relação à utilização da palavra espiritualmente. No documento de 1221 o uso do
termo espiritualmente estava ligado à admoestação que os Ministros deveriam realizar para os
Irmãos, ou seja, vinculava-se ao modo de tratamento entre os líderes e os Frades. No
documento de 1223, a palavra espiritualmente possuía o objetivo de criar práticas
homogêneas e condenar as ações contrárias a vida dos franciscanos, no texto aprovado pelo
papa encontramos a expressão: “que não podem observar espiritualmente a Regra”, logo
estava diretamente ligada as práticas dos Frades, era uma fórmula utilizada para condenar as
atividades que estavam em oposição ao conteúdo da Regra. Este aspecto reforçava a ideia de
que a Regra bulada possuía como objetivo a padronização das práticas minoríticas que
levariam a uma disciplina na Ordem.
As deliberações referentes à pregação caminhavam para o mesmo sentido de
hierarquia apontado até agora. A normatização encontrava-se no artigo IX da Regra bulada:
Os pregadores; este item foi composto a partir da união de dois tópicos da Regra não bulado,
o capítulo XVII: Os pregadores e o XXI: Lauda e exortação que todos os irmãos podem
fazer; ambos trataram da licença necessária para a prática da predicação e o conteúdo que esta
deveria conter.
O capítulo IX do documento de 1223 apresentou algumas exigências para que se
pudesse ter licença para pregar:
Não preguem os irmãos na diocese de algum bispo, quando este lhes tiver proibido.
E absolutamente nenhum dos irmãos ouse pregar ao povo, se não tiver sido
examinado e aprovado pelo ministro geral desta fraternidade e se não lhe tiver sido
concedido pelo mesmo o oficio da pregação. Admoesto também e exorto os mesmos
irmãos a que, na pregação que fazem, seja sua linguagem examinada e casta (cf. SI
11,7; 17,31) para a utilidade e edificação do povo, anunciando-lhe, com brevidade
de palavra, os vícios e as virtudes, o castigo e a glória; porque o Senhor, sobre a
terra, usou de palavra breve (cf. Rm 9,28).235

A produção final deste artigo derivava do capítulo XVII da Regra não bulada, que
exigia do pregador os seguintes critérios:

234

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
180, grifo do autor.
235
Cf. Rb. In: Ibidem. p.163, grifo do autor.

83

Nenhum irmão pregue contra a forma e as diretrizes da santa Igreja e se não lhe tiver
sido concedido pelo seu ministro. E cuide o ministro para não concedê-lo a
ninguém, sem discernimento. Contudo, todos os irmãos preguem com as obras. E
nenhum ministro ou pregador se aproprie do ministério dos irmãos ou do ofício da
pregação, mas, em qualquer hora em que lhe for ordenado, sem qualquer objeção,
deixe seu oficio.236

Já em relação ao conteúdo que deveria ser direcionado ao povo, este advinha do item
XXI da Regra não bulada:
Todos os meus irmãos, quando lhes aprouver, podem com a bênção de Deus
anunciar entre quaisquer homens esta exortação lauda: Temei e honrai, louvai e
bendizei, rendei graças ( 1Ts 5,18) e adorai o Senhor Deus onipotente na Trindade e
na Unidade, Pai e Filho e Espírito Santo (cf. Mt 28,19),Criador de todas as coisas.
Fazei penitência (cf. Mt 3,2), produzi dignos frutos de penitência (Lc 3,8),porque
em breve morreremos. Dai, e servos-á dado (Lc 6,38). Perdoai, e ser-vos-á
perdoado (cf. Lc 6,37). E se não perdoardes aos homens as seus pecados (Mt 6,14),
o Senhor não vos perdoará vossos pecados (Mc 11.25) confessai todos os vossos
pecados (cf. Tg 5.16). Bem-aventurados os que morrerem (cf. Ap 14.13) na
penitência, porque estarão no reino dos céus. Ai daqueles que não morrerem na
penitência, porque serão filhos do demônio (1Jo 3,10). cujas obras realizam (cf. Jo
8,41), e irão para o fogo eterno (Mt 18,8: 25,41). Precavei-vos e abstende-vos de
todo mal e perseverai até ao fim”. 237

Ao compararmos o capítulo IX da Regra bulada com o XVII do documento não
bulada, podemos perceber que para se dedicar a pregação, o texto de 1223 exigia que os
Frades tivessem a autorização do bispo e do Ministro geral, enquanto que no escrito de 1221
os Irmãos dependiam apenas da liberação de seu Ministro. De um documento ao outro é clara
a subordinação da Ordem às estruturas seculares da Igreja, representado aqui pela figura do
bispo. Para Desbonnets238, o texto bulado assegurava a preservação dos direitos dos bispos no
tocante a pregação.
Há uma mudança significativa na forma da predicação que seria admitida. Na Regra
não bulada a pregação poderia se dar de duas formas: a primeira era através da oralidade e a
segunda por obras. Para esta última não existia aprovação, devendo ser praticada por todos. A
Regra bulada retirou às referências a predicação por meio dos exemplos, admitindo apenas a
pregação oral.
Quanto ao conteúdo da pregação, o item XXI da Regra não bulada tratava da forma
como os religiosos deveriam direcionar as palavras aos indivíduos, propondo que a predicação
deveria ter um caráter instrutivo. Este texto fazia alusão à exortação e os louvores que todos
os Irmãos poderiam realizar, evidenciando que o ato de advertir era uma atividade que
envolvia tanto os clérigos como os leigos e a fórmula que os Frades utilizavam estava baseada
236

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
177.
237
Cf. RnB. In: Ibidem. pp. 179-180, grifo do autor.
238
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 103.

84

em aspectos penitenciais e castigos para os pecadores, logo este capítulo tinha sua base nos
exemplum.
O texto de 1223, por sua vez, trazia um esforço em atribuir um caráter mais objetivo e
conciso para o exercício da pregação: “exorto os meus irmãos a que na pregação que fazem,
seja sua linguagem examinada e casta”. O tema deveria se restringir a edificação do povo, por
meio de mensagens breves sobre os vícios e virtudes, castigos e glórias.
A postura do documento aprovado pelo papa, em relação à pregação deve ser
entendida como reflexo da clericalização da Ordem. Os clérigos eram religiosos que sabiam
pregar, eles não possuíam uma linguagem simples (“boas novas”), os sacerdotes eram
“profissionais” que estudavam a bíblia e teologia para desempenhar tal atividade. Com a
necessidade de melhor desempenhar a atividade de pregação, os Frades nos anos vinte do
século XIII mantiveram relacionamentos com as universidades para um aperfeiçoamento da
predicação239.
Para Grado Merlo240, a restrição da participação de todos os Irmãos nas atividades de
predicação estava ligada justamente a mudança no caráter simples das pregações feitas pelos
franciscanos no início da fraternidade. Agora a Ordem estava alinhada às universidades e seus
teólogos, visto que muitos destes homens eram franciscanos. Deve-se destacar ainda que a
ameaça dos grupos heréticos que ganhavam adeptos por meio da pregação fez com que a
Igreja se preocupasse cada vez mais com a formação daqueles que fariam uso da palavra para
falar ao povo. A questão da preparação intelectual do pregador também apareceu no
Testamento do Assisense, que ressaltou o respeito aos teólogos por terem uma relação
próxima com a Bíblia.
Mais um aspecto que perpassava sobre a questão da obediência e hierarquia
encontrava-se na relação dos Frades com as monjas e na administração destes mosteiros, o
que foi abordada no capítulo XI da Regra bulada: Que os irmãos não entrem em mosteiros de
monjas. Fica evidente nesse texto a proibição da relação dos Frades com mulheres:
Ordeno firmemente a todos os irmãos que não mantenham relacionamentos
suspeitos ou conselhos com mulheres, e que não entrem em mosteiros de monjas,
exceção feita para aqueles aos quais foi concedida licença especial pela Sé
Apostólica; e não se tornem compadres de homens ou de mulheres, para que desta
circunstância não resulte escândalo entre os irmãos ou a respeito dos irmãos. 241

239

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 81.
240
Ibidem. p. 83.
241
Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
164.

85

O artigo que serviu de base para a escrita do texto bulado foi o item XII da Regra não
bulada: O mau olhar e a frequentação de mulheres. Este texto ressaltava o cuidado que os
Irmãos deveriam ter ao frequentar um mosteiro feminino ou mesmo ao olhar para as
religiosas. No caso de ter que aplicar uma penitência, o contato com as monjas deveria ser
público, evitando sempre encontrá-las sozinho. Também era proibida a recepção delas dentro
da Ordem por Irmãos:
Todos os irmãos, onde quer que estejam ou aonde quer que vão, cuidem-se do mau
olhar e da frequentação de mulheres. E nenhum se aconselhe com elas ou vá sozinho
com elas pelo caminho ou coma com elas à mesa no mesmo prato. Os sacerdotes ao
dar-lhes a penitência ou outro conselho espiritual, falem com elas honestamente. E
absolutamente nenhuma mulher seja recebida à obediência por um irmão, mas, dado
a ela o conselho espiritual, faça ela a penitência onde quiser. 242

Segundo Crocoli243, o texto aprovado pelo papa era claramente legislativo e ainda
mais severo no que tange a relação dos Frades com as mulheres. Neste documento, o emprego
de dois termos de autoridade simultâneos “ordeno firmemente” no tópico que envolvia a
relação entre homens e mulheres, demonstrava que esta norma deveria ser respeitada em sua
plenitude. Para Crocoli, este artigo abordava três aspectos que norteavam a relação entre os
Frades e a religiosidade feminina. O primeiro diz respeito à proibição de relacionamentos
suspeitos ou conselhos com mulheres (norma já presente no primeiro documento), o segundo
de que os Irmãos não deveriam entrar em mosteiros femininos, a não ser com a licença
especial da Sé Apostólica (este aspecto de autorização consistia em um acréscimo que não
aparecia no documento de 1221), o terceiro tratava dos relacionamentos com homens ou
mulheres que pudessem resultar em escândalos aos Frades. Logo, de um documento ao outro,
ocorreu um posicionamento mais rígido nas normas de acesso aos mosteiros femininos e
convivência com as mulheres e a necessidade do consentimento da Igreja para o contato com
religiosas. Esta rigidez era uma precaução para evitar escândalos envolvendo os Frades.
Deve-se destacar que a proibição do contato dos Irmãos menores com religiosas,
também foi um dos pontos em que o papado precisou intervir no decorrer do século XIII, pois
os Frades levantaram questões como: o impedimento do contato com religiosas se estendia a
todo o universo monástico feminino ou a grupos específicos de monjas como as Irmãs Pobres
Reclusas?
Por fim, podemos falar ainda da peregrinação ao Oriente como elemento que se inseria
no tema da pregação e hierarquia. No capítulo XII da Regra bulada intitulado: Os que vão
242

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
164, p. 168.
243
CROCOLI, Aldir; SUSIN, Luiz Carlos. A Regra de São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 2013, p.
200.

86

para o meio dos sarracenos e outros infiéis; tratava-se das missões evangélicas. O texto de
1223 baseou-se no item XVI do documento não bulado, que possuía o mesmo título. Ambos
se propuseram a debater uma característica que sempre esteve presente desde a origem do
grupo minorítico, as expedições missionárias.
Ao comparar os documentos aprovado e o não aprovado, encontramos algumas
informações que foram mantidas de um escrito ao outro. No texto de 1223 afirmava-se:
Se alguns dos irmãos por divina inspiração quiserem ir para o meio dos sarracenos e
outros infiéis, peçam licença a seus ministros provinciais. Os ministros, porém, não
concedam a ninguém a licença de ir, a não ser àqueles que julgarem idôneos para
serem enviados. Imponho por obediência aos ministros que peçam ao senhor papa
um dos cardeais da santa Igreja Romana que seja governador, protetor e corretor
desta fraternidade para que, sempre súditos e submissos aos pés da mesma santa
Igreja e estáveis na fé (cf. Cl 1,23) católica, observemos a pobreza e a humildade e o
santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos. 244

A Regra bulada destacada acima, basicamente, determinava que para pregar entre os
sarracenos os Frades precisariam da licença dos Ministros, que deveriam investigar a
idoneidade dos candidatos. O texto não bulado somava a isto, a afirmação da questão do
testemunho cristão, a pregação feita pelo próprio comportamento cristão dos Frades (tipo de
pregação que foi retirado do texto bulado). Dentre as formas de comportamento cristão estava
incluído o martírio. Francisco trazia essa ideia ao afirmar que os Irmãos, ao entregarem seus
corpos a Cristo, deveriam por amor a Deus expor-se aos inimigos:
Diz o Senhor: Eis que eu vos envio como cordeiros no meio de lobos. Sede,
portanto, prudentes como as serpentes e simples como as pombas (Mt10,16), Por
isso, se algum irmão quiser ir para o meio dos sarracenos e outros infiéis, vá com a
licença de seu ministro e servo. E o ministro dê-lhes a licença e não lhes oponha
objeção, se vir que são idôneos para serem enviados; pois deverá prestar contas (cf.
Lc 16,2) ao Senhor, se nisto ou em outras coisas proceder de modo indiscreto. Os
irmãos que vão, no entanto, podem de dois modos conviver espiritualmente entre
eles. Um modo é que não litiguem nem porfiem, mas sejam submissos a toda
criatura humana por causa de Deus (1Pd 2,13) e confessem que são cristãos. Outro
modo é que, quando virem que agrada a Deus, anunciem a palavra de Deus, para que
creiam em Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo (cf. Mt 28,19),Criador de
todas as coisas, no Filho redentor e salvador, e para que sejam batizados e se tornem
cristãos, porque quem não renascer da água e do Espírito Santo não pode entrar no
reino de Deus (cf. Jo 3,5). [...] E todos os irmãos, onde quer que estiverem, se
recordem de que se doaram e entregaram seus corpos ao Senhor Jesus Cristo. E por
amor dele devem expor-se aos inimigos, tanto aos visíveis quanto aos invisíveis,
porque diz o Senhor: Quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á (cf. Lc
9,24) para a vida eterna (Mt 25,46). 245

Apesar das permanências em relação ao núcleo central da primeira Regra, existem três
diferenças de um documento ao outro que devem ser citadas: a primeira é a

244

Cf. Rb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
164, grifo do autor.
245
Cf. Rnb. In: Ibidem. p. 176, grifo do autor.

87

institucionalização da imagem do cardeal protetor246 no intuito de manter a Ordem sempre
submissa a Sé Romana, este assunto apareceu apenas na Regra bulada; a segunda diz respeito
à forma como os Irmãos deveriam comportar-se, se no documento não bulado existia o
testemunho por meio do exemplo e da palavra, o texto bulado não realizou nenhuma
referência ao modo de agir dos cristãos entre os sarracenos com o intuito de convertê-los; por
fim, na Regra de 1223 foi retirada a passagem referente ao martírio.
Após a análise das Regras, dentro do binômio continuidades e rupturas, podemos
perceber que a normativa bulada foi fruto de um esforço para enquadrar em seus doze tópicos,
o texto de 1221 que dispunha de vinte e quatro capítulos. Logo, encontramos no texto
aprovado um aspecto mais conciso e mais alinhado às diretrizes da Igreja. Entretanto, é
preciso salientar que o empenho para diminuir o conteúdo da normativa deixou algumas
questões levantadas no documento não bulado fora da Regra confirmada por Honório III, e é
delas que trataremos a seguir.

3.4 Fragmentos da Regra 1221 que não foram integrados ao texto definitivo.

Até aqui nossa análise tratou de mostrar que grande parte do conteúdo presente no
documento de 1221 se manteve na normativa de 1223, mesmo sofrendo mudanças e ajustes a
partir das diretrizes legislativas da Igreja. No entanto, alguns capítulos do escrito não bulado
acabaram ficando de fora do texto aprovado por Honório III. Este foi o caso do item XI: Que
os irmãos não blasfemem nem se difamem, mas se amem uns aos outros:
E cuidem todos os irmãos para não se caluniarem nem porfiarem com palavras (cf.
2Tm 2,14); muito pelo contrário, esforcem-se por manter o silêncio, sempre que
Deus lhes conceder a graça. Nem briguem entre si nem com outros, mas procurem
responder humildemente, dizendo: sou servo inútil (cf. Lc 17,10). E não se irem,
porque todo aquele que se irar contra seu irmão será réu de juízo; quem chamar a
seu irmão de imbecil será réu do conselho; quem o chamar de louco será réu do
fogo da geenda (Mt 5,22). E amem-se uns aos outros, como diz o Senhor: Este é o
meu mandamento, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei (Jo 15,12). E
mostrem por obras (cf. Tg 2,18) o amor que têm uns aos outros, como diz o
apóstolo: Não amemos por palavra nem com a língua, mas por obra e em verdade
(1Jo 3,18). E não blasfemem contra ninguém (cf. Tt 3,2); não murmurem, não
difamem os outros, porque foi escrito: Os murmuradores e difamadores são odiáveis
aos olhos de Deus (cf. Rm 1·29.30). E, sejam modestos, mostrando toda mansidão
para com todos os homens (cf. Tt 3.2); não julguem, não condenem. E, como diz o
Senhor, não considerem os mínimos pecados dos outros (cf. Mt 7,3; Lc 6,41),
meditem muito mais sobre os próprios na amargura de sua alma (Is 38,15). E
esforcem-se por entrar pela porta estreita (Lc 13,24), porque diz o Senhor: Estreita

246

Devemos entender a imagem do protetor dos menores como um agente que ligava a Ordem diretamente a
Igreja.

88

é a porta e apertado o caminho que conduz à vida; e poucos são os que o encontram
(Mt 7,14).247

O trecho acima destacado tinha como base central algumas exortações em relação ao
modo como Irmãos deveriam conviver, respeitando uns aos outros. Neste item ficava dito que
os Frades não deveriam caluniar, nem blasfemar seus pares, mas amar-se por meio de
palavras e em obras. Verificamos que este item estava atrelado ao caráter fraternal dos
primeiros anos da Ordem, aspecto esse que a Igreja tentava superar. Provavelmente este artigo
ficou fora do texto justamente devido a isto. De qualquer forma os temas apresentados neste
artigo como o amor e o cuidado para com os outros, não deixaram de ser tratados de forma
mais difusa nos capítulos do texto bulado, como o artigo IV que fazia referência ao amor
maternal no qual deveriam viver todos os Irmãos, por exemplo.
Sob esta mesma ótica encontrava-se o capítulo XIII do texto da Regra não bulada:
Evitar a fornicação, neste artigo tratou-se da condenação dos que praticavam tal pecado,
tendo como castigo a expulsão da Ordem e a penitência apropriada para o delito cometido.
Se, por instigação do demônio, algum dos irmãos fornicar, seja despojado do hábito
que perdeu por sua torpe iniqüidade- e ele o deponha totalmente- e seja
definitivamente expulso da nossa Religião. E, depois, faça penitência dos pecados
(cf. 1Cor 5,4-5).248

A questão da fornicação presente no escrito não bulado, não apareceu no documento
de 1223, porém é possível associá-lo aos desvios e a aplicação de penitências para os Frades
que se afastassem da proposta de castidade. O artigo XIII não foi usado diretamente na
composição da Regra bulada, devido ao fato dos desvios carnais e dos castigos aplicados a
eles já aparecem no capítulo VII da Regra bulada (aquele que trata dos pecados considerados
mortais) e no item X que abordou as admoestação e correção dos Irmãos que não
conseguissem observar espiritualmente a Regra. Dessa forma, a ausência desse texto não foi
total, visto que já existiam capítulos que faziam referência ao seu conteúdo.
O capítulo XIX da Regra não bulada: Que os irmãos vivam catolicamente, fazia
referência à necessidade de uma vida em concordância com a Igreja católica:
Todos os irmãos sejam católicos, vivam e falem catolicamente. Se, porém, algum se
extraviar da fé e da vida católica no dizer e no fazer e não se emendar, seja
definitivamente expulso da nossa fraternidade. E consideremos todos os clérigos e
todos os religiosos como senhores naquelas coisas que dizem respeito à salvação da
alma e que não desviarem da nossa Religião; e veneremos no Senhor a ordem, o
oficio e o ministério deles. 249

247

Cf. Rnb. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
174, grifo do autor.
248
Cf. Rnb. In: Ibidem. p. 175.
249
Cf. Rnb. In:Ibidem. p. 179.

89

O assunto abortado neste artigo foi tratado no capítulo II da Regra bulada, no qual
ficava dito que os Ministros deveriam analisar os aspirantes sobre sua relação com a fé
católica. Outro fator que devemos destacar como motivador para a retida deste texto da
normativa aprovada, é que sua composição baseava-se em uma fórmula genérica: “E
consideremos todos os clérigos e todos os religiosos como senhores naquelas coisas que
dizem respeito à salvação da alma e que não desviarem da nossa Religião; e veneremos no
Senhor a ordem, o ofício e o ministério deles.” O entendimento do substantivo “coisas”, abria
margem para uma prática de interpretação individual que poderia colocar em questão as
atitudes e atividades dos sacerdotes e demais religiosos. Segundo Cibele Carvalho 250, este
item foi retirado justamente por possuir discordâncias entre o que o texto propunha e as ações
dos Frades, visto que o escrito indicava a necessidade de respeitar os clérigos no que tange à
salvação da alma, porém abria margem para que os Irmãos questionassem os exercícios
desempenhados pelos sacerdotes que se desviassem dos propósitos da Ordem.
Já o capítulo XXIII da Regra não bulada: Oração e ação de graças, não foi
incorporado ao escrito final de 1223, por tratar-se de uma longa oração, composta por
diversas citações evangélicas que reforçam todos os aspectos da vida minorítica como a
penitência, o amor fraternal, a fidelidade a Igreja e a representação da humanidade de Cristo.
Para Raoul Manselli251, ele simbolizava o fechamento do modelo de vida presente na Regra
não bulada, e, portanto, parecia estar reforçando o conteúdo ligado ao primeiro artigo da
Regra que reforçava os pilares da vida dos Irmãos menores. A ausência desse artigo na
normativa aprovada pelo papa deu-se, provavelmente, por ser uma oração que não possuía
peso de lei e também por se tratar de aspectos já normatizados no texto definitivo.
Devemos destacar ainda que a Regra não bulada trazia uma conclusão com o artigo
XXIV, na qual Francisco ordenava que os Irmãos aprendessem o conteúdo da Regra e não
acrescentassem nem diminuir nada às suas palavras. Este item não foi citado na Regra bulada
porque, uma vez que a normativa foi aprovada pelo papa, não estava mais sujeita a mudanças,
visto que ela assumiu um papel legislativo. Isso foi demonstrado no capítulo XII da Regra
bulada, onde o pontífice alertou que, aqueles que se atrevessem a qualquer mudança nesse
texto, estariam correndo o risco de sofrer com a indignação de Deus e de seus apóstolos. Esta
afirmação fechava as portas para qualquer alteração do texto, mas como já dissemos, abria

250

CARVALHO, Cibele. Francisco De Assis Entre Duas Regras (1221-1223). 2005. 99 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005, p. 82.
251
MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, p. 243.

90

uma janela enorme para o universo das interpretações que caracterizaram o uso desse texto
nos anos que se seguiram a morte de Francisco.
Podemos concluir de uma forma geral, que as ideias apresentadas na Regra não
bulada, estavam inseridas no documento aprovado por Honório III, porém não se tratava de
um documento rigoroso em relação ao primeiro texto, mas de uma Regra que modificava
muitos aspectos do cotidiano dos Frades levando em conta questões institucionais da Igreja,
mas também os novos desafios propostos aos franciscanos frente ao aumento do número de
adeptos. A Regra bulada deve ser entendida como fruto do trabalho de Francisco e da Sé
Romana, que visava uma unidade institucional das práticas franciscanas. Ela também buscava
ser um instrumento capaz de minimizar o rigor do propósito de vida inicial de Francisco, que
estava contido na Regra de 1221, e por isso diferenciou-se do primeiro texto no que se refere
à característica que este tinha de conselhos e comandos252, para tornar-se instruções jurídicas
mais ágeis, breves, sintéticas e funcionais253. Apesar disso este texto manteve alguns aspectos
da fraternitas tão enfatizada na primeira Regra.
Não há dúvidas de que este processo tornou a Ordem franciscana, muito similar aos
demais grupos religiosos que já existiam no interior da Sede Apostólica. O grupo minorítico
perdeu a rigidez dos anos iniciais de sua experiência pauperística, mas ganhou em questão de
organização, com uma melhor definição das práticas, hierarquia e uma estabilidade na
estrutura eclesiástica.
Deve-se destacar que Francisco conhecia perfeitamente as mudanças que ocorreram de
uma Regra a outra e não podemos afirmar que ele era contrário254 a essas transformações, pois
ele sabia que o crescimento da Ordem desencadearia novas demandas e seria necessário
adequar o grupo a política institucional de Roma. Quando afirmamos isso, estamos nos
baseando nas palavras de seu próprio Testamento, no qual em alguns casos, ele utilizou o
pronome na primeira pessoa do singular “eu”, demonstrando que continuava a defender que a
Ordem, embora modificada em muitos aspectos, era fruto de sua relação íntima com Cristo.
Outra questão que nos leva a acreditar que apesar de resistir às mudanças, Francisco
não poderia se colocar contrário a institucionalização da Ordem está baseado na sua negação
de toda forma de poder entre os Frades. Desde o início da fraternitas, o Poverello sempre
defendeu que seus Irmãos não fossem denominados de prior, mas sim de menores, e as
relações deveriam ser de submissão entre os indivíduos. Assim, se o Assisense não aceitasse
252

MANSELLI, Raoul. São Francisco. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes FFB, 1997, p. 239.
Ibidem. p. 247.
254
VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 135.
253

91

as mudanças de um documento ao outro, ele estaria se colocando como superior entre a
comunidade franciscana e evidenciando que não existia igualdade entre seus pares, mas sim
uma relação de poder, visto que ele estaria se impondo sob todos, e não levando em
consideração o interesse de outros religiosos e da própria Igreja.
Por fim, se Francisco não aceitasse as mudanças na Regra ele estaria se colocando
contra a Igreja, em um estado de desobediência em relação à Sé Romana. A partir dos pontos
de vista destacados, podemos aferir que o Assisense não faria oposição às mudanças em curso
no interior do grupo minorítico, pois se assim ocorresse estaria sendo contrário as práticas de
humildade, submissão e obediência, que tanto defendia.
Mas isso não significa, entretanto, que o Poverello assimilou tais transformações de
bom grado. Como vimos anteriormente, as hagiografias franciscanas destacaram que nos
últimos anos de vida, ele passou por tribulações e manteve-se distante do grupo minorítico, o
que parece ter ocorrido justamente porque ele não possuía a mesma influência de outrora
entre os Frades e sentia que perdia o controle do grupo255.
Todo este panorama nos ressalta que apesar dos ideais do Poverello terem se mantido
de um documento ao outro, a fraternitas como Francisco idealizou no início de sua
experiência religiosa deixou de existir, pois as mudanças feitas na Regra iam, em muitos
aspectos, na contramão da experiência religiosa fraternal. Assim, a partir da aprovação e
validação da Regra bulada, teremos uma Ordem franciscana institucionalizada, que possuía o
mesmo teor de vida pensado por seu fundador, mas diferia quanto à práxis dos primeiros
tempos.

3.5 A Regra definitiva e a canonização de Francisco.
A escrita da Regra de 1223 foi justificada pela necessidade de normas mais objetivas e
aplicáveis ao cotidiano dos franciscanos, porém, por trás da redução de vinte e quatro para
doze capítulos, estava também a tentava de vincular a imagem do Assisense a Cristo, ou seja,
construir a ideia de que ele era um Alter Christus.
Esta Regra quando colocada lado a lado com as hagiografias, demonstrava um esforço
de atribuir a Francisco, uma divindade que o aproximava do Filho de Deus, modelo de
santidade que corroborava em muitos aspectos com o imaginário religioso do século XIII.
255

VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, pp. 166168.

92

Neste sentido, é preciso parar um instante para fazer uma reflexão sobre a construção da
figura do santo nos textos hagiográficos. Devemos primeiramente, lembrar ao leitor que as
escolhas narrativas que compõem este gênero literário, como destacou Giovanni Miccoli256,
não eram um projeto livre, mas sim, uma construção presa aos arquétipos religiosos e
espirituais de determinadas épocas. No caso do Poverello, segundo André Vauchez, sua figura
estava vinculada a imagem de Cristo (sequela Chisti).
A tentativa de reproduzir a vida do Filho de Deus no século XIII, fez com que o
Assisense fosse apresentado como um “segundo Cristo”. André Vauchez 257, em seu livro
sobre a espiritualidade no medievo, destacou que a santidade e conformidade de Francisco
com o divino, foram comprovadas por meio de sua “estigmatização”, no entanto, ressaltou
que estes fatos miraculosos apresentavam relatos confusos e contraditórios. A construção
narrativa referente às chagas que foram impressas em seu corpo a partir de 1224 significavam
uma recompensa por este ter vivido em concordância com Cristo, ou seja, por trás do discurso
dos estigmas (que entendemos como invenção 258), a Igreja fortalecia um modelo, que
escolheu apresentar aos fiéis como ideal de vida cristã. O Poverello passou a ser apresentado
como um exemplo de bom cristão, sempre em consenso com a vontade divina e da própria
Igreja. Ao mesmo tempo em que era apresentado como modelo de conduta a ser seguido 259,
São Francisco também figurava como um santo “distante”260, uma vez que suas virtudes eram
inatingíveis.
Esse discurso possuía um peso imenso para a Igreja, aproximar a imagem de Francisco
a de Cristo era importante para legitimar a Ordem franciscana frente às demais modalidades
religiosas que desafiavam o poder da Sé Romana. Isto tudo deixa claro que, a santidade era
uma construção institucional, na qual a imagem do santo vai sendo trabalhada em função da
sua adequação aos padrões de santidade da Igreja 261.
Entretanto, a elevação de um homem a santidade, também deve ser pensada como um
processo que estava em consonância com as demandas sociais de determinada época. No caso

256

MICCOLI, Giovanni. Francisco: O santo de Assis na origem dos movimentos franciscanos. São Paulo:
Martins Fontes, 2015, p. 186.
257
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 1995, p. 132.
258
FRUGONI, Chiara. Vida de um homem: Francisco de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp,
126-152.
259
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 47.
260
FORTES, Carolina Coelho. Santidade e gênero: Vauchez e o modelo masculino. In: SILVA, Andréia Cristina
Lopes Frazão da (Org.). Hagiografia e História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na
Idade Média Central. Rio de Janeiro: Hp Comunicação Editora, 2008, pp. 81-86.
261
VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 196.

93

de São Francisco, sem dúvida, ele foi um catalisador das insatisfações leigas em relação ao
clero, assim como de todas as mudanças trazidas pelo universo nascente das cidades. André
Vauchez salientou: “[...] a morte do santo ia permitir-lhe transformar uma personalidade
complexa, que podia ser reivindicada em sentidos diferentes e para os mais variados fins,
numa figura exemplar em consonância com a tradição cristã 262”. A Igreja ao institucionalizar
a imagem de São Francisco como santo, realizou a ligação de sua experiência religiosa
pauperística com a ortodoxia católica. O tom político da beatificação, para Grado Merlo 263,
ficou muito claro, pois ao ser erguido ao posto de santo, o Assisense respondia às
necessidades de autodefesa e de exaltação da Igreja, que passava por um momento difícil de
sua história com a continuidade da luta entre o papado e o monarca germânico Frederico II.
Para Vauchez264, a canonização de São Francisco era uma resposta de Gregório IX às
intrigas do Imperador do Sacro império germânico, uma vez que os gibelinos (apoiadores do
imperador) encontravam-se no mundo das comunas italianas. Esta afirmação embora
excessiva, tinha um elemento inquestionável, é certo que a cerimônia de canonização do
Poverello e suas repercussões forneceram ao papado certo prestígio e aumentaram a sua
influência na Úmbria.
Os hagiógrafos do Assisense buscaram torná-lo um Alter Christus, por meio da
associação das suas ações com às do próprio Cristo. Para tanto, preocuparam-se em aproximar
as cenas da vida do Poverello a do Filho de Deus. Existia um esforço para manter as práticas
de São Francisco no campo simbólico265 do qual Cristo fazia parte. Assim como Jesus, por
exemplo, São Francisco possuía doze apóstolos (doze também eram os capítulos da Regra
bulada) e recebeu os “estigmas”. No âmbito hagiográfico, Tomás de Celano na segunda vida
que escreveu de São Francisco, ao tratar da sua morte, incluiu uma cena com paralelos muito
nítidos com a santa ceia:
E assim, estando os irmãos a lamentar amargamednte e a chorar inconsolavelmente,
o santo pai mandou que lhe fosse trazido um pão (cf. Mt 14, 17.18). Ele o abençoou
e o partiu (Cf. Mt 26,26; Lc 24,30) e deu um pedacinho a cada um para comer.
Ordenando também que fosse trazido o códice dos evangelhos, pediu que lhe fosse
lido o Evangelho de João, apartir daquela passagem que recomeça: Antes da festa da
Páscoa (Jo 13,1) etc. Recordava-se daquela sacratíssima Última Ceia que o Senhor
realizou celebrou com seus discípulos. 266

262

VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 189.
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 48.
264
VAUCHEZ, André. Op. cit., p. 191.
265
CONTI, Martino. Estudos e pesquisas sobre o franciscanismo das origens. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
190.
266
Cf. 2 Cel. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004,
p. 436, grifo do autor.
263

94

Boaventura, por sua vez, enfatizou a cena da paixão de Cristo. São Francisco, nos
últimos dias de vida, desejando saber o que iria acontecer com ele, teria decidido consultar a
bíblia e, ao abrir por três vezes este livro, foi direcionado sempre a passagem da paixão de
Cristo: “[...] Na verdade, como nas três aberturas do livro sempre ocorria a paixão do Senhor,
o homem cheio de Deus Compreendeu que, como havia imitado a Cristo nos atos da vida
assim deveria ser conforme a ele nas aflições e dores da paixão, antes de passar deste mundo
(cf. Jo 13,1)267”.
Tanto Celano quanto Boaventura reafirmaram a ligação de São Francisco com Cristo,
as escolhas das citações bíblicas para descrever as cenas acima citadas, reforçam tal
construção de santidade. O próprio Poverello em seu Testamento se esforçou para mostrar a
existência de uma relação de intimidade com o Divino, que segundo ele, o havia dito
diretamente como proceder.
Mas a vinculação entre o Assisense e Cristo não deu-se apenas nas hagiografias,
também encontramos esse mesmo reforço na bula Mira circa nos268 , documento datado de
1228. A bula iniciou seu primeiro item destacando que Deus, por caridade, havia entregado
seu filho para morte, com o objetivo de redimir os escravos dos pecados, e para que a vinha
plantada outrora não fosse destruída, continuou enviando novos trabalhadores para cuidar de
sua obra na terra:
Eis o Senhor que, enquanto destruía a terra com a água do dilúvio, guiou o justo
em uma desprezível arca de madeira (Sb 10,4), não permitindo que a vara
dos pecadores prevalecesse sobre a sorte dos justos (Sl 124,3), na hora
undécima suscitou seu servo o bem-aventurado Francisco, homem
verdadeiramente segundo o seu coração (Cfr. 1Sm 13,14), lâmpada desprezada no
pensamento dos ricos mas preparada para o tempo estabelecido, mandando-o para a
sua vinha para que arrancasse os seus espinhos e espinheiros, depois de ter
aniquilado os filisteus que a estavam assaltando, iluminando a pátria, e para que a
reconciliasse com Deus admoestando com assídua exortação Cfr. Jz 15.15).269

A imagem de São Francisco estava associada à continuidade do trabalho de Cristo
junto aos pecadores, foi para isso que ele, repetindo o gesto dos apóstolos e do próprio Jesus,
afastou-se de sua parentela, para falar aos simples. Para seguir esse caminho foi preciso deixar
os bens terrenos e viver para Cristo:
Quando a tinha, assim, crucificado com os vícios e as concupiscências (Gl
5,24), podia dizer com o Apóstolo: Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que
vive em mim (Rm 4,25). E, de fato, não vivia já não vivia para si mesmo mas para

267

Cf. LM 3-2. In: , Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 636,
grifo do autor.
268
Bula Mira circa nos Disponível em: <http://www.capuchinhos.org.br/procasp/franciscanismo>. Acesso em:
31 jun. 2018.
269
Ibidem. grifo do autor.

95

Cristo, que morreu por nossos pecados e ressuscitou para a nossa
justificação, para que já não servíssemos o pecado de maneira alguma.270

O ato de colocar-se sob a vontade de Cristo reapareceu no item cinco da bula Mira
circa nos onde afirmava-se: “[...]É certo que ele não buscou seus próprios interesses mas
antes o de Cristo (Fl 3,21), e o serviu como abelha industriosa; e, como estrela da manhã que
reprovação.”271 Podemos perceber que o discurso adotado por Gregório IX, responsável pela
canonização do Poverello, baseava-se na ideia de que, assim como Deus enviou Cristo para
redimir os homens de suas falhas, no século XIII enviou São Francisco para que fosse dada
continuidade ao trabalho de salvação das almas. Ele era enfim, o novo enviado de Deus ao
mundo.
Podemos aferir dessa forma, que o elemento político da canonização de São Francisco
respondia duas questões importantes ao papado naquele momento: a primeira, como já
destacamos, era fortalecer o prestígio do papado em áreas de influência de Frederico II; o
segundo, mais importante em nosso trabalho era o de manter o controle sobre a Ordem e
integrá-la definitivamente à estrutura eclesiástica.
Logo, por meio de fórmulas discursivas baseadas em analogias a vida de Cristo, a
Igreja reafirmou o sucesso e utilidade do Poverello e sua Ordem por meio da escrita do nome
do idealizador dos Frades menores no catálogo dos santos. Entretanto, é preciso lembrar que o
processo de canonização e a escrita da segunda Regra visavam algo para além dos interesses
da cúria romana, visto que, a unidade da Ordem também estava em questão, e para isso essas
medidas não se mostraram tão eficientes, pois após a morte de São Francisco, estes escritos
foram alvo de frequentes questionamentos e, como já dissemos, direcionados ao campo
interpretativo.

270

Bula Mira circa nos Disponível em: <http://www.capuchinhos.org.br/procasp/franciscanismo>. Acesso em:
31 jun. 2018. grifo do autor.
271
Ibidem. grifo do autor.

96

4 DEBATES JURÍDICOS APÓS A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM.
4.1. Papa Gregório IX e a norma de 1223.

O momento posterior a morte de São Francisco de Assis que ocorreu em 1226, foi
marcado por um intenso debate sobre os parâmetros da vida franciscana, normatizados na
Regra de 1223 e apontados pelo Testamento deixado pelo Poverello. A Ordem estava diante
da ausência real e definitiva de seu fundador, seus Frades a partir daquele momento tinham
que lidar com a manutenção de um teor de vida que foi pensado pelo seu líder, em meio a um
período em que os franciscanos passaram a ter um maior envolvimento com a estrutura
burocrática da Igreja e suas respectivas atividades pastorais.
O desenvolvimento da Ordem a afastou da dinâmica da fraternitas, uma vez que a
ocupação de cargos importantes na Cúria por parte dos Menores, a estabilidade habitacional, a
crescente ascensão dos clérigos e o desapego ao labor, diferia do propósito inicial de São
Francisco. O contraste entre o movimento franciscano dos primeiros tempos com a condição
material que o grupo se encontrava nos anos vinte do século XIII, desencadeou conflitos entre
os Menores, suscitando resistências às mudanças que estavam em curso na Ordo, pois a
memória da experiência dos primórdios ainda era pulsante entre os primeiros seguidores do
Assisense.
Essas divergências desencadearam a divisão dos franciscanos em Espirituais 272 e
Conventuais273, os primeiros obstinados a manter a integridade da Regra e do Testamento e os
segundos tentando amenizar o conteúdo dos documentos normativos 274. Os embates entre os
Frades demonstraram a necessidade de novas reformulações em torno da funcionalidade e da

272

De acordo com Edith Pásztor, ao tratar dos espirituais não é possível falar de um fenômeno uniforme ou
unitário, pois várias eram as atitudes e variadas às formas de ser espirituais, como várias eram as interpretações
de São Francisco e sua intenção, contudo, os Espirituais estavam vinculados a uma dimensão cristocêntrica. Cf.
PÁSZTOR, Edith. “L‟immagine di Cristo negli Spirituali”. In: Chi erano gli spirituali. Atti del III Convegno
Internazionale. Assisi, 16-18 ottobre 1975. Assisi: Società Internazionale di Studi Francescani, 1976, pp. 110111.
273
Para Edith Pásztor, a Comunidade estava mais vinculada à hierarquia, enfraquecimento da pobreza rigorosa, a
clericalização e a inclusão no mundo dos estudos universitários. Cf. Ibidem. pp. 111-112.
274
Para Grado Merlo, os Frades Espirituais contrapõem-se aos Frades Comunidade (Conventuais),
principalmente devido a defesa que fazem dos primeiros tempos do franciscanismo. Os espirituais eram “filhos”
de uma tradição especial, que remontava aos socii de São Francisco- Frei Leão e Frei Egídio, sobretudo- e à
medida de outros frades que transmitiram aquela tradição; essa é a trama (mas também um dos limites) sobre a
qual nasceu e se desenvolveu o “espiritualismo” franciscano. A tradição “espiritual” tinha como elementos
constitutivos e irrenunciáveis do franciscanismo a opção pela total pobreza, o valor absoluto da Regra de São
Francisco (assemelhada ao Evangelho de Jesus Cristo) e a obrigatoriedade do Testamento. Cf. MERLO, Grado
Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do Franciscanismo até inícios do
século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 137-156.

97

identidade da Ordem. Foi neste contexto de transformações e discussões que ocorreu a
produção da bula Quo Elongati.
A bula de 1230 procurava ser uma porta de escape para os problemas da Ordem, no
entanto, a resolução que ela apresentava deu-se no campo jurídico e não no âmbito religioso.
Naquele momento quem estava à frente da Ordem era João Parente (1227-1232), proveniente
da região centro-italiana e de formação jurídica275. Em 1230 como determinava a Regra,
realizou-se o capítulo geral que ocorria trienalmente e foi justamente nesta ocasião, que os
Frades apresentaram as dúvidas que tinham em relação à Regra Bulada. O governador da
Ordem organizou uma comissão composta por ele e mais seis religiosos (Antônio de Pádua,
Gerardo de Rossignol, Haimo de Faversham, Leão de Perego, Gerardo de Módena, Pedro de
Brescia), para solicitar ao papa Gregório IX (1227-1241)276 ajuda para esclarecer algumas
normas desse documento277.
O papado que desde a Reforma Gregoriana, assumiu o poder de regulamentar as
ordens religiosas, foi provocado a interferir mais uma vez nas normas de vida dos
franciscanos. Os esclarecimentos em torno do modo de vida dos Frades deveriam passar
obrigatoriamente pelo crivo da Sé Romana, uma vez que aprovada a Regra pelo papa Honório
III, esta não poderia ser modificada. A Ordem dos Frades Menores estava sob a jurisdição da
Igreja e cabia só a ela deliberar sobre os assuntos minoríticos. Essa interferência, no entanto,
não se deu sem causar insatisfação entre a ala dos Espirituais, visto que estes entendiam a
Regra bulada como uma representação278 da experiência religiosa de São Francisco. Esse
documento transferiu para si a codificação de um propósito de vida, que antes localizava-se na
oralidade e na experiência concreta do Assisense. Logo, a documentação franciscana era
entendida por esse grupo como um conhecimento imediato de algo que estava ausente 279.

275

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 98.
276
Hugolino dei Conti di Segni que adotou o nome de Gregório IX, nasceu em 1170, possuía formação jurídica,
era sobrinho do papa Inocêncio III e ocupou o cargo de cardeal-bispo de Óstia e Valletri. Cf. Aguiar, Verônica
Aparecida Silveira. A construção da norma no movimento franciscano. Regulae e Testamentum nas
práticas jurídicas mendicantes (1210-1323). 2010. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de
história da Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 107.
277
IRIARTE, Lázaro. Historia franciscana, Valencia, Editorial Asís, 1979.
278
Roger Chartier, pois diante de algumas definições conceituais que este historiador realizou em torno do termo
representação, a que melhor se enquadra na condição que os textos franciscanos se encontravam é o conceito de
representação utilizada no antigo regime. Para este historiador, a noção de representação deve ser entendida
como um instrumento essencial na análise cultural de uma sociedade, desencadeando nos indivíduos certo
conhecimento do local social que se encontra inserido. Entre as significações destacadas por Chartier,
representação pode ser entendido como conhecimento imediato de algo que estava ausente. Cf. CHARTIER,
Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 05, n. 11, p.172-191, abr. 1991, p.
184.
279
Ibidem. p. 184.

98

A documentação franciscana esforçou-se para demonstrar a ligação do Poverello com
o Divino, que havia lhe indicado qual caminho deveria ser seguido, como destacou Edith
Pásztor280. Assim quando São Francisco e seus companheiros prometeram observar a Regra,
eles passaram a estar vinculados a Cristo, logo para os Espirituais o franciscanismo deveria
ser vivido como o Assisense viveu, pois os passos dele simbolizavam a vontade de Jesus.
Essa relação que se construiu entre Francisco/Cristo, Francisco/Regra Bulada, tinha
como objetivo conferir autoridade a estes documentos, a partir da ideia de que, a legitimidade
do modo de vida proposto pelo Assisense foi realizada pelo próprio Cristo. A necessidade de
criar esse elemento de autoridade a Regra Bulada, nos faz refletir, o quanto seria difícil alterar
qualquer aspecto dela281. Contudo, a Regra e o Testamento, surgiram em um contexto de
florescimento da ciência jurídica e da legislação canônica 282, assim era preciso que o papado
fornecesse seu parecer sobre os pontos apresentados a ele.
Diante destas questões, Gregório IX iniciou a bula se colocando como uma
testemunha importante para decodificar a experiência franciscana, apresentou-se como
alguém que conviveu com São Francisco, ouviu e viu suas ações. Este mecanismo de
legitimação, segundo Paul Ricoeur283, prendia a narrativa por meio da expressão “eu estava
lá”, a qual criava-se um laço entre a coisa passada e a presença do narrador nos locais em que
os fatos teriam acontecido, o que conferia autenticidade e credibilidade aos testemunhos. Este
dispositivo discursivo tem no texto, o claro propósito de atribuir autoridade284 ao papa para
que esse pudesse interferir no conteúdo da Regra, por meio de comentários (interpretação).
Voltando mais para a relação da bula Quo Elongati com a história da Ordem
franciscana, é preciso destacar uma afirmação que Nachman Falbel 285 faz sobre ela, para este
historiador o papa ao prestar-se ao exercício de interpretação da Regra, oficializou aquilo que
já vinha se configurando na própria dinâmica da Ordem: o abandono dos primeiros ideais de
São Francisco. A bula tratava da correção da própria Regra, pois ela reparava as lacunas que
280

“É Cristo Che opera la conversione di Francesco, conducendolo tra i lebbrosi, Che gli dá la fede nelle chiese e
nel clero, che gli rivela che deve vivere secondo la forma Del Vangelo, che gli indica Il modo di salutare,
augurando la pace”. Cf. PÁSZTOR, Edith. “L‟immagine di Cristo negli Spirituali”. In: Chi erano gli spirituali.
Atti del III Convegno Internazionale. Assisi, 16-18 ottobre 1975. Assisi: Società Internazionale di Studi
Francescani, 1976, p. 111.
281
“[...] Se Il texto della Regola, come vi si afferma, proviene totalemente da Cristo sulla terra può condannare il
concetto di povertà fondamentale nell‟Ordine, tanto neno dichiararlo irrealizzabile.”. Cf. ESSER, Kajetan;
GRAU, Engelbert. Documenti di vita francescana. Milano: Edizoni Biblioteca Francescana, 1980, p. 41.
282
Ibidem. p. 38.
283
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 172.
284
François Hartog também destacou a importância da autoridade das testemunhas, para ele tanto os homens que
presenciaram os fatos, quanto os que escutaram são importantes para a autenticidade dos testemunhos.
HARTOG, François. Evidência da História: O que os historiadores vêem. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2013, pp. 203-228.
285
FALBEL, Nachman. Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 40.

99

ficaram no documento de 1223 e que causavam discussões entre os Frades no que tangia as
questões do núcleo central da vida dos Menores, como a pobreza e o modo como os Irmãos
deveriam se relacionar com bens materiais, cada vez mais comuns na comunidade
franciscana286.
Nesse documento aparecem nove pontos passíveis de dúvidas entre os Frades, essas
questões estavam ligadas ao processo de clericalização 287 pelo qual a Ordem passava: a
obrigatoriedade de seguir o que foi dito no Testamento, quais conselhos evangélicos deveriam
ser observados, a proibição de dinheiro, a questão das propriedades, o tratamento dos
pecadores, a liberação para a pregação, recepção de novos Irmãos, eleições dos Ministros e
por fim o contato com as monjas. Gregório IX iniciou sua bula, afirmando que existiam
pontos “duvidosos e obscuros” na Regra, que foram apresentados pelos próprios Frades. A
fórmula “pontos duvidosos e obscuros”, deve ser entendida como um tópos 288 criado pelo
papado para interferir no desenvolvimento da Ordem289.
O primeiro questionamento apresentado ao papa tratava da legitimidade do
Testamento. Teria ele o mesmo peso de lei da Regra bulada? São Francisco destacou no
próprio documento que não se tratava de uma nova Regra, mas de recordação, admoestação e
exortação. Ele determinou que o texto de 1226 fosse lido nos capítulos gerais em conjunto
com a Regra de 1223290. No entanto, o conteúdo do Testamento provocou inquietudes em um
grupo de Frades, pois diferia em alguns elementos da Regra. Para David Burr 291, o documento
de 1226 criava instruções para práticas que haviam se iniciado no interior dos franciscanos
naquele momento, e este avanço acabava sendo freado pelo Testamento.
Esta discordância criava um problema para deliberar sobre os aspectos da Regra. Era
necessário definir se os franciscanos eram obrigados a obedecer às instruções do documento
de 1226. Para a resolução deste assunto o papa utilizou os seguintes princípios jurídicos:
286

SUMMO, Nicola. Una mirada sinóptica a las bulas pontificias desde la Quo Elongati a la Exivi de Paradiso:
sobre la pobreza en la Orden de Frailes Menores. Tradução de Francisco Víctor Sánchez Gil. Selecciones de
Franciscanismo, Valencia, v.44, n.131, p.275-294, May./Ago 2015, p. 40.
287
TABARRONI, Andrea. La regola francescana. In: Dalla “sequela Christi” di Francesco d’Assisi
all’apologia della povertà. Atti del XVIII Convegno Internazionale. Assisi, 18-20 ottobre 1990. Espoleto:
Centro italiano di studi sull‟alto medioevo, 1992, p. 97.
288
Devemos entender o tópos como uma fórmula discursiva criada para iniciar um debate sobre determinado
assunto.
289
Para Verônica Aguiar o esclarecimento dos pontos duvidosos e obscuros que Inocêncio IV utilizava era um
tópos que justificava a nova interpretação. Cf. Aguiar, Verônica Aparecida Silveira. A construção da norma no
movimento franciscano. Regulae e Testamentum nas práticas jurídicas mendicantes (1210-1323). 2010.
Dissertação (Mestrado em História). Departamento de história da Faculdade de filosofia, letras e ciências
humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 122.
290
Como o Testamento não pode ser considerado um texto legislativo, não pode ser entendido como um
complemento a Regra. Cf. CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 743.
291
BURR, David. The Spiritual Franciscans: from protest to persecution in the century after Saint
Francis. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2001, p. 4.

100

“Quod omnes tangit ab omnibus tractari et approbari debet” e o “par in parem not habet
imperium”292, o primeiro de caráter “universitas”, afirmava que na comunidade franciscana
não se poderia obrigar os religiosos a seguirem as orientações de determinado documento,
sem o consentimento dos demais Irmãos, principalmente dos Ministros; o segundo tratava do
princípio da soberania, no qual aqueles que detinham a autoridade no mais alto grau, não poderiam ser
limitados pelos decretos de seus predecessores. Por meio desses princípios jurídicos, Gregório IX
sancionou definitivamente a natureza jurídica do corpo institucional, por meio do princípio de
universitas, logo com a bula Quo Elongati a Regra não estava precisamente delimitada, sua
validade precisava da aprovação dos Frades e depois da confirmação apostólica.
Dessa forma, o papa demonstrava que os aspectos da Regra, estavam em suas mãos que era
um agente exterior a Ordem, que detinha a jurisdição para autenticar as questões a ele apresentadas.
Partindo dessas ideias jurídicas o Testamento por não ter passado pelo crivo dos seus pares,

perdia seu valor legislativo, visto que nenhum Frade, inclusive o fundador da Ordem, não
tinha poder para impor algo de forma unilateral, os religiosos tinham a mesma autoridade
entre eles.
Ebbene, quantunque noi crediamo che il pretetto confessore di Cristo nel dettare
quel comando avesse uma lodevole intenzione e che voi purê abbiate a cuore di
attenervi defealmente ai giusti comandi e ai desideri santi di lui, tuttavia noi,
preocupati dei pericoli delle anime e delle difficoltà in cui proteste incorrere a
motivo di queste cose, rimovendo il dubbio dai vostri cuori, affermiamo che non
siete tenuti all‟osservanza di questo comando, per due motivi: egli non poteva, senza
Il consenso dei frati e principalmente dei ministri, perché riguardava tutti, obbligare;
né certamente obbligava in nessuma maniera il suo sucessore, dal momento che non
c‟è potere dell‟uno sull‟altro tra coloro che hanno uguale autorità.293

O desmonte da autoridade do Testamento por este viés jurídico, foi de fundamental
importância para os que defendiam mudanças na Ordem, pois nele, São Francisco havia
determinado como a Regra e o Testamento deveriam ser lidos. Ele buscou criar um leitormodelo294 para seus escritos, ao proibir os Frades de realizarem qualquer acréscimo ou
diminuição em suas palavras, sua intenção era que seus textos fossem lidos de modo simples e
claro, não sendo permitido qualquer dispositivo retórico de acréscimo de ideias e
interpretações a eles. Dessa forma, para São Francisco a chave de leitura da Regra estava em

292

TABARRONI, Andrea. La regola francescana. In: Dalla “sequela Christi” di Francesco d’Assisi
all’apologia della povertà. Atti del XVIII Convegno Internazionale. Assisi, 18-20 ottobre 1990. Espoleto:
Centro italiano di studi sull‟alto medioevo, 1992, pp. 100-101.
293
Bula Quo Elongati. Cf. CAROLI, Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di
san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di
santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed. Padova: Editrici
Francescane, 2011, pp. 1722-1723, grifo do autor.
294
Este conceito foi utilizado por Umberto Eco, para simbolizar o indivíduo que lia a obra como ela foi feita para
ser lida. Cf. ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 11.

101

uma operação santa295, ou seja, a leitura do Testamento e da Regra estava estritamente ligada
ao campo religioso.
Dessa maneira, se levarmos em consideração que o Testamento possuía as ideias
originais de São Francisco, como destacou Paul Sabatier296, ao anular este documento
colocava-se em xeque também a sua influência sobre a Ordem, visto que suas últimas
vontades tornaram-se um impedimento para o desenvolvimento dos Menores. Após a negação
do Testamento, Gregório IX pôde continuar deliberando sobre os outros questionamentos que
os Frades tinham apresentado a ele.
O pontífice, ao ser indagado se os Frades estavam obrigados a observar todo o
Evangelho, ou apenas aquelas passagens que apareciam como forma de conselhos na Regra,
afirmou que estes estavam vinculados apenas às normas evangélicas dispostas no texto de
1223297. Com isso ele delimitava o conteúdo das sagradas escrituras que deveria ser levado
em consideração e afastava qualquer outro conteúdo que pudesse ser adotado por parte dos
religiosos como parâmetro para sua vida.
No que tange a hierarquia, o pontífice acompanhou as instruções da Regra bulada, ao
apontar que os pecados públicos deveriam ser tratados apenas pelos Ministros e os pecados
privados deveriam ser de responsabilidade dos sacerdotes. No caso da pregação, o papado
determinava que o exame e liberação para que os indivíduos se dedicassem a tal atividade,
estava sobre a responsabilidade dos Ministros provinciais. Os formados em teologia e no
ofício da pregação não precisavam de liberação.
Em um momento de crescimento dos aspirantes a vida minorítica, estes
questionavam se apenas os Ministros provinciais, deveriam ter o poder de receber novos
homens, a resposta do papado para este ponto reforçava a hierarquia entre os Irmãos. Ele
destacou que apenas os Ministros provinciais poderiam realizar esta recepção, porque já
haviam recebido a autorização do Ministro geral da Ordem para desempenhar esta atividade,
portanto, nenhum vigário poderia receber novos religiosos.
No que se refere à eleição do Ministro geral, a bula papal resolvia que em nome da
organização, as províncias deveriam escolher alguns custódios298 para que juntos aos
295

[...] Mas, como o Senhor me concedeu de modo simples e claro dizer e escrever a regra e estas palavras,
igualmente, de modo simples e sem glosas, as entendais e com santa operação as observais até o fim. Cf. Test 39.
In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 191.
296
SABATIER, Paul. Vita Di S. Francesco D'assisi. Porziuncula: Edizioni Porziuncula, 2018, p. 285.
297
Bula Quo Elongati. Cf. CAROLI, Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di
san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di
santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed. Padova: Editrici
Francescane, 2011, p. 1723.
298
Expressão utilizada para designar os líderes provinciais.

102

provinciais elegessem o novo Ministro geral. No que tange o relacionamento dos Frades com
as monjas, o pontífice afirmou que a proibição era direcionada a todos os conventos
femininos, no caso dos mosteiros das “Pobres Damas”, apenas era permitido acesso com a
licença da Sé Apostólica.
As Respostas apresentadas eram um reflexo da necessidade organizacional da Ordem,
que estava apresentada desde a Regra de 1223 e reforçava uma amenização do uso dos
Evangelhos, visto que os Frades ficavam vinculados apenas a observância do que estava
contido na Regra, mas também delimitava que mesmo com o crescimento da Ordem, os
líderes gerais e provinciais continuavam responsáveis pela liberação dos Frades para as
atividades de pregação e recepção de novos aspirantes a vida minorítica. No que tange o
dinheiro, a proibição a posse e manuseio foi mantido pelo papa, e o mesmo reforçou e
detalhou o papel dos “amigos espirituais”, como intermediários no recebimento de esmolas
para a Ordem, para que esses aplicassem os recursos recebidos onde acreditassem ser
necessário.
In terzo luogo, poiché nella stessa Regola si proibisce: Che i frati non ricevano da sé
o per mezzo d'altri denaro o pecunia in qualsiasi maniera, e questo essi vogliono
osservare sempre, si vuole sapere con più sicurezza se possono osare, senza
trasgredire la Regola, di presentare a persone timorate di Dio alcuni fedeli attraverso
i quali essi soccorrano alle loro necessita [...] Su questo punto riteniamo di dover
rispondere in questo modo: se i frati vogliono comprare una cosa necessaria, oppure
pagare una cosa già comprata, possono presentare o l'incaricato di colui dal quale si
compra la cosa, o qualche altro, a che vogliono fare loro elemosina (a meno che gli
stessi preferiscano fare da sé o per mezzo di propri delegati): questi, così presentato
dai frati, non è loro incaricato, sebbene sia presentato da loro, ma piuttosto di colui
per mandato Del quale ha fatto il versamento o di colui che riceve il versamento. Lo
stesso incaricato deve subito provvedere a compiere il pagamento, così che nulla
rimanga presso di lui. Se poi fosse presentato per altre necessità imminenti, può
depositare l‟elemosina a lui consegnata, come lo stesso padrone, presso qualche
amico spirituale dei frati, perché per mezzo di lui venga usata come gli sembrerà
bene, per le loro necessità in luogo e tempo opportuno. A quest'ultimo anche i frati
sempre per necessità imminenti potranno far ricorso, soprattutto se si diporta con
negligenza o non conosce le loro necessita.299

Mas a maior mudança deu-se no âmbito das posses de bens. São Francisco destacou na
normativa de 1223, que os Frades não deveriam possuir nada. O ato de ter propriedades
colocava em questão a pobreza franciscana, no entanto, este aspecto precisava de
esclarecimentos, pois com o envolvimento dos Irmãos com a Igreja e o processo de
clericalização dos franciscanos, estes religiosos abandonaram a instabilidade habitacional e

299

Bula Quo Elongati. Cf. CAROLI, Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di
san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di
santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed. Padova: Editrici
Francescane, 2011, pp. 1723-1724, grifo do autor.

103

passaram a estabilidade, com isso eles precisavam possuir utensílios para suas necessidades e
para o desenvolvimento das atividades pastorais nas quais encontravam-se inseridos.
A prática pauperística da época de São Francisco era contraria a posse de bens,
contudo, esta era uma realidade inevitável, pois como destacou Grado Merlo 300, nas duas
primeiras décadas do século XIII, os Frades estavam adquirindo igrejas, era preciso conciliar
o crescimento das propriedades com a pobreza franciscana. Esta nova realidade trazia a
necessidade de blindar a Ordem de possíveis ataques, que pudessem colocar em questão a
identidade e o modo de vida dos franciscanos, para isso Gregório IX reforçou a proibição dos
Frades de possuírem bens como constava na Regra, mas introduziu o conceito de usus, que
permitia aos Menores utilizarem diversos utensílios, como livros e móveis, com a
intermediação dos Ministros gerais e provinciais.
Diciamo dunque che non devono avere proprietà né in comune né individualmente,
ma l‟Ordine abbia l‟uso degli utensili, dei libri e degli altri Beni mobili che è loro
lecito avere. I frati poi ne usino secondo quanto sara stabilito dal ministro generale o
dai ministri provinciali, rimanendo intatta la proprietà dei luoghi e delle case nelle
mani di coloro ai quali si sanno appartenete.301

Assim, os Frades juridicamente não tinham a propriedade dos objetos que estavam a
sua disposição, eles tinham apenas o direito ao uso dos utensílios. Por não possuírem o
domínio das coisas, não poderiam vendê-los, a menos que o cardeal protetor da Ordem
autorizasse os Ministros. Por meio da aplicação do conceito de uso, os Irmãos conseguiram
conciliar o usufruto dos bens e suas práticas pauperísticas. Isso, no entanto, não significou que
o problema estivesse resolvido, uma vez que essas mudanças simbolizavam um afastamento
dos ideais de São Francisco de Assis, pois o uso dos bens, em muitas ocasiões, poderia
posicionar os Frades longe da experiência de uma vida simples.
Essas deliberações, todavia, não conseguiram harmonizar os Conventuais e os
Espirituais, o conceito de pobreza apresentado na Bula Quo Elongati, foi o pontapé inicial
para o debate jurídico em torno da pobreza dos Frades, pois com a diminuição do fervor
religioso e o florescimento jurídico, a pobreza franciscana foi envolvida em um complicado
debate jurídico institucional, que não se contentou com a distinção entre propriedade e uso,

300

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 55.
301
Bula Quo Elongati. Cf. CAROLI, Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di
san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di
santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed. Padova: Editrici
Francescane, 2011, p. 1724.

104

mas ampliou-se para debates jurídicos de propriedade, posse, usufruto, direito de uso e o
simples uso das coisas302.

4.2. Pobreza e a regra franciscana segundo Inocêncio IV.
As alterações presentes na bula Quo Elongati, significaram um ponto a partir do qual
não se poderia voltar mais atrás, como destacou Felice Accrocca 303. Gregório IX (1227-1241)
ao deliberar sobre os aspectos da vida minorítica, pretendia acabar com as contendas que
existiam entre os Espirituais e Conventuais, e com isso conciliar as mudanças que ocorriam na
Ordem, que caminhava para adquirir uma estrutura mais clerical que laica. Contudo, as
mudanças em relação à pobreza franciscana, não foram bem assimiladas pelos Frades que
defendiam o rigor dos primeiros tempos, a querela a este respeito continuou existindo e
precisando da interferência do papado que agia por meio do tópos “pontos duvidosos”, para a
manutenção da coesão dos seus adeptos.
Terminado o generalato de João Parente em 1232, foi eleito como Ministro geral da
Ordem Frei Elias (1232-1239). Ele era um dos Irmãos mais próximos a São Francisco, e por
ter sido um dos primeiros companheiros do Assisense, havia a expectativa de que ele fosse
um porta-voz da vida apostólica desejada pelo Poverello304, ou seja, sua eleição simbolizava a
possibilidade da Ordem se alinhar a experiência dos primeiros anos da fraternitas.
O governo de Elias enfrentou os problemas da transformação da Ordem franciscana,
sobretudo a passagem da fraternidade laica para uma ordem religiosa mais próxima a
realidade dos dominicanos, que possuíam um cunho clerical mais acentuado. Durante seu
generalato, se tornou mais explícito o problema dos estudos teológicos que não tinha
relevância para a fraternitas dos primeiros tempos, mas era essencial para os clérigos e
letrados305. Elias não proibiu os estudos, enquanto esteve à frente da Ordem, ele preparou o
terreno para o processo de clericalização que ocorreu no governo de seus sucessores,
principalmente de Haimo de Faversham. Elias não criou barreiras para a atuação dos
302

HARDICK. Lothar. “Pobreza, pobre”. In: CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano. Petrópolis:
Vozes, 1993, p. 595.
303
ACCROCCA, Felice. Regra dos Frades Menores– Forma de vida em tensão entre Memória e Profecia.
Caderno de Espiritualidade Franciscana. Braga. Nº. 29, pp. 46-58, 2006.
304
BURR, David. The Spiritual Franciscans: from protest to persecution in the century after Saint
Francis. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2001, p. 12.
305
BARONE, Giulia. Frate Elia: suggestioni da una rilettura. In: I compagni di Francesco e la prima
generazione minoritica. Atti del XIX Convegno internazionale, Assisi, 17-19 ottobre 1991. Espoleto: Centro
Italiano di studi sull‟alto medioevo, 1992, pp. 62-65.

105

sacerdotes na Ordem, contudo, se manteve fiel à Regra e continuou a defender que os laicos
participassem da direção da Ordo, causando assim irritação dos clérigos e teólogos, entre eles
Frei Salimbene, que via os laicos como inúteis, por serem incapazes de se dedicar a cura
animarum306. A irritação dos letrados e sacerdotes evidenciava uma tendência de neutralizar a
atuação dos leigos na Ordem, contrariando a vontade de São Francisco, de que seu grupo
reunisse em pé de igualdade, as diversas categorias sociais.
A opção de Elias de valorizar os leigos que não sabiam ler e não podiam estudar em
detrimento dos teólogos e clérigos 307, contribuiu para a construção de uma imagem negativa
dele, os cronistas que eram seus opositores, como Salimbene de Adam 308, o descreveu como
um indivíduo fascinante, áspero e autoritário, que possuía boas relações tanto com Gregório
IX quanto com o monarca germânico Frederico II. As críticas direcionadas a Frei Elias,
também recaíam sob seu envolvimento na construção da Igreja onde ficariam depositados os
restos mortais de São Francisco, assim como, nas acusações de ser adepto de hábitos
mundanos.
Frei Elias também era criticado por ter um governo centralizador. Para Giulia Barone,
é inegável atribuir a ele essa característica, visto que em sua administração ele escolhia os
Ministros provinciais, também não se propunha a ouvir as demandas dos Frades, logo, escolhia
leitores de teologia para serem enviados a diferentes locais309. Vale destacar que o ato de escolher os
provinciais não contrariava a Regra, pois ela deliberava apenas sobre a escolha dos Ministros gerais,
ou seja, Elias agia assim, porque não existia uma constituição para regular e limitar sua

atuação310.
Frei Elias por escolher privilegiar os laicos, que eram um segmento mal visto pelos
clérigos, acabou sendo acusado de trair o modelo de vida proposto pelo Poverello,
aumentando o atrito que já existia entre os Menores 311. Sua deposição foi realizada no
Capítulo de Roma em 1239, e contou com a presença do papa Gregório IX, que já havia
recebido reclamações referentes às suas condutas e decidiu anotar as objeções feitas ao
Ministro geral, para poder julgá-lo312. Além do pontífice, ele também enfrentou a oposição
306

BARONE, Giulia. Frate Elia: suggestioni da una rilettura. In: I compagni di Francesco e la prima
generazione minoritica. Atti del XIX Convegno internazionale, Assisi, 17-19 ottobre 1991. Espoleto: Centro
Italiano di studi sull‟alto medioevo, 1992, pp. 76-77.
307
VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 209.
308
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 101.
309
BARONE, Giulia. Op. cit., p. 69.
310
Ibidem.
311
FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
31.
312
Ibidem. pp. 43-44.

106

dos Ministros ultramontanos (províncias fora da Itália), que durante seu generalato não foram
convocados para os capítulos, uma vez que para Frei Elias, os encontros periódicos dos
Frades limitavam-se a “reuniões particulares” com a presença apenas dos Ministros
cismontanos (províncias na Itália)313.
A partir de 1239 e dos conflitos desencadeados pelo governo de Frei Elias, ficou
acordado uma restrição dos poderes do Ministro geral. Na intenção de evitar que as
convicções pessoais e partidárias não interferissem na harmonia da comunidade franciscana,
os líderes gerais ficaram impedidos de nomear provinciais e custódios, estes passariam a ser
escolhidos por eleição nos capítulos, ficava assim reconhecida à supremacia dos capítulos
sobre os Ministros. Os governadores gerais também deveriam visitar as provinciais
pessoalmente e não por meio de visitadores como fez Frei Elias, por fim diminuiu-se o
número das províncias de setenta e duas para trinta e duas314, dezesseis cismontanas e
dezesseis ultramontanas. Com as novas reformulações organizacionais, o novo líder assumiu
uma Ordem que estava saindo de um generalato conturbado e passando a ter seu primeiro
conjunto de constituições gerais que conservava a Regra e atribuía um caráter uniforme ao
Ministro geral dos Menores315.
O Capítulo geral de 1239 após as deliberações acima citadas e o afastamento de Frei
Elias do comando da Ordem, escolheu o sacerdote Alberto de Pisa como Ministro geral. Ter
um sacerdote no controle dos Menores simbolizava uma nova e importante etapa no processo
de clericalização dos franciscanos, pois após sete anos de generalato no qual os leigos
ganharam destaques, os clérigos passariam a ocupar importantes posições na Ordem. Alberto
teve um generalato muito curto, morreu em 1240. Seu sucessor, Haimo de Faversham que
também era sacerdote e opositor de Frei Elias316, governou os Menores entre 1240-1244 e
atuou em várias esferas da vida dos Frades, visto que se propôs a visitar as províncias,
corrigindo ele mesmo os desvios encontrados nos locais que passava, como determinavam as
constituições gerais de 1239. Sua principal influência, entretanto, deu-se na continuidade do
processo de clericalização da Ordem.

313

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 102.
314
No capítulo geral de 1239, decidiu-se fixar em trinta e dois o número de Províncias [...] À parte cismontana
pertenciam quatorze Províncias, espalhadas pela Península italiana, com o acréscimo daquela da Terra Santa, da
Esclavônia (Dalmácia) e da Romênia (Grécia). A parte ultramontana cobria uma área vastíssima: da Península
ibérica às ilhas britânicas, dos países de língua alemã à Escandinávia. Cf. Ibidem. p. 138.
315
Ibidem. 103.
316
FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
82.

107

Haimo de Faversham317, não permitiu que os Irmãos leigos ocupassem os postos de
lideranças como os cargos provinciais, custódios ou guardiões. As restrições a atuação dos
laicos, era uma forma de anular os privilégios que Frei Elias havia deliberado a eles durante o
período em que governou a Ordem. Os franciscanos caminhavam para adquirir um status de
ordem clerical que implicaria em uma nova funcionalidade do grupo religioso, visto que
poderiam desempenhar com mais vigor as atividades de pregação e confissão.
Contudo, era visível que, ao mesmo tempo em que os Frades conquistavam uma
estabilidade na estrutura eclesiástica, distanciavam-se dos primórdios da fraternidade,
causando assim contendas e provocando a necessidade de mais uma interferência na Regra.
Na tentativa de resolver as disputas do presente que contrastava com a experiência do passado
franciscano, o Ministro geral convocou o capítulo de definidores318 de Montpellier em 1241,
onde foi solicitado que as províncias nomeassem Frades cultos, para que eles analisassem o
documento de 1223 e produzissem um relatório sobre as normas que estavam causando
polêmicas dentro da Ordem. As discussões dos magistri culminaram na elaboração da
chamada Expositio Quatuor Magistrorum Super Regulam Fratrum Minorum. Este por sua vez
não foi considerado oficial, mas apenas consultivo.
Esta Expositio foi escrita pelos mestres do Studium parisiense, pois era ali que se
encontravam os Frades dotados de maior conhecimento319, eram eles: Alexandre de Hales,
João de la Rochelle, Roberto de la Bassé, Otão Rigaldi e Gofredo de Brie. Este texto é de
fundamental importância, pois foi um documento consultivo, elaborado em um período
intermediário entre a bula Quo Elongati e a bula Ordinem Vestrum, e mostrava o trabalho dos
magistri, na tentativa de esclarecer as “dúvidas” que giravam em torno dos textos
franciscanos320. A exposição dos parisienses se divide em onze tópicos, que se assemelhavam
em alguns aspectos ao documento produzido por Gregório IX, que foi inclusive lembrado na
Introductio daquele documento.
Foi discutido por estes intelectuais, questões como: quem poderia recepcionar os
novos aspirantes, as práticas dos ofícios e jejuns, a visita dos Frades as mulheres, a liberação
da pregação na diocese de outros bispos, o trato dos pecados mortais e a questão do trabalho,
mas o tema mais polêmico foi, sem dúvida, a pobreza.
317

DOCUMENTOS Franciscanos. Petrópolis: Cefepal, 1969. (DOCUMENTOS Franciscanos, 8), p. 60.
Esse capítulo, eleito pelos religiosos, tinha por finalidade dar caráter obrigatório a determinada lei após ter
sido aprovada por tal órgão, para, no ano seguinte, ser aprovada pelo capítulo de superiores. Cf. FALBEL,
Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p. 46.
319
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 109.
320
FALBEL, Nachman. Op. cit., p. 84.
318

108

As questões do dinheiro e das propriedades receberam uma nova interpretação pelos
magistri, estes reafirmaram a proibição dos Frades ganharem moedas, no entanto, destacaram
que o dinheiro não estava materializado apenas nas moedas, mas também nas intenções, assim
se os Menores obtivessem um item com o intuito de vendê-lo, esse objeto deveria ser
entendido como dinheiro321. Os magistri ressaltaram o conceito de uso dos franciscanos e
reafirmaram a proibição de propriedades por parte deles. Eles destacaram a legalidade da
interferência dos nuntium na recepção de dinheiro para suprir as necessidades dos Irmãos,
negando também qualquer interferência desses religiosos na aplicabilidade das moedas. Além
dos nuntium que eram representantes do dinheiro destinado aos Frades, existia também a
atuação dos amigos espirituais que agiam em virtude das necessidades da comunidade
franciscana. Os magistri também admitiam a possibilidade de possuir recursos em decorrência
das necessidades dos Frades e a própria ideia de necessidade recebeu uma abrangência maior,
como o cuidado com as casas e livros322.
Podemos perceber que a questão do dinheiro, afetava diretamente o conceito de
pobreza franciscana, que deixou de ser vivida e passou a ser pensada 323, ou seja, o dinheiro
não poderia ser entendido de forma simples, uma vez que o que estava em jogo era a
intencionalidade. Assim como o dinheiro a pobreza para os magistri, também não poderia ser
compreendida de uma única forma, por isso eles a apresentaram de duas maneiras: a primeira
era a pobreza imperfeita, onde os indivíduos mantinham apenas o necessário para sua
subsistência, a segunda era caracterizada pelos indivíduos que não retinham nem o supérfluo,
nem o necessário a sua sobrevivência, ou seja, dependiam da provisão de Deus, estes
praticavam a pobreza mendicante324.
321

Ad primum per interpretationem dicit constitutio pecuniam esse, quidquid recipitur ut vendatur. Unde libri et
calices, si reciperentur intentione, ut auctoritate fratrum postmodum vendantur, inter pecuniam computantur.
[...]. Cf. OLIGER, Livarius. Expositio Quatuor Magistrorum Super Regulam Fratrum Minorum (12411242). Roma: Edizioni Storia e Letteratura, 1950, pp. 141-142.
322
Dicendum ergo quod receptio cuiuslibet rei prohibetur fratri minori in proprietatem, infra VIº capitulo.
Receptio vero rerum aliquarum ad usum conceditur. [...] Qualiter vero circa pecuniam transmissam per nuntium,
qui potestatem committendi alicui a domino non recepit, agendum sit, non immerito dubitatur. Nam Nec ille nec
fratres possunt alicui committere quod sit procurator pecuniae expendendae; propterea visum est aliquibus quod
esset auctoritas et voluntas domini requirenda. [...] Sequitur: Tamen pro necessitatibus infirmorum et aliis
fratribus induendis per amicos spirituales ministri tantum et custodes sollicitam curam gerant. Sed numquid pro
aliis necessitatibus possunt esse solliciti quam pro istis , ut pro domibus et libris? Ex expositione domini papae
videtur quod sic, ubi indistincte loquitur quomodo pro necessitatibus possunt habere recursum ad illum, cui
elemosina est commissa. Cf. Ibidem. pp. 143-147.
323
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 111.
324
Ad quod videtur dicendum, quod cum sit duplex necessitas paupertatis evangelicae, sicut dicunt sancti,
paupertas imperfecta quae cum paupertate spiritus nihil retinet superfluum temporale, sed solum retinet quod est
necessitatis; alia vero est paupertas perfecta, quae cum paupertate spiritus Nec superfluum Nec necessarium vitae
retinet tanquam proprium, sed ex Dei provisione pendet, quae paupertas dicitur mendicitatis. Cf. OLIGER,
Livarius. Op. cit., pp. 157-158.

109

Apesar da Expositio, não possuir um caráter oficial, mas apenas intelectual consultivo,
percebemos que ela reafirmou a autoridade da Regra. Contudo, nela ficou evidenciada que a
pobreza franciscana não poderia ser compreendida de uma única forma, pois existiam diversas
possibilidades de vivê-la, prova disso é que até mesmo o dinheiro foi direcionando para o
campo da intencionalidade. A pobreza deixava de ser uma prática e passava a ser uma teoria,
e isso foi confirmado com a bula de 1245.
Após o governo de Haimo, seu sucessor Crescêncio de Iesi, que governou os
franciscanos de 1244 a 1247, continuou encontrando dificuldades para dirigir essa Ordem
religiosa, devido os seus conflitos internos. De acordo com Nachman Falbel325, foi durante
seu generalato que as ideias de Joaquim de Fiore 326, foram disseminadas entre os franciscanos
Espirituais. Estes encontraram na concepção de história baseada na Trindade do abade
cisterciense, uma interpretação para o século XIII.
Tanto David Burr327 quanto Nachman Falbel, afirmaram que Crescêncio enfrentou
problemas com os Espirituais, principalmente na região italiana da Marca de Ancona, onde
ele havia ocupado o cargo de Ministro provincial e se envolvido em conflitos com os zelanti
(defensores da Regra). O novo ministro, desde o início de seu generalato, mostrou-se incapaz
de resolver tais conflitos, pois sofria oposição por parte dos Frades que desejavam manter os
ideais primitivos de São Francisco328. Para Grado Merlo329, a eleição deste Ministro
simbolizava uma volta ao interesse pela vida de São Francisco. Isto ficou claro quando em
325

FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.

67.
326

O abade Joaquim de Fiore, contribuiu com suas visões teológica- religiosa, para uma releitura da sociedade e
das instituições de século XII, por meio do método alegórico-trinitário, sua doutrina trinitária nos permite uma
melhor concepção de história, pois a Trindade se manifestava na história da humanidade determinando suas
etapas e permitindo uma interpretação. A Trindade era um esquema para reconhecer uma escala de valores éticos
no comportamento da humanidade, no roteiro de sua salvação. Joaquim dessa forma construiu uma periodização
que representa as três idades do mundo: O período do Pai, no qual os homens viviam segundo a carne, em que
predomina o Velho Testamento. A este se sucede o período do Filho, o período da Graça, no qual os homens
vivem num estádio intermediário entre o espírito e a carne Este período é a época dos clérigos e nele predomina
o Novo Testamento. O terceiro período é o do Espírito Santo, o período do Amor, onde predominará o espírito
caracterizado pelo Evangelho do Espírito Santo ou o Evangelho Eterno que significa um conhecimento espiritual
superior dos dois Testamentos. Esse espírito eterno sacado das Escrituras pelo spiritualis intelectus, por uma
interpretação espiritual superior, é o que subsistirá enquanto a letra escrita desaparecerá no futuro. Essa
intelligentia spiritualis será comunicada aos viri spiritualis, fundamento da nova Igreja Espiritual (Ecclesia
spiritualis) assentada sobre uma nova ordem monástica (ordo iustorum; ordo monachorum), tomando o lugar da
Igreja carnal, hierarquizada e predominante até o seu tempo. Cf. FALBEL, Nachman. São Bento e a Ordo
Monachorum de Joaquim De Fiore (1136-1202). Revista Usp, São Paulo, v. 30, n. 30, p.273-276, junho/agosto
1996.
327
BURR, David. The Spiritual Franciscans: from protest to persecution in the century after Saint
Francis. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2001, pp. 21-24.
328
FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
88.
329
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 111.

110

1244 no capítulo de Gênova, o então líder dos Menores em detrimento das lacunas que
existiam na vita prima e do surgimento de diversos escritos relacionados à vida do Poverello,
convocou o recolhimento das lembranças do fundador da Ordem para construir a imagem do
Assisense harmonioso tanto para os Espirituais como para os Conventuais. Mas, ao mesmo
tempo em que Crescêncio se voltava para o passado para reconstruir os passos de São
Francisco, por meio de uma nova hagiografia, ficava perceptível que o passado se chocava
com a realidade do presente dos Frades e necessitava de intervenção do papado para a
manutenção da Ordem.
De acordo com Verônica Aguiar330, em 1245, antes de deliberar sobre os franciscanos,
com a bula Ordinem Vestrum331, o Papa Inocêncio IV que governou a Sé Apostólica entre
1243-1254, convocou o I Concílio de Lyon 332, para resolver problemas internos da Igreja
como: a moralidade, o cuidado com os Tártaros, o cisma da Igreja grega, os problemas do
império latino do oriente (Constantinopla) e a deposição do Imperador Frederico II que era
suspeito de heresia, sacrilégio contra a Igreja e de associação com os Sarracenos. Após tratar
as questões da Sé Romana, em novembro de 1245, o pontífice deliberou sobre os problemas
que a Ordem ainda enfrentava.
Ele apresentou uma nova bula que trazia importantes mudanças para a vida dos
franciscanos. Diferente de Gregório IX que ao escrever sua bula em 1230, fez alusão a
familiaridade que o mesmo possuía com o fundador da Ordem, Inocêncio IV utilizou apenas o
tópos “esclarecer os pontos duvidosos e obscuros”, como premissa para justificar sua nova
interpretação. Além disso, é possível encontrar na introdução da bula Ordinem Vestrum, a
utilização da retórica333, para tentar convencer os Frades que sua exposição, que era posta
como interpretação perfeita da Regra, era mais completa que a de Gregório IX e por isso mais
eficaz em torno dos esclarecimentos da normativa.
Vi sono nella vostra Regola alcuni punti dubbi e poço chiari che confondono il
vostro animo per uma certa perplessità e sono di impedimento all‟intelletto per la
loro complicata difficoltà. Il nostro predecessore papa Gregorio, di felice memoria,
330

Aguiar, Verônica Aparecida Silveira. A construção da norma no movimento franciscano. Regulae e
Testamentum nas práticas jurídicas mendicantes (1210-1323). 2010. Dissertação (Mestrado em História).
Departamento de história da Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da Universidade de São Paulo, São
Paulo, p. 122.
331
Bula Ordinem Vestrum. Cf. CAROLI, Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e
biografie di san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e
biografie di santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed. Padova:
Editrici Francescane, 2011, pp. 1727-1731.
332
Documentação referente ao I Concílio de Lyon realizado em 1245, pelo papa Inocêncio IV. Disponível em:
<http://www.documentacatholicaomnia.eu/a_1051_Sanctorum_Paparum_Decretalia_Ac_Argumenta_Quae_Pert
inent.html>. Acesso em: 10 dez. 2018.
333
BARTHES, Roland. Investigaciones Retóricas I: La antigua retórica. España: Ediciones Buenos Aires,
1982, p. 9.

111

ne há esposti alcuni e ne ha dato uma chiarificazione non completa. Per questo noi,
volendo rimuovere complemamente da essi l‟oscurità, chiarificandoli attraverso uma
perfetta interpretazione, e con la stessa sollecitudine eliminare del tutto dal vostro
cuore lo scrupolo dell‟ambiguità con la certezza di um‟esposizione più completa. 334

O novo texto pontifical apresentava a pobreza de forma mais mitigada 335. O dinheiro
na bula de 1245 era tido como algo possível na Ordem, no caso de eventuais necessidades dos
Frades. Na bula de Inocêncio IV também ficava determinado que as moedas poderiam ser
utilizadas, para que os Irmãos não passassem por situações incômodas (esigenze necessarie e
utilità). Essa relação entre os Frades e o dinheiro deveria se dar por meio do nuncio
(representante do benfeitor), que teria a função de guardar o dinheiro que os Frades recebiam
e depois dispensá-lo de acordo com as necessidades dos mesmos. Sobre o dinheiro o papa
Inocêncio IV deliberava:
Benché nella stessa Regola sia proibito che i frati ricevano in nessun modo denaro o
pecunia personalmente o per mezzo di altri, tuttavia, se essi vogliono comprare una
cosa necessaria o utile, oppure fare il pagamento per una comperagià avvenuta,
possono indicare o l‟incaricato di colui dal quale si compra la cosa, o qualche altro,
a coloro che volessero far loro l‟elemosina (a meno che preferiscano pagare loro
stessi personalmente o per mezzo dei propri delegati). E l‟incaricato così presentato
dai frati, non è il loro, sebbene sia da loro presentato, ma piuttosto di colui per la
cui autorità fa il versamento, o di colui che lo riceve; e (se dopo il pagamento della
compera, rimanga presso di lui qualche resto di tale elemosina) possono anche i frati
ricorrere a lui lecitamente per le loro esigenze necessarie e utilità. Se poi per le altre
esigenze e utilità dei frati venga nominato o presentato qualcuno, può egli
conservare come padrone l‟elemosina affidatagli, o depositarla presso un amico
spirituale o familiare dei frati nominato o anche non nominato da loro, dal quale sia
dispensata a tempo e luogo secondo le esigenze necessarie e l‟utilità dei frati,
come essi crederanno utile, o sia trasferita a un‟altra persona o in altri luoghi: a
costoro anche i frati potranno ricorrere con sicura coscienza per tali esigenze
necessarie o utilità, specialmente se quelli siano stati negligenti o quelle loro
necessità e disagi abbiano ignorato.336

A explicação do pontífice também tocava na questão dos bens materiais e
propriedades. Ele reforçou que os Frades não poderiam possuir, vender ou trocar coisas, logo
os bens que outrora foram concedidos aos Irmãos passavam direitamente para a posse da Sé
Romana, sem mediadores, exceto nos casos em que os doadores reservassem a propriedade e
domínio das coisas para ele mesmo, a Ordem era dado apenas o uso.
Poiché nella Regola è espressamente contenuto che i frati non si approprino di
nulla, né di casa, né di luogo, né di alcun‟altra cosa, dichiariamo inoltre che non
possono avere proprietà in comune o individualmente, ma l‟Ordine abbia l‟uso dei
334

Bula Ordinem Vestrum. CAROLI, Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di
san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di
santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed. Padova: Editrici
Francescane, 2011, p. 1727.
335
SUMMO, Nicola. Una mirada sinóptica a las bulas pontificias desde la Quo Elongati a la Exivi de Paradiso:
sobre la pobreza en la Orden de Frailes Menores. Tradução de Francisco Víctor Sánchez Gil. Selecciones de
Franciscanismo, Valencia, v.44, n.131, p.275-294, May./Ago 2015, p. 282.
336
Bula Ordinem Vestrum. Cf. CAROLI, Ernesto (Org.). Op. cit., pp. 1728-1729, grifo do autor.

112

luoghi, delle case, degli utensili, dei libri e di quei beni mobili che è licito
possedere; i frati poi ne usino secondo quanto hanno pensato di disporne il generale
o i ministri provinciali. Né debbono essere venduti luoghi, case o beni mobili simili,
né possono essere commutati fuori dell‟Ordine o alienati in qualunque modo, da
qualsiasi persona donati, venduti, permutati ad uso dei frati, sia in qualunque modo
siano stati trasferiti o lo saranno, se la Sede apostolica o il cardenale della santa
Chiesa, che vi è stato dato pro tempore come protettore, non ne abbia dato l‟autorità o
l‟assenso al generale o ai ministri provinciali: poiché il diritto, la proprietà e il
dominio di tali beni sia immobili che mobili (esclusi quelli su cui consti che i
donatori o i traslatori si siano riservati espressamente la proprietà e il dominio)
spettano alla Chiesa senza mediatori: è notorio che ad essa sottostanno del tutto
direttamente le case e i luoghi predetti con le Chiese e le altre pertinenze nelle cose
sia spirituali che temporali (tutti beni che noi riceviamo in diritto e proprietà del
beato Pietro). Ma dei Beni mobili di poço valore o di poço prezzo è permesso ai frati
per devozione o per altra causa onesta e ragionevole donarne agli altri fuori
dell‟Ordine (ottenutane prima la licenza dei propri superiori). 337

O papado, como destacou Verônica Aguiar338, ao utilizar as ideias de utilidade e
comodidade em sua interpretação, produziu uma bula que trazia um relaxamento em relação à
aplicabilidade do usus. A diminuição no rigor da pobreza franciscana apresentada pela bula
Ordinem Vestrum, para Grado Merlo339, dava um fundamento institucional aos Frades, visto
que permitia o uso do dinheiro, mas ia de encontro com a defensa do conceito de pobreza, que
continuava sendo a identidade dos Menores.
A exposição dos magistri e a bula papal, produzidas nos anos quarenta do século XIII,
nos evidenciavam a tentativa de harmonizar o franciscanismo340 com o minoritismo341. Para

337

Bula Ordinem Vestrum. Cf. CAROLI, Ernesto (Org.). Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e
biografie di san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e
biografie di santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. 3. ed. Padova:
Editrici Francescane, 2011, pp.1729- 1730, grifo do autor.
338
Aguiar, Verônica Aparecida Silveira. A construção da norma no movimento franciscano. Regulae e
Testamentum nas práticas jurídicas mendicantes (1210-1323). 2010. Dissertação (Mestrado em História).
Departamento de história da Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da Universidade de São Paulo, São
Paulo, p. 123.
339
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 112.
340
“[...] Uma tentativa de resposta consiste em privilegiar o “carisma de Francisco” cujo “sinais” foram dados
“dados aos seguidores como indicações para a realização de seu carisma”. Existiria e trabalharia um tipo de
dinamismo continuamente criativo intrínseco ao “franciscanismo de Francisco”, mas que na realidade emanaria
assim do frei Francisco, como de Clara de Assis, e da “primeira fraternidade franciscana”. [...] Grado Merlo
concorda com Sánchez Gil, que definiu o “franciscanismo” como uma categoria historiográfica, que foi elabora
no decorrer do século XIX, para definir “movimento franciscano” como um complexo fenômeno plurissecular,
mais institucionalizado, em formas muito diversificadas, a “rica herança” de São Francisco de Assis.” Cf.
MERLO, Grado Giovanni. La minorità de frate Francesco e il minoritismo dei frati Minori. Sémata, Ciencias
sociais e Humanidades, 2014, vol. 26, pp. 37- 38.
341
“O minoristismo, que também é produto, filtrado através de refletida e complexa operação cultural, da
progressiva teorização e da oposta institucionalização do franciscanismo do Frade Francisco.” cf. Ibidem. p. 43.

113

Grado Merlo342, essas palavras/conceitos, são de origem recente e são aplicadas
exclusivamente no plano historiográfico e não no histórico, são paradigmas interpretativos e
não abstrações racionais realizadas no século XII e início do XIII. Ao primeiro conceito
operacional, podemos definir dentro de uma visão teológica a proposta de vida de São
Francisco de Assis, e dentro de uma perspectiva historiográfica um movimento religioso
diverso e institucionalizado que era encarado como uma herança difícil, deixada pelo
Poverello. O minoritismo por sua vez, foi definido como as mudanças que o processo de
afirmação dos Frades na estrutura eclesiástica e social desencadearam na comunidade
franciscana.
O que estava no centro deste debate conceitual era como conciliar a espiritualidade
franciscana dos primeiros anos da fraternitas com as transformações que ocorreram dentro do
movimento, com o processo de institucionalização dos Frades, que tanto causaram embates e
dissoluções entre os seguidores do Assisense. No entanto, de acordo com Grado Merlo 343, é
possível perceber que o franciscanismo e minoritismo, não possuíam apenas elementos de
distinções, nessa relação encontramos conexões, pois os franciscanos estavam inseridos em
ambientes diversos e, portanto, não estavam imunes as transformações sócio-institucionais.
Logo, o processo de clericalização, a elevação de Frei Leão de Milão em 1241 ao episcopado
e a ligação entre Frei Elias com o imperador Frederico II, devem ser entendidos como produto
do minoritismo.
O resultado é uma síntese desigual e multiforme na qual prevaleceram os
componentes do minoritismo em relação aos da minorità, sem que o primeiro anule
completamente o segundo, conservando-o como arquétipos para ser utilizado para a
identidade, sempre em evolução, dos Frades e da Ordem. Pense, por exemplo, o
arquétipo da pobreza em sua passagem da condição de vivida concretamente a
objeto de profunda reflexão e de contrastada teorização. Pense sobretudo a
sublimação da existência cristã de São Francisco na santidade formalizada e
reconhecida institucionalmente de São Francisco. 344

Era, portanto, a conciliação entre o franciscanismo e minoritismo que continuava
causando divergência na comunidade franciscana. A impossibilidade de Crescêncio apaziguar
as disputas entre Espirituais e Conventuais, não agradou nem a Ordem, nem a Igreja 345. Este
acabou sendo deposto pelo papa Inocêncio IV no capítulo geral em Lyon. Em seu lugar foi
escolhido João de Parma, que havia adentrado a Ordem em 1233. Ordenado sacerdote e
342

MERLO, Grado Giovanni. La minorità de frate Francesco e il minoritismo dei frati Minori. Sémata, Ciencias
sociais e Humanidades, 2014, p. 36.
343
MERLO, Grado Giovanni. Francescanesimo, minoritismo e politica. Carthaginensia, 2015, vol. 31, p. 751771.
344
MERLO, Grado Giovanni. Op. cit., p. 44.
345
FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
88.

114

designado a lecionar filosofia e teologia em Bolonha e Nápoles, era um líder esperado pela ala
Espiritual dos Frades346, pois estes enxergavam nele a experiência primitiva do franciscanismo
novamente. Seu governo correspondeu ao período que vai de 1247 a 1257 e foi marcado pela
tentativa de conciliar os religiosos dissidentes.
David Burr347 destacou que durante os três primeiros anos de seu comando, ele visitou
toda a Ordem como determinava as constituições gerais de 1239. Em suas visitas andava a pé,
vestido com uma única túnica, não era anunciado previamente nos lugares, e comia o que
fosse colocado diante dele, como determinava a Regra (que para ele era substancialmente
igual ao Testamento, uma vez que foi ditado a São Francisco pelo Espírito Santo). Ele se
propôs a ser, deste modo, um exemplo para os Frades que haviam relaxado em relação à
simplicidade e a pobreza que marcaram os primeiros anos da fraternidade franciscana. Sua
postura tornava possível o diálogo com os Espirituais, grupo mais resistente as mudanças.
Sua tentativa de acabar com as divisões na Ordem, o levou a escrever epístolas aos
Frades que haviam se dispersado devido às perseguições de Frei Crescêncio, por meio destas
cartas, ele solicitava que estes retornassem as suas províncias sem sofrer nenhuma retaliação.
Outro feito importante de seu generalato ocorreu em 1254 no Capítulo de Metz, quando ele
pôs fim aos privilégios que a Ordem havia obtido por meio da bula Ordinem Vestrum de 1245
de Inocêncio IV, que diminuía o rigor da pobreza em virtude da comodidade dos Frades. No
intuito de promover uma unidade e igualdade entre os religiosos, neste mesmo capítulo, João
de Parma estabeleceu que os capítulos gerais fossem realizados alternadamente, uma vez na
Itália e outra nos Alpes348.
No entanto, apesar de seu esforço para solucionar os problemas internos da
comunidade franciscana, João de Parma foi acusado de ser adepto das ideias de Joaquim de
Fiore, o que culminou em seu afastamento do governo da Ordem. Para David Burr, a partir
dos registros de Ângelo Clareno, também é possível afirmar que João de Parma renunciou ao
comando da Ordem por ter percebido que não conseguiria trazer todos os Frades para
observância da Regra, assim em 1257, durante o Capítulo Geral de Roma, os Menores
pediram para que o próprio João de Parma indicasse seu sucessor, sua escolha recaiu sob
Boaventura de Bagnoregio.

346

FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.

90.
347

BURR, David. The Spiritual Franciscans: from protest to persecution in the century after Saint
Francis. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2001, pp. 29-30.
348
IRIARTE, Lázaro. Historia franciscana, Valencia, Editorial Asís, 1979.

115

4.3. Alter Franciscus: Boaventura e a reafirmação da normativa.

Boaventura de Bagnoregio, novo Ministro da Ordem em 1257, nasceu em Bagnorea,
provavelmente em 1221 e adentrou no grupo religioso entre 1238-1243. Era oriundo da
universidade de Paris, foi discípulo de Alexandre de Harles (integrante da comissão que
elaborou a Expositio Quatuor Magistrorum Super Regulam Fratrum Minorum), chegando a
lecionar na mesma instituição que obteve o título de bacharel. Esteve à frente dos franciscanos
durante o período de 1257 a 1274, e como seus antecessores, encontrou uma Ordem em
conflitos ocasionados pelo seu crescimento. Ocupar o posto de líder após os anos trinta do
século XIII era muito delicado. Se para Francisco os Ministros deveriam ser servos dos seus
pares e sua principal atribuição era a correção caritativa dos Irmãos, a partir da sua morte
ocupar cargos de liderança passou a possuir um peso político muito grande sobre as decisões
da Ordem.
O fato de existirem dois partidos no interior da Ordem dificultava a resolução quanto
às dissidências, ficava difícil para um líder tomar um partido nesta contenda, pois isso
significaria ingovernabilidade - foi o que ocorreu com Crescêncio que por ter se colocado
contra os zelanti, mostrou-se impossibilitado de intermediar os embates entre os Frades. Com
João de Parma, ocorreu à mesma coisa, sua aproximação com as ideias dos Espirituais, tornou
impossível sua governabilidade. Boaventura, por mais que se aproximasse das ideias dos
Frades Conventuais, adotou um tom moderador durante seu generalato.
Isso nos leva a afirmar que ele estava apto para mediar os impasses que existiam no
grupo religioso, e essa afirmação se baseia em dois aspectos importantes: o primeiro era o fato
de ele ter acompanhado os principais debates intelectuais e jurídicos ocorridos no interior da
comunidade franciscana, principalmente aqueles em relação à pobreza. Ele conheceu as
circunstâncias que aprofundaram as divisões entre os Irmãos, na verdade, ao adentrar a
Ordem, ele já a encontrou marcada por profundas separações.
O segundo fundamento que nos leva a acreditar que o Ministro geral escolhido era
uma peça importante para o equilíbrio das disputas internas da Ordem, foi o fato dele se
manter distante das ideias mais radicais dos primeiros tempos. São Boaventura era fruto das
mudanças que ocorreram na Ordem nos últimos tempos, as quais apontavam para uma forte
presença dos franciscanos nas universidades e na estrutura da Sé Romana, rumo a um
acelerado processo de clericalização, que ele próprio corroborou para legalizar 349. Não ter

349

DOCUMENTOS Franciscanos. Petrópolis: Cefepal, 1969. (DOCUMENTOS Franciscanos, 8), p. 63.

116

feito parte da primeira geração minorítica, abria para ele uma possibilidade mais concreta de
enfrentar os temas ligados a identidade da Ordem como a questão da pobreza, do trabalho e
do dinheiro e, como consequência, negociar uma conciliação entre os grupos divergentes,
visto que esses temas tinham um peso diferente no decorrer dos anos cinquenta do século
XIII, pois a distância de tempo atribuía um significado diferente aos mesmos conceitos 350.
Conhecedor dos desafios que seu generalato iria encarar, uma de suas primeiras
atitudes no comando da Ordem foi direcionar a todas as províncias uma carta circular na qual
eram indicadas as falhas dos Frades como: a falta de pobreza, problemas com a estabilidade e
adaptação dos Menores, seu objetivo ao apresentar os pontos negativos que existiam entre os
Frades, era reforçar os problemas internos, para que pudesse realizar um disciplinamento mais
eficaz e com isso tentar eliminar os conflitos da Ordem 351.
Outro problema enfrentado pelo novo governador dos Frades foi o combate às ideais
joaquimitas que existiam entre os Irmãos, essa questão afetava seu antecessor João de Parma e
outros franciscanos que eram acusados de heresia, por aproximação com a doutrina de
Joaquim de Fiore. Quem melhor resumiu a atuação do novo Ministro geral frente aos
problemas da Ordem foi Grado Merlo352, que afirmou que o programa de restauração da
Ordem agiu em duas direções: hagiográfico-teológica e jurídico-institucional.
No âmbito hagiográfico-teológico destacamos seu projeto de escrita de uma
hagiografia oficial de São Francisco, que foi finalizada em 1263, sendo ordenada a destruição
de todas as legendas franciscanas no Capítulo de Paris em 1266. A atitude de redigir uma
nova vida e a destruição das demais hagiografias, inclusive a de Tomás de Celano,
representava uma tentativa, por parte de Boaventura de resolver um problema interno da
Ordem, que era a proliferação de vidas de São Francisco. Estava clara a necessidade de
reconstruir uma imagem do Poverello equilibrada tanto para os Frades Espirituais como para
os Conventuais, para isso era necessário voltar ao passado353, para construir uma narrativa que
fosse capaz de mediar os conflitos do presente dos Menores.
Boaventura, na Legenda Maior, tentou mostrar um São Francisco, vinculado a pobreza
que era uma característica da origem da Ordem, mas sem a rigidez e severidade que os
Espirituais defendiam.

350

FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
102.
351
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 118.
352
Ibidem. p. 119.
353
HOBSBAWN, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 22.

117

E embora induzisse com todas as forças os irmãos a uma vida austera, no entanto,
não lhe agradava a severidade da rigidez que não se reveste com as vísceras (Cf. Cl
3,12) da piedade e não é condimentada com o sal (cf. Cl 4,6) da discrição. Pois,
numa noite, um dos irmãos, muito atormentado pela fome por causa do excesso de
abstinência, como não pudesse ter descanso algum e o piedoso pastor
compreendesse que o perigo estava iminente para sua ovelha, chamou o irmão,
colocou o pão sobre a mesa e, para tirar-lhe a vergonha, começou ele próprio a
comer primeiro e a convidá-lo docemente a comer. O irmão deixou de lado a
vergonha, tomou o alimento, alegrando-se muito, porque, pela discreta
condescendência do pastor evitou dano ao corpo e recebeu não pequeno exemplo de
edificação. Quando amanheceu, tendo convocado os irmãos, o homem de Deus,
relatando o que acontecera de noite, acrescentou uma sábia admoestação: “Irmãos,
sirva-vos de exemplo não o alimento, mas a caridade”. Ensinou-os, além disso, a
seguir a discrição como a condutora das virtudes, não aquela que a carne aconselha,
mas a que Cristo ensinou, cuja vida santíssima consta expressamente que é exemplo
de perfeição.354

No trecho da Legenda acima destacado, o hagiógrafo tentava conciliar as práticas
ascéticas dos primeiros tempos da fraternitas, sem a radicalidade que pudesse colocar os
Frades em risco. O Poverello era descrito como um moderador, que determinava que as ações
dos Menores deveriam ser discretas. Era por meio dessa narrativa que Boaventura pretendia
apaziguar os ânimos tanto da ala Espiritual quanto Conventual.
As redações hagiográficas (Legenda Maior e Menor355), muito nos revelam sobre as
mudanças no interior da Ordem. Para Michel de Certeau356, a hagiografia deve ser colocada
como baliza para entender as dimensões de um movimento religioso, pois ao mesmo tempo
em que tal escrito mostrava a distância do grupo em relação à origem, tornando perceptíveis
as transformações do presente em relação ao seu passado, ela permitia reconstruir a unidade
do grupo, num momento em que este corria o risco de se dissipar. Como resultado desse
trabalho hagiográfico de Boaventura, encontramos um São Francisco útil à Ordem e
interpretado pelo binômio teológico-espiritual: o Assisense era apresentado como Alter
Christus, ou seja, um homem que a partir de sua busca por Cristo se assemelhava a ele, seu
objetivo era mostrar que em toda a sua existência, o Poverello esteve em consonância com
Cristo e no final de sua vida tinha se convertido a imagem de Jesus357.

354

Cf. LM 7. TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, pp.
581-582.
355
Para Grado Merlo, a Legenda maior recebeu esse nome para distinguir-se da Legenda menor que foi
reproduzida e distribuída nas províncias da Ordem. Cf. MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco:
História dos Frades Menores e do Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p.
119.
356
CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 1982, p. 269.
357
VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 253.

118

Essa construção da imagem de um santo conciliador, que possuía uma dimensão
transcendental por estar ligado ao divino, trazia a intenção de Boaventura de Bagnoregio, de
dissociar a história do movimento franciscano, da experiência inicial de seu fundador, isso
ocorreu por meio de um discurso marcado pela legitimação das modificações da Ordem
(minoritismo), pois para ele a adaptação da Regra não era um sinal de decadência, mas sim de
necessidade, visto o crescente número de bispos e doutores em teologia entre os Menores 358.
Descrito como contemporizador359, este Ministro geral buscou conciliar as transformações
com os princípios de fundamento do movimento franciscano, sem contudo, solicitar a
formulação de uma nova bula, visto que esta atitude acarretaria muitos debates entre os
integrantes da Ordem.
Há no trabalho de Boaventura, a busca em legitimar as mudanças advindas da relação
entre os religiosos franciscanos, a Igreja e o corpo social daquele período, por meio da
formulação de teorias que justificassem as metamorfoses da Ordem, como algo que partiu de
Deus. Com este fim, ele defendeu que a Igreja em seu início era formada por homens simples,
porém, com o passar do tempo, progrediu para homens doutores, a mesma coisa ocorreu com
os Menores, isso era uma confirmação de Deus em relação aos propósitos iniciados por São
Francisco360.
Passado o momento da escrita da hagiografia, Boaventura 361, trabalhou no campo
jurídico-religioso. Grande parte de sua atuação neste âmbito advinha de sua concepção de
funcionamento da Instituição Eclesiástica. Para ele a Igreja era um corpo visível, que
organizada juridicamente, resultaria em uma harmonia entre seus membros, graças ao poder
sagrado que era o suporte invisível que sustentava o direito canônico. A Igreja, enquanto
instituição detinha um poder de jurisdição, mecanismo importante para manter o equilíbrio
entre os indivíduos que a compunham, isto é, a instituição tinha o poder de governo, atribuído
a ela pelo próprio Cristo, seu chefe supremo. A Sé Apostólica, para um desenvolvimento
satisfatório de suas funções sacramentais, deveria estar disposta de forma organizada e
hierarquizada, com a figura do papa ocupando o topo dessa pirâmide, abaixo dele estaria à
figura dos bispos, presbíteros e diáconos até chegar aos simples fiéis.
358
359

VAUCHEZ, André. Francisco de Assis Entre História e Memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2009, p. 254.
FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.

98.
360

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 120.
361
FRESNEDA, Francisco Martínez. Textos e Contextos da Teologia Franciscana. In: FRESNEDA, Francisco
Martínez; MERINO, José Antônio (Org.). Manual de Teologia Franciscana. Petrópolis: Vozes: FFB, 2005, pp.
219-224.

119

A eclesiologia de Boaventura colocava a Sé Romana como uma autoridade detentora
de uma jurisdição que deveria organizar toda a cristandade, e foi justamente a esta estrutura
jurídica que ele recorreu para tentar por fim aos conflitos internos da Ordem. Para realizar os
debates necessários, o Ministro geral utilizou como base a bula Quo Elongati do papa
Gregório IX362. O ato de não inovar em seu governo, mas de aceitar a Ordem no estágio
evolutivo que havia encontrado (ordem clerical), acabou fazendo Boaventura ser definido,
como um apologista da evolução franciscana e moderador da observância regular363.
David Burr364, afirmou que a sucessão de João de Parma para Boaventura não
produziu mudanças radicais, seu generalato partia do princípio de via media365, caracterizado
por um discurso moderado, que tentou conciliar os aspectos da vida minorítica com o
desenvolvimento da Ordem. Seu primeiro esforço no governo geral dos franciscanos deu-se
no Capítulo de 1260, quando ele elaborou as Constituições de Narbona (regulamentações
internas da Ordem), que para David Burr, representavam um empenho em estabelecer normas
que respeitassem a Regra e deixassem os religiosos livres para realizarem as tarefas que a
Igreja havia ordenado a eles. Estas, em conjunto com a normativa de 1223, regulamentariam
os aspectos minoríticos como a pobreza, o dinheiro e a autoridade dos Ministros 366, conforme
se demonstra a seguir:
Proibimos, novamente, aos frades que não sabem ler o saltério de aprender a ler e
aos demais de lhes ensinar, O contraventor será excluído da comunhão do ofício e
da mesma até a satisfação proporcionada. E que ninguém passe do estado de leigo
ao de clérigo sem autorização do geral. 367

O Trecho da legislação de 1260 reforçava a linha de clericalização que ocorria entre os
franciscanos. Isto ficava claro com a limitação na formação e na migração de leigos para o
status de clérigos. Os laicos deveriam permanecer no estado em que se encontravam.
Outro aspecto que foi abordado neste documento diz respeito aos estudos, conforme
vemos no trecho abaixo:
Que os estudantes tomem cuidado de não destinar para outra para outra finalidade as
esmolas que receberam para comprar livros, ou então: nós proibimos de espalhar
fora da Ordem um escrito novo que não tenha sido aprovado pelo ministro
provincial e os definidores, durante o Capítulo provincial; e ainda, que nenhum frade

362

FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
100.
363
FALBEL (1995, p. 100 apud P. Gratien, 1928, p. 251)
364
BURR, David. The Spiritual Franciscans: from protest to persecution in the century after Saint
Francis. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2001, pp. 34-35.
365
Ibidem. p. 36.
366
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, pp. 137-138.
367
DESBONNETS, Théophile. (1987, p. 139 apud Constituições de Narbona, 1941, p. 39).

120

tenha a ousadia de sustentar ou aprovar uma opinião que seja, geralmente, reprovada
por nossos mestres.368

Os estudos, embora assumindo grande relevância quando a fraternitas transformou-se
em uma Ordo clerical, não era algo de livre escolha. Existiam algumas regulamentações
internas que visavam manter o controle sobre a aplicabilidade de recursos para a aquisição de
livros, mas também sobre o conteúdo que os Frades deveriam se debruçar, eles poderiam
estudar apenas o que havia sido aprovado por seus Ministros.
Grande parte dessas regulamentações internas, que afetavam os estudos, questões do
cotidiano como a relação com comida e vestimentas advinham das Constituições de Narbona,
que pretendiam unificar a legislação da comunidade franciscana, pois de acordo com
Desbonnets, desde a aprovação da Regra em 1223 os franciscanos realizaram diversos
capítulos, os quais produziram inúmeros estatutos que provavelmente foram ignorados pelos
Frades.
Boaventura acabou abrindo mão do governo dos Frades para assumir o cargo de bispo
de Albano, sendo sucedido por Jerônimo de Ascoli em 1274. Neste mesmo ano, ocorreu o II
Concílio de Lyon, na ocasião surgiram boatos de que naquele sínodo o papa Gregório X
(1271-1276) pretendia ajustar o perfil da Ordem Mendicante às demais ordens religiosas,
fazendo-os aceitar propriedades. Frente a esta notícia, os Frades da Marca de Ancona, região
considerada o berço da ala Espiritual, se organizaram contra as mudanças em curso que
seriam aplicadas aos franciscanos e fizeram oposição. Essa insurreição foi reprimida pelo
papado e muitos de seus representantes foram enviados para eremitérios369.
Podemos perceber que mesmo com as tentativas de Boaventura de acabar com os
conflitos entre os Frades, a experiência dos primeiros tempos do franciscanismo continuava
viva na memória de seus primeiros seguidores. Após mais de sessenta anos do início da
experiência de São Francisco, era possível encontrar Menores que defendiam a integridade da
Regra e do Testamento. Isso em parte, estava ligada a propagação das memórias dos
companheiros de São Francisco de Assis. Sabemos, por meio das pesquisas de Nachman
Falbel370 e David Burr371, que os Espirituais que defendiam o franciscanismo primitivo,
continuaram propagando suas ideias, mesmo depois da repressão durante o governo de

368

DESBONNETS, Théophile. (1987, p. 139 apud Constituições de Narbona, 1941, p. 49).
BURR, David. The Spiritual Franciscans: from protest to persecution in the century after Saint
Francis. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2001, p. 44.
370
Para Falbel, tudo indica que os espirituais tiveram sua origem como facção durante o generalato de Frei Lias.
Cf. FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
106.
371
BURR, David. Op. cit. p. 13.
369

121

Crescênio. Destacamos deste grupo as figuras de Frei Egídio e Leão, que viveram até 1261 e
1271 respectivamente. Eles estavam entre os primeiros companheiros do Poverello e tiveram
bastante tempo para remodelar as memórias do Assisense e transmiti-las a outras gerações de
franciscanos.
Portanto, os Frades Espirituais conservavam e mantinham viva a experiência dos
primeiros tempos do franciscanismo. Era o compartilhamento das memórias individuais dos
primeiros seguidores de São Francisco, que tornava possível a formação de uma geração de
religiosos que não conheceram o Poverello, mas pelo contato com os companheiros íntimos
do Assisense continuaram acreditando que a vida minorítica, estava baseada na estrita
observância da Regra e do Testamento372. De fato, o franciscanismo das origens passou de
uma memória individual para uma memória compartilhada373, mantendo vivas as resistências
as mudanças na Ordem.
Esses dilemas que continuaram existindo na comunidade franciscana mesmo após as
reformulações organizacionais e jurídicas de Boaventura, não podem ofuscar seu esforço na
tentativa de conciliar as divergências minoríticas. Não há dúvidas de que ele foi um
habilidoso sintetizador das mudanças na Ordem, legitimando a aproximação dos Frades com a
Igreja, por isso em muitos momentos sua imagem foi associada a do Poverello. Se Francisco
foi considerado o Alter Christus, Boaventura foi considerado um Alter Francisco. Para
Desbonnets374, esta afirmação é ao mesmo tempo exata porque São Francisco nunca almejou
fundar uma Ordem religiosa, e abusiva porque outros ministros como Haimo também
desempenharam um papel importante na reestruturação dos religiosos e muito contribuiu no
tocante a clericalização da Ordem. Fica por fim, a questão de que esta afirmativa também seja
ambígua, pelo fato de que Boaventura jamais pensou em desempenhar este papel.
Para Giovanni Miccoli375, as obras de Boaventura não podem ser analisadas
isoladamente, mas com uma precisa continuidade de posturas e reflexões que remontam aos
problemas dos últimos anos de vida de São Francisco de Assis. Ele, na verdade, fechou um
ciclo e, portanto, pode ser considerado o segundo fundador da Ordem porque foi quem
chegou a concretizá-la, tanto no plano doutrinal, quanto no espiritual. Como produto final

372

FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
107.
373
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 157.
374
DESBONNETS, Théophile. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 141.
375
MICCOLI, Giovanni. Francisco: O santo de Assis na origem dos movimentos franciscanos. São Paulo:
Martins Fontes, 2015, p. 287.

122

desse processo, nos deparamos com um grupo religioso completamente inserido na vida
citadina e empenhado numa grande e articulada atividade pastoral e de magistério.
Portanto, o debate que ocorreu durante o governo de Boaventura, que culminou entre
outros, na produção do documento conhecido como Expositio super Regulam Fratrum
Minorum, que analisaremos a seguir, foi de fundamental importância para a vitalidade da
Ordem dos Frades Menores, pois além de validar as mudanças que aconteceram devido o
desenvolvimento da Ordem, visavam esclarecer os aspectos da vida minorítica, tentando
conciliar dessa forma, as oposições presentes entre os Frades. No entanto, mesmo com tantos
pontos benéficos à organização dos Menores, seu esforço não conseguiu inibir a atuação dos
Espirituais que mostravam-se mais uma vez, resistente as possíveis imposições que a Igreja e
os Ministros tentavam realizar.

4.4. Comparação entre a Regra bulada e a Exposição de Boaventura.

O generalato de Boaventura (1257-1274), além da atuação no âmbito hagiográficoteológico e jurídico-institucional, também teve como base, discussões teórico-intelectuais, que
produziram a Expositio super Regulam Fratrum Minorum 376. Esse documento era fruto do
pensamento universitário e sua dinâmica de escrita baseava-se no modelo escolástico das
disputationes.
Sobre escolástica é preciso dizer que se tratava de um método baseado em três
fundamentos: o vocabulário/gramática, pois era essencial saber que relações existem entre as
palavras, os conceitos e o ser; a dialética, visto que a partir da relação com o material
analisado, criava-se um problema; a autoridade, a escolástica se alimentava de textos,
portanto, era um método pautado na autoridade dos escritos cristãos e dos pensadores
antigos377.
A escolástica partia da compreensão dos objetos analisados e esse processo percorria o
seguinte caminho:
[...] lectio, análise em profundidade que parte da análise gramatical, a qual
produz a letra (littera), ergue-se a explicação lógica que fornece o sentido
(sensus) e termina pela exegese que revela o conteúdo da ciência e do

376

ROBAERT, Plácido; FASSINI, Dorvalino (Org.). Exposição Sobre a Regra dos Frades Menores: São
Boaventura. Porto Alegre: Evangraf, 2008.
377
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, pp. 117118.

123

pensamento (sententia). Era esse neste processo sistemático de análise que
surgiam as quaestio e depois seguiam-se a disputatio.378

É dentro destas normas de escrita que a obra de Boaventura se enquadra. Ao tomar a
Regra como objeto de seu exame, ele utilizou princípios jurídico-conceituais, para aproximar
os princípios franciscanos das necessidades da Ordem. Composta por doze artigos a Expositio
foi apresentada como, um documento que visava explicar o sentido de cada palavra da Regra
Bulada, por isso recebeu o nome - Expositio -, que deriva do verbo latino exponere, que
significa: pôr para fora. Este documento não deveria ser entendido como uma interpretação,
pois se assumisse essa característica traria à tona novos debates em relação a alguns conceitos
pauperístico. Como Expositio, este documento trouxe um tom conciliador para a Ordem, visto
que seu objetivo era tentar compreender do que o texto tratava.
Na Expositio, encontramos algumas reafirmações do conteúdo da normativa
franciscana e da bula Quo Elongati. Boaventura limitou a observância dos Evangelhos apenas
ao que estava disposto no texto da Regra. Reforçou a obediência e autoridade dos Ministros
na recepção dos aspirantes a vida minorítica, no tratamento dos Frades que pecassem, na
obtenção da licença para pregar nas cidades e entre os sarracenos e, por fim, reforçou a
proibição de relacionamentos suspeitos com mulheres que poderiam causar escândalos para a
Ordem.
Contudo, ao mesmo tempo em que reafirmava alguns aspectos da Regra, Boaventura,
tentou legitimar as mudanças que ocorriam na Ordem. Quando tratou da questão da pregação,
o mesmo reforçou a necessidade dos Frades estudarem, para que pudessem melhor
desenvolver a predicação, pois por meio dos estudos, os Menores evitariam a ambiguidade
das palavras, não pronunciariam sentenças confusas, palavras difíceis e evitariam a
prolixidade, tornando a pregação mais eficiente. Ao relacionar estas duas atividades, ele
legitimou a ocupação das cátedras universitárias pelos Frades 379.
Para a causa formal acrescenta: com breves palavras. Essa brevidade exclui
ambiguidade de palavras e sentenças confusas, como também palavras difíceis,
acima da capacidade dos ouvintes [...] A partir desse capítulo, vê-se claramente que,
por intenção do bem-aventurado Francisco se incumbe os Frades de estudar, uma
380
vez que sem estudo não podem examinar as palavras devidamente.

Boaventura, também validou a ocupação dos franciscanos em cargos episcopais, que
aparentemente contrariava a vontade de São Francisco, ao menos aquela descrita na Legenda
378

LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 120, grifo
do autor.
379
Ibidem. p. 131.
380
ROBAERT, Plácido; FASSINI, Dorvalino (Org.). Exposição Sobre a Regra dos Frades Menores: São
Boaventura. Porto Alegre: Evangraf, 2008, p. 115.

124

Maior381 e na Regra não bulada, a qual defendia que os Frades fossem menores. Para
Boaventura, os franciscanos ao assumirem a vida minorítica, deveriam ser proibidos de sair da
Ordem, e para ele ficava a dúvida se o fato dos Irmãos assumirem cargos episcopais, não
significaria um abandono da Ordo? A resposta a este questionamento foi não. Os Irmãos que
assumissem o governo das almas, não poderiam ser considerados externos a ela, o único erro
estaria em aceitar cargos com o objeto de fugir da vida austera:
E o que dizer daqueles que são tomados do meio desses Frades para o ofício
episcopal? Respondo: Se, obrigados pela Igreja, em vista de inevitável necessidade,
assumem o governo das almas, não são considerados como saídos da Ordem. Porém,
se chamados ao grau do Episcopado, mas não obrigados, a ele aspiram para fugir das
fadigas dos pobres e da disciplina da Ordem, creio que caem naquela parte daquele
que diz: sentar-me-ei no monte do testamento nos lados do aquilão.382

Como Boaventura seguia o modelo universitário-escolástico383, de análise pontual384
das palavras, ele se esforçou para racionalizar determinados conceitos que faziam parte da
identidade franciscana e atualizá-los em relação às transformações da Ordem. Para David
Burr385, o generalato de Boaventura foi um período de notáveis ratificações institucionais,
todavia, nem sempre essas explanações teóricas estavam correlacionadas com a prática,
forçando assim a passagem da pobreza vivida para a pobreza pensada386.
A obediência, um dos pilares da Ordem franciscana, foi apresentada sob uma ótica
multifacetada, ela assumiu o papel de virtude e estava disposta em três formatos:
A negação de si mesmo, porém, se dá de três maneiras. A primeira é necessária a
modo de subcontrariedade, pela qual o homem renuncia à sua vontade em algumas
coisas, como nos pecados, e conversa sua vontade para si em outras, como nos atos
indiferentes. A outra é a negação de si mesmo pelo modo de contrariedade, a saber,
naqueles que renunciam à sua vontade em todas as coisas, seja singelamente, seja
adaptadamente, não querendo e nem fazendo nada segundo o poder de sua vontade.
[...] Existia ainda uma terceira abnegação de si mesmo, por assim dizer contraditória,
que se dá quando a pessoa expõe a própria vida pela glória do criador.387

381

[...] E quando o senhor de Óstia, protetor e especial promotor da Ordem dos Fardes Menores- o qual depois,
de acordo com o que o santo homem predissera, foi elevado à honra do sumo pontificado e chamado Gregório
IX-, lhe perguntou se lhe agradaria que os irmãos fossem promovidos às dignidades eclesiásticas, ele respondeu:
“senhor, meus irmãos foram chamados Menores para que não presumam tornar-se maiores. Se quereis que eles
produzam frutos na Igreja de Deus, mantende-os e conservai-os no estado da vocação deles e não permitais de
maneira alguma que se elevem às prelaturas eclesiásticas. Cf. LM 6, 5. TEIXEIRA, Celso Márcio. Op. cit., p.
588.
382
ROBAERT, Plácido; FASSINI, Dorvalino (Org.). Exposição Sobre a Regra dos Frades Menores: São
Boaventura. Porto Alegre: Evangraf, 2008, p. 42, grifo do autor.
383
HARDICK. Lothar. “Pobreza, pobre”. In: CAROLI, Ernesto (org). Dicionário Franciscano. Petrópolis:
Vozes, 1993, pp. 586-599.
384
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 110.
385
BURR, David. The Spiritual Franciscans: from protest to persecution in the century after Saint
Francis. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2001, p. 37.
386
FALBEL, Nachman. Os espirituais Franciscanos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1995, p.
102.
387
ROBAERT, Plácido; FASSINI, Dorvalino. Op. cit., p. 25.

125

As classificações das formas de sujeição aparecem como uma maneira de destacar que
os cristãos não possuíam formas iguais de obediência, embora ficasse claro que a forma mais
sublime de subordinação, era aquela em que os religiosos não desobedeciam em nada, a
menos que contrariasse a própria Regra. Este debate era importante, pois quando se admitia
uma única forma de estar em estado de obediência, se o indivíduo não se enquadrasse naquele
modelo, poderia ser julgado por indisciplina, assim, Boaventura ao destacar uma submissão
multifacetada mostrava que os Frades poderiam adotar qualquer modelo de submissão
apresentado, que isso não significaria contrariedade a Regra.
A prática do jejum também seguiu esta mesma análise conceitual. Foram apresentadas
duas formas: uma era o jejum de tristeza no qual o indivíduo se abstinha do que lhe agradava
e era movido pelo desejo de penitência; a segunda era de gáudio, que se dava quando o
homem estava em elevado estado espiritual, que o ato de sentar-se a mesa para comer era
visto como algo negativo. Deve-se destacar que em caso de necessidades como doenças e
trabalhos braçais, os Frades não eram obrigados a manterem as abstenções de comidas:
O jejum, porém é duplo, ou seja de tristeza e de gáudio. Jejum de tristeza é aquele
pelo qual se abstém de alimentos que agradam à carne e é movido pelo desejo da
penitência. O jejum de gáudio, em verdade, se dá quando o próprio coração está
unido a tantas delícias espirituais, a ponto de ser-lhe um peso sentar-se à mesa para
comer.388

Ao apresentar a obediência sob essas três perspectivas e o jejum sob duas formas,
Boaventura, buscava amenizar o discurso dos franciscanos que defendiam a rigidez dos
primeiros tempos da fraternitas. Ficava claro que ele não entendia as práticas minoríticas de
forma tão radical como São Francisco propunha no início do movimento. A moderação das
práticas dos Menores também estava presente na questão da pobreza, esta também ganhou
tons menos radicais, visto que Boaventura possuía um tom moderador que partia da noção de
via media, que era semelhante ao conceito de usus pauper de Frei Pedro João Olivi, ou seja,
sua discussão sobre a pobreza admitia o uso do que era necessário, rejeitando uma pobreza
absoluta que impedisse os Frades de desempenhar seus deveres

389

.

Ao tratar do dinheiro no capítulo IV da exposição, ele nos apresentou uma
argumentação jurídica-conceitual que se assemelhava a discussão dos magistri parisienses na
Expositio Quatuor Magistrorum Super Regulam Fratrum Minorum, quanto à definição do que
seria pecúnia. Na Expositio super regulam, dispomos da seguinte explicação:

388

ROBAERT, Plácido; FASSINI, Dorvalino (Org.). Exposição Sobre a Regra dos Frades Menores: São
Boaventura. Porto Alegre: Evangraf, 2008, p. 61.
389
BURR, David. The Spiritual Franciscans: from protest to persecution in the century after Saint
Francis. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2001, p. 36.

126

A respeito disso deve-se saber que pecúnia é palavra referente às coisas terrenas,
cheirando mais à avareza do que o nome das riquezas, como ensina Santo Agostinho
no capítulo XII da Cidade de Deus. Num sentido largo, chama-se de pecúnia tudo o
que se possui temporariamente. [...] Noutro sentido, mas estrito entende-se por
pecúnia aquilo que serve de medida na troca das coisas. 390

Tanto os magistri parisienses como Boaventura, entendiam que o dinheiro estava
ligado à materialidade e que todas as coisas podiam assumir a condição de moeda, de acordo
com a intencionalidade dos indivíduos. Contudo, Boaventura também condenou a utilização
do dinheiro, ele tomou como base de sua argumentação a passagem de São Mateus 10,9: “Não
queirais possuir ouro nem prata nem dinheiro”.
A partir deste trecho, Boaventura elencou sete razões 391 pelas quais os apóstolos e,
consequentemente, os franciscanos deviam abster-se do contato com moedas: os excluiria de
suspeitas, mostraria confiança na providência divina, extirpação do amor mundano,
possibilitaria maior aplicação ao exercício da pregação e, por fim, daria a liberdade de não
estar apegado a bens materiais. Segundo Boaventura o próprio Cristo seguiu o preceito de não
possuir nada, foi o que ele respondeu quando questionado se os Frades deveriam possuir
bolsas:
Antes pelo contrário, lê-se ordinariamente que se alimentava de alimentos alheios e
em mesas de outros, pois se lê em Lucas 8,2 que santas mulheres o acompanhavam,
servindo-o com seus bens. E como enviou os Apóstolos sem bolsas e nenhuma
provisão humana, também ele percorreu, muitas vezes, cidades e povoados. [...] Eis
que Cristo mesmo cumpriu a lei dada aos Apóstolos, de não possuir bolsas ao
percorrer as aldeias, nas quais não teve onde pudesse reclinar sua santíssima cabeça
[...] não tendo nada de próprio, do que receber depósito e possuir dinheiro com
despensas abarrotadas.392

Além desse argumento apoiado nos Evangelhos, ele também dava uma justificativa
jurídica para a posse de pecúlio. Sabemos que a Regra proibia o contato com dinheiro e para
isso o documento normatizador de 1223 e a bula papal de 1230 reforçavam o papel dos
amigos espirituais que deveriam administrar as doações que os Irmãos recebiam. Este ato de
delegar a terceiros o manuseio de moedas, era visto como se os próprios Irmãos estivessem
recebendo o dinheiro, logo a questão não demorou a esbarrar novamente na posse da pecúnia.
Boaventura argumentou então que o dominium das moedas nunca saía de quem o doava:
[...] o domínio sempre permanece com os remetentes, até que seja transformado
pelas necessidades dos Frades. Isso se prova pelo que diz a lei ff De acquirendo
rerum domino: “Compreendemos ter algo entre nossos bens, toda vez que possuímos
a reserva; ou perdendo-a, movemos uma ação para recuperá-la. Quando, portanto,

390

ROBAERT, Plácido; FASSINI, Dorvalino (Org.). Exposição Sobre a Regra dos Frades Menores: São
Boaventura. Porto Alegre: Evangraf, 2008, p. 68.
391
Ibidem. pp. 125-126.
392
Ibidem. pp. 74-75, grifo do autor.

127

aquele que envia dinheiro está vivo e pode reavê-lo como seu, nunca saiu de seu
domínio, nem passou para o direito de outrem. 393

A posse do dinheiro, portanto, estava ligada a intencionalidade de tornar alguém dono
da pecúnia, no caso dos franciscanos o doador intencionava converter a doação para as
necessidades dos Irmãos menores, caso voltasse atrás em sua decisão de ofertar algo aos
Frades poderiam reverter à doação e o bem ou dinheiro retornaria para seu domínio, logo os
amigos espirituais não representavam risco a prática da pobreza, no que tange a proibição do
manuseio de dinheiro. Vale destacar que a proibição de receber dinheiro também afetava as
relações de trabalho, visto que os Frades só poderiam receber como salário, coisas necessárias
ao corpo, como determinava a Regra de 1223.
O ato de não se apropriar de coisas reapareceu no capítulo VI da Expositio, que
reafirmava a proibição dos Frades possuírem propriedades. Boaventura reforçou que a
“intenção” de São Francisco, era que os Irmãos deveriam estar na condição de servos que
utilizavam coisas dos outros. Toda a argumentação apresentada neste capítulo partia do
conceito de domínio e uso, que já havia sido discutido por Gregório IX na bula de 1230. Os
Frades ao utilizarem as coisas não possuíam a posse dos bens, mas apenas sua utilização,
juridicamente eles usufruíam de objetos que pertenciam à jurisdição da Igreja.
Do mesmo modo, parece falso impor essa forma de viver à Igreja de Deus. Os
clérigos e os religiosos, que possuem os bens das igrejas, não são donos deles.
Apenas possuem o uso, porque a lei ff De rerum divisione, diz que “as coisas que
são de direito divino não estão entre os bens de ninguém”. Logo, os clérigos não
possuem o dominio, mas o uso. Do mesmo modo , as coisas que os Frades usam.394

Contudo, mesmo reforçando a ideia de uso, Boaventura admitiu uma realidade que
não estava presente na Regra de 1223, na qual os Frades poderiam usar qualquer coisa, na
quantidade que quisessem:
Pergunta-se, porém, uma vez que os Frades têm apenas o uso das coisas, podem ter
o uso de quaisquer coisas e de quantas quiserem? Parece que sim, uma vez que
segundo Gregório não é a ideia que está em culpa, mas o afeto. Basta, portanto, ter a
afeição livre, e então não há atração nas coisas, sejam elas grandes ou pequenas.
Outra objeção: Deus viu todas as coisas que fizera, e eram muito boas. O bem que se
agrega ao bem aumenta o bem. Logo carência das riquezas nada faz para a
perfeição. Mas uma objeção: Não se lê em ambos os Testamentos que muitos santos
abundavam em riquezas? Respondo à questão que, como os Frades professantes da
altíssima pobreza, convém que todas as coisas que vêm para o uso dos mesmos,
sejam, na medida do possovel, poucas, vis e ásperas: três qualidades que
acompanham naturalmente a altíssima pobreza. 395

393

ROBAERT, Plácido; FASSINI, Dorvalino (Org.). Exposição Sobre a Regra dos Frades Menores: São
Boaventura. Porto Alegre: Evangraf, 2008, p. 80, grifo do autor.
394
Ibidem. pp. 90-91, grifo do autor.
395
Ibidem. pp. 93-94.

128

Admitia-se o uso de todas as coisas sob o argumento de que, desde que não houvesse o
interesse em ter o domínio sobre os objetos, os franciscanos poderiam utilizar todos os
utensílios que estavam a sua disposição. No entanto, a permissão para utilizar uma variedade
de materiais parecia contrariar o modelo apostólico da Regra, por isso Boaventura vinculou o
uso dos utensílios a três princípios: os itens deveriam ser poucos, vis e ásperos. Essa era uma
fórmula utilizada para conciliar o aumento de bens material entre os Frades e mantê-los fiéis à
pobreza.
Podemos perceber que ao tratar da não apropriação de bens e propriedades,
Boaventura se esforçou para esclarecer que os princípios franciscanos não estavam sendo
contrariados com a transformação destes em uma ordo clerical, na verdade, suas explanações
tentavam mostrar que os Menores, mesmo ocupando as universidades e os cargos
eclesiásticos, se encontravam em concordância com o documento normativo de 1223. Desta
forma, ele defendia os princípios da Ordem sem impedir as mudanças que vinham ocorrendo
em seu interior.
Aferimos que a Exposição representava a impossibilidade de ler os documentos
franciscanos de forma objetiva, sem lhes acrescentar nada nem mudar seu sentido. Boaventura
deu legitimidade para que a Regra passasse a responder aos novos tempos e a nova realidade
que o movimento de Francisco enfrentava e essa defesa das mudanças deu-se por meio de
uma explanação dos conceitos franciscanos. Dessa forma, as interpretações realizadas por
Boaventura, ressaltavam que o texto, quando colocado sob análise dos leitores que possuíam
uma bagagem cultural, tornava-se impossível de ser lido de forma simples396.
Portanto, o trabalho intelectual realizado por Boaventura, não modificou o texto da
Regra, mas por meio de apropriações legitimadas pelo método escolástico, ele conseguiu
distanciá-la do modelo inicial da Ordem. Se para São Francisco a pobreza era compreendida
como um estado de espírito, para Boaventura a pobreza era um conceito academicamente
suscetível ao debate e sujeito a diversas definições. Ele trabalhou para mostrar que o passado
da Ordem havia sido superado e que abria-se um novo momento para o grupo religioso.
Contudo, o passado permaneceu como modelo para os Espirituais, que continuaram
almejando viver a Regra literalmente, essa relação entre o passado e presente da Ordem
mantiveram vivas as resistências em relação às mudanças, impossibilitando as resoluções dos
conflitos que existiam entre os franciscanos.

396

ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 8. ed. São Paulo,
SP: Perspectiva, 1997, p. 40.

129

4.5. É possível definir o franciscanismo das origens?

A atuação de Boaventura enquanto esteve frente à Ordem, na tentativa de legitimar as
mudanças em curso no interior do grupo minorítico, nos coloca diante de um dilema temporal
presente entre os Frades, a constante necessidade de voltar aos primeiros tempos do
franciscanismo, para consultar um passado que continuava servindo de base para os que
defendiam a memória integral de São Francisco sem nenhuma mudança institucional, ou seja,
a ala dos Irmãos Espirituais.
A pulsante vitalidade dos anos iniciais que gerava constantes conflitos, e que o então
Ministro geral visava amenizar, nos faz refletir sobre o que de fato podemos definir como um
franciscanismo das origens, que mesmo com as transformações pelas quais passou esse grupo
religioso, via o passado como um mito, um tempo áureo que continuava agindo como pedra
de comparação e exigindo continuas reflexões e progressivas adaptações dos Menores, que
não conseguiam fugir dos caracteres constitutivos da fraternitas397.
Em primeiro lugar, é mister destacar que em nossa visão, devemos nos distanciar da
presunção de que na origem encontraremos a essência e identidade imutável de algo. Como
destacou Michel Foucault398, ao tratar das descontinuidades, é necessário pensar que o que
estava disposto no começo histórico das coisas não é uma identidade ainda preservada, mas
sim, as discordâncias entre os elementos constitutivos. Para este filósofo-historiador o termo
origem é algo que está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo, ou
seja, o princípio derivava de uma formação múltipla de conflitos e contratempos.
Estes aspectos são aplicáveis quando analisamos os primeiros tempos da Ordem. Para
Roberto Lambertini399, a identidade franciscana não estava em sua origem, a sua formação

397

MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 66.
398
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 18.
399
La prospettiva con cui in questa sede ci si avvicina ad um tema che giustamente sempre di nuovo risveglia
l‟attenzione dei ricercatori, è limitata in più di um senso. In primo lugo, sarà privilegiato in maniera quase
esclusiva l‟angolo di visuale dell‟ordine dei Minori, allo scopo di evidenziare Il progressivo precisarsi
dell‟autocoscienza francescana. In secondo luogo, questo processo sarà osservato soprattutto per quanto attiene
al problema del rapporto tra scelta di povertà, fruizione dei beni e struttura dei poteri all‟interno della chiesa.
V‟è, poi, infine, uma limitazione cronologica: la scelta di um arco che si entende tra i primi attacchi portati da
Guglielmo di Sant‟Amore ed Il tentativo di chiusura del debattito da parte di Noccolò III non intende essere
esclusiva, ma sostanzialmente esemplificativa di un período in cui la construzione dell‟identità francescana- nel
coros di uma precizione progressiva dell‟autocoscienza minoritica e della consapevolezza Del ruolo dei
francescani nella Chiesa e nella società- si compì in stretta interrelazione anche com la risposta alle critiche dei
Secolari . [...] Di entrambi questi momenti presentati alcuni tentative di risposta da parte di esponenti dell‟ordine,
ponendo l‟accento su comunanze e diversificazioni che contribuiscono alla definizione di un‟identità, non como
punto di partenza, ma come risultato di um confronto. Cf. LAMBERTINI, Roberto. Momenti della formazione
dell‟identità francescana nel contesto della disputa com i secolari (1255-1279). In: Dalla seqüela Christi Di

130

derivou dos constantes conflitos que envolveram os Menores. Foram os dilemas que
colocaram em questão a mendicância dos Frades, a pobreza e a utilidade da Ordem para a
cristandade, que criaram a necessidade de melhor definir as práticas minoríticas, frente aos
ataques dos seculares parisienses e as disputas que envolviam os Menores e os Dominicanos.
Portanto, devemos entender que a origem como um bloco de práticas homogêneas e perfeitas
da Ordem dos Frades Menores, não estava disposta de forma estável como as hagiografias
querem que acreditemos. O que encontramos nos primórdios são elementos constitutivos, que
quando aplicados socialmente, precisaram passar por constantes mudanças e adaptações no
decorrer de sua história no século XIII.
Portanto, ao mencionar a abordagem genealógica foucaultiana, desejamos destacar que
podemos falar de um franciscanismo das origens. Ao nos voltarmos para a primeira estrutura
organizacional dos Frades, podemos perceber que eles estavam dispostos em uma fraternitas,
isso nos traz a informação de que existia um modo de vida comum entre eles, como destacou
Théophile Desbonnets. Assim, haviam elementos que norteavam a fraternidade e, portanto,
existem aspectos que podem ser tomados como a gênese do franciscanismo. Isto, contudo,
não nos permite situar o início da história dos Menores como algo preciso, pois os primeiros
tempos do grupo minorítico não podem ser analisados sem as amplitudes e inserções sociais e
institucionais inerentes a ele, uma vez que foi justamente a sociedade e as instituições do
século XIII que forjaram a identidade franciscana, como salientou Giovanni Miccoli 400. Mas o
que de fato encontramos na origem da espiritualidade franciscana, que tornava o passado um
modelo de vida a ser seguido por parte dos Frades?
Podemos deliberar que a formação dos Menores derivava de uma apropriação que São
Francisco realizou da experiência de Cristo. Esta apropriação conferia autoridade ao seu
movimento, uma vez que este era entendido pelo Poverello como algo que o próprio Jesus, o
havia ordenado que fundasse. Segundo Grado Merlo401, essa ideia sobre a Ordem franciscana,
mas principalmente em relação a seu fundador, exerceu uma fascinante atração na cristandade
medieval. O imaginário que ligava Jesus ao Assisense, que os iguala em seus atos,
Francesco D’Assisi All’Apologia della Povertà. Atti Del XVIII Convegno Internazionale. Assisi, 18-20 ottobre
1990. Spoleto: Centro Italiano di Studi Sull‟Altro Medievo, 1992, pp. 126-128.
400
A proposta de Francisco teve uma concretude e uma historicidade, um sentido tão agudo do nexo existente
entre maneiras de sentir e maneiras de ser, entre o que era uma escolha de campo de atuação definitiva, em meio
aos humildes, aos párias, aos marginalizados pela sociedade, e a condição existencial de pobreza, humildade,
peregrinação, precariedade e serviço estabelecidos pela ordem, que era impossível reduzi-la a algumas
concessões e normas gerais repensadas nos termos dados pela tradição eclesiástica. Cf. MICCOLI, Giovanni.
Francisco: O santo de Assis na origem dos movimentos franciscanos. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.
286.
401
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos Frades Menores e do
Franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 17.

131

transformou o Poverello na pedra angular da fraternitas, da qual emergiu as características do
que se construiu como “os primeiros tempos”: uma religiosidade sem as amarras
institucionais, que se guiava pelo vínculo espiritual com Cristo, por meio do cumprimento das
palavras contidas nos Evangelhos.
O Pobre de Assis imitava Cristo, os Frades deveriam imitar São Francisco, modelo de
vida ou um guia comportamental402. Para Martino Conti403, a origem da Ordem dos Frades,
gravitava em torno da hermenêutica de São Francisco sobre os Evangelhos, para ele o
Assisense aproximou-se e se apropriou destes textos não como um estudioso, mas sim, como
um crente que buscava cumprir os desígnios e as vontades de Cristo, isso fez com que as
práticas e ações dele se norteassem sempre pela tentativa de reproduzir literalmente as
passagens bíblicas.
Os textos de Mateus e Lucas404 foram por muito tempo a Regra franciscana, e são
neles que podemos encontrar alguns detalhes das características da primeira fase do
franciscanismo. As desapropriações dos bens, a pobreza e a renúncia sobre as vontades
individuais, são os três pontos que podemos delimitar como a gênese constitutiva dessa
experiência religiosa e sob eles se desenvolveu um modelo de vida mais amplo que,
posteriormente, se configurou nos documentos franciscanos, como: a Proto-regra, a Regra não
bulada e a bulada. Devemos observar que mesmo com a passagem de quase doze anos, da
aprovação do modo de vida dos Menores por Inocêncio III (1209) e a escrita da normativa
não aprovada (1221), o modelo apostólico continuou presente de um escrito normativo ao
outro, até mesmo no documento de 1223, os indícios da gênese apostólica permaneceram
frente àqueles de caráter mais institucional. Foram sob estes vértices que São Francisco reuniu
402

Para Roberto Lambertini uma estratégia comum aos expoentes franciscanos que tentavam responder as
provocações em torno da Ordem era selecionar uma série de comportamentos da comunidade originaria que
serviam de modelo para a perfeição. Cf. LAMBERTINI, Roberto. Momenti della formazione dell‟identità
francescana nel contesto della disputa com i secolari (1255-1279). In: Dalla seqüela Christi Di Francesco
D’Assisi All’Apologia della Povertà. Atti Del XVIII Convegno Internazionale. Assisi, 18-20 ottobre 1990.
Spoleto: Centro Italiano di Studi Sull‟Altro Medievo, 1992, pp. 134-135.
403
CONTI, Martino. Estudos e pesquisas sobre o franciscanismo das origens. Petrópolis: Vozes, 2004, pp.
121-130.
404
Terminada a oração, o bem aventurado Francisco, tomando o livro fechado [pondo-se] de joelhos diante do
altar, abriu-o. E, na primeira abertura deste, ocorrei aquele conselho do senhor: Se queres ser perfeito, vai e
vende tudo o que possuis e dá aos pobres e terás um tesouro no céu (Mt 19,21; cf. Lc 18,22) tendo constatado
isso, o bem aventurado Francisco alegrou-se muito e rendeu graças a Deus. Mas, porque [era] verdadeiro
adorador da Trindade, quis que [o conselho] fosse confirmado por tríplice testemunho. Abriu o livro pela
segunda e pela terceira vez. E na segunda abertura, ocorreu aquele [texto]: Nada leveis pelo caminho etc. (Cf. Lc
9,3). E na terceira, aquele: Quem quiser vir após mim, renucie a si mesmo etc. (Cf. Mt 16,24; Lc 9,23) o bem
aventurado Francisco, tendo dado graças a Deus (...) disse aos mencionados senhores, a saber Bernardo e Pedro:
“Irmãos, esta é nossa vida e regra.” Cf. LTC, 8, 28-29. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes
Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 809-810.

132

seu primeiro grupo que possuía uma estrutura fraternal e foi marcado em seu princípio por
práticas simples e ascéticas.
Foi este princípio de viver a amplitude dos Evangelhos de forma literal que criou os
embates entre os Espirituais e Conventuais. O grupo expandiu e adquiriu status de Ordem,
mas sempre vinculados a forma de vida apostólica que acompanhou o desenvolvimento da
comunidade franciscana, causando os debates institucionais que apresentamos ao longo do
nosso trabalho, todas às vezes que questões práticas das atividades dos Frades propunham um
distanciamento do que São Francisco havia proposto viver.
Portanto, o que designamos como origem deve ser entendida como um modelo de
vida, vinculado a experiência dos apóstolos que estava descrita nos Evangelhos e que
passaram a assumir um papel importante no momento de formação da fraternitas, visto que
este foi o modo de vida que serviu de base para a experiência religiosa do Poverello.
Dessa forma, ao tratar dos anos iniciais da Ordem dos Frades Menores, devemos ter a
noção da necessidade de mostrar a dinâmica social em que o grupo estava envolvido, visto
que foram as relações com os indivíduos e instituições que fizeram com que o passado
estivesse sempre em discussão no desenrolar do desenvolvimento dos Frades. Isso nos faz
afirmar que o polo constitutivo do franciscanismo, baseou-se na vinculação de São Francisco
aos Evangelhos e ao modelo apostólico, que culminou na formação de uma fraternidade. No
entanto, devemos nos afastar da ideia de origem pensada como algo que iniciou de um ponto
zero, em que os elementos de unidade e perfeição estariam intocáveis. A Ordem franciscana
foi adquirindo e moldando sua identidade de acordo com as demandas e questionamento dos
indivíduos e das instituições de seu tempo, e como parte dessa construção estão homens como
Boaventura que com sua capacidade intelectual trabalhou para legitimar as mudanças e o
status que os franciscanos haviam conquistado dentro da Igreja. Não é demais ressaltar que
este processo custou em alguns momentos uma amenização das ideias da fraternidade da
forma como ela estava vinculada a figura do Poverello.

133

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.

A partir das discussões realizadas no decorrer desse trabalho, podemos concluir em
primeiro lugar, que a Ordem franciscana foi, em grande medida, fruto de uma imposição
institucional. A Igreja que desde o século XI caminhava em direção a um processo de
centralização política conhecida como Reforma Gregoriana, buscou reuniu todas as
dimensões de poder da estrutura eclesiástica sobre a ordem do papado. Este processo de
centralização tinha como intuito, inclusive, sobrepor-se aos movimentos religiosos laicos,
como era o caso inicialmente dos franciscanos. Assim, por meio de uma investida jurídica
sobre toda essa estrutura eclesiástica, no século XIII a Sé Romana começava a configurar-se
como autoridade máxima no campo religioso. Esse movimento, sem dúvida alguma alcançou
a fraternidade franciscana e colaborou para que ela se transformasse numa Ordem.
No início da sua experiência religiosa, o Poverello propôs-se apenas a viver em
pobreza voluntária, como fizeram outros religiosos laicos que o antecederam. Ele não tinha a
intenção como destacou Raoul Manselli, de ser monge ou clérigo, tratava-se apenas de um
leigo que desejava viver segundo o Santo Evangelho, imitando Cristo, sem muito
envolvimento com a estrutura da Igreja. Nesta perspectiva, aqueles que passaram a segui-lo,
estruturaram-se como fraternidade, modelo que não tinha parâmetros entre as vidas religiosas
aprovadas pela cúria papal. Em meio à crescente necessidade de controle institucional por
parte da Igreja, Francisco sabia do risco que corria de ser considerado herético, se não
obtivesse o apoio da Sé Romana, assim, por volta de 1209, quando seus seguidores chegaram
ao número simbólico de doze, decidiu dirigir-se a Roma, para que o papa Inocêncio III
autorizasse seu grupo a seguir como uma fraternidade. Após algumas objeções, o pontífice
confirmou o modelo religioso proposto pelo Assisense. Embora Francisco tenha deixado
Roma apenas com uma aprovação oral, este primeiro encontro simbolizou o início do
processo de institucionalização do movimento, visto que, por meio dela a Igreja criou um
vínculo com Poverello que permitiu que se acompanhasse de perto o desenvolvimento da
fraternitas.
Mas o polo normatizador da religiosidade do século XIII, foi o IV Concílio de Latrão
de 1215. Neste sentido, a história da relação entre o movimento franciscano e a Sé Romana,
deve ser analisada a partir da ótica do que ficou aprovado no sínodo de 1215, ali determinouse a proibição de fundar novas ordens religiosas e os grupos que surgissem deveriam aderir a
ordens já aprovadas pela Sé. O Poverello, que já havia obtido a aprovação oral, decidiu não
aderir a uma Regra e continuou na condição de um religioso que não se enquadrava

134

institucionalmente em nenhuma estrutura, permanecendo assim até 1219, quando em sua
ausência, viu os Irmãos menores entrarem em conflito quanto a esta forma de organização.
Esta circunstância o levou a dirigir-se novamente a Roma e solicitar ao papa Honório III que
nomeasse um protetor que o ajudasse a resolver os conflitos que estavam surgindo dentro da
fraternidade. A escolha recaiu sob Hugolino, bispo de Óstia, que a partir daquele momento,
passou a ser o representante da Sé Romana, para resolver os problemas da Ordem.
O principal papel assumido por Hugolino foi aconselhar o Poverello a produzir um
documento normativo, que tinha o intuito de regulamentar a vida dos Frades menores, e
portanto apaziguar os conflitos que afligiam o movimento. Era também por meio da Regra
que a Igreja poderia modificar e fornecer uma institucionalidade a vida proposta por
Francisco. Dessa forma, foram escritas diversas Regras até chegar à aprovada pelo papa
Honório III, em 1223, sendo confirmada porque possuía um viés jurídico como desejava a Sé
Romana.
Assim, é possível ver que a Igreja interferiu institucionalmente no movimento de
modo a fazer com que o Poverello aderisse a uma Regra jurídica. Não há dúvidas de que a Sé
usou dessa fraternidade para criar um espaço institucional em que os anseios de uma
religiosidade baseada na pobreza evangélica pudessem ser canalizados, e para isso atuou no
sentido de transformá-la em uma Ordem. Embora Francisco, tenha sinalizado resistências em
relação a esta alteração do seu movimento, precisou aceitar as mudanças para que o grupo
pudesse manter não apenas sua unidade interna, mas também garantir o direito de exercer suas
práticas religiosas sem serem considerados heréticos.
A escrita das Regras franciscanas não deve ser entendida como um processo fácil,
Francisco possuía muitas resistências a redação de um documento normatizador, pois ao
mesmo tempo em que em a elaboração de uma normativa trazia uma estabilidade a Ordem,
ela simbolizava o fechamento de uma religiosidade que sempre esteve aberta a novas
experiências, visto que o documento uma vez aprovado passaria a possuir um peso de lei, não
podendo ser modificado. Logo a redação de uma Regra para o Poverello marcava a passagem
de uma experiência religiosa livre que estava baseada na oralidade e no exemplo dos
religiosos, para normas jurídicas.
Dessa forma, a Igreja revestida de autoridade religiosa, se impôs como uma figura
jurídica sobre os Frades, a qual fica bem clara ao compararmos as Regras de 1221, onde
podemos encontrar a essência do modelo de vida proposto pelo Poverello, com a normativa de
1223, que tentou manter os princípios franciscanos, porém com as mudanças institucionais
que a Igreja se propôs a realizar.

135

O confronto dos dois documentos possibilitou vislumbrar que o teor de vida de São
Francisco se manteve, mas foi visível o aumento da autoridade que os Ministros passaram a
desempenhar entre os Irmãos, a diminuição dos trechos dos Evangelhos - a base da Regra de
1221 -, e por fim, uma amenização da estrutura fraternal que havia sido idealizada pelo
Poverello.
Na comparação entre a Regra não bulada e da Regra bulada, observa-se uma
suavização ainda maior da proposta de viver segundo o Santo Evangelho. Embora a pobreza e
a proibição de possuir posses ou dinheiro tenham sido mantidas ao longo da história do
movimento, elas não foram apresentadas de forma rigorosa, como na Regra não bulada. Isso
não significou, entretanto, que a essência da vida franciscana tenha se perdido de um
documento ao outro. É possível vislumbrar em alguns momentos a pessoalidade do Poverello
na Regra, mas ocorreu uma mudança na aplicabilidade da normativa no cotidiano dos Frades,
que tendiam a adquirir cada vez mais importância nas atividades pastorais.
Assim, as mudanças não descaracterizavam por completo a espiritualidade franciscana
dos primeiros tempos, mas as alterações realizadas na aplicabilidade da Regra sinalizavam
que o desenvolvimento da Ordem, já havia se distanciado dos elementos constitutivos do
movimento como Francisco havia idealizado. Pode-se afirmar assim, que nos anos vinte do
século XIII, passou a existir uma Ordem franciscana institucionalizada, que buscou manter a
face jurídica da Igreja em concordância com a prática da pobreza evangélica proposta pelo
Poverello inicialmente. No entanto, mesmo com todo o processo de institucionalização da
Ordo, após a morte do Assisense, o grupo religioso tendia a dividir-se, assim a Igreja investiu
no processo de canonização de São Francisco para continuar mantendo o controle sobre os
Irmãos e evitar dissidências.
Contudo, após a normatização do grupo minorítico, os Irmãos passaram por um
processo de clericalização, que culminou em uma aproximação maior dos Frades com a Igreja
e com as universidades. Essa nova realidade institucional que colocava os Frades como braço
de apoio da Sé Romana, necessitava de uma nova relação dos franciscanos com os bens
materiais, importantes para que os religiosos desenvolvessem suas atividades pastorais.
Assim, a partir de 1230, ocorreu uma tentativa de conciliar as mudanças na Ordem, com o
modelo de vida apostólico proposto pelo Poverello, o que acabou culminando em um conflito
entre Frades Espirituais e Conventuais.
O passado que era colocado como um modelo a ser seguido pelos Espirituais chocava
com a realidade institucional que os Frades viviam. Então, foram necessários artifícios
jurídicos e intelectuais para tentar conciliar as mudanças na Ordem. Com isso, nos anos trinta

136

do século XIII, presenciamos um período de intensas interpretações em torno da Regra de
1223 e do Testamento, com a deliberação das bulas papais Quo Elongati e Ordinem Vestrum,
que realizaram amplos debates sobre muitos aspectos, principalmente os que impactavam a
pobreza. No campo das interpretações intelectuais encontramos a Exposição dos magistri
parisienses e a Exposição de Boaventura que tentaram mostrar que temas como a pobreza,
bens, dinheiro, deveriam ser entendidos mais como elementos conceituais que uma prática de
vida.
Estes conflitos entre os Frades, que olhavam para o passado como um tempo áureo nos
fez refletir, se realmente podemos falar de um franciscanismo das origens e a conclusão, no
nosso entendimento é que sim. Podemos falar de elementos constitutivos que estavam
dispostos desde a origem dos Irmãos menores, contudo, devemos nos distanciar da presunção
de que em sua origem os franciscanos fossem um grupo fechado, com características e
identidade definidas. Para nós, portanto, fica claro que a identidade da Ordem dos Frades
Menores foi sendo construída, justamente a partir dos seus embates internos e externos e das
suas relações sociais e institucionais.

137

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143

ANEXOS.

Mapa 1

Referência: ENGLEBERT, Omer. Vida de São Francisco de Assis. Porto Alegre: Cefepalsul, 1978, p. 10.

144

Mapa 2

Referência: VAUCHEZ, André. Francis Of Assisi: The Life and Afterlife of a Medieval
Saint. New Haven: Yale University Press, 2013.

145

Mapa 3

El mediterráneo del siglo XIII a comienzos del XV.

Fonte: DUBY, Georges. Atlas histórico mundial. Madrid: Editorial Debate, 1990, p. 61.

146

Mapa 4

El mundo occidental em los siglos XII Y XIII

Fonte: DUBY, Georges. Atlas histórico mundial. Madrid: Editorial Debate, 1990, p. 47.

147

REGRA NÃO BULADA.405
Prologus406
1

In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti! 2 Haec est vita evangelii Jesu Christi, quam frater
Franciscus petiit a domino papa concedi et confirmari sibi. Et ille concessit et confirmavit sibi et
suis fratribus habitis et futuris.3 Frater Franciscus et quicumque erit caput istius religionis promittat
obedientiam domino Innocentio papae et reverentiam et suis successoribus. 4 Et omnes alii fratres
teneantur obedire fratri Francisco et eius successoribus.
Prólogo
1

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (cf. Mt 28,19)! 2Esta é a vida do Evangelho de
Jesus Cristo que Frei Francisco pediu que lhe fosse concedida e confirmada pelo senhor papa. E este
lha concedeu e confirmou para ele e para seus irmãos presentes e futuros. 3Frei Francisco- e quem
for superior desta Religião- prometa obediência e reverência ao senhor Papa Inocêncio e aos seus
sucessores. E: Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me
(Mt 16,24). 4E todos os outros irmãos sejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seus
sucessores.

Caput I- Quod fratres debent vivere sine proprio et in castitate et obedientia
1

Regula et vita istorum fratrum haec est, scilicet vivere in obedientia, in castitate et sine proprio, et
Domini nostri Jesu Christi doctrinam et vestigia sequi (cfr. 1Petr 2,21), qui dicit: 2 “Si vis perfectus
esse, vade et vende omnia (Lc 18,22) quae habes, et da pauperibus et habebis thesaurum in caelo; et
veni, sequere me” (Mt 19,21). 3 Et: “Si quis vult post me venire, abneget semetipsum et tollat
crucem suam et sequatur me” (Mt 16,24). 4 Item: “Si quis vult venire ad me et non odit patrem et
matrem et uxorem et filios et fratres et sorores, adhuc autem et ani-mam suam, non potest meus esse
dis-cipulus” (Lc 14,26).5 Et: “Omnis, qui reliquerit patrem aut matrem, fratres aut soro-res, uxorem
aut filios, domos aut agros propter me, centu-plum accipiet et vitam aeternam possi-debit” (Mt
19,29; Mc 10,29; Lc 18,29).
Capítulo I- Os irmãos devem viver sem propriedade, em castidade e em obediência

405

A documentação em português em: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas.
Petrópolis: Vozes, 2004.
406
A documentação em latim. Disponível em: <http://www.capuchinhos.org.br/procasp/franciscanismo>. Acesso
em: 18 abr. 2019.

148

1

A Regra e vida destes irmãos é esta: viver em obediência em castidade e sem propriedade e seguir
a doutrina e as pegadas (cf. 1 Pd 2.21) de Nosso Senhor Jesus Cristo que diz: 2Se queres ser
perfeito, vai (Mt 19,21) e vende tudo (cf. Lc 18,22) que tens e dá aos pobres e terás um tesouro no
céu; e vem e segue-me (Mt 19,21). 3E: Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo e tome
a sua cruz e siga-me (Mt 16,24). 4E também: Se alguém quer vir a mim e não odeia pai e mãe e
esposa e filhos e irmãos e irmãs e até mesmo a sua vida, não pode ser meu discípulo (Lc 14,26). 5E
ainda: Todo aquele que deixar pai ou mãe, irmãos ou irmãs, esposa ou filhos, casas ou campos por
causa de mim receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna (cf. Mt 19,29; Mc 10,29;Lc 18,29).

Caput II- de receptione et vestimentis fratrum
1

Si quis divina inspiratione volens accipere hanc vitam venerit ad nostros fratres, benigne recipiatur
ab eis.2 Quodsi fuerit firmus accipere vitam nostram, multum caveant sibi fratres, ne de suis
temporalibus negotiis se intromit-tant, sed ad suum ministrum, quam citius possunt, eum
repraesentent.3 Minister vero benigne ipsum recipiat et confortet et vitae nostrae tenorem sibi
diligenter exponat.4 Quo facto, praedictus, si vult et potest spiritualiter sine impedimento, omnia sua
vendat et ea omnia pauperibus studeat erogare. 5 Caveant sibi fratres et minister fratrum, quod de
negotiis suis nullo modo intromittant se 6 neque recipiant aliquam pecuniam neque per se neque per
interpositam personam.7 Si tamen indigent, alia necessaria corporis praeter pecuniam recipere
possunt fratres causa necessitatis sicut alii pau-peres.8 Et cum reversus fuerit, minister concedat ei
pannos probationis usque ad annum, scilicet duas tunicas sine caputio et cingulum et braccas et
caparonem usque ad cingulum. 9 Finito vero anno et termino probatio-nis recipiatur ad
obedientiam.10 Postea non licebit ei ad aliam religionem accedere neque “extra obedientiam
evagari” iuxta mandatum domini papae et secundum evangelium; quia ”nemo mittens manum ad
aratrum et aspiciens retro aptus est regno Dei” (Lc 9,62). 11 Si autem aliquis venerit qui sua dare non
potest sine impedimento et habet spiritualem voluntatem, relinquat illa et sufficit sibi. 12 Nullus
recipiatur contra formam et institutionem sanctae Ecclesiae. 13 Alii vero fratres qui promiserunt
obedientiam habeant unam tunicam cum caputio, et aliam sine caputio, si necesse fuerit, et
cingulum et braccas. 14 Et omnes fratres vilibus vestibus induantur, et possint eas repeciare de saccis et aliis peciis cum benedictione Dei; quia dicit Dominus in evangelio: “Qui in veste pretiosa sunt
et in deliciis” (Lc 7,25) et “qui mollibus vestiuntur, in domibus regum sunt” (Mt 11, 8). 15 Et licet
dicantur hypocritae, non tamen cessent bene facere nec quaerant caras vestes in hoc saeculo, ut
possint habere vestimentum in regno caelorum.
Capítulo II – A recepção e as vestes dos irmãos
1

Se alguém, por divina inspiração, querendo assumir esta vida, vier procurar nossos irmãos, seja por
eles recebido benignamente. 2Se ele estiver firme em assumir a nossa vida, cuidem muito os irmãos
para não se intrometerem em seus negócios temporais, mas apresentem-no, o mais depressa que
puderem, ao seu ministro. 3O ministro, no entanto, receba-o benignamente, conforte-o e exponhalhe diligentemente o teor de nossa vida.4Feito isto, o mencionado [candidato], se quiser e se puder
espiritualmente e sem impedimento, venda todas as suas coisas e procure distribuir tudo aos pobres
(cf. Mt 19,21). 5Cuidem os irmãos e o ministro dos irmãos para não se intrometerem de maneira

149

alguma nos negócios dele 6e para não receberem qualquer dinheiro nem por si nem por pessoa
intermediária.7Contudo, se estiverem sofrendo indigência, por causa da necessidade os irmãos
podem receber,como os demais pobres, outras coisas necessárias ao corpo, com exceção de
dinheiro. 8E quando [o candidato] tiver voltado, o ministro conceda-lhe as vestes de provação por
um ano, a saber, duas túnicas sem capuz, o cíngulo, calções e o caparão [que vá] até ao cíngulo.
9
Terminado, porém, o ano de provação, seja recebido à obediência. 10Depois disso, não lhe será
permitido entrar em outra Religião nem vagar fora da obediência, de acordo com a prescrição do
senhor papa e segundo o Evangelho, porque ninguém que coloca a mão no arado e olha para trás é
apto para o reino de Deus (Lc 9,62). 11Se, porém, vier alguém que não pode dar as suas coisas sem
impedimento e tem a vontade espiritual [de fazê-lo], renuncie a elas, e [isto] Ihe basta. 12Ninguém
seja recebido contra a forma e a prescrição da santa Igreja. 13Os outros irmãos, no entanto, os que
prometeram obediência , tenham uma túnica com capuz e, se for necessário, outra sem capuz, o
cíngulo e calções. 14E todos os irmãos se vistam com vestes baratas e possam, com a bênção de
Deus, remendá-las de sacos e de outros retalhos, porque diz o Senhor no Evangelho: Os que vestem
roupas preciosas e vivem no luxo (Lc 7,25) e os que se vestem com vestes macias estão nos palácios
dos reis (Mt 11,8). 15E, conquanto sejam chamados de hipócritas, não cessem, contudo, de fazer o
bem; e não procurem roupas caras neste mundo, para que possam obter a vestimenta no reino dos
céus.

Caput III- de divino officio et ieiunio
1

Dicit Dominus: Hoc genus daemoniorum non potest exire nisi in ieiunio et oratione (cfr. Mc 9,28);
et iterum: “Cum ieiunatis nolite fieri sicut hypocritae tristes” (Mt 6,16). 3 Propter hoc omnes fratres
sive clerici sive laici faciant divinum officium, laudes et orationes, secundum quod debent facere.
4
Clerici faciant officium et dicant pro vivis et pro mortuis secundum consuetudinem clericorum.
5
Et pro defectu et negligentia fratrum dicant omni die Miserere mei Deus (Ps 50) cum Pater noster
6
; et pro fratribus defunctis dicant De profundis (Ps 129) cum Pater noster . 7 Et libros tantum
necessarios ad implendum eorum officium possint habere. 8 Et laicis etiam scientibus legere
psalterium liceat eis habere illud.9 Aliis vero nescientibus litteras librum habere non liceat. 10 Laici
dicant Credo in Deum et viginti quattuor Pater noster cum Gloria Patri pro matutino; pro laudibus
vero quinque; pro prima Credo in Deum et septem Pater noster cum Gloria Patri ; pro sexta et nona
et unaquaque hora septem; pro vesperis duodecim; pro completorio Credo in Deum et septem Pater
noster cum Gloria Patri ; pro mortuis septem Pater noster cum requiem aeternam ; et pro defectu et
negligentia fratrum tria Pater noster omni die. 11 Et similiter omnes fratres ieiunent a festo Omnium
Sanctorum usque ad Natale et ab Epiphania, quando Dominus noster Jesus Christus incepit ieiunare
usque ad Pascha. 12 Aliis vero temporibus non teneantur secundum hanc vitam nisi sexta feria
ieiunare. 13 Et liceat eis manducare de omnibus cibis, qui apponuntur eis, secundum evangelium
(cfr. Lc 10,8).
2

Capítulo III- O ofício divino e o jejum

150

1

Diz o Senhor: Esta espécie de demônios não pode sair, a não ser pelo jejum e pela oração (cf. Mc
9,28); 2e de novo: Quando jejuardes, não vos torneis tristes como os hipócritas (Mt 6,16) 3Por isso,
todos os irmãos, tanto clérigos quanto leigos, rezem como devem o oficio divino, os louvores e as
orações: 4Os clérigos rezem o ofício e orem pelos vivos e pelos mortos segundo o costume dos
clérigos.5E pela falta e negligência dos irmãos rezem cada dia o Miserere mei Deus (Sl 50) com o
Pai-nosso (Mt 6,9-13); 6e pelos irmãos defuntos rezem o De profundis (SI 129) com o Pai-nosso.7E
possam ter somente os livros necessários para desempenhar o seu oficio. 8E também aos leigos que
sabem ler o saltério, seja-lhes permitido tê-lo. 9Aos outros, porém, aos que não sabem ler, não lhes
seja permitido ter o livro.10Os leigos rezem o Creio em Deus e vinte e quatro Pai-nossos com o
Glória ao Pai pelas Matinas; pelas Laudes cinco; pela Prima o Creio em Deus, e sete Pai-nossos com
o Glória ao Pai; pela Terça pela Sexta e pela Noa,em cada uma destas horas sete; pelas Vésperas
doze; pelas Completas o Creio em Deus e sete Pai-nossos com o Glória ao Pai; pelos mortos sete
Pai-nossos com o Requiem aeternam (cf, 4Esd 2,34-35); e pela falta e negligência dos irmãos três
Pai-nossos cada dia. 11E todos os irmãos igualmente jejuem desde a festa de todos os Santos até ao
Natal e desde a Epitania, quando Nosso Senhor Jesus Cristo começou a jejuar, ate à Páscoa. 12Em
outros tempos, no entanto, de acordo com este modo de vida, não sejam obrigados a jejuar, a não ser
na sexta-feira. 13E, segundo o Evangelho, seja-lhes permitido comer de todos os alimentos que
forem colocados diante deles (cft. Lc 10,8).

Caput IV- De ministris et aliis fratribus qualiter ordinentur
1

In nomine Domini! 2 Omnes fratres, qui constituuntur ministri et servi aliorum fratrum, in provinciis et in locis, in quibus fuerint, collocent suos fratres quos saepe visitent et spiritualiter moneant et
confortent.3 Et omnes alii fratres mei benedicti diligenter obediant eis in his quae spectant ad
salutem animae et non sunt contraria vitae nostrae. 4 Et faciant inter se sicut dicit Dominus:
“Quaecumque vultis, ut faciant vobis homines, et vos facite illis” (Mt 7,12); 5 et: “Quod non vis tibi
fieri, non facias alteri” (Tob 4,16). 6 Et recordentur ministri et servi, quod dicit Dominus: “Non veni
ministrari sed ministrare” (Mt 20,28) et quia commissa est eis cura animarum fratrum, de quibus, si
aliquid perderetur propter eorum culpam et malum exemplum, in die iudicii oportebit eos reddere
rationem (cfr. Mt 12, 36) coram Domino Jesu Christo.
Capítulo IV- Como deverão ser dispostos os ministros e os outros irmãos.
1

Em nome do Senhor! 2Todos os irmãos que são constituídos ministros e servos dos demais irmãos
distribuam os seus irmãos nas províncias e nos lugares nos quais estiverem, visitem-nos
frequentemente e admoestem-nos e confortem-nos espiritualmente. 3E todos os outros meus irmãos
benditos obedeçam-lhes diligentemente naquelas coisas que se referem à salvação da alma e que não
são contrárias à nossa vida. 4E ajam entre si como diz o Senhor: Tudo aquilo que quereis que os
homens vos façam a vós, fazei-o também vós a eles (Mt 7.12); 5e: O que não queres que seja feito a
ti, não o faças a outrem," (cf. Tb 4,16)· 6E recordem-se os ministros e servos do que diz o Senhor:
Não vim para ser servido, mas para servir (Mt 20,28) e de que lhes foi confiado o cuidado das
almas dos irmãos, dos quais terão que prestar contas no dia do juízo (Mt 12,36) diante do Senhor

151

Jesus Cristo, se algum se tiver perdido por sua culpa e mau exemplo.

Caput V- De correctione fratrum in offensione
1

Ideoque animas vestras et fratrum vestrorum custodite; quia “horrendum est incidere in manus Dei
viventis” (Hebr 10,31). 2 Si quis autem ministrorum alicui fratrum aliquid contra vitam nostram
praeciperet vel contra animam suam, non teneatur ei obedire; quia illa obedientia non est, in qua
delictum vel peccatum committitur. 3 Verumtamen omnes fratres qui sunt sub ministris et servis,
facta ministrorum et servorum considerent rationabiliter et diligenter, 4 et si viderint aliquem illorum
carnaliter et non spiritualiter ambulare pro rectitudine vitae nostrae, post tertiam admonitionem, si
non se emendaverit, in capitulo Pentecostes renuntient ministro et servo totius fraternitatis nulla
contradictione impediente.5 Si vero inter fratres ubicumque fuerit aliquis frater volens carnaliter et
non spiritualiter ambulare, fratres, cum quibus est, moneant eum, instruant et corripiant humiliter et
diligenter.6 Quod si ille post tertiam admonitionem noluerit se emendare, quam citius possunt,
mittant eum vel significent suo ministro et servo, qui minister et servus de eo faciat sicut sibi
secundum Deum melius videbitur expedire.7 Et caveant omnes fratres tam ministri et servi quam
alii, quod propter peccatum alterius vel malum non turbentur vel irascantur, quia diabolus propter
delictum unius multos vult corrumpere;8 sed spiritualiter, sicut melius possunt, adiuvent illum qui
peccavit, quia non est sanis opus medicus, sed male habentibus (cfr. Mt 9,12 cum Mc
2,17).9 Similiter omnes fratres non habeant in hoc potestatem vel dominationem maxime inter se.
10
Sicut enim dicit Dominus in evangelio: “Principes gentium domi-nantur eorum, et qui maiores
sunt potestatem exercent in eos” , (Mt 20,25), non sic erit inter fratres (cfr. Mt 20,26a); 11 et
quicumque voluerit inter eos maior fieri sit eorum minister (cfr. Mt 20,26b) et servus; 12 et qui maior
est inter eos fiat sicut minor (Lc 22,26). 13 Nec aliquis frater malum faciat vel malum dicat alteri;
14
immo magis per caritatem spiritus voluntarie serviant et obediant invicem (cfr. Gal 5,13). 15 Et
haec est vera et sancta obedientia Domini nostri Jesu Christi. 16 Et omnes fratres, quoties
declinaverint a mandatis Domini et extra obedientiam evagaverint, sicut dicit propheta (Ps 118, 21),
sciant se esse maledictos extra obedientiam quousque steterint in tali peccato scienter.17 Et quando
perseveraverint in mandatis Domini, quae promiserunt per sanctum evangelium et vitam ipsorum,
sciant se in vera obedientia stare, et benedicti sint a Domino.
Capítulo V- A correção dos irmãos na ofensa
1

Guardai, portanto, vossas almas e as de vossos irmãos, porque é terrível cair nas mãos do Deus
vivo (Hb 10,31). 2Se, porém, um dos ministros ordenar a algum dos irmãos algo contra nossa vida
ou contra sua alma, este não esteja obrigado a obedecer-lhe, porque não há obediência onde se
comete delito ou pecado. 3Entretanto, todos os irmãos que estão sob os cuidados dos ministros e
servos considerem com bom-senso e diligentemente as ações dos ministros e servos. 4E se virem um
deles proceder carnalmente e não espiritualmente segundo a retidão de nossa vida, depois da terceira
admoestação, se não se emendar, denunciem-no no Capítulo de Pentecostes ao ministro e servo de
toda a fraternidade, sem nenhum obstáculo que o possa impedir. 5No entanto, se houver entre os
irmãos, em qualquer lugar, algum irmão que queira proceder carnalmente e não espiritualmente, os
irmãos, com os quais está, admoestem-no, instruam-no e repreendam-no com humildade e

152

diligência. 6Se ele, após a terceira admoestação, não quiser emendar-se, enviem-no ou denunciemno, o mais depressa que puderem, ao seu ministro e servo, o ministro e servo faça dele como
segundo Deus Ihe parecer conveniente. 7E cuidem todos os irmãos, tanto os ministros e servos como
os demais, para não se perturbarem ou se irritarem por causa do pecado ou do mal do outro, porque
o demônio quer, por causa do pecado de um só, corromper a muitos; 8mas ajudem espiritualmente,
como melhor puderem, aquele que pecou, porque não são os sadios que precisam de médico, mas
os enfermos (cf. Mt 9,12; Mc 2,17). 9Igualmente, nenhum irmão exerça qualquer poder ou domínio,
mormente entre si. 10Pois, como diz o Senhor no Evangelho: Os príncipes das nações as dominam, e
os que são os maiores exercem poder sobre elas (Mt 20,25), não será assim entre os irmãos (cf. Mt
20,26a); 11e quem quiser tomar-se o maior entre eles seja o ministro (cf. Mt 20,26b) e servo dele;,12
e quem é o maior entre eles faça-se como o menor (cf. Lc 22,26).13E nenhum irmão faça mal a outro
ou diga mal dele; 14muito pelo contrário, através da caridade do espírito, sirvam e obedeçam uns
aos outros (Gl 5,13) de boa vontade.15E esta é a verdadeira e santa obediência de Nosso Senhor
Jesus Cristo.16E todos os irmãos, cada vez que se desviarem dos mandamentos do Senhor (SI
118.21) e vagarem fora da obediência, como diz o profeta, saibam que fora da obediência são
amaldiçoados, enquanto permanecerem conscientemente em tal pecado. 17E à medida que
perseverarem nos mandamentos do Senhor, que prometeram pelo santo Evangelho e por sua própria
vida, saibam que estão na verdadeira obediência e sejam abençoados pelo Senhor (cf. SI 113,15).

Caput VI- De recursu fratrum ad ministros et quod aliquis frater non vocetur prior
1

Fratres, in quibuscumque locis sunt, si non possunt vitam nos-tram observare, quam citius possunt,
recurrant ad suum ministrum hoc sibi significantes. 2 Minister vero taliter eis studeat providere, sicut
ipse vellet sibi fieri, si in consimili casu esset. 3 Et nullus vocetur prior, sed generaliter omnes
vocentur fratres minores. 4 Et alter alterius lavet pedes (cfr. Joa 13,14).
Capitulo VI- O recurso dos irmãos aos ministros e que nenhum irmão se chame de prior
1

Os irmãos, em qualquer lugar em que estiverem, se não puderem observar a nossa vida, recorram
ao seu ministro o mais depressa possível, dando-lhe a conhecer esta situação. 2O ministro no
entanto, procure de tal modo atendê-lo como ele próprio gostaria que lhe fosse feito, se estivesse em
circunstância semelhante (cf. Mt 7,12). 3E ninguém se denomine prior, mas todos, sem exceção,
sejam chamados de irmãos menores. 4E um lave os pés do outro (cf. Jo 13,14).

Caput VII- De modo serviendi et laborandi
1

Omnes fratres, in quibuscumque locis steterint apud alios ad serviendum vel laborandum, non sint
camerarii neque cancellarii neque praesint in domibus in quibus serviunt; nec recipiant aliquod
officium quod scandalum generet vel animae suae faciat detrimentum (cfr. Mc 8,36); 2 sed sint
minores et subditi omnibus, qui in eadem domo sunt. 3 Et fratres, qui sciunt laborare, laborent et
eandem artem exerceant, quam noverint, si non fuerit contra salutem animae et honeste poterit

153

operari. 4 Nam propheta ait: “Labores fructuum tuorum manducabis; beatus es et bene tibi erit” (Ps
127,2); 5 et apostolus: “Qui non vult operari non manducet (cfr. 2Thess 3,10); 6 et: Unusquisque in
ea arte et officio, in quo vocatus est, permaneat (cfr. 1Cor 7,24). 7 Et pro labore possint recipere
omnia necessaria praeter pecuniam. 8 Et cum necesse fuerit, vadant pro eleemosynis sicut alii
pauperes. 9 Et liceat eis habere ferramenta et instrumenta suis artibus opportuna. 10 Omnes fratres
studeant bonis operibus insudare, quia scriptum est: Semper facito aliquid boni, ut te diabolus
inveniat occupatum (S.Hier Ep 125,11). 11 Et iterum: “Otiositas inimica est animae” (S Ben Reg
48,1). 12 Ideo servi Dei semper orationi vel alicui bonae operationi insistere debent. 13 Caveant sibi
fratres, ubicumque fuerint, in eremis vel in aliis locis, quod nullum locum sibi approprient nec alicui
defendant. 14 Et quicumque ad eos venerit amicus vel adversarius, fur vel latro benigne recipiatur.
15
Et ubicumque sunt fratres et in quocumque se invenerint, spiritualiter et diligenter debeant se
revidere et honorare ad “invicem sine murmuratione” (1Petr 4,9). 16 Et caveant sibi, quod non se
ostendant tristes extrinsecus et nubilosos hypocritas; sed ostendant se gaudentes in Domino (Phil
4,4) et hilares et convenienter gratiosos.
Capítulo VII- O modo de servir e trabalhar
1

Todos os irmãos, em quaisquer lugares em que estiverem para servir ou trabalhar em casa de
outros, não sejam nem tesoureiros nem despenseiros nem tenham cargo de direção nas casas em que
servem; nem aceitem algum oficio que provoque escândalo ou que cause dano à sua alma (cf. Mc
8,36); 2mas sejam os menores e submissos a todos que estão na mesma casa.3E os irmãos que sabem
trabalhar trabalhem e exerçam a mesma arte que conhecerem, se não for contra a salvação da alma e
se puderem executá-la honestamente. 4Pois diz o profeta: Comerás do trabalho de tuas mãos; serás
feliz e terás bem-estar (Sl 127,2): 5e o apóstolo: Quem não quer trabalhar não coma (cf. 2Ts 3,10);
6
e: Cada um permaneça naquela arte e oficio em que estava quando foi chamado (cf. 1Cor 7,24). 7E
pelo trabalho possam receber todas as coisas necessárias, exceto dinheiro. 8E, quando for necessário,
vão pedir esmola, como os outros pobres. 9E seja-lhes permitido ter as ferramentas e os
instrumentos apropriados ao seu oficio. 10Todos os irmãos procurem empenhar-se nas boas obras,
porque está escrito: "Faze sempre algo de bom, para que o demônio te encontre ocupado". 11E
também: "A ociosidade é inimiga da alma". 12Por isso, os servos de Deus devem sempre persistir na
oração ou em alguma boa obra. 13Cuidem os irmãos, onde quer que estiverem, nos eremitérios ou
em outros lugares, para não se apropriarem de nenhum lugar nem o reivindicarem de ninguém. 14E
quem vier procurá-los, amigo ou adversário, ladrão ou assaltante, seja recebido benignamente. 15E,
onde quer que estiverem e em qualquer lugar em que se encontrarem, devem os irmãos espiritual e
diligentemente cuidar uns dos outros e honrar-se mutuamentes em murmuração (1Pd 4,9). 16E
cuidem para não se mostrar exteriormente tristes e sombriamente hipócritas; mas mostrem-se
alegres no Senhor (cf. FI 4,4), sorridentes e convenientemente simpáticos.

Caput VIII- Quod fratres non recipiant pecuniam
1

Dominus praecipit in evangelio: Videte, cavete ab omni malitia et avaritia (Lc 12, 15); 2 et:
Attendite vobis a sollicitudine huius saeculi et a curis huius vitae (Lc 21, 34). 3 Unde nullus fratrum,

154

ubicumque sit et quocumque vadit, aliquo modo tollat nec recipiat nec recipi faciat pecuniam aut
denarios neque occasione vestimentorum nec librorum nec pro pretio alicuius laboris, immo nulla
occasione, nisi propter manifestam necessitatem infirmorum fratrum; quia non debemus maiorem
utilitatem habere et reputare in pecunia et denariis quam in lapidibus. 4 Et illos vult diabolus
excaecare, qui eam appetunt vel reputant lapidibus meliorem. 5 Caveamus ergo nos, qui omnia
relinquimus (cfr. Mt 19,27), ne pro tam modico regnum caelorum perdamus. 6 Et si in aliquo loco
inveniremus denarios, de his non curemus tamquam de pulvere, quem pedibus calcamus, quia
“vanitas vanitatum et omnia vanitas” (Ecclo 1,2). 7 Et si forte, quod absit, aliquem fratrem
contingerit pecuniam vel denarios colligere vel habere, excepta solummodo praedicta infirmorum
necessitate, omnes fratres teneamus eum pro falso fratre et apostata et fure et latrone et loculos
habente (cfr. Joa 12, 8), nisi vere poenituerit. 8 Et nullo modo fratres recipiant nec quaerant nec
quaeri faciant pecuniam pro eleemosyna neque denarios pro aliquibus domibus vel locis; neque cum
persona pro talibus locis pecunias vel denarios quaerente vadant; 9 alia autem servitia, quae non sunt
contraria vitae nostrae, possunt fratres locis facere cum benedictione Dei. 10 Fratres tamen in
manifesta necesstate leprosorum possunt pro eis, quaerere eleemosynam. 11 Caveant tamen multum
a pecunia. 12 Similiter caveant omnes fratres, ut pro nullo turpi lucro terras circueant.
Capítulo VIII- Que os irmãos não recebam dinheiro
1

Ordena o Senhor no Evangelho: Cuidado! Guardai-vos de toda malícia e avareza (cf. Lc 12,15);
e: Estai atentos quanto à solicitude deste mundo e às preocupações desta vida (cf. Lc 21,34).3Por
isso, nenhum dos irmãos, onde quer que esteja e para onde quer que vá, de modo algum apanhe nem
receba nem faça receber dinheiro ou moedas, nem por motivo de vestes nem de livros nem como
salário de algum trabalho, absolutamente por nenhum motivo, a não ser por causa de manifesta
necessidade dos irmãos enfermos, porque não devemos ter nem considerar no dinheiro e nas moedas
maior utilidade do que nas pedras.4E o demônio quer obcecar aqueles que o desejam ou que o
consideram melhor do que as pedras. 5Acautelemo-nos, portanto, nós que tudo deixamos (cf. Mt
19,27),para que não percamos por tão pouco o reino dos céus. 6E, se acharmos moedas em algum
lugar, não nos preocupemos com elas mais do que com o pó que calçamos com os pés, porque elas
são vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Ecl 1,2). 7E se por acaso acontecer- o que não sucedaque algum irmão chegue a recolher ou ter dinheiro ou moedas, exceção feita unicamente na referida
necessidade dos enfermos, nós, todos os irmãos, consideremo-lo como irmão falso e apóstata,
assaltante e ladrão, e como aquele que tem a bolsa (cf. Jo 12,6), a não ser que se arrependa
verdadeiramente. 8E de modo algum recebam os irmãos nem façam receber nem peçam nem façam
pedir dinheiro como esmola nem moedas em favor de quaisquer casas ou lugares; nem andem com
alguma pessoa que pede dinheiro e moeda em favor de tais lugares; 9outros serviços, porém, que não
são contrários à nossa vida, podem os irmãos prestar aos lugares [onde moram], com a bênção de
Deus, 10No entanto, os irmãos, em manifesta necessidade dos leprosos, podem pedir esmolas para
eles. 11Cuidem-se, no entanto, muito do dinheiro. 12Igualmente, cuidem todos os irmãos para não
vagarem pelo mundo por interesse de algum lucro ignóbil.
2

155

Caput IX- De petenda eleemosyna
1

Omnes fratres studeant sequi humilitatem et paupertatem Do-mini nostri Jesu Christi et
recordentur, quod nihil aliud oportet nos habere de toto mundo, nisi sicut dicit apostolus, habentes
ali-menta et quibus tegamur, his contenti sumus (cfr. 1 Tim 6,8). 2 Et debent gaudere, quando
conver-santur inter viles et despectas personas, inter pauperes et debiles et infirmos et leprosos et
iuxta viam mendicantes. 3 Et cum necesse fuerit, vadant pro eleemosynis. 4 Et non verecundentur et
magis recordentur, quia Dominus noster Jesus Christus, Filius Dei vivi (Joa 11,27) omnipotentis,
posuit faciem suam ut petram durissimam (Is 50,7), nec verecundatus fuit; 5 et fuit pauper et hospes
et vixit de eleemosynis ipse et beata Virgo et discipuli eius. 6 Et quando facerent eis homines
verecundiam et nollent eis dare eleemosynam, referant inde gratias Deo; quia de verecundiis
recipient magnum honorem ante tribunal Domini nostri Jesu Christi. 7 Et sciant, quod verecundia
non pa-tientibus, sed inferentibus imputatur. 8 Et eleemosyna est hereditas et iustitia, quae debetur
pauperibus, quam nobis acquisivit Dominus noster Jesus Christus. 9 Et fratres qui eam acquirendo
laborant, magnam mercedem habebunt et faciunt lucrari et acquirere tribuentes; quia omnia quae
relinquent homines in mundo peribunt, sed de caritate et de eleemosynis, quas fecerunt, habebunt
praemium a Domino. 10 Et secure manifestet unus alteri necessitatem suam, ut sibi necessaria
inveniat et ministret. 11 Et quilibet diligat et nutriat fratrem suum, sicut mater diligit et nutrit filium
suum (cfr. 1Thes 2, 7), in quibus ei Deus gratiam largietur. 12 Et “qui non manducat, manducantem
non iudicet" (Rom 14, 3b). 13 Et quandocumque necessitas supervenerit, liceat universis fratribus,
ubicumque fuerint, uti omnibus cibis, quos possunt homines manducare, sicut Dominus dicit de
David, qui comedit panes propositionis (cfr. Mt 12,4), quos non licebat manducare nisi sacerdotibus
(Mc 2,26).14 Et recordentur, quod dicit Dominus: Attendite autem vobis ne forte graventur corda
vestra in crapula et ebrietate et curis huius vitae et superveniat in vobis repentina dies illa;
15
tamquam enim laqueus superveniet in omnes, qui sedent super faciem orbis terrae (cfr. Lc 21,3435). 16 Similiter etiam tempore manifestae necessitatis faciant omnes fratres de eorum necessariis,
sicut eis Dominus gratiam largietur, quia necessitas non habet legem.
Capítulo IX - O pedir esmola
1

Todos os irmãos se esforcem por seguir a humildade e a pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo e
recordem-se de que nenhuma outra coisa nos convém ter de todo o mundo, a não ser, como diz o
Apóstolo, tendo os alimentos e com que nos cobrirmos, com estas coisas estejamos contentes (cf.
1Tm 6,8).2E devem alegrar-se,quando conviverem entre pessoas insignificantes e desprezadas, entre
os pobres, fracos, enfermos, leprosos e os que mendigam pela rua. 3E quando for necessário, vão
pedir esmolas. 4E não se envergonhem, mas antes se recordem de que Nosso Senhor Jesus Cristo,
Filho do Deus vivo (Jo 11,27) e onipotente, expôs sua face como pedra durissima (Is 50,7) e não se
envergonhou; 5e ele foi pobre e hóspede e viveu de esmolas, ele e a bem-aventurada Virgem e seus
discípulos. 6E quando os homens lhes causarem vergonha e não lhes quiserem dar esmola, dêem por
isso graças a Deus; porque pela vergonha receberão grande honra diante do tribunal de Nosso
Senhor Jesus Cristo. 7E saibam que a vergonha é imputada não aos que a sofrem, mas aos que a
causam. 8E a esmola é a herança e direito que se deve aos pobres, a qual Nosso Senhor Jesus Cristo
conquistou para nós. 9E os irmãos que trabalham para adquiri-la terão grande recompensa e fazem
lucrá-la e adquiri-la os que dão esmolas; porque tudo que os homens deixarem no mundo perecerá,

156

mas, a partir da caridade e das esmolas que fizeram, terão o prêmio da parte do Senhor. 10E com
confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, para que lhe encontre e sirva as coisas
necessárias. 11E cada qual ame e nutra a seu irmão, como a mãe ama e nutre seu filho (cf. 1Ts 2,7);
nestas coisas Deus lhe concederá a graça. 12E quem não come não julgue quem come (Rm 14,3b).
13
E em qualquer tempo em que sobrevier a necessidade, seja permitido a todos os irmãos, onde quer
que estiverem, servirem-se de todos os alimentos que os homens podem comer, como diz o Senhor a
respeito de Davi, que comeu os pães da proposição (cf. Mt 12,4)que só era permitido aos
sacerdotes comerem (Mc 2,26). 14E recordem-se do que diz o Senhor: Estai atentos porém, para que
vossos corações eventualmente não se tornem pesados pelo excesso do comer, pela embriaguez e
pelas preocupações desta vida e para que não sobrevenha repentinamente para vós aquele dia;
15
pois como um laço virá sobre todos os que habitam a face da terra (cf. Lc 21,34-35).
16
Igualmente, também em tempo de manifesta necessidade, todos os irmãos ajam com relação às
suas coisas necessárias, da maneira como o Senhor lhes conceder a sua graça, porque necessidade
não tem lei.

Caput X- De infirmis fratribus
1

Si quis fratrum in infirmitate ceciderit, ubicumque fuerit, alii fratres non dimittant eum, nisi
constituatur unus de fratribus vel plures, si necesse fuerit, qui serviant ei, sicut vellent sibi serviri;
2
sed in maxima necessitate possunt ipsum dimittere alicui personae quae suae debeat satisfacere
infirmitati. 3 Et rogo fratrem infirmum, ut referat de omnibus gratias Creatori; et quod qualem vult
eum Dominus talem se esse desideret sive sanum sive infirmum, quia omnes, quos Deus ad vitam
praeordinavit aeternam (cfr. Act 13,48), flagellorum atque infirmitatum stimulis et compunctionis
spiritu erudit, sicut Dominus dicit: “Ego quos amo corrigo et castigo” (Apoc 3,19). 4 Et si quis
turbabitur vel irascetur sive contra Deum sive contra fratres, vel si forte sollicite postulaverit
medicinas nimis desiderans liberare carnem cito morituram, quae est animae inimica, a malo sibi
evenit et carnalis est, et non videtur esse de fratribus, quia plus diligit corpus quam animam.
Capítulo X - Os irmãos enfermos
1

Se algum dos irmãos cair enfermo, onde quer que estiver, os outros irmãos não o abandonem, a não
ser que se constitua um dos irmãos ou mais, se necessário for, que o sirvam como gostariam de ser
servidos (cf. Mt 7,12); 2mas, em extrema necessidade, podem enviá-lo a alguma pessoa que possa
satisfazer a sua enfermidade. 3E peço ao irmão enfermo que por tudo renda graças (cf. 1Ts 5,18) ao
Criador; e que, da maneira como o Senhor o quer, assim deseje estar, são ou enfermo, porque todos
aqueles que Deus predestinou para a vida eterna (cf. At 13,48), ensina-os por estímulos dos
flagelos e das enfermidades e pelo espírito de compunção, como diz o Senhor: Eu corrijo e castigo
aqueles que amo (Ap 3,19). 4E se alguém se perturbar ou se irar, seja contra Deus seja contra os
irmãos, ou exigir remédios talvez insistente mente, desejando muito libertar a carne, que depressa
morrerá e que é inimiga da alma, isto lhe provém do mal, e ele é carnal (cf. 1Cor 3,3) e não parece
ser dos irmãos, porque ama mais o corpo do que a alma.

157

Caput XI- Quod fratres non blasphement nec detrahant, sed diligant se ad invicem
1

Et omnes fratres caveant sibi, ut non calumnientur neque contendant verbis (cfr. 2Tim 2,14),
immo studeant retinere si-lentium, quandocumque eis Deus gratiam largietur. 3 Neque litigent inter
se neque cum aliis, sed procurent humiliter respondere dicentes: Inutilis servus sum (cfr. Lc 17, 10).
4
Et non irascantur, quia omnis qui irascitur fratri suo, reus erit iudicio; qui dixerit fratri suo raca,
reus erit concilio; qui dixerit fatue, reus erit gehennae ignis (Mt 5,22). 5 Et diligant se ad invicem
sicut dicit Dominus: “Hoc est praeceptum meum, ut diligatis invicem, sicut dilexi vos” (Joa 15,12).
6
Et ostendant ex operibus (cfr. Jac 2,18) dilectionem, quam habent ad invicem, sicut dicit apostolus:
“Non diligamus verbo neque lingua sed opere et veritate” (1Joa 3,18). 7 Et neminem blasphement
(cfr. Tit 3,2); 8 non murmurent, non detrahant aliis, quia scriptum est: Susur-rones et detractores
Deo sunt odibiles (cfr. Rom 1,29).9 Et sint modesti omnem ostendentes mansuetudinem ad omnes
homines (cfr. Tit 3, 2); 10 non iudicent, non condemnent. 11 Et sicut dicit Dominus, non considerent
minima pecata aliorum (cfr. Mt 7, 3; Lc 6, 41), 12 immo magis sua recogitent in amaritudine animae
suae (Is 38, 15). 13 Et contendant intrare per angustam portam (Lc 13, 24), quia dicit Dominus:
Angusta porta et arcta via est, quae ducit ad vitam; et pauci sunt, qui inveniunt eam (Mt 7,14).
2

Capítulo XI - Que os irmãos não blasfemem nem se difamem, mas se amem uns aos outros
1

E cuidem todos os irmãos para não se caluniarem nem porfiarem com palavras (cf. 2Tm 2,14);
muito pelo contrário, esforcem-se por manter o silêncio, sempre que Deus lhes conceder a graça.
3
Nem briguem entre si nem com outros, mas procurem responder humildemente, dizendo: sou servo
inútil (cf. Lc 17,10). 4E não se irem, porque todo aquele que se irar contra seu irmão será réu de
juízo; quem chamar a seu irmão de imbecil será réu do conselho; quem o chamar de louco será réu
do fogo da geenda (Mt 5,22). 5E amem-se uns aos outros, como diz o Senhor: Este é o meu
mandamento, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei (Jo 15,12). 6E mostrem por obras
(cf. Tg 2,18) o amor que têm uns aos outros, como diz o apóstolo: Não amemos por palavra nem
com a língua, mas por obra e em verdade (1Jo 3,18). 7E não blasfemem contra ninguém (cf. Tt 3,2);
8
não murmurem, não difamem os outros, porque foi escrito: Os murmuradores e difamadores são
odiáveis aos olhos de Deus (cf. Rm 1·29.30). 9E, sejam modestos, mostrando toda mansidão para
com todos os homens (cf. Tt 3.2); 10não julguem, não condenem. 11E, como diz o Senhor, não
considerem os mínimos pecados dos outros (cf. Mt 7,3; Lc 6,41), 12meditem muito mais sobre os
próprios na amargura de sua alma (Is 38,15). 13E esforcem-se por entrar pela porta estreita (Lc
13,24), porque diz o Senhor: Estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida; e poucos
são os que o encontram (Mt 7,14).
2

Caput XII- De malo visu et frequentia mulierum
1

Omnes fratres, ubicumque sunt vel vadunt, caveant sibi a malo visu et frequentia mulierum. 2 Et
nullus cum eis consilietur aut per viam vadat solus aut ad mensam in una paropside comedat.
3
Sacerdotes honeste loquantur cum eis dando poenitentiam vel aliud spirituale consilium. 4 Et nulla
penitus mulier ab aliquo fratre recipiatur ad obedientiam, sed dato sibi consilio spirituali, ubi
voluerit agat poenitentiam. 5 Et multum omnes nos custodiamus et omnia membra nostra munda

158

teneamus, quia dicit Dominus: Qui viderit mulierem ad concupiscendam eam, iam moechatus est
eam in corde suo (Mt 5,28). 6 Et apostolus: An ignoratis, quia membra vestra templum sunt Spiritus
Sancti? (cfr. 1Cor 6,19); itaque qui templum Dei violaverit disperdet illum Deus (1 Cor 3,17).
Capítulo XII- O mau olhar e a frequentação de mulheres
1

Todos os irmãos, onde quer que estejam ou aonde quer que vão, cuidem-se do mau olhar e da
freqüentação de mulheres. 2E nenhum se aconselhe com elas ou vá sozinho com elas pelo caminho
ou coma com elas à mesa no mesmo prato. 3Os sacerdotes ao dar-lhes a penitência ou outro
conselho espiritual, falem com elas honestamente. 4E absolutamente nenhuma mulher seja recebida
à obediência por um irmão, mas, dado a ela o conselho espiritual, faça ela a penitência onde quiser.
5
E guardemo-nos muito todos nós e mantenhamos puros os nossos membros, porque diz o
Senhor:Aquele que olha uma mulher para cobiçá-la já adulterou com ela em seu coração (Mt 5,28).
6
E diz o apóstolo: Não sabeis acaso que vossos membros são templo do Espírito Santo? (Cf. 1Cor
6,19); deste modo, Deus destruirá aquele que viola o templo de Deus (1Cor 3,17).

Caput XIII- De vitanda fornicatione
1

Si quis fratrum diabolo instigante fornicaretur, habitu exuatur, quem pro sua turpi iniquitate amisit,
et ex toto deponat et a nostra religione penitus repellatur. 2 Et postea poenitentiam faciat de peccatis
(cfr. 1Cor 5,4-5).
Capítulo XIII- Evitar a fornicação
1

Se, por instigação do demônio, algum dos irmãos fornicar, seja despojado do hábito que perdeu por
sua torpe iniqüidade- e ele o deponha totalmente- e seja definitivamente expulso da nossa Religião.
2
E, depois, faça penitência dos pecados (cf. 1Cor 5,4-5).

Caput XIV- Quomodo fratres debeant ire per mundum
1

Quando fratres vadunt per mundum, nihil portent per viam neque (cfr. Lc 9,3) sacculum (cfr. Lc
10,4) neque peram neque panem neque pecuniam (cfr. Lc 9,3) neque virgam (cfr. Mt 10,10). 2 Et in
quamcumque domum intrave-rint, dicant primum: Pax huic domui (cfr. Lc 10,5). 3 Et in eadem
domo manentes edant et bibant quae apud illos sunt (cfr. Lc 10,7). 4 Non resistant malo (cfr. Mt
5,39), sed qui eos percusserit in una maxilla, praebeant et alteram (cfr. Mt 5,39 et Lc 6,29). 5 Et qui
aufert eis vestimentum, et tunicam non prohibeant (cfr. Lc 6,29). 6 Omni petenti se tribuant; et qui
aufert quae sua sunt, ea non repetant (cfr. Lc 6,30).
Capítulo XIV- Como devem ir os irmãos pelo mundo

159

1

Quando os irmãos vão pelo mundo, nada levem pelo caminho, nem bolsa (cf. Lc 9,3; 10,4) nem
sacola nem pão nem dinheiro (cf. Lc 9,3) nem bastão (cf. Mt 10,10). 2E, em qualquer casa em que
entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa (cf. Lc 10,5). 3E, permanecendo na mesma casa,
comam e bebam do que eles tiverem (cf. Lc 10,7). 4Não resistam ao mau (cf. Mt 5,39), mas àquele
que lhes bater numa face, ofereçam-lhe também a outra (cf. Mt 5,39 e Lc 6,29). 5E a quem lhes tirar
a veste, não lhe proíbam de tirar também a túnica (cf. Lc 6,29). 6Tenham atenção para com todo
aquele que lhes pede: E se alguém lhes tirar as coisas que são suas, não as peçam de volta (cf. Lc
6,30).

Caput XV- Quod fratres non equitent
1

Iniungo omnibus fratribus meis tam clericis quam laicis euntibus per mundum vel morantibus in
locis, quod nullo modo apud se nec apud alium nec alio aliquo modo bestiam aliquam habeant.
2
Nec eis liceat equitare, nisi infirmitate vel magna necessitate cogantur.
Capítulo XV- Que os irmãos não andem a cavalo
1

Ordeno a todos os meus irmãos, tanto clérigos quanto leigos, aos que andam pelo mundo e aos que
moram nos eremitérios, que de modo algum tenham qualquer animal nem consigo nem com outrem
nem de qualquer outra maneira. 2Nem lhes seja permitido andar a cavalo, a não ser que sejam
premidos pela enfermidade ou por grande necessidade.

Caput XVI- De euntibus inter sarracenos et alios infideles
1

Dicit Dominus: Ecce ego mitto vos sicut oves in medio luporum. 2 Estote ergo prudentes sicut
serpentes et simplices sicut columbae” (Mt 10,16). 3 Unde quicumque frater voluerit ire inter
saracenos et alios infideles, vadat de licentia sui ministri et servi. 4 Et minister det eis licentiam et
non contradicat, si viderit eos idoneos ad mittendum; nam tenebitur Domino reddere rationem (cfr.
Lc 18,2), si in hoc vel in aliis processerit indiscrete. 5 Fratres vero, qui vadunt, duobus modis inter
eos possunt spiritualiter conversari. 6 Unus modus est, quod non faciant lites neque contentiones,
sed sint subditi omni humanae creaturae propter Deum (1Petr 2,13) et confiteantur se esse christianos. 7 Alius modus est, quod, cum viderint placere Domino, annuntient verbum Dei, ut credant
Deum omnipotentem, Patrem et Filium et Spiritum Sanctum, creatorem omnium, redemptorem et
salvatorem Filium, et ut baptizentur et efficiantur christiani, quia qui renatus non fuerit ex aqua et
Spiritu Sancto, non potest intrare in regnum Dei (cfr. Joa 3,5). 8 Haec et alia, quae placuerint
Domino, ipsis et aliis dicere possunt, quia dicit Dominus in evangelio: “Omnis, qui confitebitur me
coram hominibus, confitebor et ego eum coram Patre meo, qui in caelis est” (Mt 10,32). 9 Et: “Qui
erubuerit me et sermones meos, et Filius hominis erubescet eum, cum venerit in maiestate sua et
Patris et angelorum” (cfr. Lc 9,26).10 Et omnes fratres, ubicumque sunt, recordentur, quod dederunt
se et reliquerunt corpora sua Domino Jesu Christo. 11 Et pro eius amore debent se exponere inimicis
tam visibilibus quam invisibilibus; quia dicit Dominus: “Qui perdiderit animam suam propter me,
salvam faciet eam (cfr. Lc 9,24) in vitam aeternam” (Mt 25, 46). 12 ”Beati qui persecutionem

160

patiuntur propter iustitiam, quoniam ipsorum est regnum caelorum” (Mt 5,10). 13 “Si me persecuti
sunt, et vos persequentur” (Joa 15,20). 14 Et: Si persequuntur vos in una civitate, fugite in aliam (cfr.
Mt 10,23). 15 Beati estis (Mt 5,11), cum vos oderint homines (Lc 6,22) et maledixerint vobis (Mt
5,11) et persequentur vos (cfr. l.c.) et separaverint vos et exprobraverint et eiecerint nomen vestrum
tamquam malum (Lc 6,22) et cum dixerint omne malum adver-sum vos mentientes propter me (Mt
5, 11). 16 Gaudete in illa die et exsultate (Lc 6,23), quoniam merces vestra multa est in caelis (cfr.
Mt 5,12). 17 Et ego dico vobis amicis meis, non terreamini ab his (cfr. Lc 12,4), 18 et nolite timere
eos qui occidunt corpus (Mt 10,28) et post hoc non habent amplius quid faciant (Lc 12,4). 19 Videte,
ne turbemini (Mt 24,6). 20 In patientia enim vestra possidebitis animas vestras (Lc 21,19), 21 et qui
perseveraverit usque in finem, hic salvus erit (Mt 10,22; 24,13).
Capítulo XVI - Os que vão para o meio dos sarracenos e outros infiéis
1

Diz o Senhor: Eis que eu vos envio como cordeiros no meio de lobos. 2Sede, portanto, prudentes
como as serpentes e simples como as pombas (Mt10,16), 3Por isso, se algum irmão quiser ir para o
meio dos sarracenos e outros infiéis, vá com a licença de seu ministro e servo. 4E o ministro dê-lhes
a licença e não lhes oponha objeção, se vir que são idôneos para serem enviados; pois deverá
prestar contas (cf. Lc 16,2) ao Senhor, se nisto ou em outras coisas proceder de modo indiscreto.
5
Os irmãos que vão, no entanto, podem de dois modos conviver espiritualmente entre eles. 6Um
modo é que não litiguem nem porfiem, mas sejam submissos a toda criatura humana por causa de
Deus (1Pd 2,13) e confessem que são cristãos. 7Outro modo é que, quando virem que agrada a Deus,
anunciem a palavra de Deus, para que creiam em Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo (cf.
Mt 28,19),Criador de todas as coisas, no Filho redentor e salvador, e para que sejam batizados e se
tornem cristãos, porque quem não renascer da água e do Espírito Santo não pode entrar no reino de
Deus (cf. Jo 3,5). 8Estas e outras coisas que agradarem ao Senhor podem dizer a eles e a outros,
porque diz o Senhor no Evangelho: Todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o
confessarei diante de meu Pai que está nos céus (Mt 10,32).9E: Quem se envergonhar de mim e das
minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na sua majestade e
na majestade do Pai e dos anjos (cf. Lc 9,26).10E todos os irmãos, onde quer que estiverem, se
recordem de que se doaram e entregaram seus corpos ao Senhor Jesus Cristo.11E por amor dele
devem expor-se aos inimigos, tanto aos visíveis quanto aos invisíveis, porque diz o Senhor: Quem
perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á (cf. Lc 9,24)para a vida eterna (Mt 25,46). 12Bemaventurados os que padecem perseguição por causa da 'justiça, porque deles é o reino dos céus (Mt
5,10). 13Se me perseguiram, perseguirão também a vós (Jo 15,20). 14E: Se vos perseguirem em uma
cidade, fugi para outra (cf. Mt 10,23). 15Bem-aventurados sois (Mt 5,1 1), quando os homens vos
odiarem (Lc 6,2) e vos maldisserem(Mt 5, 11) e vos perseguirem e vos excluírem e vituperarem e
proscreverem o vosso nome como mau (Lc 6,22) e quando, mentindo, disserem todo mal contra vós
por causa de mim (Mt 5,11), 16Alegrai-vos naquele dia e exultai (Lc 6,23), porque grande é nocéu a
vossa recompensa (cf. Mt 5,12). 17E eu vos digo, meus amigos, não temais por estas coisas (Lc
12,4), 18e não temais aqueles que matam o corpo (Mt 10,28) e depois disso não tem mais nada que
fazer (Lc 12,4). 18Estai atentos para não vos perturbar (Mt 24,6). 20Pois em vossa paciência
possuireis as vossas almas (Lc 21,19), 21e aquele que perseverar até ao fim, este será salvo (Mt
10,22; 24,13).

161

Caput XVII- De praedicatoribus
1

Nullus frater praedicet contra formam et institutionem sanctae ecclesiae et nisi concessum sibi
fuerit a ministro suo. 2 Et caveat sibi minister, ne alicui indiscrete concedat. 3 Omnes tamen fratres
operibus praedicent.4 Et nullus minister vel praedicator appropriet sibi ministerium fratrum vel
officium pradicationis, sed quacumque hora ei iniunctum fuerit, sine omni contradictione dimittat
suum officium. 5 Unde deprecor in caritate, quae Deus est (cfr. l Joa 4,l6), omnes fratres meos
praedicatores, oratores, laboratores, tam clericos quam laicos, ut studeant se humiliare in omnibus,
6
non gloriari nec in se gaudere nec interius se exaltare de bonis verbis et operibus, immo de nullo
bono, quod Deus facit vel dicit et operatur in eis aliquando et per ipsos, secundum quod dicit
Dominus: “Verumtamen in hoc nolite gaudere, quia spiritus vobis subiciuntur” (Lc 10,20). 7 Et
firmiter sciamus, quia non pertinent ad nos nisi vitia et peccata. 8 Et magis debemus gaudere, cum in
tentationes varias incideremus (cfr. Jac l,2) et cum sustineremus quascumque animae vel corporis
angustias aut tribulationes in hoc mundo propter vitam aeternam. 9 Omnes ergo fratres caveamus ab
omni superbia et vana gloria; 10 et custodiamus nos a sapientia huius mundi et a prudentia carnis
(Rom 8,6); 11 spiritus enim carnis vult et studet multum ad verba habenda, sed parum ad
operationem, 12 et quaerit non religionem et sanctitatem in interiori spiritu, sed vult et desiderat
habere religionem et sanctitatem foris apparentem hominibus. 13 Et isti sunt, de quibus dicit
Dominus: “Amen dico vobis, receperunt mercedem suam” (Mt 6,2). 14 Spiritus autem Domini vult
mortificatam et despectam, vilem et abiectam esse carnem. 15 Et studet ad humilitatem et patientiam
et puram et simplicem et veram pacem spiritus. 16 Et semper super omnia desiderat divinum timorem
et divinam sapientiam et divinum amorem Patris et Filii et Spiritus Sancti. 17 Et omnia bona Domino
Deo Altis-simo et summo reddamus et omnia bona ipsis esse congnoscamus et de omnibus ei gratias
referamus, a quo bona cuncta pro-cedunt. 18 Et ipse altissimus et summus, solus verus Deus habeat
et ei reddantur et ipse recipiat omnes honores et reverentias, omnes laudes et benedictiones, omnes
gratias et gloriam, cuius est omne bonum, qui solus est bonus (cfr. Lc 18,19). 19 Et quando nos
videmus vel audimus malum dicere vel facere vel blasphemare Deum, nos benedicamus et bene
faciamus et laudemus Deum (cfr. Rom 12,21), qui est benedictus in saecula (Rom 1,25).
Capítulo XVII- Os pregadores
1

Nenhum irmão pregue contra a forma e as diretrizes da santa Igreja e se não lhe tiver sido
concedido pelo seu ministro. 2E cuide o ministro para não concedê-lo a ninguém, sem
discernimento. 3Contudo, todos os irmãos preguem com as obras. 4E nenhum ministro ou pregador
se aproprie do ministério dos irmãos ou do oficio da pregação, mas, em qualquer hora em que lhe
for ordenado, sem qualquer objeção, deixe seu oficio. 5Por isso, na caridade que é Deus (cf. 1Jo
4,16), suplico a todos os meus irmãos que pregam, que rezam e que trabalham, tanto aos clérigos
quanto aos leigos, que se esforcem por humilhar-se em tudo 6e por não se gloriar nem se regozijar
consigo mesmos nem se exaltar interiormente das boas palavras e obras, e menos ainda, de nenhum
bem que Deus muitas vezes faz ou diz e opera neles e por eles, segundo o que diz o Senhor: Não vos
alegreis, no entanto, porque os espíritos se vos submetem (Lc 10,20).7E saibamos firmemente que
nada nos pertence, a não ser os vícios e pecados. 8E mais devemos alegrar-nos, quando formos
submetidos a diversas provações (cf. Tg 1,2) e quando suportarmos quaisquer angústias da alma ou
do corpo ou tribulações neste mundo por causa da vida eterna. . 9Portanto, acautelemo-nos, irmãos

162

todos, de toda soberba e vanglória; 10e guardemo-nos da sabedoria deste mundo e da prudência da
carne (Rm 8,6);11pois o espírito da carne quer e se esforça muito por ter as palavras, mas pouco por
fazer as obras,12e procura não a religião e a santidade interior do espírito, mas quer e deseja ter a
religião e santidade que aparecem exteriormente aos homens. 13E estes são aqueles de quem diz o
Senhor: Em verdade vos digo, já receberam sua recompensa (Mt 6,2). 14O Espírito do Senhor,
porém, quer que a carne seja mortificada e desprezada, vil e abjeta. 15E procura a humildade, a
paciência e pura, simples e verdadeira paz do espírito. 16E deseja sempre e acima de tudo o divino
temor, a divina sabedoria e o divino amor do Pai e do Filho e do Espírito Santo (cf. Mt 28,19). 17E
restituamos todos os bens ao Senhor Deus altíssimo e sumo e reconheçamos que todos os bens são
dele e por tudo demos graças a ele, de quem procedem todos os bens. 18E o mesmo altíssimo e
sumo, único Deus verdadeiro, os tenha, e lhe sejam restituídos; e ele receba todas as honras e
reverências, todos os louvores e bênçãos, todas as graças e glória (cf. Ap 5,12), ele, de quem é todo
o bem, o único que é bom (cf. Lc 18,19). 19E quando nós virmos ou ouvirmos dizer ou fazer mal ou
blasfemar contra Deus, que é bendito pelos séculos (Rm 1,25).

Caput XVIII- Qualiter ministri conveniant ad invicem
1

Quolibet anno unusquisque minister cum fratribus suis possit convenire, ubi-cumque placuerit eis,
in festo sancti Michaelis archangeli de his quae ad Deum pertinent, tractaturus. 2 Omnes enim
ministri, qui sunt in ultramarinis et ultramontanis partibus, semel in tribus annis, et alii ministri
semel in anno veniant ad capitulum Pentecostes apud ecclesiam sanctae Mariae de Portiuncula, nisi
a ministro et servo totius fraternitatis aliter fuerit ordinatum.
Capítulo XVIII Como os ministros devem reunir-se
1

Todo ano, cada ministro pode reunir-se com seus irmãos onde lhes aprouver, na festa de São
Miguel Arcanjo, para tratarem das coisas que se referem a Deus. 2Todos os ministros, no entanto,
que estão nas regiões ultramarinas e ultramontanas, venham ao Capítulo de Pentecostes junto à
igreja de Santa Maria da Porciúncula uma vez em três anos, e os outros ministros, uma vez ao ano, a
não ser que pelo ministro e servo de toda a fraternidade tiver sido estabelecido diferentemente.

Caput XIX- Quod fratres vivant catholice
1

Omnes fratres sint catholici, vivant et loquantur catholice. 2 Si quis vero erraverit a fide et vita
catholica in dicto vel in facto et non se emendaverit, a nostra fraternitate penitus expellatur. 3 Et
omnes clericos et omnes religiosos habeamus pro dominis in his quae spectant ad salutem animae et
a nostra religione non deviaverint; et ordinem et officium eorum et administrationem in Domino
veneremur.
Capítulo XIX - Que os irmãos vivam catolicamente

163

1

Todos os irmãos sejam católicos, vivam e falem catolicamente. 2Se, porém, algum se extraviar da
fé e da vida católica no dizer e no fazer e não se emendar, seja definitivamente expulso da nossa
fraternidade. 3E consideremos todos os clérigos e todos os religiosos como senhores naquelas coisas
que dizem respeito à salvação da alma e que não desviarem da nossa Religião; e veneremos no
Senhor a ordem, o oficio e o ministério deles.

Caput XX- De poenitentia et receptione corporis et sanguinis domini nostri jesu christi
1

Et fratres mei benedicti tam clerici quam laici confiteantur peccata sua sacerdotibus nostrae
religionis. 2 Et si non potuerint, confiteantur aliis discretis et ca-tholicis sacerdotibus scientes
firmiter et attendentes, quia a quibuscumque sacerdotibus catholicis acceperint poenitentiam et
absolutionem, absoluti erunt procul dubio ab illis peccatis, si poeniten-tiam sibi iniunctam
procuraverint humiliter et fideliter observare. 3 Si vero tunc non potuerint habere sacerdotem,
confiteantur fratri suo, sicut dicit apostolus Jacobus: “Confitemini alterutrum peccata vestra” (Jac
5,16). 4 Non tamen propter hoc dimittant re-currere ad sacerdotem, quia potestas ligandi et solvendi
solis sacerdotibus est concessa. 5 Et sic contriti et confessi sumant corpus et sanguinem Domini
nostri Jesu Christi cum magna humilitate et veneratione recordantes, quod Dominus dicit: Qui
manducat carnem meam et bibit sanguinem meum habet vitam aeternam (cfr. Joa 6,54); 6 et “Hoc
facite in meam commemorationem” (Lc 22,19).
Capítulo XX- A penitência e a recepção do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo
1

E os meus irmãos benditos, tanto os clérigos quanto os leigos, confessem seus pecados aos
sacerdotes de nossa Religião. 2E se não o puderem, confessem-nos a outros sacerdotes discretos e
católicos, sabendo firmemente e estando atentos a que, quando receberem penitência e absolvição
de quaisquer sacerdotes católicos, estarão absolvidos sem qualquer dúvida daqueles pecados, se
procurarem cumprir humilde e fielmente a penitência que lhes foi imposta.3Se no momento, porém,
não puderem ter um sacerdote, confessem ao seu irmão, como diz o apóstolo Tiago: Confessai um
ao outro os vossos pecados (Tg 5,16). 4Contudo, por causa disto não deixem de recorrer ao
sacerdote, porque somente aos sacerdotes foi concedido o poder de ligar e absolver (cf. Mt
16,19).5E assim, contritos e confessados, recebam o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo
com grande humildade e reverência, recordando-se do que diz o Senhor: Quem come a minha carne
e bebe o meu sangue tem a vida eterna (cf. Jo 6,54), e: Fazei isto em memória de mim (Lc 22,19).

Caput XXI- De laude et exhortatione, quam possunt omnes fratres facere
1

Et hanc vel talem exhortationem et laudem omnes fratres mei, quandocumque placuerit eis,
annuntiare possunt inter quoscumque homines cum benedictione Dei: 2 Timete et honorate, laudate

164

et benedicite, gratias agite (1 Thess 5,18) et adorate Dominum Deum omnipotentem in trinitate et
unitate, Patrem et Filium et Spiritum Sanctum, creatorem omnium. 3 Agite poenitentiam (cfr. Mt
3,2), facite dignos fructus poenitentiae (cfr. Lc 3,8), quia cito moriemur. 4 “Date et dabitur vo-bis”
(Lc 6,38). 5 Dimittite et dimittetur vobis (cfr. Lc 6,37). 6 Et si non dimiseritis hominibus peccata
eorum (Mt 6,14), Dominus non dimittet vobis peccata vestra (Mc 11, 25); confitemini omnia
peccata vestra (cfr. Jac 5,16). 7 Beati qui moriuntur in poenitentia, quia erunt in regno caelorum.
8
Vae illis qui non moriuntur in poenitentia, quia erunt filii diaboli (1Joa 3,10), cuius opera faciunt
(cfr. Joa 8,41) et ibunt in ignem aeternum (Mt 18,8;25,41). 9 Cavete et abstinete ab omni malo et
perseverate usque in finem in bono.
Capítulo XXI- Lauda e exortação que todos os irmãos podem fazer
1

Todos os meus irmãos, quando lhes aprouver, podem com a bênção de Deus anunciar entre
quaisquer homens esta exortação lauda:2Temei e honrai, louvai e bendizei, rendei graças( 1Ts 5,18)
e adorai o Senhor Deus onipotente na Trindade e na Unidade, Pai e Filho e Espírito Santo (cf. Mt
28,19),Criador de todas as coisas. 3Fazei penitência (cf. Mt 3,2), produzi dignos frutos de penitência
(Lc 3,8),porque em breve morreremos.4Dai, e servos-á dado (Lc 6,38). 5Perdoai, e ser-vos-á
perdoado (cf. Lc 6,37). 6E se não perdoardes aos homens as seus pecados (Mt 6,14), o Senhor não
vos perdoará vossos pecados (Mc 11.25) confessai todos os vossos pecados (cf. Tg 5.16). 7Bemaventurados os que morrerem (cf. Ap 14.13) na penitência, porque estarão no reino dos céus. Ai
daqueles que não morrerem na penitência, porque serão filhos do demônio (1Jo 3,10). cujas obras
realizam (cf. Jo 8,41), e irão para o fogo eterno (Mt 18,8: 25,41). Precavei-vos e abstende-vos de
todo mal e perseverai até ao fim.

Caput XXII- De admonitione fratrum
1

Attendamus omnes fratres quod dicit Dominus: Diligite inimicos vestros et benefacite his qui
oderunt vos (cfr. Mt 5, 44 par.), 2 quia Dominus noster Jesus Christus, cuius sequi vestigia debemus
(cfr. 1Petr 2,21), traditorem suum vocavit amicum (cfr. Mt 26,50) et crucifixoribus suis sponte se
obtulit. 3 Amici igitur nostri sunt omnes illi qui nobis iniuste inferunt tribulationes et angustias,
verecundias et iniurias, dolores et tormenta, martyrium et mortem; 4 quos multum diligere debemus,
quia ex hoc quod nobis infe-runt, habemus vitam aeternam. 5 Et odio habeamus corpus nostrum cum
vitiis et peccatis suis; quia carnaliter vivendo vult diabolus a nobis auferre amorem Jesu Christi et
vitam aeternam et se ipsum cum omnibus perdere in infernum; 6 quia nos per culpam nostram sumus
foetidi, miseri et bono contrarii, ad mala autem prompti et voluntarii, quia, sicut Dominus dicit in
evangelio: 7 De corde procedunt et exeunt cogitationes malae, adulteria, fornicationes, ho-micidia,
furta, avaritia, nequitia, dolus, impudicitia, oculus malus, falsa testimonia, blasphemia, stultitia (cfr.
Mc 7,21; Mt 15,19). 8 Haec omnia mala ab intus de corde hominis procedunt (cfr. Mc 7,73) et “haec
sunt, quae coinquinant hominem” (Mt 15,20). 9 Nunc autem, postquam dimisimus mundum, nihil
habemus facere, nisi sequi voluntatem Domini et placere sibi ipsi. 10 Multum caveamus, ne simus
terra secus viam vel petrosa vel spinosa, secundum quod dicit Dominus in evangelio: 11 Semen est
verbum Dei (Lc 8,11). 12 Quod autem secus viam cecidit et conculcatum est (cfr. Lc 8,5), hi sunt qui

165

audiunt (Lc 8,12) verbum et non intel-ligunt (cfr. Mt 13,19); 13 et confestim (Mt 4,15) venit diabolus
(Lc 8,12) et rapit (Mt 13,19), quod seminatum est in cordibus eorum (Mc 4, 15) et tollit verbum de
cordibus eorum, ne credentes salvi fiant (Lc 8,12). 14 Quod autem super petrosam cecidit (cfr. Mt
13, 20), hi sunt, qui cum audierint verbum, statim cum gaudio (Mc 4,16) suscipiunt (Lc 8,13) illud
(Mc 4,l6). 15 Facta autem tribulatione et persecutione propter verbum, continuo scandalizantur (Mt
13, 21) et hi radicem in se non habent, sed temporales sunt (cfr. Mc 4,17), quia ad tempus credunt et
in tempore tentationis recedunt (Lc 8,13). 16 Quod autem in spinis cecidit, hi sunt (Lc 8,14) qui
verbum Dei audiunt (cfr. Mc 4,18), et sollicitudo (Mt 13,22) et aerumnae (Mc 4,19) istius saeculi et
fallatia divitiarum (Mt 13,22) et circa reliqua concupiscentiae introeuntes suffocant verbum et sine
fructu efficiuntur (Mc 4,19). 17 Quod autem in terram bonam (Lc 8, 15) seminatum est (Mt 13,23),
hi sunt, qui in corde bono et optimo audientes verbum (Lc 8,15) intelligunt et (cfr. Mt 13,23) retinent et fructum afferunt in patientia (Lc 8,15). 18 Et propterea nos fratres, sicut dicit Dominus,
dimittamus mortuos sepelire mortuos suos (Mt 8, 22). 19 Et multum caveamus a malitia et subtilitate
satanae, qui vult, quod homo mentem suam et cor non habeat ad Deum. 20 Et circuiens desiderat cor
hominis sub specie alicuius merceclis vel adiutorii tollere et sufocare verbum et praecepta Domini a
memoria et volens cor hominis per saecularia negotia et curam excaecare et ibi habitare, sicut dicit
Dominus: 21 Cum immundus spiritus exierit ab homine, ambulat per loca arida (Mt 12, 43) et
inaquosa quaerens requiem; et non inveniens dicit: 22 Revertar in domum meam, unde exivi (Lc
11,24). 23 Et veniens invenit eam vacantem scopis mundatam et ornatam (Mt 12,44). 24 Et vadit et
assumit alios septem spiritus nequiores se, et ressi habitant ibi, et sunt novissima hominis illius
peiora prioribus (cfr. Lc 11, 26). 25 Unde, omnes fratres, custodiamus nos multum, ne sub specie
alicuius mer-cedis vel operis vel adiutorii perda-mus vel tollamus nostram mentem et cor a Domino. 26 Sed in sancta caritate, quae Deus est (cfr. 1Joa 4, 17), rogo omnes fratres tam ministros
quam alios, ut omni impedimento remoto et omni cura et sollicitudine postposita, quocumque modo
melius possunt, servire, amare, honorare et adorare Dominum Deum mundo corde et pura mente
faciant, quod ipse super omnia quaerit. 27 Et semper faciamus ibi habitaculum et mansionem (cfr.
Joa 14,23) ipsi, qui es Dominus Deus omnipotens, Pater et Filius et Spiritus Sanctus, qui dicit:
Vigilate itaque omni tempore orantes, ut digni habeamini fugere omnia mala, quae ventura sunt et
stare ante Filium hominis (Lc 21,39). 28 Et cum stabitis ad orandum (Mc 11, 25) dicite (Lc 11, 2):
Pater noster qui es in caelis (Mt 6,9) 29 Et adoremus eum puro corde, quoniam oportet semper orare
et non deficere (Lc 18,1); 30 nam Pater tales quaerit adoratores. 31 Spiritus est Deus et eos qui
adorant eum, in spiritu et veritate oportet eum adorare (cfr. Joa 4, 23-24). 32 Et ad ipsum recurramus
tamquam ad pastorem et episcopum animarum nostrarum (1Petr 2,25), Qui dicit: Ego sum pastor
bonus, qui pasco oves meas et pro ovibus meis pono animam meam (cfr. Joa 10,14-15). 33 Omnes
vos fratres estis. 34 et patrem nolite vobis vocare super terram, unus est enim Pater vester, qui in
caelis est. 35 Nec vocemini magistri: unus est enim magister vester, qui in caelis est (cfr. Mt 23,810). 36 Si manseritis in me, et verba mea in vobis manserint, quodcumque volueritis, petetis et fiet
vobis (Joa 15,7). 37 Ubicumque sunt duo vel tres congregati in nomine meo, ibi sum in medio eorum
(Mt 18,20). 38 Ecce ego sum vobiscum usque ad consummationem saeculi (Mt 28,20). 39 Verba,
quae locutus sum vobis spiritus et vita sunt (Joa 6,64). 40 Ego sum via, veritas et vita (Joa 14,6).
41
Teneamus ergo verba, vitam et doctrinam et sanctum eius evangelium, Qui dignatus est pro nobis
rogare Patrem suum et nobis eius nomen manifestare dicens: Pater clarifica nomen tuum (Joa 12,28)
et clarifica Filium tuum, ut Filius tuus clarificet te (Joa 17,1). 42 Pater, manifestavi nomen tuum
hominibus, quos dedisti mihi (Joa 17,6); quia verba quae dedisti mihi, dedi eis: et ipsi acceperunt et

166

cognoverunt, quia a te exivi et crediderunt quia tu me misisti. 43 Ego pro eis rogo, non pro mundo.
44
sed pro his quos dedisti mihi, quia tui sunt et omnia mea tua sunt (Joa 17,8-10). 45 Pater sancte,
serva eos in nomine tuo quos dedisti mihi, ut ipsi sint unum sicut et nos (Joa 17,11b). 46 Haec loquor
in mundo, ut habeant gaudium in semetipsis. 47 Ego dedi eis sermonem tuum: et mundus eos odio
habuit, quia non sunt de mundo, sicut et ego non sum de mundo. 48 Non rogo ut tollas eos de mundo,
sed ut serves eos a malo (Joa 17,13b-15). 49 Mirifica eos in veritate. 50 Sermo tuus veritas est.
51
Sicut tu me misisti in mundum, et ego misi eos in mundum. 52 Et pro eis santifico meipsum, ut
sint ipsi sanctificati in veritate. 53 Non pro eis rogo tantum, sed pro eis, qui credituri sunt ppropter
verbum eorum in me (cfr. Joa 17,17-20), ut sint consummati in unum, et cognoscat mundus, quia tu
me misisti et dilexisti eos, sicut me dilexisti (Joa 17,23). 54 Et notum faciam eis nomen tuum, ut
dilectio qua dilexisti me, sit in ipsis et ego in ipsis (cfr. Joa 17,26). 55 Pater, quos dedisti mihi, volo,
ut ubi ego sum, et illi sint me-cum, ut videant claritatem tuam (Joa 17, 24) in regno tuo. Amen.
Capítulo XXII- Admoestação aos irmãos
1

Atendamos, irmãos todos, ao que diz o Senhor: Amai vossos inimigos e fazei o bem aqueles que vos
odeiam (cf. Mt5,44 par), 2porque Nosso Senhor Jesus Cristo, cujas pegadas devemos seguir (cf. 1Pd
2,21), chamou de amigo a seu traidor (cf. Mt 26,50) e ofereceu-se espontaneamente aos que o
crucificavam. 3Amigos nossos, portanto, são todos aqueles que injustamente nos causam tribulações
e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte; 4a estes devemos amar muito,
porque, a partir disto que nos causam, temos a vida eterna. 5E odiemos o nosso corpo com seus
vícios e pecados; porque, vivendo carnalmente, o demônio quer tirar de nós o amor de Jesus Cristo e
a vida eterna e perder a si mesmo com todos no inferno; 6porque nós, por nossa culpa, somos
fétidos, míseros e contrários ao bem, mas prontos e com vontade inclinada ao mal, como diz o
Senhor no Evangelho: 7Do coração procedem e saem maus pensamentos, adultérios, fornicações,
homicídios, furtos, avareza, maldade, fraude, impudicícia, mau olhar, falsos testemunhos,
blasfêmia, insensatez (cf. Mc 7,21-22: Mt 15,19). 8Todas estas coisas más procedem do interior (cf.
Mc 7,23) do coração do homem e são estas que mancham o homem (Mt 15,20).9Agora, porém,
depois que abandonamos o mundo, nada mais temos a fazer, a não ser seguir a vontade do Senhor e
agradar-lhe. 10Cuidemos muito para não sermos terra à beira do caminho ou pedregosa ou
espinhosa, segundo o que diz o Senhor no Evangelho:11A semente é a palavra de Deus (Lc 8,11).
12
A que caiu à beira do caminho e foi pisada (cf. Lc 8,5) são os que ouvem (Lc 8,12) a palavra e
não (cf. Mt 13,19) a entendem; 13e logo vem o demônio (Mc 4,15; Lc 8,12) e se apodera do que foi
semeado nos corações deles (Mt 13,19; Mc 4,15) e retira-lhe a palavra dos corações para que não
creiam nem sejam salvos (Lc 8,12). 14A que caiu na terra pedregosa (cf. Mt 13,20) são os que, ao
ouvirem a palavra, logo a acolhem com alegria (Lc 8,13; Mc 4,16). 15Vindo, porém, a tribulação e
a perseguição por causa da palavra, logo se escandalizam (Mt 13,21); e eles não têm raiz em si,
mas são volúveis (cf. Mc 4,17), porque crêem momentaneamente e no tempo da tentação
retrocedem (Lc 8,13). 16A que caiu nos espinhos (Lc 8,14) são os que ouvem a palavra de Deus (cf.
Mc 4,18), e a preocupação (Mt 13,22) e as inquietações (Mc 4,19) deste mundo e a sedução das
riquezas (Mt 13,22) e as concupiscências para com outras coisas se intrometem e sufocam a
palavra, e eles se tornam sem fruto (Mc 4,19). 17A que foi semeada (Mt 13,23) em terra boa, porém
(Lc 8,15), são os que, ouvindo com o coração bom e leal a palavra (Lc 8,15), a entendem (cf.Mt
13,23), a retêm e produzem fruto na paciência (Lc 18,15). 18E por isso, nós, irmãos, como diz o

167

Senhor, deixemos os mortos sepultar os seus mortos (Mt 8,22). 19E acautelemo-nos muito da
malícia e da esperteza de satanás que quer que o homem não tenha sua mente e o coração dirigidos
para Deus. 20Ele, rodeando, sob aparência de alguma recompensa ou de ajuda, deseja arrebatar o
coração do homem e sufocar-lhe na memória a palavra e os preceitos do Senhor, querendo também,
através dos negócios e de cuidados mundanos, obcecar o coração do homem e aí habitar, como diz
o Senhor: 21Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos (Mt 12,43) e sem
água, procurando descanso; e, não encontrando, diz:22Voltarei para minha casa de onde sai (Lc
11,24). 23E, chegando, encontra-a vazia, limpa e ornada (Mt 12,44), 24E vai e toma outros sete
espíritos piores do que ele; eles entram aí; e a nova situação deste homem torna-se pior do que a
anterior (cf. Lc 11.26). 25Portanto, irmãos todos, guardemo-nos muito para que, sob a aparência de
alguma recompensa ou de obra ou de ajuda, não percamos ou afastemos do Senhor a nossa mente e
o nosso coração. 26Mas, na santa caridade que é Deus (cf. 1Jo 4,16), rogo a todos os irmãos, tanto
aos ministros como aos outros, que, removido todo impedimento e todo cuidado e postergada toda
preocupação, do melhor modo que puderem, esforcem-se por servir, amar, honrar e adorar o Senhor
Deus com o coração limpo e com a mente pura, pois é isto que ele deseja acima de tudo, 27e façamos
sempre ai uma habitação e um lugar de repouso (cf. Jo 14,23) para ele que é o Senhor Deus
onipotente, Pai e Filho e Espírito Santo (cf. Mt 28,19), que diz. Vigiai, pois, em todo tempo em
oração para serdes julgados dignos de escapar dos males que deverão vir, e de vos manter de pé
diante do Filho do homem (Lc 21,36).28E quando estiverdes de pé para orar, dizei (Mc 11,25; Lc
11,2): Pai nosso, que estais nos céus (Mt 6,9), 29E adoremo-lo com o coração puro, porque convém
rezar sempre e não desanimar (Lc 18,1); 30pois o Pai procura tais adoradores. 31Deus é espírito, e
aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade (cf. Jo 4,23-24), 32E recorramos a
ele como ao pastor e guarda de nossas almas (1Pd 2,25), pois ele diz. Eu sou o bom pastor e
apascento as minhas ovelhas e pelas minhas ovelhas exponho minha vida (cf. Jo 10,1 1. 15).33
Todos vós sois irmãos;34e a ninguém chameis de pai para vós sobre a terra, pois um só é o vosso
Pai, aquele que está nos céus. 35Não vos chameis de mestres; pois um só é o vosso mestre, aquele
que está nos céus (cf. Mt 23,8-10). 36Se permanecerdes em mim e se minhas palavras
permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes e vos será concedido (Jo 15,7). 37Onde estão dois
ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles (Mt 18,20). 38Eis que eu estou convosco
até à consumação dos tempos (Mt 28,20). 39As palavras que eu vos disse são espírito e vida (Jo
6,64). 40Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6).41Guardemos, portanto, as palavras, a vida, a
doutrina e o santo Evangelho daquele que se dignou rogar por nós ao Pai e manifestar-nos o nome
dele, dizendo: Pai, glorifica teu nome (Jo 12,28a) e glorifica teu Filho para que teu Filho te
glorifique (Jo 17,1b). 42Pai, manifestei teu nome aos homens que me deste (Jo 17,6); porque lhes dei
as palavras que me deste; e eles as aceitaram e reconheceram que saí de ti e creram que tu me
enviaste. 43Rogo por eles, não pelo mundo; 44mas por aqueles que me deste, porque são teus, e tudo
o que é meu é teu (Jo 17,8-10).45Pai santo, guarda em teu nome os que me deste, para que sejam um
assim como nós (Jo 17,11b). 46Falo estas coisas no mundo para que eles tenham alegria em si
mesmos. 47Eu lhes dei tua palavra, e o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como
também eu não sou do mundo. 48Não rogo que os tires do mundo, mas que os preserves do mal (Jo
17,13b-16). 49Faze-os brilhar na verdade. 50Tua palavra é a verdade. 51Como tu me enviaste ao
mundo, também eu os enviei ao mundo. 52E por eles me santifico a mim mesmo, para que eles sejam
santificados na verdade. 53Rogo não somente por eles, mas também por aqueles que acreditarão em
mim por causa da sua palavra (cf. Jo 17,17-20), a fim de que sejam consumados na unidade e para

168

que o mundo reconheça que tu me enviaste e os amaste como amaste a mim (Jo 17,23). 54Revelarlhes-ei teu nome para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles (Jo 17,26). 55Pai,
quero que, onde eu estou, estejam comigo também aqueles que me deste, para que vejam a tua
glória (Jo 17,24) em teu reino (Mt 20,21). Amém!

Caput XXIII- Oratio et gratiarum actio
1

Omnipotens, sanctissime, altissime et summe Deus, Pater sancte (Joa 17,11) et iuste, Domine rex
caeli et terrae (cfr. Mt 11,25), propter temetipsum gratias agimus tibi, quod per sanctam voluntatem
tuam et per unicum Filium tuum cum Spiritu Sancto creasti omnia spiritualia et corporalia et nos ad
imaginem tuam et similitu-dinem factos in paradiso posuisti (cfr. Gen 1, 26). 2Et nos per culpam
nostram cecidimus.3Et gratias agimus tibi, quia sicut per Filium tuum nos creasti, sic per sanctam
dilectionem tuam, qua dilexisti nos (cfr. Joa 17,26), ipsum verum Deum et verum hominem ex
gloriosa semper Virgine beatissima Sancta Maria nasci fecisti et per crucem et sanguinem et mortem
ipsius nos captivos redimi voluisti.4Et gratias agimus tibi, quia ipse Filius tuus venturus est in gloria
maiestatis suae mittere maledictos, qui poenitentiam non egerunt et te non cognoverunt, in ignem
aeternum, et dicere omnibus qui te cognoverunt et adoraverunt et tibi servierunt in poenitentia:
Venite, benedicti Patris mei, percipite regnum, quod vobis paratum est ab origine mundi (cfr. Mt 25,
34).5Et quia nos omnes miseri et peccatores non sumus digni nominare te, suppliciter exoramus, ut
Dominus noster Jesus Christus Filius tuus dilectus, in quo tibi bene complacuit (cfr. Mt 17,5), una
cum Spiritu Sancto Paraclito gratias agat tibi, sicut tibi et ipsi placet, pro omnibus, qui tibi semper
sufficit ad omnia, per quem nobis tanta fecisti. Alleluia. 6Et gloriosam matrem beatissimam Mariam
semper Virginem, beatum Michaelem, Gabrielem et Raphaelem et omnes choros beatorum
seraphim, cherubim, thronorum, dominationum, principatum, potestatum, virtutum, angelorum,
archangelorum, beatum Joannem Baptistam, Joannem Evangelistam, Pe-trum, Paulum et beatos
patriarchas, prophetas, Innocentes, apostolos, evangelistas, discipulos, martyres, confessores,
virgines, beatos Eliam et Enoch, et omnes sanctos, qui fuerunt et erunt et sunt, propter tuum amorem
humiliter deprecamur, ut, sicut tibi placet, pro his tibi gratias referant summo vero Deo, aeterno et
vivo, cum Filio tuo carissimo Domino nostro Jesu Christo et Spiritu Sancto Paraclito in saecula
saeculorum (Apoc 19,3). Amen. Alleluia (Apoc 19, 4).7Et Domino Deo universos intra sanctam
ecclesiam catholicam et apostolicam servire volentes et omnes sequentes ordines, sacerdotes,
diaconos, subdiaconos, acolythos, exorcistas, lectores, ostiarios et omnes clericos, universos
religiosos et religiosas, omnes conversos et parvulos, pauperes et egenos, reges et principes,
laborantes et agricolas, servos et dominos, omnes virgines et continentes et maritatas, laicos,
masculos et feminas, omnes infantes, adolescentes, iuvenes et senes, sanos et infirmos, omnes
pusillos et magnos, et omnes populos, gentes, tribus et linguas (cfr. Apoc 7,9), omnes nationes et
omnes homines ubicumque terrarum, qui sunt et erunt, humiliter rogamus et supplicamus nos omnes
fratres minores, servi inutiles (Lc 17, 10), ut omnes in vera fide et poenitentia perseveremus, quia
aliter nullus salvari potest.8Omnes diligamus ex toto corde, ex tota anima, ex tota mente, ex tota
virtute (cfr. Mc 12,30) et fortitudine (cfr. Mc 12,33), ex toto intellectu, ex omnibus viribus (cfr. Lc
10,27), toto nisu, toto affectu, totis visceribus, totis desideriis et voluntatibus Dominum Deum (Mc
12,30 par.), qui totum corpus, totam animam et totam vitam dedit et dat omnibus nobis, qui nos

169

creavit, redemit et sua sola misericordia salvabit (cfr. Tob 13,5), qui nobis miserabilibus et miseris,
putridis et foetidis, ingratis et malis omnia bona fecit et facit. 9Nihil ergo aliquid aliud desideremus,
nihil velimus, nihil aliud placeat et delectet nos nisi Creator et Redemptor et Salvator noster, solus
verus Deus, qui est plenum bonum, omne bonum, totum bonum, verum et summum bonum, qui
solus est bonus (cfr. Lc 18,19), mitis, suavis et dulcis, qui solus est sanctus, iustus, verus, sanctus et
rectus, qui solus est benignus, innocens, mundus, a quo et per quem et in quo (cfr. Rom 11,36) est
omnis venia, omnis gratia, omnis gloria omnium poenitentium et iustorum, omnium beatorum in
caelis congaudentium.10Nihil ergo impediat, nihil interpolet; 11ubique nos omnes omni loco, omni
hora et omni tempore, quotidie et continue credamus veraciter et humiliter et in corde teneamus et
amemus, honoremus, adoremus, serviamus, laudemus et benedicamus, glorificemus, et
superexaltemus, magnificemus et gratias agamus altissimo et summo Deo aeterno, trinitati et unitati,
Patri et Filio et Spiritui Sancto, creatori omnium et salvatori omnium in se credentium et sperantium
et diligentium eum, qui sine initio et sine fine immutabilis, invisibilis, inenarrabilis, ineffabilis,
incomprehensibilis, investigabilis (cfr. Rom 11,33), benedictus, laudabilis, gloriosus, superexaltatus
(cfr. Dan 3,52), sublimis, excelsus, suavis, ama-bilis, delectabilis et totus super omnia desiderabilis
in saecula. Amen.
Capítulo XXIII - Oração e ação de graças
1

Onipotente, santíssimo, altíssimo e sumo Deus, Pai santo (Jo 17,11) e justo, Senhor Rei do céue da
terra (cf. Mt 11,25), nós vos rendemos graças por causa de vós mesmo, porque pela vossa santa
vontade e pelo vosso único Filho com o Espírito Santo criastes todos os seres espirituais e corporais
e a nós, feitos à vossa imagem e semelhança, nos colocastes no paraíso (cf. Gn 1,27; 2,15). 2E nós
caímos por culpa nossa. 3E rendemos-vos graças, porque, como por vosso Filho nos criastes, do
mesmo modo, pelo santo amor com que nos amastes (cf. Jo 17,26), o fizestes nascer como
verdadeiro Deus e verdadeiro homem da gloriosa sempre Virgem, a beatíssima Santa Maria, e
quisestes que nós, cativos, fôssemos remidos por sua cruz, sangue e morte. 4E rendemos-vos graças,
porque o mesmo Filho vosso há de vir na glória de sua majestade (cf. Mt 25,3 1) para lançar ao
fogo eterno os malditos (cf. Mt 25,41), que não fizeram penitência e que não te reconheceram, e
para dizer a todos os que te reconheceram, adoraram e serviram em penitência: Vinde, benditos de
meu Pai, recebei o reino que foi preparado para vós desde a origem do mundo (cf. Mt 25,34). 5E
porque nós todos, miseráveis e pecadores, não somos dignos de proferir vosso nome,
suplicantemente vos pedimos que Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso dileto Filho, em quem tendes
toda complacência (cf. Mt 17,5), juntamente com o Espírito Santo Paráclito, por tudo vos renda
graças como agrada a vós e a ele, que em tudo sempre vos satisfaz, e por meio de quem nos fizestes
tão grandes coisas. Aleluia!6E, por causa de vosso amor, pedimos humildemente à gloriosa e
beatíssima Mãe, a sempre Virgem Maria, a São Miguel, São Gabriel e São Rafael e a todos os coros
dos bem-aventurados serafins, querubins, tronos, dominações, principados, potestades (Cl 1,16),
virtudes, anjos, arcanjos, a São João Batista, João Evangelista, Pedro, Paulo e aos bem-aventurados
patriarcas, profetas, inocentes, apóstolos, evangelistas, discípulos, mártires, confessores, virgens,
aos bem-aventurados Elias e Enoc e a todos os santos que existiram, existirão e existem, que, como
vos agrada, por todas estas coisas vos rendam graças a vós, sumo e verdadeiro Deus, eterno e vivo,
com o vosso Filho caríssimo, Nosso Senhor Jesus Cristo, e com o Espírito Santo Paráclito, pelos
séculos dos séculos (Ap 5,13). Amém. Aleluia (Ap 19,3-4)7E a todos os que querem servir ao Senhor

170

Deus na santa Igreja Católica e a todas as seguintes ordens: sacerdotes, diáconos, subdiáconos,
acólitos, exorcistas, leitores, ostiários e todos os clérigos, a todos os religiosos e religiosas, a todos
os conversos e pequeninos, pobres e indigentes, reis e príncipes, trabalhadores e agricultores, servos
e senhores, a todas as virgens e solteiras e às casadas, aos leigos, homens e mulheres, a todas as
crianças, adolescentes, jovens e velhos, sãos e enfermos, a todos os pequenos e grandes, e a todos os
povos, gentes, tribos e línguas (cf. Ap 7,9), a todas as nações e a todos os homens de qualquer parte
da terra, aos que existem e que existirão, nós, os frades menores todos, servos inúteis (cf. Lc 17.10),
humildemente rogamos e suplicamos para que perseveremos todos na verdadeira fé e penitência,
porque de outra maneira ninguém pode salvar-se. 8Amemos todos, de todo o coração, com toda a
alma, com todo o pensamento, com todo o vigor (cf. Mc 12,30) e fortaleza., com todo o
entendimento (Mc12,33), com todas as forças (cf. Lc 10,27), com todo o empenho, com todo o
afeto, com todas as entranhas, com todos os desejos e vontades ao Senhor Deus (Mc 12,30); a ele
que nos deu e nos dá a todos nós todo o corpo, toda a alma e toda a vida; a ele que nos criou, nos
remiu e somente por sua misericórdia nos salvará (Tb 13,5); a ele que a nós, miseráveis e míseros,
pútridos e fétidos, ingratos e maus, fez e faz todos os bens. 9Portanto, nada mais desejemos, nada
mais queiramos, nada mais nos agrade ou deleite a não ser o nosso Criador, Redentor e Salvador,
único Deus verdadeiro, que é o bem pleno, todo o bem, o bem total, verdadeiro e sumo bem, o
unicamente bom (cf. Lc 18,19), piedoso, manso, suave e doce, o unicamente santo, justo,
verdadeiro, santo e reto, o unicamente benigno, inocente, puro, de quem, por quem (cf. Hb 2,10) e
em quem está todo o perdão, toda a graça, toda a glória de todos os penitentes e justos, de todos os
bem-aventurados que se alegram juntamente com ele nos céus. 10Nada, portanto nos impeça, nada
nos separe, nada se interponha entre nós; 11em qualquer parte, em todo lugar, a toda hora, em todo
tempo, diária e continuamente, creiamos todos nós de verdade e humildemente e tenhamos no
coração e amemos, honremos, adoremos, sirvamos louvemos e bendigamos, glorifiquemos e
superexaltemos, magnifiquemos e rendamos graças ao altíssimo e sumo Deus eterno, Trindade e
Unidade, Pai e Filho e Espírito Santo (cf. Mt 28,19), criador de todas as coisas e salvador de todos
os que nele creem e esperam e o amam, a ele que é sem início e sem fim, imutável, invisível,
inenarrável, inefável, incompreensível, insondável (cf. Rm 11,33), bendito, louvável, glorioso,
superexaltado (cf. Dn 3,52), sublime excelso, suave, amável, deleitável e totalmente desejável
acima de todas as coisas pelos séculos. Amém.

Caput XXIV- Conclusio
1

In nomine Domini! Rogo omnes fratres, ut addiscant tenorem et sensum eorum quae in ista vita ad
salvationem animae nostrae scripta sunt et ista frequenter ad memoriam reducant. 2 Et exoro Deum,
ut ipse, qui est omnipotens, trinus et unus, benedicat omnes docentes, discentes, habentes,
recordantes et operantes ista quoties repetunt et faciunt quae ibi ad salutem animae nostrae scripta
sunt, 3 et deprecor omnes cum osculo pedum, ut multum diligant, custodiant et reponant. 4 Et ex
parte Dei omnipotentis et domini papae et per obedientiam ego frater Franciscus firmiter praecipio
et iniungo, ut ex his, quae in ista vita scripta sunt, nullus minuat vel in ipsa scriptum aliquod desuper
addat (cfr. Deut 4,2; 12,32) nec aliam regulam fratres habeant. 5 Gloria Patri et Filio et Spiritui
Sancto, sicut erat in principio et nunc et semper et in saecula saeculorum. Amen.

171

Capítulo XXIV- Conclusão
1

Em nome do Senhor (cf. CI 3,17)! Rogo a todos os irmãos que aprendam o teor e o sentido destas
coisas que foram escritas nesta [forma de] vida para a salvação de nossa alma e as recordem
frequentemente. 2E suplico a Deus para que ele, que é onipotente, trino e uno, abençoe a todos os
que, ensinando, aprendendo, conservando, recordando e colocando em prática estas coisas, tantas
vezes repetem e realizam o que aí foi escrito para a salvação de nossa alma; 3e, beijando-lhes os pés,
suplico a todos que as amem muito, as guardem e as conservem. 4E da parte de Deus onipotente e
do senhor papa e por obediência, eu, Frei Francisco, ordeno firmemente e imponho que ninguém
diminua nada destas coisas que foram escritas nesta [forma de] vida nem lhe acrescente (cf. Dt 4,2;
12,32) qualquer escrito; e não tenham os irmãos uma outra regra. 5Glória ao Pai e ao Filho e ao
Espírito Santo, como era noprincípio, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.

REGRA BULADA.

Caput I
In nomine Domini! Incipit vita Minorum Fratrum:
1
Regula et vita Minorum Fratrum haec est, scilicet Domini nostri Jesu Christi sanctum Evangelium
observare vivendo in obedientia, sine proprio et in castitate. 2 Frater Franciscus promittit
obedientiam et reverentiam domino papae Honorio ac successoribus suis canonice intrantibus et
Ecclesiae Romanae. 3 Et alii fratres teneantur fratri Francisco et eius successoribus obedire.
Capítulo I
1

Em nome do Senhor! Começa a vida dos Frades Menores:
A Regra e vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade. 3Frei Francisco promete obediência
e reverência ao senhor Papa Honório e a seus sucessores canonicamente eleitos e à Igreja Romana.
4
E os demais irmãos estejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seus sucessores.
2

Caput II
De his qui volunt vitam istam accipere, et qualiter recipi debeant
1
Si qui voluerint hanc vitam accipere et venerint ad fratres nos-tros, mittant eos ad suos ministros
provinciales, quibus solummodo et non aliis recipiendi fratres licentia concedatur. 2 Ministri vero
diligenter examinent eos de fide catholica et ecclesiasticis sacramentis. 3 Et si haec omnia credant et
velint ea fideliter confiteri et usque in finem firmiter observare 4 et uxores non habent vel, si habent,

172

et iam monasterium intraverint uxores vel, licentiam eis dederint auctoritate dioecesani episcopi,
voto continentiae iam emisso, et illius sint aetatis uxores, quod non possit de eis oriri suspicio,
5
dicant illis verbum sancti Evangelii (cf Mt 19,21 par), quod vadant et vendant omnia sua et ea
studeant pauperibus erogare. 6 Quod si facere non potuerint, sufficit eis bona voluntas. 7 Et caveant
fratres et eorum ministri, ne solliciti sint de rebus suis temporalibus, ut libere faciant de rebus suis,
quidquid Dominus inspiraverit eis. 8 Si tamen con-silium requiratur, licentiam habeant ministri
mittendi eos ad aliquos Deum timentes, quorum consilio bona sua pauperibus erogentur. 9 Postea
concedant eis pannos probationis, videlicet duas tunicas sine caputio et cingulum, et braccas et
caparonem usque ad cingulum, 10 nisi eisdem ministris aliud secundum Deum aliquando videatur.
11
Finito vero anno probationis, recipiantur ad obedientiam promittentes vitam istam semper et
regulam observare. 12 Et nullo modo licebit eis de ista religione exire iuxta mandatum domini papae,
13
quia secundum sanctum Evangelium nemo mittens manum ad aratrum et aspiciens retro aptus est
regno Dei (Lc 9,62). 14 Et illi qui iam promiserunt obedientiam habeant unam tunicam cum caputio
et aliam sine caputio qui voluerint habere. 15 Et qui necessitate coguntur possint portare calciamenta.
16
Et fratres vestimentis vilibus induantur et possint ea repeciare de saccis et aliis peciis cum
benedictione Dei. 17 Quos moneo et exhortor, ne despiciant neque iudicent homines, quos vident
mollibus vestimentis et coloratis indutos, uti cibis et potibus delicatis, sed magis unusquisque
iudicet et despiciat semetipsum.
Capítulo II
1

Os que querem assumir esta vida e como devem ser recebidos
Aqueles que quiserem assumir esta vida e vierem procurar nossos irmãos, estes os enviem aos seus
ministros provinciais, aos quais unicamente, e não a outros, seja concedida a licença de receber
irmãos. 3Os ministros, no entanto, examinem-nos diligentemente sobre a fé católica e sobre os
sacramentos da Igreja. 4E se crerem em todas estas coisas e quiserem fielmente professá-las e
firmemente observá-las até ao fim, 5 caso não tenham esposas ou, se tiverem, as esposas já tiverem
entrado em mosteiro ou, tendo já emitido o voto de continência, lhes tiverem dado a licença com a
autorização do bispo diocesano, e as esposas sejam de tal idade que não possa destas coisas nascer
suspeita, 6digam-lhes a palavra do santo Evangelho que vão e vendam todos os seus bens e
procurem distribuí-los aos pobres (cf. Mt 19,21par.).7Se não puderem realizar isto, basta-lhes a boa
vontade. 8E cuidem os irmãos e seus ministros para não se preocupar com as coisas temporais deles,
de modo que eles livremente façam suas coisas o que o Senhor lhe inspirar. 9Se, porém, for pedido
algum conselho, tenham os ministros a licença de enviá-los a algumas pessoas tementes a Deus, a
cujo conselho distribuam seus bens aos pobres. 10Depois disto, concedam-lhes as vestes de
provação, a saber, duas túnicas sem capuz e o cíngulo, calções e o caparão [que vá] até ao cíngulo,
11
a não ser que, uma ou outra vez, aos mesmos ministros outra coisa pareça melhor segundo Deus. 12
E terminado o ano de provação, sejam recebidos à obediência, prometendo observar sempre esta
vida e regra. 13E, segundo a prescrição do senhor papa, não lhes será permitido de modo algum sair
desta Religião, 14porque, segundo o santo Evangelho, ninguém que coloca a mão no arado e olha
para trás é apto para o reino de Deus (cf. Lc 9,62). 15E os que já prometeram obediência tenham
uma túnica com capuz e, aqueles que o quiserem, outra sem capuz. 16E os que são premidos pela
necessidade possam usar calçados. 17E todos os irmãos se vistam com vestes baratas e possam, com
a bênção de Deus, remendá-las de sacos e outros retalhos. 18Eu os admoesto e exorto a que não
2

173

desprezem nem julguem os homens que virem vestir roupas macias e coloridas e usar comidas e
bebidas finas, mas cada qual julgue e despreze antes a si mesmo.

Caput III
De divino officio et ieiunio, et quomodo fratres debeant ire per mundum
1
Clerici faciant divinum officium secundum ordinem sanctae Romanae Ecclesiae excepto psalterio,
2
ex quo habere poterunt breviaria. 3 Laici dicant viginti quatuor Pater noster pro matutino, pro laude
quinque, pro prima, tertia, sexta, nona, pro qualibet istarum septem, pro vesperis autem duodecim,
pro completorio septem; 4 et orent pro defunctis. 5 Et ieiunent a festo Omnium Sanctorum usque ad
Nativitatem Domini. 6 Sanctam vero quadragesimam, quae incipit ab Epiphania usque ad continuos
quadraginta dies, quam Dominus suo sancto ieiunio consecravit (cf Mt 4,2), qui voluntarie eam
ieiunant benedicti sint a Domino, et qui nolunt non sint astricti. 7 Sed aliam usque ad
Resurrectionem Domini ieiunent. 8 Aliis autem temporibus non teneantur nisi sexta feria ieiunare.
9
Tempore vero manifestae necessitatis non teneantur fratres ieiunio corporali. 10 Consulo vero,
moneo et exhortor fratres meos in Domino Jesu Christo, ut quando vadunt per mundum, non litigent
neque contendant verbis (cf 2Tim 2,14), nec alios iudicent; 11 sed sint mites, pacifici et modesti,
mansueti et humiles, honeste loquentes omnibus, sicut decet. 12 Et non debeant equitare, nisi
manifesta necessitate vel infirmitate cogantur. 13 In quamcumque domum intraverint, primum
dicant: Pax huic domui (cf Lc 10,5). 14 Et secundum sanctum Evangelium de omnibus cibis, qui
apponuntur eis, liceat manducare (cf Lc 10,8).
Capítulo III
1

O oficio divino e o jejum e como devem os irmáos ir pelo mundo
Os clérigos rezem o oficio divino conforme o diretório da santa Igreja Romana, com exceção do
saltério; 3por isso, poderão ter breviários. 4Os leigos, no entanto, digam vinte e quatro Pai-nossos(cf.
Mt 6.9-13) pelas Matinas, cinco pelas Laudes, pela Prima, pela Terça, pela Sexta e pela Noa, em
cada uma delas sete; pelas Vésperas doze e pelas Completas sete; 5e rezem pelos defuntos. 6E jejuem
desde a festa de Todos os Santos até ao Natal do Senhor. 7A santa quaresma, porém, que começa
com a Epifania e se prolonga por quarenta dias (cf. Mt 4.2), a qual o Senhor consagrou com seu
santo jejum, os que nela jejuarem voluntariamente sejam abençoados pelo Senhor, e os que não o
quiserem não sejam obrigados.8Jejuem, porém, na outra [que se estende] até à Ressurreição do
Senhor.9Em outros tempos, não sejam obrigados a jejuar, a não ser na Sexta-feira. 10No entanto, em
tempo de manifesta necessidade, os irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal. 11Aconselho,
todavia, admoesto e exorto a meus irmãos no Senhor Jesus Cristo que, quando vão pelo mundo, não
discutam nem alterquem com palavras (cf. 2 Tm 2.14) nem julguem os outros; 12mas sejam mansos,
pacíficos e modestos, brandos e humildes, falando a todos honestamente, como convém. 13E não
devem andar a cavalo, a não ser que sejam obrigados por manifesta necessidade ou por
enfermidade. 14Em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa (cf. Lc
10.5). 15E, segundo o santo Evangelho, seja-lhes permitido comer de todos os alimentos que forem
colocados diante deles (cf. Lc 10.8).
2

174

Caput IV
Quod fratres non recipiant pecuniam
1
Praecipio firmiter fratribus universis, ut nullo modo denarios vel pecuniam recipiant per se vel per
interpositam personam.2 Tamen pro necessitatibus infirmorum et aliis fratribus induendis, per
amicos spirituales, ministri tantum et custodes sollicitam curam gerant secundum loca et tempora et
frigidas regiones, sicut necessitati viderint expedire; 3 eo semper salvo, ut, sicut dictum est, denarios
vel pecuniam recipiant.
Capítulo IV
1

Que os irmãos não recebam dinheiro
Ordeno firmemente a todos os irmãos que de modo algum recebam dinheiro ou moedas, nem por si
nem por pessoa intermediária. 3No entanto, só os ministros e custódios exerçam diligente cuidado,
através de amigos espirituais, para com as necessidades dos enfermos e para vestir os demais irmãos
de acordo com os lugares, tempos e regiões frias, como virem que seja conveniente à necessidade;
4
salvo sempre que, como foi dito, não recebam moedas ou dinheiro.
2

Caput V
De modo laborandi
1
Fratres illi, quibus gratiam dedit Dominus laborandi, laborent fideliter et devote, 2 ita quod,
excluso otio animae inimico, sanctae orationis et devotionis spiritum non extinguant, cui debent
cetera temporalia deservire. 3 De mercede vero laboris pro se et suis fratribus corporis necessaria
recipiant praeter denarios vel pecuniam et hoc humiliter, 4 icut decet servos Dei et pau-pertatis
sanctissimae sectatores.
Capítulo V
1

O modo de trabalhar
Aqueles irmãos aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar trabalhem fiel e devotamente, 3de
modo que, afastado o ócio que é inimigo da alma, não extingam o espírito (cf. ITs 5,19) da santa
oração e devoção, ao qual devem servir as demais coisas temporais. 4Quanto ao salário do trabalho,
recebam para si e para seus irmãos as coisas necessárias ao corpo, exceto moedas e dinheiro; 5e isto
humildemente, como convém a servos de Deus e a seguidores da santíssima pobreza.
2

Caput VI
Quod nihil approprient sibi fratres, et de eleemosyna petenda et de fratribus infirmis
1
Fratres nihil sibi approprient nec domum nec locum nec aliquam rem. 2 Et tamquam peregrini et

175

advenae (cf 1Petr 2,11) in hoc saeculo in paupertate et humilitate Domino famulantes vadant pro
eleemosyna confidenter, 3 nec oportet eos verecundari, quia Dominus pro nobis se fecit pauperem in
hoc mundo (cf 2Cor 8,9). 4 Haec est illa celsitudo altissimae paupertatis, quae vos, carissimos fratres
meos, heredes et reges regni caelorum instituit, pauperes rebus fecit, virtutibus sublimavit (cf Jac 2,
5). 5 Haec sit portio vestra, quae perducit in terram viventium (cf Ps 141, 6). 6 Cui, dilectissimi
fratres, totaliter inhaerentes nihil aliud pro nomine Domini nostri Jesu Christi in perpetuum sub
caelo habere velitis. 7 Et, ubicumque sunt et se invenerint fratres, ostendant se domesticos invicem
inter se. 8 Et secure manifestet unus alteri necessitatem suam, quia, si mater nutrit et diligit filium
suum (cf 1 Thess 2,7) carnalem, quanto diligentius debet quis diligere et nutrire fratrem suum
spiritualem? 9 Et, si quis eorum in infirmitate ceciderit, alii fratres debent ei servire, sicut vellent sibi
serviri (cf Mt 7, 12).
Capítulo VI
1

Que os irmãos não se apropriem de nada; o modo de pedir esmola e os irmãos enfermos
Os irmãos não se apropriem de nada, nem de casa, nem de lugar, nem de coisa alguma. 3E como
peregrinos e forasteiros (cf. 1Pd 2,11) neste mundo, servindo ao Senhor em pobreza e humildade,
peçam esmola com confiança;4e não devem envergonhar-se, porque o Senhor se fez (cf. 2Cor 8,9)
pobre por nós neste mundo. 5Esta é aquela sublimidade da altíssima pobreza (cf. 2Cor 8,2) que vos
constituiu, meus irmãos caríssimos, herdeiros e reis do reino dos céus, vos fez pobres (cf. Tg 2,5)
de coisas, vos elevou em virtudes. 6Seja esta a vossa porção que conduz à terra dos vivos (cf. SI
141,6). 7Aderindo totalmente a ela, irmãos diletíssimos, nenhuma outra coisa jamais queirais ter
debaixo do céu em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. 8E onde estão e onde quer que se
encontrarem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. 9E com confiança um
manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho (Cf. 1Ts 2,7) carnal,
quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual? 10E se algum
deles cair enfermos, os outros irmãos devem servi-lo como gostariam de ser servidos (cf. Mt 7,12).
2

Caput VII
De poenitentia ratribus peccantibus imponenda
1
Si qui fratrum, instigante inimico, mortaliter peccaverint, pro illis peccatis, de quibus ordinatum
fuerit inter fratres, ut recurratur ad solos ministros provinciales, teneantur praedicti fratres ad eos
recurrere quam citius poterint, sine mora. 2 Ipsi vero ministri, si presbyteri sunt, cum misericordia
iniungant illis poenitentiam, si vero presbyteri non sunt, iniungi faciant per alios sacerdotes ordinis,
sicut eis secundum Deum melius videtur expedire. 3 Et cavere debent, ne irascantur et conturbentur
propter peccatum alicuius, quia ira et conturbatio in se et in aliis impediunt caritatem.
Capítulo VII

176

1

A penitência a ser imposta aos irmãos que pecam
Se alguns dos irmãos, por instigação do inimigo, pecarem mortalmente- no caso daqueles pecados
sobre os quais fora estabelecido entre os irmãos que se recorra somente aos ministros provinciais-,
sejam obrigados os referidos irmãos a recorrer a eles o mais depressa que puderem, sem demora.3Os
ministros, no entanto, se são presbíteros, com misericórdia lhes imponham a penitência; se, porém,
não são presbíteros, façam com que lhes seja imposta por outros sacerdotes da Ordem, como lhes
parecer melhor segundo Deus. 4E devem acautelar-se para não se irar ou se perturbar por causa do
pecado de alguém, porque a ira e a perturbação impedem a caridade em si e nos outros.
2

Caput VIII
De electione generalis ministri huius fraternitatis et de capitulo pentecostes
1
Universi fratres unum de fratribus istius religionis teneantur semper habere generalem ministrum
et servum totius fraternitatis et ei teneantur firmiter obedire. 2 Quo decedente, electio successoris fiat
a ministris provincialibus et custodibus in capitulo Pentecostes, in quo provinciales ministri
teneantur semper insimul convenire, ubicumque a generali ministro fuerit constitutum; 3 et hoc
semel in tribus annis vel ad alium terminum maiorem vel minorem, sicut a praedicto ministro fuerit
ordinatum. 4 Et si aliquo tempore appareret universitati ministrorum provincialium et custodum,
praedictum ministrum non esse sufficientem ad servitium et communem utilitatem fratrum,
teneantur praedicti fratres, quibus electio data est, in nomine Domini alium sibi eligere in custodem.
5
Post capitulum vero Pentecostes ministri et custodes possint singuli, si voluerint et eis expedire
videbitur, eodem anno in suis custodiis semel fratres suos ad capitulum convocare.
Capítulo VIII
1

A eleição do ministro geral desta fraternidade e o Capitulo de Pentecostes
Todos os irmãos devem ter sempre um dos irmãos desta Religião como ministro geral e servo de
toda a fraternidade e estejam firmemente obrigados a obedecer-lhe. 3Afastando-se este [do cargo],
faça-se eleição do sucessor pelos ministros provinciais e custódios no Capítulo de Pentecostes, no
qual os ministros provinciais estejam sempre obrigados a reunir-se, onde quer que for estabelecido
pelo ministro geral; 4e isto uma vez em três anos ou em outro prazo maior ou menor, como for
ordenado pelo referido ministro. 5E se em algum tempo parecer à totalidade dos ministros
provinciais e custódios que o mencionado ministro não dá conta do serviço e da comum utilidade
dos irmãos, estejam obrigados os ditos irmãos, aos quais compete a eleição, a eleger para si, em
nome do Senhor, um outro como custódio. 6Depois do Capítulo de Pentecostes, no entanto, pode
cada ministro e custódio, se o quiser e se lhe parecer conveniente, convocar seus irmãos para um
Capitulo em sua custódia, uma vez no mesmo ano.
2

Caput IX
De praedicatoribus

177

1

Fratres non praedicent in episcopatu alicuius episcopi, cum ab eo illis fuerit contradictum. 2 Et
nullus fratrum populo penitus audeat praedicare, nisi a ministro generali huius fraternitatis fuerit
examinatus et approbatus, et ab eo officium sibi praedicationis concessum. 3 Moneo quoque et
exhortor eosdem fratres, ut in praedicatione, quam faciunt, sint examinata et casta eorum eloquia
(cfr. Ps 11,7; 17,31), ad utilitatem et aedificationem populi, 4 anuntiando eis vitia et virtutes, poenam
et gloriam cum brevitate sermonis; quia verbum abbreviatum fecit Dominus super terram (cfr. Rom
9, 28).
Capítulo IX
1

Os pregadores
Não preguem os irmãos na diocese de algum bispo, quando este lhes tiver proibido. 3E
absolutamente nenhum dos irmãos ouse pregar ao povo, se não tiver sido examinado e aprovado
pelo ministro geral desta fraternidade e se não lhe tiver sido concedido pelo mesmo o oficio da
pregação. 4Admoesto também e exorto os mesmos irmãos a que, na pregação que fazem, seja sua
linguagem examinada e casta (cf. SI 11,7; 17,31) para a utilidade e edificação do povo,
5
anunciando-lhe, com brevidade de palavra, os vícios e as virtudes, o castigo e a glória; porque o
Senhor, sobre a terra, usou de palavra breve (cf. Rm 9,28).
2

Caput X
De admonitione et correctione fratrum
1
Fratres, qui sunt ministri et servi aliorum fratrum, visitent et moneant fratres suos et humiliter et
caritative corrigant eos, non praecipientes eis aliquid, quod sit contra animam suam et regulam
nostram. 2 Fratres vero, qui sunt subditi, recordentur, quod propter Deum abnegaverunt proprias
voluntates. 3 Unde firmiter praecipio eis, ut obediant suis ministris in omnibus quae promiserunt
Domino observare et non sunt contraria animae et regulae nostrae. 4 Et ubicumque sunt fratres, qui
scirent et cognoscerent, se non posse regulam spiritualiter observare, ad suos ministros debeant et
possint recurrere. 5 Ministri vero caritative et benigne eos recipiant et tantam familiaritatem habeant
circa ipsos, ut dicere possint eis et facere sicut domini servis suis; 6 nam ita debet esse, quod ministri
sint servi omnium fratrum. 7 Moneo vero et exhortor in Domino Jesu Christo, ut caveant fratres ab
omni superbia, vana gloria, invidia, avaritia (cfr. Lc 12,15), cura et sollicitudine huius saeculi (cf Mt
13,22), detractione et murmuratione, et non curent nescientes litteras, litteras discere; 8 sed
attendant, quod super omnia desiderare debent habere Spiritum Domini et sanctam eis operationem,
9
orare semper ad eum puro corde et habere humilitatem, patientiam in persecutione et infirmitate
10
et diligere eos qui nos persequuntur et reprehendunt et arguunt, quia dicit Dominus: Diligite
inimicos vestros et orate pro persequentibus et calumniantibus vos (cf Mt 5,44). 11 Beati qui
persecutionem patiuntur propter iustitiam, quoniam ipsorum est regnum caelorum (Mt 5,10). 12 Qui
autem perseveraverit usque in finem hic salvus erit (Mt 10,22).
Capítulo X

178

1

Admoestação e correção dos irmãos
Os irmãos que são ministros e servos dos demais irmãos visitem e admoestem seus irmãos e
corrijam-nos com humildade e caridade, não lhes ordenando nada que seja contra sua alma e a nossa
Regra. 3Os irmãos, porém, que são súditos, recordem-se deque, por amor de Deus, renunciaram às
suas próprias vontade. 4Por isso, ordeno-lhe firmemente que obedeçam a seus ministros em todas as
coisas que prometeram ao Senhor observar e que não sejam contrárias à alma e à nossa Regra. 5E
onde quer que estejam os irmãos que souberem e reconhecerem que não podem observar
espiritualmente a Regra, devem e podem recorrer a seus ministros. 6Os ministros, porém, recebamnos caritativa e benignamente e tenham para com eles tanta familiaridade que eles possam falar-lhes
e agir como senhores com seus servos; 7pois assim deve ser: que os ministros sejam servos de todos
os irmãos. 8Admoesto, no entanto, e exorto no Senhor Jesus Cristo a que os irmãos se acautelem de
toda soberba, vanglória, inveja, avareza(cf. Le 12,15), cuidado e solicitude deste mundo (cf. Mt
13,22), detração e murmuração; e os que não sabem ler não se preocupem em aprender: 9mas
atendam a que, acima de tudo, devem desejar possuir o Espírito do Senhor e seu santo modo de
operar,10rezar sempre a ele com o coração puro e ter humildade e paciência na perseguição e na
enfermidade 11e amar aqueles que nos perseguem, repreendem e censuram, porque diz o Senhor:
Amai vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem e caluniam (cf. Mt 5,44) 12Bemaventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,
10). 13Aquele, porém, que perseverar até ao fim, este será salvo(Mt 10,22).

Caput XI
Quod fratres non ingrediantur monasteria monacharum
1
Praecipio firmiter fratribus universis, ne habeant suspecta consortia vel consilia mulierum, 2 et ne
ingrediantur monasteria monacharum praeter illos, quibus a sede apostolica concessa est licentia
specialis; 3 nec fiant compatres virorum vel mulierum nec hac occasione inter fratres vel de fratribus
scandalum oriatur.
Capítulo XI
1

Que os irmãos não entrem em mosteiros de monjas
Ordeno firmemente a todos os irmãos que não mantenham relacionamentos suspeitos ou conselhos
com mulheres, 3e que não entrem em mosteiros de monjas, exceção feita para aqueles aos quais foi
concedida licença especial pela Sé Apostólica; 4e não se tornem compadres de homens ou de
mulheres, para que desta circunstância não resulte escândalo entre os irmãos ou a respeito dos
irmãos.
2

Caput XII
De euntibus inter saracenos et alios infideles
1
Quicumque fratrum divina inspiratione voluerint ire inter saracenos et alios infideles petant inde

179

licentiam a suis ministris provincialibus. 2 Ministri vero nullis eundi licentiam tribuant, nisi eis quos
viderint esse idoneos ad mittendum. 3 Ad haec per obedientiam iniungo ministris, ut petant a
domino papa unum de sanctae Romanae Ecclesiae cardinalibus qui sit gubernator, protector et
corrector istius fraternitatis, 4 ut semper subditi et subiecti pedibus eiusdem sanctae Ecclesiae
stabiles in fide (cf 1Col 1,23) catholica paupertatem et humilitatem et sanctum evangelium Domini
nostri Jesu Christi quod firmiter et promisimus, observemus.
Capítulo XII
1

Os que vão para o meio dos sarracenos e outros infiéis
Se alguns dos irmãos por divina inspiração quiserem ir para o meio dos sarracenos e outros infiéis,
peçam licença a seus ministros provinciais. 3Os ministros, porém, não concedam a ninguém a
licença de ir, a não ser àqueles que julgarem idôneos para serem enviados. 4Imponho por obediência
aos ministros que peçam ao senhor papa um dos cardeais da santa Igreja Romana que seja
governador, protetor e corretor desta fraternidade 5para que, sempre súditos e submissos aos pés da
mesma santa Igreja e estáveis na fé (cf. Cl 1,23) católica, observemos a pobreza e a humildade e o
santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos. 6[Portanto,
absolutamente a nenhum homem seja permitido infringir esta página de nossa confirmação ou
contrariá-la por temerária ousadia. 7Se, porém, alguém presumir tentá-lo, saiba que há de incorrer na
indignação de Deus Todo-Poderoso e de seus bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo. 8Dada em
Latrão, aos 29 de novembro, no oitavo ano de nosso pontificado (29/11/1223)
2

TESTAMENTO

Testamentum San Francisco
1

Dominus ita dedit mihi fratri Francisco incipere faciendi poenitentiam: quia cum essem in peccatis
nimis mihi videbatur amarum videre leprosos. 2 Et ipse Dominus conduxit me inter illos et feci
misericordiam cum illis. 3 Et recedente me ab ipsis, id quod videbatur mihi amarum, conversum fuit
mihi in dulcedinem animi et corporis; et postea parum steti et exivi de saeculo. 4 Et Dominus dedit
mihi talem fidem in ecclesiis, ut ita simpliciter orarem et dicerem: 5 Adoramus te, Domine Jesu
Christe, et ad omnes ecclesias tuas, quae sunt in toto mundo, et benedicimus tibi, quia per sanctam
crucem tuam redemisti mundum. 6 Postea Dominus dedit mihi et dat tantam fidem in sacerdotibus,
qui vivunt secundum formam sanctae ecclesiae Romanae propter ordinem ipsorum, quod si facerent
mihi persecutionem, volo recurrere ad ipsos. 7 Et si haberem tantam sapientiam, quantam Salomon
habuit, et invenirem pauperculos sacerdotes huius saeculi, in parochiis, quibus morantur, nolo
praedicare ultra voluntatem ipsorum. 8 Et ipsos et omnes alios volo timere, amare et honorare, sicut
meos dominos. 9 Et nolo in ipsis considerare peccatum, quia Filium Dei discerno in ipsis, et domini
mei sunt. 10 Et propter hoc facio, quia nihil video corporaliter in hoc saeculo de ipso altissimo Filio
Dei, nisi sanctissimum corpus et sanctissimum sanguinem suum, quod ipsi recipiunt et ipsi soli aliis
ministrant. 11 Et haec sanctissima mysteria super omnia volo honorari, venerari et in locis pretiosis

180

collocari. 12 Sanctissima nomina et verba eius scripta, ubicumque invenero in locis illicitis, volo
colligere et rogo, quod colligantur et in loco honesto collocentur. 13 Et omnes theologos et, qui
ministrant sanctissima verba divina, debemus honorare et venerari, sicut qui ministrant nobis
spiritum et vitam (cf Joa 6, 64). 14 Et postquam Dominus dedit mihi de fratribus, nemo osten-debat
mihi, quid deberem facere, sed ipse Altissimus revelavit mihi, quod deberem vivere secundum
formam sancti Evangelii. 15 Et ego paucis verbis et simpliciter feci scribi et dominus Papa
confirmavit mihi. 16 Et illi qui veniebant ad recipiendam vitam, omnia quae habere poterant (Tob l,
3), dabant pauperibus; et erant contenti tunica una, intus et foris repeciata, cum cingulo et braccis.
17
Et nolebamus plus habere. 18 Officium dicebamus clerici secundum alios clericos, laici dice-bant:
Pater noster; et satis libenter manebamus in ecclesiis. 19 Et eramus idiotae et subditi omnibus. 20 Et
ego manibus meis laborabam, et volo laborare; et omnes alli fratres firmiter volo quod laborent de
laboritio, quod pertinet ad honestatem. 21 Qui nesciunt, discant, non propter cupiditatem recipiendi
pretium laboris, sed propter exemplum et ad repellendam otiositatem. 22 Et quando non daretur
nobis pretium laboris, recurramus ad mensam Domini, petendo eleemosynam ostiatim.
23
Salutationem mihi Dominus revelavit, ut diceremus: Dominus ded tibi pacem. 24 Caveant sibi
fratres, ut ecclesias, habitacula paupercula et omnia, quae pro ipsis construuntur, penitus non
recipiant, nisi essent, sicut decet sanctam paupertatem, quam in regula promisimus, semper ibi
hospitantes sicut advenae et peregrini (cf 1Petr 2, 11). 25 Praecipio firmiter per obedientiam fratribus
universis, quod ubicumque sunt, non audeant petere aliquam litteram in curia Romana, per se neque
per interpositam personam, neque pro ecclesia neque pro alio loco neque sub specie praedicationis
neque pro persecutione suorum corporum; 26 Sed ubicumque non fuerint recepti, fugiant in aliam
terram ad faciendam poenitentiam cum benedictione Dei. 27 Et firmiter volo obedire ministro
generali huius fraternitatis et alio guardiano, quem sibi placuerit mihi dare. 28 Et ita volo esse captus
in manibus suis, ut non possim ire vel facere ultra obedientiam et voluntatem suam, quia dominus
meus est. 29 Et quamvis sim simplex et infirmus, tamen semper volo habere clericum, qui mihi faciat
officium, sicut in regula continetur. 30 Et omnes alii fratres teneantur ita obedire guardianis suis et
facere officium secundum regulam. 31 Et qui inventi essent, quod non facerent officium secundum
regulam, et vellent alio modo variare, aut non essent catholici, omnes fratres, ubicumque sunt, per
obedientiam teneantur, quod ubicumque invenerint aliquem ipsorum, proximiori custodi illius loci,
ubi ipsum invenerint, debeant repraesentare. 32 Et custos firmiter teneatur per obedientiam ipsum
fortiter cus-todire, sicuti hominem in vinculis die noctuque, ita quod non possit eripi de manibus
suis, donec propria sua persona ipsum repraesent in manibus sui ministri. 33 Et minister firmiter
teneatur per obedientiam mittendi ipsum per tales fratres, quod die noctuque custodiant ipsum sicuti
hominem in vinculis, donec repraesentent ipsum coram domino Ostiensi, qui est dominus, protector
et corrector totius fraternitatis. 34 Et non dicant fratres: Haec est alia regula, quia haec est recordatio,
admonitio, exhortatio et meum testamentum, quod ego frater Franciscus parvulus facio vobis
fratribus meis benedictis propter hoc, ut regulam quam Domino promisimus melius catholice
observemus. 35 Et generalis minister et omnes alii ministri et custodes per obedientiam teneantur, in
istis non addere vel minuere. 36 Et semper hoc scriptum habeant secum iuxta regulam. 37 Et in
omnibus capitulis quae faciunt, quando legunt regulam, legant et ista verba. 38 Et omnibus fratribus
meis clericis et laicis praecipio firmiter per obedientiam, ut non mittant glossas in regula neque in
istis verbis dicendo: ita volunt intelligi. 39 Sed sicut dedit mihi Dominus simpliciter et pure dicere et
scribere regulam et ista verba, ita simpliter et sine glossa intelligatis et cum sancta operatione
observetis usque in finem. 40 Et quicumque haec observaverit, in caelo repleatur benedictione

181

altissimi Patris et in terra repleatur benedictione dilecti Filii sui cum sanctissimo Spiritu Paraclito et
omnibus virtutibus caelorum et omnibus sanctis. 41 Et ego frater Franciscus parvulus vester servus
quantumcumque possum, confirmo vobis intus et foris istam sanctissimam benedictionem.

Testamento de São Francisco
1

Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu
estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos.2E o próprio Senhor me
conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. 3E afastando-me deles, aquilo que me parecia
amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo; e, depois, demorei só um pouco e sai do
mundo.4E o Senhor me deu tão grande fé nas igrejas que simplesmente eu orava e dizia: 5Nós vos
adoramos, Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as vossas igrejas que há em todo o mundo, e vos
bendizemos, porque, pela vossa santa cruz, remistes o mundo. 6Depois, o Senhor me deu e me dá
tanta fé nos sacerdotes que vivem segundo a forma da santa Igreja romana- por causa da ordem
deles -que, se me perseguirem, quero recorrer a eles. 7E se eu tivesse tanta sabedoria quanta teve
Salomão (cf. 1Rs 4, 30-31) e encontrasse sacerdotes pobrezinhos deste mundo, não quero pregar nas
paróquias em que eles moram, passando por cima da vontade deles. 8E a eles e a todos os outros
quero temer, amar e honrar como a meus senhores.9E não quero considerar neles o pecado, porque
vejo neles o Filho de Deus, e eles são meus senhores. 10E ajo desta maneira, porque nada vejo
corporalmente neste mundo do mesmo altíssimo Filho de Deus, a não ser o seu santíssimo corpo e
seu santíssimo sangue que eles recebem e só eles ministram aos outros. 11E quero que estes
santíssimos mistérios sejam honrados e venerados acima de tudo e colocados em lugares
preciosos.12Os santíssimos nomes e palavras dele escritos, se por acaso eu os encontrar em lugares
inconvenientes, quero recolhê-los e rogo que sejam recolhidos e colocados em lugar honesto. 13E a
todos os teólogos e aos que ministram as santíssimas palavras divinas devemos honrar e venerar
como a quem nos ministra espírito e vida (cf. Jo 6,64).14E depois que o Senhor me deu irmãos,
ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver
segundo a forma do santo Evangelho.15E eu o fiz escrever com poucas palavras e de modo simples,
e o senhor papa mo confirmou.16E aqueles que vinham para assumir esta vida davam aos pobres
tudo o que podiam ter (cf. Tb 1.3); e estavam contentes com uma só túnica, remendada por dentro e
por fora, com o cordão e calções.17E mais não queríamos ter.18E nós, clérigos, rezávamos o ofício
como os outros clérigos, os leigos diziam os Pai-nossos (cf. Mt 6,9-13); e de boa vontade ficávamos
nas igrejas.19E éramos iletrados e submissos a todos.20E eu trabalhava com as minhas mãos (cf. At
20,34) e quero trabalhar; e quero firmemente que todos os outros irmãos trabalhem num ofício que
convenha à honestidade.21Os que não sabem trabalhar aprendam, não pelo desejo de receber o
salário do trabalho, mas por causa do exemplo e para afastar a ociosidade. 22E quando não nos for
dado o salário, recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta em porta. 23Como saudação,
o Senhor me revelou que disséssemos: o Senhor te dê a paz (cf. 2Ts 3,16). 24Cuidem os irmãos para
não receber de modo algum igrejas, pequenas habitações pobrezinhas e tudo que for construído para
eles, se não estiver como convém à santa pobreza que prometemos na regra,hospedando-se nelas
sempre como forasteiros e peregrinos (cf. Pd 2,11). 25Mando firmemente por obediência a todos os
irmãos, onde quer que estejam, que não ousem pedir à Cúria Romana qualquer tipo de carta, nem

182

por si nem por pessoa intermediária, nem em favor de igreja nem em favor de outro lugar sob
pretexto da pregação, nem por perseguição de seus corpos; 26mas, se em algum lugar não forem
aceitos, fujam para outra (cf. Mt 10,23) terra para fazer penitência com a bênção de Deus. 27E quero
firmemente obedecer ao ministro geral desta fraternidade e a qualquer outro guardião que lhe
aprouver dar-me.28E quero de tal modo estar preso em suas mãos que eu não possa andar ou agir
fora da obediência e da vontade dele, porque ele é meu senhor. 29E, embora eu seja simples e
enfermo, quero, no entanto, ter sempre um clérigo que reze para mim o ofício, como consta na
regra.30E todos os outros irmãos sejam obrigados do mesmo modo a obedecer aos seus guardiães e a
rezar o oficio segundo a regra.31E se forem encontrados [irmãos] que não rezam o ofício segundo a
regra e querem variar com outro modo ou que não são católicos, todos os irmãos, onde quer que
estiverem, onde encontrarem algum destes, por obediência sejam obrigados a apresentá-lo ao
custódio mais próximo daquele lugar em que o encontraram. 32E o custódio esteja firmemente
obrigado por obediência a guardá-lo fortemente como a um homem prisioneiro de dia e de noite, de
tal modo que não possa escapar de suas mãos, até que o entregue pessoalmente às mãos de seu
ministro.33E o ministro esteja firmemente obrigado por obediência a enviá-lo por tais irmãos, que o
devem guardar de dia e de noite como a um homem prisioneiro, até que o apresentem diante do
senhor de Óstia, que é o senhor, o protetor e o corretor de toda fraternidade. 34E não digam os
irmãos: Esta é outra regra; porque esta é uma recordação, uma admoestação, uma exortação e o meu
testamento que eu, Frei Francisco pequenino, faço para vós meus irmãos benditos, para que
observemos mais catolicamente a regra que prometemos ao Senhor. 35E o ministro geral e todos os
outros ministros e custódios estejam obrigados pela obediência a nada acrescentar ou diminuir (cf.
Dt 4,2: 12,32) a estas palavras.36E tenham sempre consigo este escrito junto à regra. 37E em todos os
Capítulos que realizarem, ao lerem a regra, leiam também estas palavras. 38E ordeno firmemente por
obediência a todos os meus irmãos, clérigos e leigos, que não introduzam glosas na regra nem nestas
palavras dizendo: assim devem ser entendidas. 39Mas, como o Senhor me concedeu de modo simples
e claro dizer e escrever a regra e estas palavras, igualmente, de modo simples e sem glosa, as
entendais e com santa operação as observeis até o fim.40E todo aquele que estas coisas observar seja
repleto no céu da bênção do altíssimo Pai e na terra (cf. Gn 27,27-28) seja repleto da bênção do seu
dileto Filho com o Santíssimo Espírito Paráclito e com todas as virtudes dos céus e com todos os
santos.41E eu, Frei Francisco pequenino, vosso servo, quanto posso, vos confirmo interior e
exteriormente esta santíssima bênção.