Os pardos da Vila do Penedo do Rio São Francisco: Escravidão, hierarquias e distinção social em Alagoas (1758-1819) - Fabianne Nayra Santos Alves
DISSERTAÇÃO - FABIANNE NAYRA SANTOS ALVES 2019.pdf
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
FABIANNE NAYRA SANTOS ALVES
OS PARDOS DA VILA DO PENEDO DO RIO DE SÃO FRANCISCO:
ESCRAVIDÃO, HIERARQUIAS E DISTINÇÃO SOCIAL EM ALAGOAS (1758-1819)
MACEIÓ, 2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
FABIANNE NAYRA SANTOS ALVES
OS PARDOS DA VILA DO PENEDO DO RIO DE SÃO FRANCISCO:
ESCRAVIDÃO, HIERARQUIAS E DISTINÇÃO SOCIAL EM ALAGOAS (1758-1819)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Alagoas como
requisito para a obtenção do grau de Mestra em História
sob orientação do Prof. Dr. Gian Carlo de Melo Silva.
MACEIÓ, 2018
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecário: Marcelino de Carvalho
A474p
Alves, Fabianne Nayra Santos.
Os pardos da Vila do Penedo do rio São Francisco : escravidão, hierarquias e
distinção social em Alagoas (1758-1819) / Fabianne Nayra Santos Alves. – 2019.
154 f. : il. color.
Orientador: Gian Carlo de Melo Silva.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Alagoas.
Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes. Programa de Pós-Graduação
em História. Maceió, 2018.
Bibliografia: f. 127-136.
Anexos: f. 137-154.
1. Pardos - Penedo (AL) - História. 2. Mobilidade social. 3. Irmandades. 4.
Milícias. I. Título.
CDU: 930.85(=414)(813.5)
AGRADECIMENTOS
Aos mais velhos e aos mais novos, peço licença e agradeço pela luz e ensinamentos.
Sou grata à minha mãe por tudo. Por ter encarado uma maternidade solo, por toda uma
vida de trabalho e luta para me criar e educar da melhor forma possível e por ter me
proporcionado um mundo de oportunidades que desejo a todos, principalmente a todas.
Agradeço ao meu orientador, Gian Carlo, por ter acreditado e confiado em mim e no
meu potencial, não existem palavras pra agradecer de forma justa um voto de confiança como
esse. Agradeço também a CAPES pela concessão da bolsa, sem ela a pesquisa não teria
andado, eu não teria tido condições de encarar esses dois anos e não teria crescido e mudado
tanto sem esse investimento na minha formação.
Sinto também a obrigação de registrar que esse trabalho não está solto nem é só mais
um fruto de uma pesquisa indiferente a questões sociais e políticas. Pensei e escrevi esse texto
baseada na certeza de que minha presença no mundo não pode ser vazia de contribuições e
porque prezo por um conhecimento acessível ao máximo de pessoas possível. Saber que esse
mundo não será o mesmo após minha passagem por ele é algo que me motiva a continuar.
Espero que a leitura deste trabalho seja tão construtiva e proveitosa quanto escrevê-lo foi para
mim.
Agradeço aos amigos da História Beatriz Ramiro, Karol Pimentel e Wellington Silva,
pela companhia, pelos conselhos, pela atenção nos meus momentos de cansaço e desespero.
Ao amigo Benjamim pela doçura, compreensão e companhia. À Rhaysa (Ysa) e a Rael
Gusmão que, durante o mestrado, se tornaram uma alegria diária que espero carregar sempre
comigo. À amiga Paulinha Lima, agradeço pela compreensão, pois em vários momentos
estive distante, mas nossa amizade resistiu. À professora e amiga Ana Claudia, agradeço pela
paciência, pela torcida de sempre e por compartilhar comigo suas experiências me inspirando
e dando forças. Agradeço também ao Coletivo AfroCaeté pela oportunidade de viver
experiências únicas, pelo contato com a percussão, que sempre foi um sonho e me faz feliz e
plena, pela aproximação com a cultura e com a realidade da sociedade alagoana que me
ajudaram, mais do que qualquer leitura, com todo respeito aos grandes historiadores e
historiadoras que li, a enxergar a realidade dura do mundo em que vivemos.
Sou grata à minha família por acreditar em mim, mas peço desculpas pela ausência,
principalmente à minha afilhada Sophia. A vida de pesquisador é bastante solitária, mas tem
que ser encarada ou então tudo fica como está (e as coisas não estão boas), e quero ter a
sensação de que deixei o mundo um pouco menos complicado para as futuras gerações
compreenderem.
Às professoras Flávia Carvalho e Suely Almeida e ao professor Roberto Guedes,
agradeço imensamente por terem aceitado ler o meu trabalho e pelas contribuições. Admiro
muito os três, como profissionais e como pessoas (o que pude conhecer). Agradeço à Ana
Crispin, pelas poucas, mas proveitosas conversas e trocas de leituras e teorias sobre os pardos.
Deixo também meu abraço e agradecimento pelas conversas à Janaína Perrayon, companheira
dos encontros de história e à Luciana, da coordenação do PPGH-UFAL, por ser sempre
prestativa e solícita.
Por último, mas não menos importante, deixo o registro da minha gratidão eterna às
minhas estrelinhas Léo e Tatá e aos meus atuais filhos felinos (Mulé, Xicó, Bela, Mabel,
Xiquinha, Mulan, Pretinha e Vítor) que me fazem sentir cheia de amor, de força e de energias
positivas para encarar o mundo.
Asè!
“Algumas pessoas da primeira espécie dos habitantes olham a mistura
de sangue Africano com odiosa preocupação.”
(Francisco Manuel Martins Ramos – homem pardo, Comandante interino da Vila do Penedo e
seu termo, Coronel do Regimento de Milícia dos homens pardos da Vila do Penedo, 1819)
RESUMO
O objetivo da presente dissertação é analisar as trajetórias dos homens pardos da Vila
do Penedo, Comarca de Alagoas, através de suas participações em irmandades religiosas e
milícias, no período que vai de meados do século XVIII à segunda década do século XIX. A
irmandade que abrigou os pardos em questão foi a que se constituiu em torno da primeira
devoção parda das Américas: a de São Gonçalo Garcia. A participação na milícia foi essencial
para que conhecêssemos o perfil dos indivíduos pardos e compreendêssemos suas dinâmicas e
as possibilidades de mobilidade social. Partindo disso, buscamos compreender o papel que
essas duas instituições, irmandade e milícia, exerceram nas vidas desses descendentes de
africanos inseridos em uma sociedade escravista de Antigo Regime.
Palavras-chave: Pardos, mobilidade social, Alagoas, irmandade, milícia.
ABSTRACT
The objective of this dissertation is to analyze the trajectories of the pardos of Vila do
Penedo, Comarca de Alagoas, through their participation in religious brotherhoods and
militias, in the period from the mid-eighteenth century to the second decade of the nineteenth
century. The brotherhood that housed those pardos was the one that was built around the first
brown devotion of the Americas: São Gonçalo Garcia. The participation in the militia was
essential for us to know the profile of the group and to understand its dynamics and the
possibilities of social mobility. From this, we seek to understand the role that these two
institutions, brotherhood and militia, played in the lives of these descendants of Africans
inserted in a slave society of Old Regime.
Keywords: Pardos, social mobility, Alagoas, brotherhood, militia.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
IMAGEM 1: Fuga dos portugueses pelo Rio São Francisco para a Bahia – 1647 ............ p. 38
IMAGEM 2: Mapa da localização do Forte Maurício – 1665 ........................................... p. 39
IMAGEM 3: Cópia do mapa do Brasil de 1750 ................................................................ p. 40
IMAGEM 4: Mapa do Brasil de 1729 ............................................................................... p. 41
IMAGEM 5: Mapa holandês da região meridional de Pernambuco (1647) ...................... p. 53
IMAGEM 6: Coleta para a manutenção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (1828) p. 79
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1: Estimativa de africanos desembarcados em Pernambuco e no Sudeste (15001800) ................................................................................................................................... p. 22
QUADRO 2: População da Comarca de Alagoas nos anos de 1774 e 1791 ..................... p. 46
QUADRO 3: População do sexo feminino por ano e faixa etária na Vila do Penedo ....... p. 50
QUADRO 4: População do sexo masculino por ano e faixa etária na Vila do Penedo ..... p. 52
QUADRO 5: Locais de nascimento e moradia dos oficiais do Regimento de Milícia dos
Homens Pardos de Penedo e Poxim (1819) ........................................................................ p. 53
QUADRO 6: Profissões por locais de moradia dos oficiais do Regimento de Milícia dos
Homens Pardos de Penedo e Poxim (1819) ........................................................................ p. 56
QUADRO 7: Dados sobre os enterros dos irmãos (1807) ................................................. p. 88
QUADRO 8: Profissões exercidas pelos oficiais do Regimento de Milícia dos Homens
Pardos de Penedo e Poxim (1819) .................................................................................... p. 102
QUADRO 9: Filiações dos oficiais do Regimento de Milícia dos Homens Pardos de Penedo e
Poxim (1819) ..................................................................................................................... p. 109
QUADRO 10: Cargos e filiação dos homens do Regimento de Milícia dos Homens Pardos de
Penedo e Poxim (1819) ..................................................................................................... p. 111
QUADRO 11: Perfil dos oficiais da milícia associados à Irmandade de São Gonçalo Garcia
(1819) ................................................................................................................................ p. 117
QUADRO 12: Valores cobrados pela Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos
de Penedo (1807) .............................................................................................................. p. 119
ABREVIATURAS
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APA – Arquivo Público de Alagoas
CX. – Caixa
D. - Documento
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .........................................................................................
13
2. SER PARDO NA COLÔNIA ...................................................................
19
2.1 Escravidão, presença africana e hierarquias sociais ........................
21
2.2 Vila do Penedo e seu termo: sociedade, economia e cotidiano .......
34
3. RELIGIOSIDADE, IRMANDADES E DISTINÇÃO SOCIAL ...........
60
3.1 Irmandades e devoção negra no Brasil colonial ..............................
65
3.2 Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos de Penedo
70
4. PARDOS, MILÍCIA E MOBILIDADE SOCIAL ..................................
92
4.1 Estratégias de distinção: milícia .........................................................
97
4.2 Família, milícia e inserção social ........................................................
107
4.3 Papel social da irmandade e da milícia .............................................
116
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................
122
6. REFERÊNCIAS ........................................................................................
127
7. ANEXOS ....................................................................................................
137
1. INTRODUÇÃO
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística dos anos de 20051 e
20102, a população de Alagoas é composta em sua maioria por negros (pretos e pardos3). No
ano de 2010, a proporção de pardos compreendia 60% dos mais de três milhões de habitantes
do Estado. Ou seja, segundo o último levantamento demográfico nacional, cerca de dois
terços da população de Alagoas são compostos por negros, um dado que contrasta com a
carente produção historiográfica local sobre a diversidade da composição racial e a
participação dessa população nos processos históricos. Dessa forma, este trabalho surgiu da
necessidade de conhecer e compreender a formação da sociedade e a participação da
população tida hoje como negra nas dinâmicas sociais, políticas e econômicas do Brasil,
particularmente em Alagoas, partindo das trajetórias dos indivíduos pardos que viveram em
Penedo na segunda metade do século XVIII. Buscaremos mostrar não só as estratégias
empreendidas por essa população na busca por mobilidade, ascensão e inserção social em
uma sociedade escravista, mas também queremos atentar para a necessidade de (re)conhecer a
diversidade do perfil dos agentes da nossa história, que há tempos não é mais escrita para
celebrar os “grandes feitos” de “grandes homens”.
Falar de pardos exige que falemos, antes, da presença africana no Brasil e para
compreender o lugar, as dinâmicas e a participação desse contingente na formação social,
política, cultural e no desenvolvimento econômico do país exige que falemos da instituição
escravista. A escravidão foi uma prática realizada por várias sociedades, desde a Antiguidade,
em diversos contextos e por motivos também diversos. No contexto brasileiro, esta instituição
além de ter sido vista como fundamental para a manutenção da Coroa portuguesa, do Império
do Brasil e principalmente dos senhores de engenhos, de plantações de algodão e café e dos
comerciantes de escravos, por ter assegurado mão de obra barata para os mais diversos
serviços, interferiu diretamente na composição da sociedade, no lugar que cada indivíduo
1
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2005. Disponível em:
<http://produtos.seade.gov.br/produtos/idr/download/populacao.pdf>.
2
IBGE – Censo Demográfico, 2010. Disponível em: <https://sidra.ibge.gov.br/tabela/3175>.
3
“A agregação de pretos e pardos e sua designação como negros justificam-se duplamente. Estatisticamente,
pela uniformidade de características socioeconômicas dos dois grupos. Teoricamente, pelo fato de as
discriminações, potenciais ou efetivas, sofridas por ambos os grupos, serem da mesma natureza. Ou seja, é pela
sua parcela preta que os pardos são discriminados. A justificava teórica é obviamente mais importante, pois ao
fornecer uma explicação para a origem comum das desigualdades dos pretos e dos pardos em relação aos
brancos, coloca os dois grupos como beneficiários legítimos de quaisquer ações que venham a ser tomadas no
sentido de reverter o quadro histórico e vigente dessas desigualdades.”. In: OSORIO, Rafael Guerreiro. O
sistema classificatório de “cor ou raça” do IBGE. Brasília, DF: IPEA, 2003. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=4212>.
13
poderia ocupar, nas possibilidades de mobilidade social, nas dinâmicas da hierarquia social,
da economia, da política e na identidade do povo. Esse sistema, que explorou e esgotou a
força de mulheres e homens de origem africana e de seus descendentes, chegou a transformar
a necessidade inicial de alguns braços para o trabalho manual em um comércio cruel de
pessoas que visou mais o lucro e o enriquecimento de comerciantes e traficantes do que o
fornecimento de trabalhadores, ainda que forçados.
A análise do sistema e da sociedade escravistas na produção historiográfica brasileira
passou por diferentes momentos. Em cada etapa dessa produção, percebem-se objetivos
distintos que revelam as preocupações de cada época. Desde quando teve início a escrita de
uma história nacional, cujo objetivo era dar uma identidade à nação recém criada e saída da
turbulência dos movimentos de contestação da Monarquia ocorridos na década de 1830 4, a
escravidão foi abordada de forma que privilegiou a análise do sistema em si e como ele
interferiu na construção da nação e principalmente na economia do país, deixando de lado os
vários atores que conhecemos hoje.
A participação do negro na formação social do país foi tema do pensamento brasileiro
desde o início do século XX e não é pequena a lista de autores5 desse período que jogaram luz
na participação da população dos descendentes de africanos no processo de colonização e
formação da sociedade brasileira. Porém, somente em fins dos anos 1970 é que vemos uma
nova empreitada de fôlego da historiografia brasileira em dar atenção e protagonismo a atores
da vida cotidiana que costumavam aparecer apenas como engrenagens automáticas, e até
inconscientes, de um modo de produção, indivíduos comuns, seres humanos dotados de
vontade, de autonomia, poder de escolha, identidade, personalidade e serão eles de quem
falaremos neste trabalho.
4
“Sob o governo da regência(1831-1840), eleita pelo voto popular, exercido nos termos da Constituição de
1824, inicialmente trina, depois uma, pipocaram revoltas por todo o país. As primeiras envolveram povo e tropa
das principais cidades, as seguintes mobilizaram as populações rurais. Três províncias separaram-se do Brasil:
Bahia, Pará e Rio Grande do Sul. Esta última, além de romper os laços que a ligavam ao Império, proclamou
uma república que se manteve independente até 1845.” In: CARVALHO, José Murilo de (coord.). A construção
nacional 1830-1889, volume 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 22.
5
QUIRINO, Manoel. O colono preto como fator da civilização brasileira. Afro-Ásia, Salvador, n. 13, p. 145,
1980. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20815>. Muitas das produções
de Freyre se voltam para análise de aspectos da vida cotidiana, da cultura e da sociedade no Brasil, mas
destacamos aqui a célebre obra Casa Grande & Senzala na qual destaca o papel do negro como colonizador.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. - [52.
ed.] - São Paulo: Global, 2013.
14
Das milhares de levas de africanos tirados à força de suas regiões de origem durante
toda a Idade Moderna, a maior parte6 foi trazida para os portos brasileiros de Pernambuco, da
Bahia e do Rio de Janeiro principalmente. Em todas as regiões da América portuguesa nota-se
a presença de africanos cabo verde, fula, minas, nagô, angola, jeje, benguela, cabinda,
cassange, congo, ganguela, monjolo, massangano, muhembé, mutemo, quissama, rebolo,
xamba, moçambique, xara7 entre tantas outras origens. Dessa diversidade e das relações, quer
violentas ou voluntárias8, com os demais indivíduos que compuseram a sociedade colonial
surgiu uma diversidade ainda maior de homens e mulheres que possuíam ascendência
africana, mas haviam nascido em outro continente, aprendido a falar outra língua, eram
iniciados em outra religião e viviam conforme o modo de vida de outro povo. E por estarem
inseridos em uma sociedade colonial que seguia os padrões europeus de organização política e
social, a forma como foram ordenados também seguiu esses padrões, calcados
particularmente na distinção social. Dessa forma, o processo de classificação e organização da
sociedade baseou-se nas características individuais para determinar a função e o lugar que
cada indivíduo ocuparia no corpo social. Geralmente eram qualificados conforme as suas
qualidades, conceito que aparecerá com bastante frequência nas páginas seguintes e que
abarca o conjunto de características inatas a uma pessoa tais como: nação que poderia ser
religiosa (de judeu ou mouro) ou de origem geográfica (Angola, Mina, crioula); raça, que
poderia incluir também as de judeu e mouro, bem como de negros e mestiços; cor, que
abrange branco, preto/negro, pardo/baço9. No entanto, a principal referência, uma vez que
iremos analisar as trajetórias de pessoas de ascendência africana em uma sociedade escravista,
era a condição jurídica, geralmente associada à cor da pele10, que dizia o quão afastado ou
próximo alguém estava do cativeiro.
6
Segundo os dados do banco Slave Voyages (http://slavevoyages.org/), o Brasil recebeu pouco menos de 5
milhões de africanos (aproximadamente 4.857.475) no período entre os anos de 1500 e 1850 (em que,
teoricamente, deveria ter cessado de vez o desembarque de africanos nos portos brasileiros).
7
Ver quadro completo em PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas
Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 71. Deve-se atentar para o fato de que a
diversidade de regiões de origem não indica necessariamente o grupo cultural, pode indicar também porto de
embarque ou região de captura.
8
Não entraremos no mérito de apontar como se deram as relações entre portugueses e as mulheres africanas ou
indígenas, vamos analisar como a população nascida desses encontros lidou com a sociedade colonial e como .
9
In: SILVA, Gian Carlo de Melo. Na cor da pele, o negro: conceitos, regras, compadrio e sociedade
escravista na vila do Recife (1790-1810). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de
Pernambuco. Recife: O autor, 2014, p. 44.
10
Para nós fica complicado falar de pardo como cor de pele, pois não temos referências visuais ou testemunhos
pessoais entre nossas fontes que liguem o fato de ser pardo à tez escura, mas acreditamos que a característica
mais evidente da ascendência africana, que saltava logo aos olhos, era, e continua, sendo a cor da pele.
15
A escravidão foi sim uma instituição severa, porém a estrutura social não era tão rígida
e permitiu para alguns a prática de processos de mobilidade e ascensão. A população de
origem ou ascendência africana, escrava, liberta ou livre, negociou e comprou suas alforrias,
entrou em irmandades e em corpos militares onde puderam inserir-se em redes de
solidariedade e conquistar mobilidade social. A formação de famílias entre os cativos também
foi uma estratégia utilizada por esse contingente para alcançar alguma mobilidade e alguns
chegaram a compor elites, como veremos acontecer com os pardos da Vila do Penedo. Tudo
isso mostra que, apesar de estarem inseridos em uma sociedade que via a ascendência africana
como uma característica da qual se deveria manter distância, foi possível por em prática
estratégias de distinção social que, ao mesmo tempo em que tornava maleável a hierarquia,
mantinha a escravidão como base da estrutura social e como ponto de partida de outros
processos de mobilidade social.
Evidentemente os africanos e seus primeiros descendentes nascidos no Brasil
(habitualmente chamados de crioulos11), por viverem os dissabores da experiência do
cativeiro, sofreram com um tratamento rigoroso, desumano e cruel vindo das demais camadas
da sociedade. Não queremos comparar nem depreciar sofrimentos, queremos deixar claro que
a ascendência africana ou traços dela, e o que ela implicava (ligação com o trabalho, com
ofícios
mecânicos, cultura, religiosidade
e
comportamento diferentes do padrão
europeu/ocidental, mal vistos pela sociedade até os dias de hoje) na história do Brasil foi uma
das justificativas mais utilizadas para manter os descendentes de africanos distantes do mundo
de privilégios acessado pelas elites, pela nobreza, pelos homens tidos como brancos e por
quem quer que estivesse no controle desses privilégios.
Embora também possuam ascendência africana, os indivíduos pardos passaram por um
amplo processo de mobilidade, distinção e ascensão social que os distanciou da experiência
do cativeiro e proporcionou o empreendimento de outros pequenos processos. No século
XVIII, por exemplo, buscaram várias formas de se distinguir uns dos outros na tentativa de
escapar ao máximo da miséria, da pobreza, do cativeiro, da exclusão social. Diferente dos
pretos, os pardos partiam em busca de ascensão de um lugar social diferente e a condição
jurídica de livres era a mais significativa das qualidades.
11
Partindo de casos distintos de crioulos analisados por Gian Carlo Silva, o autor conclui que, além de indicar o
nascimento nas Américas de descendentes de africanos, o termo crioulo pode sugerir também novas
possibilidades como a indicação de um aspecto cromático ou a pertença a uma nação, a “nação crioula”. In:
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., pp. 58-64.
16
Com esse pano de fundo, buscaremos compreender as trajetórias dos pardos na
sociedade escravista colonial em Alagoas. No primeiro capítulo apresentaremos uma
contextualização temática e regional abordando trabalhos sobre os pardos em contextos
variados para termos um panorama do que era ser pardo no período colonial. Buscaremos
mostrar como o comércio e o tráfico de africanos e a presença destes na América Portuguesa
interferiu na formação e na organização da sociedade brasileira gerando uma população de
diversidade bastante acentuada. Em seguida, descortinaremos o cenário onde puseram em
prática suas estratégias: a Vila do Penedo, mostrando suas especificidades econômicas,
sociais, culturais, populacionais.
No segundo capítulo, demonstraremos como as irmandades religiosas participaram dos
processos de distinção social dos grupos subalternos da sociedade colonial. Através da
observação das relações que a Irmandade de São Gonçalo Garcia manteve com a
administração portuguesa, da composição dessa associação e de outros processos
empreendidos pelos irmãos, mostraremos o que significou a criação dessa instituição em
Penedo e como aqueles homens a perceberam e utilizaram esse espaço na busca por distinção
social. Em nossa pesquisa sobre os pardos em Alagoas, um dos lugares em que os
encontramos foi entre os membros da Irmandade de São Gonçalo Garcia da Vila do Penedo.
Seria algo comum de se ver nas trajetórias de indivíduos da sociedade colonial, mas em se
tratando de descendentes de africanos que estavam num espaço de certa forma indefinido,
entre pretos e brancos, entre escravizados e livres, participar de uma irmandade é
significativo, pois sugere a busca por algo. A própria devoção a São Gonçalo, o primeiro
santo pardo das Américas, indica que a irmandade organizada em sua homenagem, não era
um espaço neutro.
No terceiro capítulo analisaremos as milícias de pardos. Por mais que fossem
essencialmente instrumentos de defesa sujeitos aos interesses da Coroa Portuguesa, das elites,
da administração, nas Américas os corpos militares também foram um dos espaços usados
como fator de distinção social. A entrada na milícia, no decorrer da segunda metade do século
XVIII, tornou-se prática comum entre os pardos e em Penedo, algumas vezes, ocorria de
forma complementar à entrada na irmandade. Outras, detectamos a manutenção do ofício
militar em mais de uma geração de uma mesma família. Foi possível também construirmos
um perfil básico dos militares pardos da Vila do Penedo e situá-los social e economicamente
na região, apontando suas profissões, suas origens e moradias, e dessa forma compreender o
17
lugar que ocupavam na sociedade. Também nesse contexto o estigma da experiência da
escravidão se fez presente. Por mais que alguns dos oficiais de que trataremos neste capítulo
tenham alcançado lugares relevantes na sociedade e na política, a associação com a
ascendência africana (consequentemente com a experiência do cativeiro) se fez presente em
algum momento, questionando assim as conquistas e depreciando trajetórias.
A partir da compreensão de que as relações sociais se deram fundamentalmente com
base nas dinâmicas da escravidão e das mestiçagens, um conjunto de práticas que, a partir dos
contatos entre diferentes povos e culturas, norteou a forma como os indivíduos agiram e se
comportaram na sociedade colonial, nesse trabalho procuramos, sobretudo, compreender
como as hierarquias da sociedade que se formou no Brasil, a partir do nosso espaço, atuaram
no processo de busca por distinção social e a importância e valor dessa conquista nas
trajetórias de africanos e seus descendentes.
18
2. SER PARDO NA COLÔNIA
Em oficio de 05 de agosto de 1819 o Coronel do Regimento de Milícias dos Homens
Pardos da Capitania de Alagoas, Francisco Manuel Martins Ramos, acusou o recebimento de
uma portaria de 24 de julho do dito ano, remetida pelo governador Sebastião Francisco de
Melo e Póvoas12 onde este ordena que Ramos “tome imediatamente o Comando do Distrito da
Vila [do Penedo], e seu Termo, regulando pelas Instruções, que a acompanham [a portaria]
com data de 23 de janeiro de 1819”13. Em outro ofício, onde prestou contas de seus serviços
ao governador, Ramos mostrou-se inquieto com a repercussão da sua indicação dizendo que
“algumas pessoas de primeira espécie olham a mistura de sangue Africano com odiosa
preocupação”14.
O contexto desta fala expõe o grau das mestiçagens ocorridas e a divisão hierárquica
que existia naquela região. Não um homem branco15, mas sim um homem pardo foi escolhido
pelo próprio governador para um cargo de grande responsabilidade em um local que abrigava
em seu espaço pardos, índios, brancos e pretos que ocupavam diferentes posições na
hierarquia social, diferenças essas explicitadas pelo uso do termo “primeira espécie”. Da
mesma forma, revela o conhecimento de que possuir ascendência africana era algo que podia
acarretar dificuldades e problemas em uma trajetória. Poderia ser sinônimo de encontrar
obstáculos extras a serem enfrentados e superados. Na medida do possível ainda pode-se
deduzir que a confissão de algo desse nível à maior autoridade da região sugere um acúmulo
de frustrações por parte desse pardo em perceber que mesmo com a notável distinção que os
pardos vinham conquistando ao longo do século XVIII eles sempre passaram por mais
provações para serem aceitos numa sociedade com traços de Antigo Regime organizada pelos
homens bons (nobreza ou elite), e para servir aos seus interesses e manter seus privilégios.
12
Nascido em Lisboa no ano de 1790, foi o escolhido por D. João VI para ser o primeiro governador da
Capitania de Alagoas. Durante a Revolução Pernambucana de 1817, o Ouvidor Geral da Comarca de Alagoas
desmembrou-a da jurisdição da Capitania de Pernambuco e instalou um governo provisório que seria liderado
por uma junta composta pelo próprio Ouvidor, um vigário e um tenente-coronel. A Junta atuou até 16 de
setembro de 1817 quando D. João VI desmembrou oficialmente a Província de Alagoas da Capitania de
Pernambuco criando um governo próprio e nomeando Sebastião Francisco de Melo e Póvoas ao cargo de
Governador por três anos ou mais enquanto não houvesse sucessor. Melo e Póvoas instalou uma Junta de
Administração e Arrecadação Real da Fazenda, fundou a Alfândega, a Inspeção do Açúcar e Algodão na
povoação do Jaraguá – Vila de Maceió, estimulou a construção de estradas ligando as regiões de mais
desenvolvimento econômico consolidando, assim, a estrutura político-administrativa de Alagoas. In:
CARVALHO, Cícero Péricles de. Formação Histórica de Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2015, pp. 148-149.
13
Ofício de 1º de Setembro de 1819. In: Ofícios do comandante do regimento de milícias dos homens pardos
de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
14
Idem.
15
Considera-se aqui o significado de branco como categoria de distinção envolvendo elementos sociais e
políticos e que vão além do fenótipo.
19
Francisco Manuel Martins Ramos sabia da marca da ascendência africana que possuía.
Em outro ofício ao governador, fez uma pequena descrição de seu perfil16 onde afirmou ser
cavaleiro da Ordem militar de Santiago da Espada17, que por ser uma das três principais
Ordens Militares estabelecidas na Península Ibérica (além das ordens de Avis e de Cristo)
conferiu a ele maior distinção na sociedade. Para se alcançar a mercê de um hábito de ordem
militar, que figurava entre as mais pedidas e concedidas mercês segundo Nizza da Silva 18, era
necessário passar pelo processo das provanças, no qual se buscava conhecer o candidato e
seus ascendentes para identificar possíveis defeitos ou impedimentos e, a partir daí conseguir
a dispensa de defeito do rei alcançando de fato a posse do hábito ou ter o pedido negado. Se
não foi essa a forma pela qual Ramos descobriu que também possuía sangue africano
correndo pelo seu corpo, pode ter sido por uma convivência com um familiar de origem
africana. Ou então o contexto no qual estava inserido o havia mostrado que ser pardo o ligava
diretamente àquela ascendência. Sabendo disso, se reconhecia como descendente dessas
pessoas que viveram a experiência do cativeiro e aceitava as implicações desse traço de sua
qualidade. Dessa forma, questionou o modo como estava sendo tratado no ponto
possivelmente mais alto de sua trajetória.
Naquele mesmo ofício, onde acusou o tratamento inferior recebido pelas pessoas que
ele dizia ser de primeira espécie, Francisco fala que divulgou a notícia de que seria o
comandante para que o povo soubesse de algumas das providências que tomaria na
localidade. Ele teria pedido autorização do governador para tomar “medidas de polícia com o
respeitável nome de Vossa Excelência, esperando que Vossa Excelência se digne de aprovar
este arbítrio, que só teve por fim a tranquilidade pública, e o evitar, mais com prudência, do
que com castigo, os abusos da plebe”. Temos, nessa fala, mais uma demonstração da distinção
social do lugar que Francisco havia alcançado em relação à população comum. O termo plebe
indica que sua posição na hierarquia local não era tão inferior quanto sua fala sugeriu
anteriormente. Plebe, em Bluteau (1728), significava “o povo, a gente popular, a mais vil
16
“Francisco Manuel Martins Ramos, Cavaleiro da Ordem Militar de Santiago da Espada, Coronel Comandante
do Regimento de Milícias dos Homens Pardos da Província das Alagoas por Sua Magestade Fidelíssima que
Deus Guarde; Comandante Interino do Distrito da Villa do Penedo e Seu Termo pelo Ilustríssimo, e
Excelentíssimo Senhor Governador desta Capitania”. Cópia do edital publicado por Francisco Manuel Martins
Ramos anexado em ofício de 1º de Setembro de 1819. In: Ofícios do comandante do regimento de milícias
dos homens pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
17
Infelizmente ainda não foi encontrado nenhum documento ou referência ao seu processo de provança nem
registro de carta de hábito em seu nome nos catálogos disponíveis online, no qual deve ter encontrado a
referência à ascendência africana a qual se refere.
18
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 96.
20
gente da plebe”19. Em Morais e Silva (1789), plebe significava “o povo miúdo, a gentalha”20.
Francisco Manuel Martins Ramos acusou a diferença de tratamento que recebeu de um grupo
(os de primeira espécie), mas tratou outro, que ele chamou de plebe, com a mesma distinção
com que foi tratado. Por mais que sua ascendência africana fosse vista, por alguns, de forma
odiosa, ele mesmo tratou uma camada da sociedade como alguém que já não a ocupava mais,
como alguém que já havia alcançado alguma distinção e ascendeu socialmente.
A instituição da escravidão foi o elemento que interferiu de forma mais marcante na
estruturação da sociedade na América Portuguesa. Os descendentes dos africanos se tornaram,
com o passar dos tempos, a maior parcela da população e esse fato não passou despercebido.
O acesso às alforrias, a quantidade de irmandades que compuseram, muitas delas criadas no
século XVIII, a criação de corpos militares para pretos e pardos revela que essa parcela da
população precisava e queria fazer parte ativamente do corpo social do Império da Coroa
Portuguesa. A população de descendentes de africanos, hoje denominada negra, por mais que
tenha sido vista por um bom tempo pela historiografia essencialmente como força de trabalho,
também foi agente das dinâmicas da hierarquia social e não ocuparam somente os estratos
inferiores. Na Comarca de Alagoas, isso não foi diferente. Conforme veremos no decorrer
deste trabalho, os pardos da Vila do Penedo não eram somente um grupo de homens21 que não
eram nem brancos, nem escravos22, eles foram além.
2.1 Escravidão, presença africana hierarquias sociais
Em todo o processo de colonização das Américas, os africanos foram personagens
presentes. Seja no povoamento e na ocupação do território, nas lavouras como trabalhadores
forçados ou na vida cotidiana urbana exercendo profissões variadas, a população de origem
ou ascendência africana atuou na sociedade de forma que, indiscutivelmente, conformaram a
maior e, por consequência, mais relevante parcela da população do Brasil. Como dito, a
escravidão ligada à presença africana no Brasil foram os fatores de que interferiram de forma
19
BLUTEAU, Raphael. Verbete “plebe”. In: Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico,
architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em:
<http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/plebe>.
20
SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa [...]. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. 1ª
edição
em
Lisboa,
Oficina
Simão
Tadeu Ferreira,
em 1789,
2v.
Disponível
em:
<http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/plebe>.
21
Aqui consideraremos apenas os pardos que estão na nossa documentação: os homens que estavam na milícia
dos pardos e na Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos. Esta última, embora reservasse cargos
para mulheres, não contou com o nome de nenhuma no compromisso que será analisado mais a frente.
22
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 172.
21
mais categórica na composição da sociedade e na forma como foram organizadas as suas
hierarquias. A escolha do uso de africanos como mão de obra escrava no desenvolvimento das
atividades econômicas do Novo Mundo no século XVI e a posterior transformação do
comércio de escravos em negócio no século XVIII fez dos povos africanos presença
predominante na América portuguesa. Conforme os dados do quadro abaixo percebe-se que
desde meados do século XVI, período em que cresceu o número de engenhos em
Pernambuco23, ao fim do século XVIII, quando a economia já não se sustentava mais somente
na produção e exportação do açúcar, a quantidade de africanos desembarcados nos portos de
Pernambuco cresceu, embora o número tenha sofrido interferência, no século XVII da
presença holandesa nas Capitanias do Norte24 e, no XVIII, pela mudança do centro econômico
para a região sudeste, sobretudo Rio de Janeiro como destino final ou entreposto para Minas
Gerais25.
QUADRO 1: Estimativa de africanos desembarcados em
Pernambuco e no Sudeste (1500-1800)
PERNAMBUCO
SUDESTE
PERÍODO
0
0
1501-1525
0
0
1526-1550
2.461
0
1551-1575
16.110
4.770
1576-1600
77.060
32.395
1601-1625
44.978
48.317
1626-1650
41.263
68.248
1651-1675
83.221
72.123
1676-1700
110.748
121.938
1701-1725
73.430
159.523
1726-1750
70.653
204.942
1751-1775
74.505
270.157
1776-1800
594.429
982.413
TOTAL
Fonte: Banco de Dados: Viagens. 2009. Viagens: O Banco de Dados
do Tráfico de Escravos Transatlântico. Disponível em:
<http://slavevoyages.org/estimates/NK4FqPg9>.
As mudanças nos números ocorridas nesses intervalos de 25 anos sugere que o
comércio de escravos africanos nunca foi uma atividade estável. Em alguns períodos a entrada
de africanos foi menor do que em outros onde teve saltos exorbitantes e voltou a diminuir em
23
“Segundo Anchieta em 1585 eram mais de 66, existindo neles uma população escrava que somava em torno de
10.000 escravos, todos originários da Guiné e de Angola”. Ver artigo completo: SILVA, Gian Carlo de Melo. A
presença de Africanos em Pernambuco: aspectos sobre escravidão, família e sociedade no período colonial –
séculos XVI ao XIX. Revista Ultramares, Maceió, vol. 2, n. 3, pp. 10-33, jan-jul 2013. Disponível em: <
https://docs.wixstatic.com/ugd/5a45bd_207f8b6840c74374b91c3fdbdc524cb3.pdf>.
24
Pernambuco (incluindo a Comarca de Alagoas, que, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Ceará.
25
Mudança causa pela descoberta das minas em fins do século XVII que demandou cada vez mais mão de obra
africana para as atividades mineradoras e nas cidades que passavam a crescer e povoarem e urbanizarem parte do
interior da América Portuguesa.
22
seguida, como no período que vai da segunda metade do século XVII à segunda metade do
XVIII. A economia do comércio escravista possuiu uma dinâmica própria como demonstrado
pela tabela acima, isso também é visto na variedade das origens dos africanos. Para a Bahia,
por exemplo, maior porto de desembarque de africanos no Brasil, Lucilene Reginaldo, a partir
de estudo sobre as irmandades de africanos de Salvador, detectou uma variedade de grupos de
procedência que abrangia africanos da África Central (Angola, Benguela, Congo,
Moçambique) e da Ocidental (Jeje, Mina, Nagô, Costa Afra, Parda Mina) 26. Para
Pernambuco, a autora destaca a presença de africanos Angolas, Cabo Verde, São Tomé,
Moçambique, Costa da Mina27. De acordo com esses dados, é seguro dizer que os africanos,
das mais variadas regiões, sociedades e culturas28, e seus descendentes foram personagens
determinantes em todo o processo de estruturação e organização da colônia americana de
Portugal. Os pardos entram no conjunto desses descendentes. Eram pessoas que tinham um
passado, ainda que distanciado por gerações, ligado ao cativeiro e cujas trajetórias também
revelam composições diversas.
Na América Portuguesa, a população que se desenvolveu durante o processo de
colonização foi resultado das mestiçagens. Inicialmente, os nascidos foram gerados entre
portugueses e índios e, com a inserção do elemento africano, as misturas, espontâneas ou
violentas, foram tornando-se cada vez mais constantes e inevitáveis. A variedade dos termos
utilizados para ordenar, organizar e classificar a composição social do Novo Mundo29 é um
bom exemplo da diversidade advinda dos encontros, das interações entre os diversos
indivíduos, das dinâmicas sociais, econômicas e políticas que permeavam o cotidiano.
Juridicamente falando existiam basicamente três grupos dentre os quais os indivíduos seriam
classificados que eram: os escravos, os libertos e os livres. Eduardo França Paiva ainda
acrescenta mais duas categorias, que chama de subcondições: a de administrado e de
26
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia
Setecentista. São Paulo: Alameda, 2011, p. 347.
27
Ibid. p. 172-173.
28
Deve-se lembrar de que o que se tem em registros como etnia, nação ou, genericamente, origem, não
necessariamente caracteriza a cultura de determinado grupo de africanos. As categorias como Angola, Jeje,
Mina, Moçambique também operaram como grandes categorias gerais que acabavam escondendo traços
específicos da cultura dos africanos. De acordo com Gwendolyn Hall, “para se rastrear as diferentes etnias, o
estudo da travessia atlântica não é suficiente. As viagens nos fornecem informações sobre os principais portos de
embarque e sobre os lugares onde os negros eram comercializados assim que desembarcavam no continente
americano”. In: HALL, Gwendolyn Midlo. Cruzando o Atlântico: etnias africanas nas Américas. Topoi (Rio J.),
Rio de Janeiro, v. 6, n. 10, p. 29-70, Junho de 2005, p. 31. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2005000100029&lng=en&nrm=iso>.
29
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e
XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 124.
23
coartado. A primeira fazendo referência a índios submetidos à administração particular
formalizada por Carta Régia de 1696 e a segunda caracterizando uma prática (a coartação) em
que escravo e proprietário acordavam os termos da alforria baseados essencialmente nos
costumes e direito cotidianos30. Esses termos distinguiam a vivência, a proximidade ou
distanciamento do cativeiro e já indicava, a depender da condição, alguma mobilidade social.
Em uma sociedade com valores culturais e sociais europeus, que repudiava o trabalho
mecânico por ser considerado uma mancha à honra e à nobreza, o processo de mobilidade e
ascensão da condição jurídica de escravo para a de liberto era um grande salto na hierarquia e
uma grande quebra da ordem social. Afinal, como afirma Silva, era o estatuto jurídico do
indivíduo que dava acesso ou restrições a espaços da sociedade31.
Em se tratando da qualidade, tem-se registro de termos como pretos, negros, pardos,
mulatos, cabras entre outros e que iam além da indicação de tonalidade da pele, mas também,
e principalmente, designavam características sociais e políticas, recebidas ou conquistadas ao
longo de suas trajetórias. Eram termos que classificavam indivíduos de atributos diferentes a
depender de fatores específicos das regiões onde estavam inseridos. No século XVIII, com
uma entrada de africanos chegando a ultrapassar a casa de um milhão32, a população não tinha
outro rumo senão se tornar como predominantemente negra, como de fato aconteceu. O
aumento da população de origem africana e seu crescente e contínuo acesso à alforria
mudariam a organização da hierarquia social na América Portuguesa. A posição social que
passavam a ocupar, saindo da condição de escravos chegando a libertos e livres, era resultado
da busca por distinção social e por uma organização da sociedade que levasse em conta essa
diversidade. Porém, entre o status de preto liberto, por exemplo, e o de pardo há um ou vários
processos de mobilidade social e geralmente era necessário que mais de uma geração
acumulasse um sem número de pequenas distinções para que a liberdade fosse algo no
mínimo estável.
Eduardo França Paiva nos dá o exemplo da preta forra, Thereza Ferreira, que na
década de 1770 disse ser da Costa da Mina e moradora em Sabará (MG). Esta africana, ao
realizar o registro de seu testamento em cartório, declarou ter quatro filhos homens e uma
30
Ibid, p. 161.
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na cor da pele, o negro: conceitos, regras, compadrio e sociedade escravista
na vila do Recife (1790-1810). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco. Recife: O
autor, 2014, p. 70.
32
Segundo dados da Base de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos, o número de africanos
desembarcados no Brasil entre os anos de 1701 e 1799 é de cerca de 1.303.956. Disponível em:<
http://slavevoyages.org/voyages/H4Wa2kVJ>.
31
24
filha mulher, todos pardos. Como afirma o autor “a mãe era nascida no continente africano, e
seus filhos eram identificados por ela (ou com sua concordância, caso tenha sido o escrivão
quem os tenha assim indicado) como pardos o que contraria a ideia generalizada de que os
filhos das africanas eram denominados crioulos”33. Thereza era uma mulher forra, não
sabemos mais detalhes de sua trajetória nem da rede de contatos que pode ter possuído na vila
em que morava (para ter conseguido registrar os filhos como pardos e não como crioulos, o
que era mais comum), mas provavelmente seus filhos nasceram depois dela ter alcançado a
alforria, pois parece, também nesse caso – principalmente por ela ser uma mulher liberta -,
que o termo pardo foi usado como uma estratégia de afastar qualquer possibilidade de seus
filhos herdarem a mancha de sua experiência direta do cativeiro.
Roberto Guedes, em estudo sobre as possibilidades de mobilidade social em São
Paulo, analisa o fenômeno das mudanças de cor. O autor nota que, entre os anos de 1798 e
1843, houve variações no registro de cores da população de Porto Feliz (SP). Conforme o
autor, “quando brancos refluem, negros e, sobretudo, pardos, acrescem e vice-versa”34. Para o
autor, a cor expressava um lugar ocupado na sociedade, portanto mudar de cor nos registros
significava alguma mobilidade social. Naquele intervalo de tempo, enquanto os cativos eram
designados através dos termos preto, negro, mulato, crioulo e pardo, os livres eram referidos,
na maioria das vezes, como pardos e, sobretudo brancos35. Para outra possessão portuguesa, o
Reino de Angola da segunda metade do século XVIII, de onde saiu boa parte dos africanos
exportados com destino para o Brasil, o autor também percebe que as cores com as quais eram
classificados os habitantes dos presídios de Ambaca e Novo Redondo aludiam a segmentos
sociais e jurídicos distintos36. Nos registros das paróquias da região em questão o autor nota
que, enquanto os termos negro e preto geralmente faziam referência a escravos, o termo
branco era indicativo de liberdade, seja entre africanos ou portugueses. Assim, percebe-se
que, dependendo da posição na hierarquia ou do lugar social, mais apagada ou acentuada
poderia ser a cor ou a ligação com o cativeiro.
Voltando aos casos da América portuguesa, se a mobilidade social vista por Roberto
Guedes nos casos de Porto Feliz (SP) relacionava o termo pretos como sinônimo de escravos,
33
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., p. 38.
GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social : (Porto Feliz,
São Paulo, c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X;FAPERJ, 2008, p. 96.
35
Ibid, p. 97.
36
GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica imperial no antigo regime português: escravidão, governos,
fronteiras, poderes, legados: séc. XVII – XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011, p. 19-33.
34
25
podemos depreender a partir disso que uma das formas de mudar o status social era
alcançando a alforria de alguma forma. Saindo um pouco do nosso recorte temporal, mas
atentando para as permanências, Hebe Mattos também percebe esse movimento em meados
do século XIX no Sudeste. Segundo a autora, o termo pardo naquela região que já não era
mais usado somente como referência à cor, passava a ser empregado como “forma de registrar
uma diferenciação social, variável conforme o caso na condição mais geral de não-branco37.
Ou seja, para não ser mais classificado como preto, a alforria em muitos casos foi o caminho
mais seguro para a manutenção da liberdade, ainda que, após conquistada a alforria, a cor da
pele continuasse a ser um indicativo da posição social independentemente da condição
jurídica do indivíduo, pois a cor da tez era um elemento que já havia sido incorporado à
linguagem visual das hierarquias sociais38. Não foram todos os casos em que os pardos
encontrados na documentação trabalhada por Roberto Guedes estavam referidos como
descendentes livres de africanos, alguns, conforme relata, constavam como pardos forros e
libertos. O que queremos, com os exemplos acima, é atentar para instabilidade das
designações dos termos classificatórios de escravos, libertos e livres na sociedade colonial e
para a tendência do termo pardo ter sido cada vez mais relacionado com o afastamento da
experiência do cativeiro.
Larissa Viana, em obra sobre as irmandades de pardos no Rio de Janeiro, afirma que a
criação desses espaços na América Portuguesa atendia aos anseios de homens e mulheres que
já não se sentiam acolhidos pelas irmandades associadas a pretos e crioulos39, termos com
ligação direta ao cativeiro. A nossa documentação sobre a Irmandade de São Gonçalo dos
Homens Pardos conta com alguns ofícios enviados para o Conselho Ultramarino e dois
compromissos, um de 1807 e outro de 1865. O compromisso de 1807 não tem nenhuma
cláusula proibindo quaisquer qualidades de pessoas de entrarem. A única distinção feita é com
relação à qualidade dos candidatos a irmãos quando, no segundo capítulo, dizem: “esta
irmandade, posto que seja de Homens Pardos, dela se não excluirá qualquer homem, ou
mulher Brancos”40. Talvez, por fazerem menção apenas aos brancos, nem cogitassem a ideia
de pretos terem permissão de fazer parte da irmandade, mas não podemos afirmar nada neste
37
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil
Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 30.
38
LARA, Silvia Hunold. Op. Cit., p. 100.
39
VIANA, Larissa. O Idioma da Mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2007, p. 132.
40
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo.[...], 1807, fl.
09. Disponível em <http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/02441400>.
26
caso, apenas supor. Já no compromisso de 1865 há uma proibição clara e direta: seriam
apenas admitidos “todos os homens e mulheres livres sem distinção alguma de cor.”41.
Comparando esses dois aspectos dos compromissos, podemos supor que, no intervalo de
tempo entre os dois compromissos, em Alagoas, o termo pardo voltou a ter alguma ligação
com o cativeiro, cabe aos pesquisadores do Oitocentos buscarem os porquês. Para nós, é
suficiente perceber que os pardos que viveram na Vila do Penedo até 1807 tentaram se
aproximar cada vez mais do mundo brancos e dos livres, como já vínhamos afirmando.
Silvia Lara também analisou a população negra do século XVIII. Conforme a autora,
as designações de mulato, cabra e pardo eram empregadas para insinuar gradações sociais e
podiam implicar suspeição de ilegitimidade – particularmente no caso dos mulatos, pois era
um termo considerado infamante ou uma forma de xingamento42. Um caso acontecido com os
pardos da Vila do Penedo exemplifica uma das formas cotidianas de uso negativo do termo
mulato: a contenda entre os irmãos da Ordem Terceira da Penitência e os da Irmandade de
São Gonçalo Garcia. No ano de 1772, o rei D. José cede aos pardos o uso de um esquife43 que
haviam solicitado dez anos antes para “maior fervor, conservação e aumento da sua
Confraria”44. A decisão do rei provoca descontentamento entre os irmãos da Ordem, que
alegavam merecer continuar com o monopólio do referido objeto por fazerem seu uso durante
todo o tempo de existência da associação. No intuito de causar uma impressão negativa a
respeito dos pardos da irmandade de São Gonçalo Garcia e enaltecer a própria imagem
perante a Coroa, o ministro e mais irmãos da Mesa da Venerável Ordem Terceira disseram
que depois de conseguirem provisão “os mulatos irmãos da Confraria de São Gonçalo Garcia
os perturbam e inquietam”45.
Para Silvia Lara, o termo mulato era revestido de um significado pejorativo enquanto o
termo pardo parecia ser mais neutro e, junto com o termo cabra, podiam ser reivindicados
positivamente para individuar grupos ou pessoas na massa de livres46, por isso, ganhou um
significado menos negativo que o seu sinônimo. Assim, a autora afirma que os vocábulos
relativos à cor estão mais a indicar posições sociais do que a referir-se especificamente a uma
41
Compromisso da Irmandade do Glorioso Martyr São Gonçalo Garcia, erecta em Igreja fundada em
1758 pelo irmão da mesma Irmandade [...]. 1865. Arquivo Público de Alagoas. Caixa 5585. fl. 5.
42
LARA, Silvia. Op. Cit., p. 137.
43
Cama usada para levar mortos à sepultura.
44
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 175.
45
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 201.
46
Ibid., p. 172.
27
natureza dos indivíduos47. Marcos Antonio de Almeida, em um pequeno ensaio sobre a
devoção a São Gonçalo Garcia na Vila do Recife, corrobora com as diferenças de utilização
do termo pardo e ainda afirma:
Pardo e Mulato são utilizados no século XVIII para identificar o mesmo grupo,
pessoas de pais Brancos e Negros, resultado da união entre a Europa e o Brasil ou a
África. Essas palavras têm, entretanto, significações distintas. Pardo é utilizado para
designar um grupo social reconhecido por sua ascensão social. Eles são legitimados
por sua importância nas confrarias religiosas que os congrega e os ajuda a superar as
contradições sociais da vida colonial. Mulato, em contrapartida, é frequentemente
48
empregado para indicar o caráter suspeito de um indivíduo .
Hebe Mattos sustenta a tese de que o termo pardo, em fins do século XVIII, passou a
caracterizar grupos de descendentes livres de africanos. De acordo com a autora,
O termo pardo, de simples designação de cor, ampliou sua significação quando se
teve de dar conta de uma crescente população para a qual não eram mais cabíveis as
classificações de “preto” (escravo ou ex-escravo de origem africana) ou “crioulo”
(escravo ou ex-escravo nascido no Brasil), na medida em que estas tendiam a
congelar socialmente o status de escravo ou de liberto49.
A documentação sobre os pardos da Vila do Penedo que temos em mãos não nos
permite falar muito sobre a relação da condição com a qualidade dos que estavam na milícia e
na irmandade de São Gonçalo Garcia. Também não temos documentação serial para afirmar
que o termo pardo, na Comarca de Alagoas, foi utilizado como estratégia de afastamento do
cativeiro como foi para outras regiões, mas temos casos específicos de alguns homens pardos
que, parecem ter vivido ou visto de perto a escravidão.
Antonio José dos Santos era natural da Vila de São Miguel e morador na Freguesia de
Anadia, Comarca de Alagoas. Aos 43 anos era casado e exercia o ofício de lavrador. À idade
de 42 anos, conquistou a patente de Sargento-Mor Graduado “por carta patente de Sua
Majestade de 31 de julho e decreto de 22 de janeiro de 1818 em consideração ao distinto e
louvável comportamento”50 com que passou pelos demais cargos do Regimento de Milícia
dos Homens Pardos da Vila do Penedo. Apesar do reconhecimento dos serviços prestados à
47
Ibid., p. 141.
ALMEIDA, Marcos Antonio de. A Irmandade de São Gonçalo Garcia em Pernambuco: a apoteose dos
Homens Pardos em Recife (1745). In: ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de; SILVA, Gian Carlo de Melo;
RIBEIRO, Marília de Azambuja. Cultura e sociabilidades no mundo atlântico. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 2012, p. 427.
49
MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império Português: o Antigo Regime em
perspectiva Atlântica. In: BICALHO, Maria Fernanda Baptista; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 154-155.
50
Relação dos oficiais existentes no Regimento de milícias dos Homens Pardo da Comarca das Alagoas. In:
Ofícios do comandante do regimento de milícias dos homens pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo
Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
48
28
Coroa, sua trajetória foi alvo de questionamento com tom de rejeição por alguns habitantes da
região onde morava. Segundo a pequena biografia sobre Antonio, os “grandes de Anadia
[dirigiram suas indignações ao Governo Imperial e] pediram providência para que não
continuasse a hombrear e a ter parte nos Comícios governamentais um pardo sobre quem
pesara o ferrete da escravidão”51. O cerne da questão feita era a ligação de sua trajetória com a
escravidão ou uma experiência direta com o cativeiro (não sabemos se era livre ou liberto).
Antônio alcançou um alto posto na milícia, entrou para o Estado Maior, seu comportamento
foi considerado distinto e louvável pela Coroa, e, ainda assim, seus contemporâneos não
relevaram sua ligação com o cativeiro nem o trataram como um pardo que havia ascendido
socialmente. Conforme sua biografia, “tão abalado ficou que não resistiu ao choque, sentiu
enlutar-se o espírito por um doloroso sentimento”52, agravando seu estado de saúde e levandoo a óbito oito anos mais tarde.
Outro caso é o de José Sutério da Rocha, soldado da 9ª companhia, 45 anos, casado,
nascido e morador na Vila do Penedo. De todos os 440 soldados registrados nas cinco
companhias em 1819, ele era o único que exercia uma profissão tradicionalmente ligada a
africanos ou descendentes destes nascidos no Brasil: o ofício de sangrador53. Sabe-se, como
dito, que geralmente quem praticava tal ofício “desde pelo menos o século XVIII, eram em
sua maioria negros: escravos, libertos e livres; africanos e crioulos”54. O conjunto de
características que temos a respeito de José pode nos indicar, ou ao menos permitir imaginar,
seu lugar social. Por estar em uma milícia de pardos, ser um homem de idade relativamente
avançada e ainda estar como soldado55 e, principalmente, pelo exercício do oficio de
sangrador56, podemos conjecturar que José tinha alguma ligação com o cativeiro (acreditamos
que seja um liberto) e viu na milícia, uma oportunidade de alcançar alguma mobilidade social.
51
JOBIM, Nicodemos. Parte 3: Memorial Biographico de Antonio Jose dos Santos Tenente-coronel do batalhão
de milícias dos homens pardos e vogal da 1ª junta de governo nesta província. In: JOBIM, Nicodemos. História
de Anadia. Imperatriz: S/Ed, 1880. Pp. 159-162. Agradeço à Profª. Drª. Irinéia Franco por ter cedido a
documentação.
52
Ibid. p. 162.
53
Sangrador. O que dá sangria. Vid. Barbeyro. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino:
aulico, anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v.
Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/sangrador>.
54
JEHA, Silvana. Ganhar a vida. Uma história do barbeiro africano Antônio José Dutra e sua família. Rio de
janeiro, século XIX. Rev. Hist. (São Paulo), São Paulo, n. 176, a03116, 2017, p. 3. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-83092017000100302&lng=en&nrm=iso>.
55
De todos os soldados, ele é o terceiro mais velho, tendo à sua frente um de idade de 50 anos e outro de 46
anos.
56
É importante salientar que o único hospital da região, a Misericórdia, da qual falaremos mais adiante, foi
construída pelos pardos e administrada por uma mesa composta por pardos e brancos (estes, escolhidos pelo
29
Um último caso que mostra como as instituições compostas por pardos
proporcionaram alguma ascensão social foi o de Francisco Manuel Martins Ramos. Francisco
era filho de outro oficial de milícias, o comandante Manoel Martins Ramos e, após a morte de
seu pai, sua mãe casou novamente com outro oficial, o Sargento-Mor Libório Lázaro Leal,
capitão, em 1788, de uma das companhias do regimento dos homens pardos da Vila do
Penedo. Francisco entrou para a milícia aos 8 anos de idade como soldado voluntário e, aos 9
era porta-bandeira da 4ª companhia. Na milícia, alcançou o posto de Coronel do regimento e,
devido a sua trajetória militar, foi escolhido para o comando da Vila do Penedo, e, como será
visto a diante, na irmandade de São Gonçalo Garcia, chegou a ser o procurador da instituição
e esteve à frente da construção do Hospital da Misericórdia da dita vila, de que a irmandade
era administradora. Francisco fez referência à uma ascendência africana no momento em que
estava se dirigindo à maior autoridade da região para se queixar do tratamento que estava
recebendo de outras pessoas. Tinha, em seu favor, as conquistas que alcançou nas duas
instituições que, claramente, operaram fortemente na mobilidade social que alcançou.
Tendo isso em vista, percebe-se que os termos que designavam os indivíduos não eram
estáveis, assim como as dinâmicas da sociedade colonial também não o eram e nem,
consequentemente, a hierarquia social. Para o Padre Raphael Bluteau, por exemplo, no início
do século XVIII (1728), pardo era designado como “cor entre branco e preto” 57 e homem
pardo como sinônimo de mulato, que significa “filha e filho de branco [sic] e negra ou de
negro e mulher branca”58. A origem misturada dos pardos e sua ligação com o cativeiro (a
referência ao negro/negra como pai/mãe é indicativo disso), até meados do século XVIII,
sintetizam a forma como foram tratados. Um religioso, Frei Jaboatão, atribui novo sentido ao
termo e uma visão positiva àqueles indivíduos.
Antônio de Santa Maria Jaboatão59, frei franciscano que apesar de ter nascido em uma
das principais famílias pernambucanas, particularidade que poderia tê-lo feito reproduzir
procurador da Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos, a instituição responsável pela construção).
Ter um sangrador no corpo de funcionários do hospital poderia ser vantajoso tanto para o hospital quanto para o
profissional.
57
BLUTEAU, Raphael. Verbete “pardo”. In: Op. Cit. Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/ptbr/dicionario/1/PARDO>.
58
Ibid.
59
“Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão nasceu em Sant’Ana do Jaboatão, Pernambuco, em 1695, e morreu em
Salvador, em 1779. Era filho do sargento-mor Domingo Coelho Meireles e de D. Francisca Varella, integrantes
das principais famílias pernambucanas. Aos 22 anos, tornou-se franciscano e, mais tarde, destacou-se como
poeta, pregador, cronista, genealogista e membro da Academia Brasílica dos Renascidos. Sua obra possui forte
caráter panegírico, louvando sejam as autoridades metropolitanas, como o Marquês de Pombal e D. José, sejam
30
opiniões negativas a respeito de descendentes de africanos, tomou para si a responsabilidade
de escrever e proferir sermão em louvor a Gonçalo Garcia na ocasião da festa da Irmandade
do Livramento da Vila de Santo Antônio do Recife, no ano de 1745. No sermão, partiu da
história do primeiro santo pardo das Américas, Gonçalo Garcia, para defender que os pardos
aos quais se referia não mais deveriam ser vistos e tratados com desprezo, mas sim com
louvor, pois já tinham um santo que os representava. Segundo Frei Jaboatão, assim como os
pardos da Irmandade do Livramento da Vila do Recife, Gonçalo Garcia era descendente de
pessoas de origens distintas, mas isto deveria ser deixado para trás, pois, segundo o
franciscano, era tempo de beatificar a cor parda e declarar que não só era tão bem aventurada
e ditosa como as outras (branca e parda), mas era algo mais: era perfeita justamente por ser
resultado da mistura das outras duas. A explicação baseada na religião que o frei dá é a
seguinte:
A primeira imagem do homem, que houve no mundo, havendo Deus de lhe dar cor,
não quis para isso, nem a preta, nem a branca, senão só a parda. Não se há de negar
que a primeira matéria, e o primeiro princípio natural do nosso corpo foi o barro; e
que a este barro assim amassado, e formado em corpo humano, ou figura de homem,
lhe pôs Deus por nome Adão, que quer dizer: vermelho, por ser este vermelho a cor
daquele barro: Adam, id est, Ruber. Agora pergunto: e como era vermelho, a que
chamamos próprio, ou rubicundo; era outro vermelho impróprio, qual é do barro
porque não há barro natural, que seja propriamente vermelho, senão baço, ou pardo,
que esta é a própria, e rigorosa significação do nome Ruber , que quer dizer: Cousa
vermelha, loura, ou que tira a roxo, que é o baço, ou pardo do barro. E é isto tanto
assim, que este nome Pardo dá o P. Antonio Vieira a este barro de Adão,
discorrendo sobre estas mesmas cores branca, preta e Parda, e apropriando o Pardo
do barro à cor nos Pardos; e fazendo o reparo, porque não havia Deus chamar a
Adão com o nome do barro, senão da cor: este foi o seu reparo, o que eu faço agora,
é este. E porque não quis Deus, para dar cor àquela primeira Imagem do homem,
nem a cor branca, nem a preta, senão só a Parda? A razão, que devemos dar hoje é;
porque a cor Parda era mais perfeita que a preta, e que a branca. Das mesmas
palavras daquele grande Pregador havemos tirar esta razão. Diz ele assim: Não quis
Deus que aquela cor fosse alguma das extremas, quais são a branca, e a preta,
senão outra cor meia, e mista, que se compusesse, de ambas, qual é a vermelha, ou
a Parda no seu sentido. Agora digo assim: A cor Parda, diz aquele Pregador, é uma
cor meia, ou mista, que participa da branca, e da preta: logo bem se segue, que a
cor Parda é mais perfeita que a preta, e que a branca60.
Além dessa explicação envolvendo a mitologia cristã, o frei se utilizou de dados e
informações do cotidiano para falar dos pardos. Em certo trecho do sermão, afirmou que a
festa era o momento certo para celebrar o “dia de grande prazer e gosto dos pardos” pois,
“agora sim, que cresceram e chegaram a seu termo as calúnias do vosso Nome [...] é o tempo
governadores e capitães da colônia”. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808).
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 243.
60
JABOATÃO, António de Santa Maria. Jaboataõ mystico em correntes sacras dividido [...].Lisboa : na
Offic. de Antonio Vicente da Silva, 1758, pp. 210-211. Disponível em: < http://purl.pt/24730>.
31
de se publicarem as vossas glórias”61. Há a referência a um crescimento. Poderíamos presumir
que esse crescimento está relacionado ao aumento da população de pardos na Capitania de
Pernambuco e na América Portuguesa como um todo. Porém acreditamos que o que está
sendo evidenciado é um crescimento qualitativo, uma mobilidade social. Em outro momento
do sermão, o frei nomeia alguns indivíduos que haviam alcançado alguma distinção e que diz
serem de maior hierarquia. Para nós, isso é uma evidência explícita do processo de
mobilidade e ascensão social na Capitania de Pernambuco experimentado pelos pardos,
salientado no trecho em que faz referência a um crescimento. Frei Jaboatão diz:
Aqui temos a cor Parda não só tão ditosa, e bem aventurada, como a preta, e a
branca, pois, como esta, teve Reis; mas ainda muito mais bem aventurada, e ditosa,
pois os primeiros Reis, e Monarcas, que houve entre os da cor branca, e preta, foram
os da cor Parda. Dos Príncipes, e Reis que se seguem os Generais, Governadores,
Mestres de Campo, e mais Posto da Milícia: e sem sairmos do nosso Brasil, e ainda
de Pernambuco, podíamos fazer de todos uma boa lista, se assim como lhe sabemos
os nomes, não achássemos alguns com cores mudadas. Na hierarquia Eclesiástica
também tem a cor Parda sujeitos assinalados: Sacerdotes sem número, Curas,
Vigários, e outros ainda de maior hierarquia também, sem irmos muito longe de
Pernambuco, podíamos de todos fazer um catálogo muito bom, uns, que
conhecemos, outros, que talvez se não conhecerão. Nas letras não menos tem a cor
Parda homens dignos de se nomearem. O Padre Manoel Gonçalves natural de
Pernambuco, Doutor formado pela Universidade de Coimbra, aplaudido na Corte,
e de quem El Rei D. Pedro fazia muitas estimações, e pela sua virtude, e humildade
foi prática, não quis este Clérigo admitir a de o querer aquele Rei nomear Bispo para
São Tomé. Domingos de Sá e Silva, também de Pernambuco, Doutor em ambos os
Direitos pela mesma Universidade, Advogado de Casa da Suplicação, e geralmente
celebrado por Douto, e buscado das primeiras pessoas para as dependências das suas
causas; e outros muitos Letrados, e Doutos, assim nas letras humanas, como
Divinas. Na virtude, e Santidade, que é o principal objeto deste discurso, tem a cor
Parda sujeitos ainda de maior distinção [...]62.
A todo o tempo, tanto nos dois trechos citados como em todo o sermão, Frei Jaboatão
compara os pardos com os brancos e os pretos a ponto de colocar os pardos em um lugar
superior na hierarquia em que estavam inseridos as três categorias. Vale notar que o frei não
estava falando somente para os pardos da Irmandade do Livramento, mas para toda a
sociedade presente no festejo, para a elite local, a nobreza da terra, para clérigos e leigos,
escravos, libertos e livres. Dizer, na Vila do Recife, que os pardos eram mais perfeitos que os
brancos deve ter chocado a muitos, pois a hierarquia estava arraigada no imaginário social,
religioso e político da sociedade colonial e os pardos conformaram um contingente
demográfico que não tinha lugar fixo e que se distanciava cada vez mais dos lugares mais
baixos da hierarquia, chegando a alcançar lugares socialmente tão altos quanto os que eram
reservados aos brancos (contingente que não tinha um número tão significativo se levamos em
61
62
Ibid. p. 172.
JABOATÃO, Frei. Op. Cit. p. 205-207.
32
consideração a presença de africanos, as mestiçagens ocorridas e o fato de esses termos, como
já explicado não serem relativos somente à cor).
Janaína Bezerra e Ana Carolina Crispin analisaram trajetórias de pardos da Capitania
de Pernambuco e das Minas Gerais e também constataram que distinguir-se socialmente dos
demais era um processo necessário e comum na sociedade colonial. Conforme Crispin, em
estudo sobre o papel das milícias nas trajetórias de homens pardos das capitanias de
Pernambuco e Minas Gerais, a Coroa Portuguesa, na década de 1760, fez dos pardos grandes
aliados e estes homens transformaram o espaço militar em estratégia para eliminar as marcas
da escravidão63. Janaína Bezerra traz à luz alguns exemplos da mobilidade social daqueles
homens no século XVIII na Capitania de Pernambuco que demonstram que os pardos da Vila
do Recife não só se desvencilharam do passado ligado ao cativeiro, mas ascenderam
econômica e socialmente chegando a fazer parte da elite daquela região 64. Silvia Lara resume
resume, sem rodeios, várias estratégias de distinção social engendradas por vários pardos na
sociedade setecentista:
Foi como pardo que um filho bastardo de uma família senhorial se definiu ao
solicitar o privilégio de usar uma espada para fazer valer sua condição de “filho de
homem branco e senhor de engenho”. Intitulavam-se pardas muitas irmandades que,
majoritariamente compostas por “não-brancos”, desejavam se diferenciar das suas
congêneres que aceitavam escravos e negros livres. Eram pardos também os vários
terços militares que se formavam e cresciam em número ao longo do século XVIII,
distinguindo-se do antigo terço dos Henriques65.
Percebe-se, então, que os termos classificatórios dos indivíduos se calcavam não
somente em elementos visíveis, como a cor da pele, que por tanto tempo foi vista (e continua
sendo) como a causa principal ou talvez única da diferença de tratamento para com os
descendentes de africanos na sociedade colonial brasileira. A instituição da escravidão
exerceu papel determinante no processo de classificação, ordenação e hierarquização dos
indivíduos e grupos sociais dividindo a sociedade entre os que viviam no cativeiro, os que se
distanciavam aos poucos dessa experiência e os que nunca passaram por tal vivência. A
conquista da alforria e a transmissão da liberdade podem ser consideradas como o início do
63
CRISPIN, Ana Carolina Teixeira. Além do acidente pardo: os oficiais das milícias pardas de Pernambuco
e Minas Gerais (1766-1807). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense , Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História – 2011, p. 96. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1490.pdf>.
64
BEZERRA, Janaína dos Santos. A fraude da tez branca: a integração de indivíduos e famílias pardas na
elite colonial pernambucana (XVIII). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco.
Recife: UFPE, 2016. Disponível em: <http://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/17551>.
65
LARA, Silvia. Op. Cit., p. 142.
33
processo de mobilidade social da população de ascendência africana, dentro da qual figuram
os pardos, como afirma Herbert Klein:
Em todas as sociedades, pais libertaram filhos e parceiros afetivos escravizados, e
senhores, por razões religiosas ou morais, libertaram escravos, pois a lealdade,
muitas vezes, era recompensada com a alforria. A compra da própria alforria se
verificou em todos os regimes escravistas. Tudo isso começou num ritmo lento e
produziu uma modestamente crescente classe de pessoas de cor livres66.
A partir desse quadro crescente de população de cor livre, as possibilidades de
mobilidade e ascensão social foram se tornando menos limitadas. Assim, no século XVIII,
pardo, pensando em um quadro mais conceitual digamos, era um termo cujo significado
envolvia elementos que englobavam sim a cor da pele, mas também outros que dependiam
das dinâmicas próprias da sociedade em que nasceram e viveram. Era também a forma de
classificar indivíduos descendentes de africanos, que buscaram se afastar do tratamento por
alcunhas depreciativas, como o termo mulato; que entravam em irmandades e ocupavam
cargos de mesa; que ingressavam nas milícias e ascendiam a postos de mestres de campo, de
sargento-mor, coronel, capitão nas milícias e iam à metrópole reivindicar cargos, patentes,
honrarias, distinções que essas instituições os proporcionava; eram doutores em letras e em
direito, eram sacerdotes.
Em suma, eram homens e mulheres que a partir da alforria conquistada por seus
antepassados africanos, conquistaram algum grau de liberdade para mover-se seja social ou
espacialmente, entre as vilas e freguesias e até para fora da colônia, liberdade que ainda era
acompanhada de limitações. De diversas formas e utilizando diversos espaços, instituições,
estratégias e ferramentas, muitos dos pardos, embora vivessem em uma sociedade escravista e
reproduzissem as práticas desse sistema – algo comum no contexto em que estavam inseridos
-, já haviam se distanciado ao menos da experiência direta com o trabalho mecânico e
compulsório e puderam exercer papeis e ocupar lugares que as trajetórias de seus
antepassados trazidos da África não os permitia.
2.2 Vila do Penedo e seu termo: população, vida social, economia e cotidiano
As terras da colônia portuguesa das Américas ficaram negligenciadas por algumas
décadas desde o primeiro contato dos exploradores europeus com o Novo Mundo e da divisão
das terras entre Portugal e Espanha em fins do século XVI. Por não terem sido encontrados
66
KLEIN, Herbert S.. A experiência afro-americana numa perspectiva comparativa: a situação atual do debate
sobre a escravidão nas Américas. Afro-Ásia, Salvador, n. 45, p. 95-121, 2012, p. 107. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0002-05912012000100004&lng=en&nrm=iso>.
34
metais preciosos, como aconteceu com os espanhóis, ou produtos que dessem um rápido
retorno financeiro na comercialização no continente europeu e em outras colônias, a exemplo
do açúcar produzido nas ilhas do Atlântico - São Tomé, Açores, Madeira e Cabo Verde -, a
fixação de colonos e a colonização em larga escala da parte sul do continente americano se
mostrou uma proposta desinteressante, como afirma Herbert Klein67. Paralelamente a esse
desinteresse, outras nações passaram a demonstrar entusiasmo nas possibilidades de
prosperidade nas terras do Novo Mundo. A presença dos franceses no território é exemplo
disso e foi um dos principais motivos que despertou nos portugueses a necessidade de
dominar e povoar as terras que a Coroa portuguesa recebeu da Igreja. A presença indígena
também foi justificativa utilizada no processo de ocupação da nova colônia, no entanto foi
resolvida violentamente com a assimilação, o extermínio e/ou expulsão dos índios para os
sertões68.
Diante de tais interferências nas dinâmicas lusas, conhecer o território e fixar colonos
em suas terras americanas passou a ser tarefa de primeira ordem para a garantia da posse das
terras pelos portugueses. A locação de pedaços de terra para súditos com grande cabedal para
investir na sua povoação, no seu uso e manutenção e ainda dar algum lucro à Coroa foi a
resposta encontrada à necessidade de ocupação e povoamento da América por Portugal. Como
bem pontuado por Russel-Wood, “a Coroa portuguesa simplesmente arrendara pedaços do
Brasil a especuladores particulares mediante contrato”69. É importante relembrar esse
processo de povoamento e colonização da América portuguesa para falar sobre a constituição
da Vila do Penedo, pois foi nas viagens de reconhecimento que os donatários da Capitania de
Pernambuco fizeram pelo litoral (para o norte até Olinda e para o sul até o Rio São
Francisco), buscando conhecer suas terras para melhor protegê-las, que foi dado início a um
povoamento digamos orientado, direcionado à proteção e defesa do território e em pontos
estratégicos, sendo a Vila do Penedo um desses pontos. Assim, a criação de povoações na
Capitania de Pernambuco que posteriormente deram origem aos bispados, vilas, freguesias,
67
KLEIN, Herbert S., LUNA, Francisco Vidal. Escravismo no Brasil. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2010, pp. 25-26.
68
Em obra onde narra a história das lutas e personalidades que participaram da constituição de Pernambuco,
Loreto Couto reserva o primeiro capítulo para falar dos vários conflitos dos portugueses com os índios. Ver:
COUTTO, Domingos do Loreto, 1759. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. Ed. fac-similada Posfácio e índice onomástico de José Antonio Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura Cidade do
Recife, 1981.
69
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fildalgos e Filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 29.
35
cidades, objetivavam não só a proteção da posse, mas também uma administração mais
efetiva das terras do Novo Mundo, civil, jurídica, política, militar e religiosamente falando.
A colonização da América integra, dessa forma, o processo de mundialização do
império ibérico, ou seja, de agregar as várias localidades com presença de portugueses (na
Europa, Ásia, América e África) ao conjunto das regiões sob domínio da Coroa de Portugal.
Tal dinâmica se deu através do que Serge Gruzinski chama de ocidentalização, um
movimento de “conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo Mundo”70 que se
deu através da introdução das instituições ibéricas, da religião católica, da língua e da cultura
portuguesas e dos mecanismos do mercado em uma “mobilização militar, religiosa e
econômica sem precedente”71. Em outras palavras, além de se fazer presente através da
povoação, a Coroa estimulou o uso da terra arrendando pedaços da parte que lhe cabia na
América para os mais abastados de seus súditos, introduziu todo um corpo de instituições e
órgãos tipicamente portugueses como as igrejas, conventos, Câmaras, Cadeia, Casa da
Moeda, fortalezas militares, isto é exportou para o Novo Mundo um modo de vida
caracteristicamente europeu. Mais adiante veremos como essas instituições, nomeadamente a
irmandade, uma instituição leiga de caráter religioso, e a milícia atuaram nas vidas de
mulheres e homens que viveram na Vila do Penedo.
O desenvolvimento da Vila do Penedo não pode ser compreendido separadamente da
influência do Rio São Francisco nas dinâmicas da Capitania de Pernambuco. A Vila do
Penedo foi frequentemente referenciada na documentação colonial, desde pelo menos o
século XVII, como Vila do Rio de São Francisco e Vila do Penedo do Rio de São Francisco 72,
uma referência clara à relevância do Rio e talvez até uma tentativa de demarcação (ou de
posse) do rio, ou de parte dele, às terras pernambucanas. De acordo com Loreto Couto, este
rio era “o terceiro na grandeza dos que regam os Estados que os portugueses tem no Brasil”73
e também definia naturalmente uma das fronteiras, a do extremo sul que fazia limite com as
capitanias da Bahia e de Sergipe Del Rey. Muitas pessoas atravessaram-no buscando resolver
coisas pessoais, e ainda o fazem atualmente. Mulheres e homens transitaram por suas
margens, chegaram e saíram de Penedo cruzando suas águas motivados por interesses
70
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 63.
____________. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo Horizonte: Editora
UFMG; São Paulo: Edusp, 2014, p. 52.
72
AHU_ACL_CU_004, Cx. 1, D. 10./ AHU_ACL_CU_015, Cx. 17, D. 1719. / AHU_ACL_CU_015, Cx. 19, D.
1871.
73
COUTTO, Domingos do Loreto, 1759. Op. Cit., p. 22.
71
36
comerciais, as próprias travessias com certeza geraram renda, as ilhas eram habitadas e
produtivas e a pesca também foi uma atividade bastante praticada no São Francisco. O rio
também foi um caminho utilizado em fugas. Escravos que seguiam para quilombos formados
ao longo da costa, da foz aos sertões74, e portugueses que, expulsos pelos holandeses,
rumaram para a Bahia (imagem 1), o fizeram através do rio São Francisco.
74
Não encontramos fontes sobre a formação de quilombos ou fuga de escravos na Vila do Penedo, mas dados do
IBGE do ano de 2010, do INCRA do ano de 2014 e da Secretaria de Estado do Planejamento, Gestão e
Patrimônio do Estado de Alagoas indicam a existência de comunidades quilombolas na cidade de Penedo, Igreja
Nova e Piaçabuçu (que anteriormente compunham os arredores da Vila do Penedo), algumas delas com nomes
de locais onde alguns pardos residiam, conforme será visto mais à frente no quadro 2. São elas: Tabuleiro dos
Negros e Oiteiro (Penedo), Palmeira dos Negros e Sapé (Igreja Nova) e Pixaim (Piaçabuçu). O mapa das
comunidades quilombolas de Alagoas encontra-se nos anexos, mas pode ser melhor visualizado no site:
<http://dados.al.gov.br/dataset/mapas-de-caracterizacao-territorial/resource/ab2effa7-68c7-4150-adbafefaaccef1a8>. Sobre escravos em fuga, Wellington Silva, que trabalhou com a temática para a Província de
Alagoas em fins do século XIX, relatou casos de escravos fugitivos que iam para Penedo seja por ser a região de
nascimento ou por verem o Rio São Francisco como porta de saída para a província de Sergipe. SILVA,
Wellington José Gomes da. A busca de um novo destino: os escravos e a conquista da liberdade na Alagoas
provincial (1878-1880). Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal de Alagoas. ICHCA.
Curso de História – Licenciatura, Maceió, 2015. Penedo possuía também um dos principais portos da Província
de Alagoas no século XIX, o outro era o porto de Jaraguá (em Maceió), pelo qual comerciantes negociavam
escravos para o tráfico interprovincial que abastecia principalmente as províncias do sul, com destaque para a do
Rio de Janeiro. Ver TEIXEIRA, Luana. Comércio interprovincial de escravos em Alagoas no segundo
reinado. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Pós-Graduação em
História, Recife, 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/18741>.
37
IMAGEM 1 - Fuga dos portugueses pelo Rio São Francisco para a Bahia – 1647
Fonte: POST, Frans. Forte Maurício no Rio São Francisco, 1647. Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasraras/barleus/index.htm>.
Na imagem acima temos uma das telas do pintor holandês Frans Post 75. No quadro, o
pintor retrata a fuga dos portugueses, que estão no centro da imagem atravessando o Rio São
75
Pintor, desenhista e gravador, nascido em Haarlem, na Holanda em 1612. O pintor integrou a comitiva do
Conde Maurício de Nassau que veio ao Brasil em 1637 encarregado de documentar a topografia, a arquitetura
militar e civil e cenas de batalhas. Ilustrou o livro Rerum per Octennium in Brasília, de Gaspar Barléu, que conta
os feitos de Mauricio de Nassau durante os oito anos de governo no Brasil, publicado em 1647, e é uma das
principais fontes iconográficas do período colonial brasileiro. In: FRANS Post. In: ENCICLOPÉDIA Itaú
Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em:
38
Francisco expulsos após a conquista da Capitania de Pernambuco pelos holandeses. Em
primeiro plano, à esquerda, estão as terras da Capitania da Bahia, destino dos portugueses que
estão saindo do Brasil Holandês, ao fundo está a Vila do Penedo onde também pode ser visto
o Forte Maurício. Este elemento esteve presente em várias das telas e mapas produzidos por
holandeses e nos mostra que foi percebida de imediato a importância estratégica do local onde
se desenvolveu Penedo. Em alguns dos mapas, a localização está indicada pelo Forte
Maurício e não pelo nome da vila, como se vê nas imagens abaixo.
IMAGEM 2 - Mapa da localização do Forte Maurício – 1665
Referência: VINGBOONS, Johannes. Plattegrond van fort Maurits bij Rio Santo
Francisco. Brazilië. 1665. Disponível em: <http://www.cartografiahistorica.usp.br
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9982/frans-post>. Acesso em: 20 de Jun. 2018. Verbete da
Enciclopédia.
39
IMAGEM 3 - Recorte de cópia do mapa do Brasil de 175076
As setas apontam a localização dos principais núcleos urbanos da Comarca de Alagoas:
Porto Calvo, Alagoas do Norte, Alagoas do Sul e o Forte Maurício indicando a localização
da Vila do Penedo. Referência: SEUTTER, Georg Mattheus. Recens Elaborata Mapa
Geographica Regni Brasiliae In América Meridionali Maxime Celebris Accurate
Delineata.
Alemanha:
Seutter,
1750.
Disponível
em:
<http://www.cartografiahistorica.usp.br>.
76
Este mapa, na verdade, é cópia da obra Nova et Accurata Brasiliae totius Tabula produzida pelo holandês
Willem Janszoon Blaeu (1571-1638) provavelmente no ano de 1629. Escolhemos colocar esta cópia, pois a
qualidade da imagem é melhor que a da original.
40
IMAGEM 4 - Recorte de mapa do Brasil de 1729
Referência: MOLL, Herman. A map of Terra Firma, Peru, Amazone-land, Brasil & The
North
P.
of
La
Plata.
Londres,
1729.
Disponível
em:
<http://www.cartografiahistorica.usp.br>.
A presença do forte militar demonstra como a necessidade de defesa era uma
preocupação presente na cultura política dos impérios da Idade Moderna. Tanto portugueses
quanto holandeses empenharam-se na proteção de seus interesses nos territórios coloniais. A
Coroa portuguesa investiu, em meados do século XVI, em um aparato político-administrativo
para garantir sua primazia na colônia (o Governo-geral), e os holandeses, no XVII, investiram
na construção de fortes militares. Os holandeses logo perceberam a importância do Rio São
Francisco para a conquista e defesa das Capitanias do Norte, que se deu a partir do domínio
de Olinda e Recife. Conquistadas estas duas cidades, partiram para o sul buscando “marchar
ao encalço do inimigo [as tropas portuguesas] a fim de, com o auxílio de Deus, obrigá-lo a
transpor o Rio São Francisco”77. O Rio São Francisco, fronteira natural que dividia as
capitanias da Bahia e de Pernambuco, atuaria também como ponto de defesa do Brasil
holandês, sobre a qual o Conde Maurício de Nassau registrou:
Deus onipotente expulsou duma vez desta terra, para além do São Francisco, os
nossos inimigos. Considerei necessária à conservação do país a construção de alguns
fortes sobre este rio, a saber, na foz do mesmo e também junto à cidadezinha de
77
Retirado de MELLO, Evaldo Cabral. O Brasil Holandês (1630-1654). São Paulo: Penguim Classics, 2010.
Pp. 164.
41
Penedo, onde o inimigo atravessou-o, situada cerca de seis milhas do mar. [...]
Espero, com o auxílio de Deus, conter o inimigo nestas fronteiras 78.
A historiografia tradicional alagoana79 que fala sobre a organização geopolítica do
território trata de Penedo basicamente como uma região de defesa e proteção de quaisquer
forças opostas ou que dificultassem a colonização pela Coroa Portuguesa. Craveiro Costa, um
dos principais autores daquela produção historiográfica, também corrobora o status de região
propícia para a proteção das terras da Capitania de Pernambuco afirmando que a cidade de
Penedo nasceu da fundação de uma feitoria construída para vigiar não possíveis invasores
estrangeiros, mas o gentio da região80. Apesar de muitos grupos terem sido expulsos do litoral
para os sertões mais afastados, a região sanfranciscana foi um dos locais onde os grupos
indígenas demonstraram resistência, inclusive na Vila do Penedo e seus arredores.
Em meados do século XVIII, na década de 1750, a Coroa Portuguesa empreendeu uma
reforma política com o objetivo de fortalecer o poder do rei, D. José I (1750-1777), nas
colônias. Um dos segmentos dessa reforma dizia respeito aos indígenas e ao lugar dessa
população na sociedade colonial portuguesa. Buscando atender as demandas da metrópole,
que necessitava de mais súditos integrados para consolidar seu domínio “a idéia era civilizar
os índios, integrando-os na sociedade portuguesa, ao contrário da política anterior de
segregação, que havia caracterizado a administração missionária, principalmente a jesuítica”81
e, para isto, era imprescindível conhecê-las. Então empreendeu-se a elaboração de uma lista, a
Relação das aldeias que há no distrito do Governo de Pernambuco, e Capitanias Anexas, de
diversas nações de índios, que continha os nomes das aldeias que existiam nas vilas de
Recife, Igarassú, Goiana, Serinhaém, das Alagoas, do Penedo e as freguesias do Ararobá, do
Rodelas e do Rio Grande do Sul e também das Capitanias da Paraíba, do Rio Grande e do
Ceará Grande82. Em Penedo, as aldeias listadas foram as seguintes:
(1) Aldeia de São Braz, invocação Nossa Senhora do Ó, índios da língua geral,
nações Kareriz [Kariris] e Projez;
(2) Aldeia da Alagoa Comprida, invocação São Sebastião, índios Carapatioz;
(3) Aldeia do Pão de Açúcar, invocação Nossa Senhora da Conceição, índios da
língua geral, nação Xocós;
78
Idem.
Ainda são insuficientes as obras sobre a história colonial de Alagoas, principalmente do ponto de vista da
história social.
80
COSTA, Craveiro. História de Alagoas – resumo didático. Maceió: Sergasa, 1983.
81
OLIVEIRA, Carla Mary da Silva; MEDEIROS, Ricardo Pinto de (orgs.). Novos olhares sobre as Capitanias
do Norte do Estado do Brasil. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2007, p. 126. Disponível em: <
http://www.academia.edu/2539528/Novos_olhares_sobre_as_capitanias_do_Norte_do_Estado_do_Brasil>.
82
Ibid, pp. 148-152.
79
42
(4) Aldeia da Alagoa da Serra do Comunaty, invocação de Nossa Senhora da
Conceição, índios de língua geral, nação Carijós83.
Já na década de 1770, segundo relatório de José Cézar de Menezes 84, governador da
Capitania de Pernambuco na época, após quase duas décadas decorridas da execução das leis
indigenistas a Vila do Penedo passou a ter em seu território apenas uma aldeia que fora
transformada na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Porto Real85 no ano de 1763 e
possuía índios de nação Cropótos e Careris [Kariris]86. As leis da “Direção com que
interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da
Capitania de Pernambuco e suas anexas”87 de 1759 foram orientações que basicamente
tencionavam anular toda a identidade étnica dos indígenas com o discurso de que era um
processo necessário para tirá-los da “rusticidade e ignorância”88 em que acreditavam viver e
estavam baseadas em três ideais: civilidade, cultura e comércio. Obrigava-os a vestir-se como
os brancos89, a morar em casas como as dos brancos90, proibia o uso da língua de suas nações
e introduzia a língua portuguesa como único idioma, pois este era “um dos meios mais
eficazes para os apartar das rústicas barbaridades de seus antigos costumes”91. Introduzia o
cristianismo entre os índios92 e abolia inteiramente o uso das juremas93. De acordo com o
parágrafo catorze, oito índios, os considerados com mais aptidão, deveriam aprender ofícios
mecânicos (pedreiro, carpinteiro, ferreiro, serralheiro, sapateiro, alfaiate e barbeiro) 94 entre
83
Ibid, p. 149. Atualmente a etnia Kariri (população Kariri-Xocó, resultado da fusão entre os povos Kariri de
Alagoas e os Xocó de Sergipe) possui terras reconhecidas em Alagoas pelo Estado localizadas na cidade de
Porto
Real
do
Colégio,
cidade
vizinha
a
Penedo.
Para
mais
informações:
<https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kariri-Xok%C3%B3> e <http://www.indiosonline.net/>.
84
MENEZES, Jozé Cezar de. Ideia da população da capitania de Pernambuco [...]. Rio de Janeiro: Officinas
Graphicas
da
Biblioteca
Nacional,
1923,
p.
60.
Disponível
em:
<
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais_040_1918.pdf>.
85
A cidade de Porto Real do Colégio, bem próxima à cidade de Penedo, possui duas comunidades indígenas,
Kariri-Xocó de etnia de mesmo nome e Dzubucuá de etnia Kariri.
86
As demais vilas (Porto Calvo, Alagoas e Atalaia) possuíam indivíduos indígenas. Na Vila de Porto Calvo a
Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação da Vila do Bom Sucesso de Porto Calvo possuía quarenta índios de
nação Kariri, obviamente já incorporados à sociedade. Na Vila de Alagoas, a Freguesia de Nossa Senhora das
Brotas e Santo Antônio da Real Vila da Atalaia possuía uma Companhia de Índios remanescente das Infantarias
dos Palmares, era povoada por índios de duas nações: “uma de língua geral e outra da língua travada”. In:
MENEZES, Jozé Cezar de. Op. Cit. pp. 60-68.
87
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. XLVI, 1883, pp. 121-171.
Disponível em: < https://ihgb.org.br/publicacoes/revista-ihgb/item/107759-revista-ihgb-tomo-xlvi-parte-i.html>.
88
Ibid, p. 121.
89
Ibid, § 19, pp. 129-130.
90
Ibid, § 13, p. 127.
91
Ibid, § 6, pp.123-124.
92
Ibid, § 4, p. 123.
93
Ibid, § 17 e 18, pp. 128-129.
94
Ibid. § 14, p. 127.
43
vários outros métodos, distribuídos em cento e dezessete parágrafos, cujo objetivo era a
extinção do modo de vida desses povos.
Um desses parágrafos, o décimo primeiro, era relativo à alcunha com que deveriam ser
tratados, na verdade apontavam quais termos não deveriam ser mais usados para se referir aos
índios proibindo o uso dos vocábulos “cativo, caboclo e tapuia, nem que eles mesmos usem
entre si destes nomes”95. O parágrafo seguinte exigia que os índios fossem tratados pelos
nomes que receberam no batismo e que deviam ter apelidos (sobrenomes) pertencentes à
família portuguesa96. Cumpridas as etapas desse conjunto de direcionamentos, especialmente
as que proibiam o uso dos termos cativo, caboclo e tapuia e a que obrigava o uso de nome e
sobrenome do mesmo modo que faziam os brancos, nos questionamos: na Vila do Penedo,
após esse processo de anulação de identidade e de assimilação dos índios pela cultura
ocidental, não teria sido possível que alguns deles tivessem buscado ingressar, ou mesmo
apenas socializar, com um grupo como o dos pardos, formado por pessoas que não eram nem
brancas nem pretas e estavam igualmente distanciadas do mundo da escravidão? Afinal o
objetivo daquele projeto, como podemos ver na em cada parágrafo da Direção com que
interinamente se devem regular os índios, era justamente criar um corpo uniforme de súditos
seguindo padrão da cultura ocidental cristã e da dominação portuguesa 97. Em outras palavras:
será que na Vila do Penedo, o termo pardo teria funcionado como um grande “guarda-chuva”
que acabava abrigando toda a população que não era branca, nem africana ou crioula e não
vivia mais na condição da escravidão precisando ser incorporada, classificada e hierarquizada
dentro da sociedade?
Pela falta de documentação mais detalhada a respeito da população de Penedo (como
rol de confessos ou registros de batismo, casamento e óbito) entre as que tivemos acesso até o
momento, não podemos dar uma resposta definitiva, mas não vamos dizer que não foi
possível o termo pardo trabalhar de forma que uniformizava, digamos, os que não eram
brancos e também já não tinham ligação próxima com a condição de cativo. Lembremos do
caso de José Sutério da Rocha, já citado anteriormente (página 26) como um possível liberto
(africano ou crioulo) em busca de alguma estabilidade social após a conquista de sua alforria.
Como visto, José era soldado da 9ª Companhia de Granadeiros do Regimento de Milícias dos
Homens Pardos da Comarca de Alagoas, nascido na Vila do Penedo em 1774 (tinha 45 anos
95
Ibid, § 11, p. 126.
Ibid, § 12, p. 126.
97
OLIVEIRA, Carla Mary da Silva; MEDEIROS, Ricardo Pinto de (orgs.). Op. Cit., p. 127.
96
44
quando foi registrado na lista dos oficiais da Milícia em 1819) e morador na mesma. Dentre
os 512 oficiais listados pelo Coronel, José Sutério era o único que exercia a profissão de
sangrador, que, como vimos, de acordo com o dicionário de Bluteau, era sinônimo de
barbeiro, um dos ofícios que deveriam ser ensinados ao índios conforme o parágrafo catorze
da Direção.
A origem de Sutério também nos intrigou, pois o mesmo não declarou nome do seu
pai no campo da filiação, como a maioria dos oficiais o fez, e sim que era “filho da igreja”,
sentença que analisaremos mais a frente. Seguindo a trilha desses pequenos detalhes de sua
trajetória, sinais que nos atentam para interpretações que fogem do óbvio como sugere o
paradigma indiciário de Ginzburg98, nos atrevemos a supor que Sutério também se encaixaria
no perfil de um índio que passou pelo processo civilizatório durante sua infância na década de
1770 e 1780, quando as antigas aldeias e população indígenas já haviam sido assimilados ao
corpo do Império Português99. Por ora ficamos apenas na suposição, queremos apenas abrir o
leque de possibilidades que o termo pardo e as dinâmicas da sociedade e da escravidão podem
ter oferecido à população não branca e liberta ou livre em Penedo ou, de outra maneira,
perceber como as dinâmicas na Vila do Penedo atuaram nas formas como foram utilizados e
apropriados os termos que classificaram e hierarquizaram a população particularmente os
descendentes de africanos na sociedade colonial.
Aquele mesmo relatório de José César de Meneses de 1774, bem como o de seu
sucessor o governador D. Tomás José de Melo, coletou dados sobre a população geral da
Capitania e nos forneceram um dos poucos registros demográficos do período colonial.
Obedecendo Carta Régia de 07 de julho de 1774, os governadores solicitaram aos párocos de
cada vila e freguesia para que fizessem a relação de seus habitantes partindo de duas
categorias base: sexo e idade. O quadro 2 abaixo mostra os números e revela alguns traços da
composição social da população.
98
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e
sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-180.
99
No ano de 1859, o alemão Robert Avé-Lallemant, em viagens pelas províncias do Império do Brasil passou
pela Província de Alagoas e registrou algo no mínimo curioso sobre a população do vale do Rio São Miguel,
próximo à Poxim que era território da Vila do Penedo. Depois de declarar que havia se instalado em um lugar
isolado, diz que no mesmo lugar “alguns meio-índios se fixaram”. Apesar do intervalo de tempo distante,
podemos supor que além de serem possivelmente descendentes dos índios civilizados, possuem alguma mistura
com outras populações não brancas. In: AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias da Bahia,
Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo, 1980, p. 298.
45
QUADRO 2: População da Comarca de Alagoas nos anos de 1774 e 1791
FREGUESIAS/VILAS*
1774**
1791***
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Vila do Penedo
2420
4838
4089
3864
Total = 7.258 (±17,4%)
Total = 7.953 (±16,35%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Porto Calvo
2650
2352
3479
3147
Total = 5.002 (±12%)
Total = 6.626 (±13,62%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Santa Luzia do Norte
2548
2675
2692
2913
Total = 5.223 (±12,52%)
Total = 5.605 (±11,52%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Camaragibe
2922
2853
2635
2554
Total = 5.775 (±13,84%)
Total = 5.189 (±10,67%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Vila das Alagoas
2328
2688
2439
2425
5.016 (±12%)
Total = 4.864 (±10%)
Homens
Mulheres
Porto da Folha/Traipu
2031
1994
Total = 4.025 (±8,27%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
São Miguel das Alagoas
2159
2162
1628
2105
Total = 4.321 (±10,36%)
Total = 3.733 (±7,67%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
São Bento de Porto
Calvo
1711
1586
1809
1755
Total = 3.297 (±7,9%)
Total = 3.564 (±7,32%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Vila da Atalaia
1612
1631
Total = 3.010 (±7,22%)
Total = 3.243 (±6,67%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Povoação de Poxim
1591
1387
Total = 2.572 (±6,17%)
Total = 2.978 (±6,12%)
Homens
Mulheres
Palmeira de Índios
249
231
Total = 480 (0,98%)
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Porto Real
194
189
Total = 235 (±0,56%)
Total = 383 (±0,78%)
41.709
48.643
TOTAL
* Os nomes das cidades que compõem o quadro e que estavam dentro da jurisdição da
Comarca de Alagoas foram retirados de: CARVALHO, Cícero Péricles de. Formação
Histórica de Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2015, p. 314.
** MENEZES, Jozé Cezar de. Ideia da população da capitania de Pernambuco [...]. Rio
de Janeiro: Officinas Graphicas da Biblioteca Nacional, 1923.
*** AHU_ACL_CU_015, Cx. 178, D. 12472.
Primeiro, precisamos externar a infelicidade desses dados não nos informarem
especificidades a respeito das qualidades dos habitantes, quantos eram pretos, pardos, índios,
brancos, se eram crioulos ou africanos, se eram escravos, libertos ou livres100. Apenas
100
Esse mapa ainda é resquício da reforma militar proveniente da Carta Régia de 1766, na qual o Rei D. José
ordenou que fosse feita lista de todos os moradores da jurisdição da Capitania de Pernambuco “que se achassem
em estado de poder servir nas tropas auxiliares sem exceção de nobres, plebeus, brancos, mestiços, pretos,
46
algumas pessoas, e são casos bem pontuais, foram contabilizadas e registradas com
informações mais específicas: os que ultrapassavam a idade de 90 anos. Na Vila de Alagoas,
por exemplo, ao tempo do primeiro mapa (1774), existiam três pessoas com mais de noventa
anos de idade: Antonio Fernandes Crespo que tinha 100 anos, a parda Vitoriana Gomes de
102 anos e Páscoa das Flores de 100 anos101. Para a Vila do Penedo são contabilizadas quatro
pessoas nesta faixa de idade (três homens e uma mulher)102, mas sem registro de nome, idade
exata, qualidade ou condição. No mapa de 1791, elaborado por D. Tomás José de Melo,
também há informações sobre homens e mulheres com mais de 90 anos e, dos habitantes de
toda a Comarca de Alagoas dentro dessa faixa, há somente menção a Sebastião Pereira, pardo
de 110 anos e habitante de Camaragibe e Marcelina Dias, uma índia de 105 anos que vivia em
Santa Luzia do Norte103.
A Vila do Penedo, dentro do intervalo de quase vinte anos entre os dois mapas
populacionais, permaneceu com o maior número de indivíduos entre as vilas e freguesias de
Alagoas, com grande diferença da Vila de Porto Calvo, que possuía a segunda maior
concentração de habitantes, e da Vila de Alagoas, que era a sede da Comarca. Porém, isto não
foi uma constante. Em 1712 os oficiais da câmara da Vila de Alagoas enviaram uma carta ao
rei D. João V questionando a decisão do recém escolhido Ouvidor Geral da Comarca de
Alagoas, Dom José da Cunha Soares, de ter estabelecido residência na Vila do Rio de São
Francisco, o que, posteriormente, poderia ser um motivo para elevar a Vila do Penedo à
condição de sede da comarca. Para os oficiais da Vila de Alagoas, essa situação pareceu ser
algo inconcebível, pois Penedo não possuía uma estrutura político-administrativa necessária
para receber o ouvidor e era “muito pobre e assim não [tinha] mais que um Tabelião de notas
e Judicial e escrivão de órfãos, e escrivão da Câmara”104, enquanto que a sede da comarca
possuía “um escrivão da Câmara, um da almotaçaria e dois Escrivães do Judicial e notas e um
destes serve juntamente o de órfãos, e duas povoações muito populosas, uma do norte [Santa
Luzia do Norte] e outra a de São Miguel com seus vintenários”105. Alegavam também que tal
decisão era prejudicial aos moradores de Porto Calvo, por causa da distância que era de mais
de cinquenta léguas desta vila para a do Rio de São Francisco, enquanto que, da Vila de
ingênuos e libertos e a proporção dos que tiver cada uma das referidas classes”. In: AHU_ACL_CU_015, Cx.
103, D. 8006.
101
AHU_ACL_CU_015, Cx. 120, D. 9193, fl.5.
102
MENEZES, Jozé Cezar de. Op. Cit., p. 100-101.
103
AHU_ACL_CU_015, Cx. 178, D. 12472, fl. 5.
104
AHU_ACL_CU_004, Cx. 1, D. 10, fl. 3.
105
Ibid, fls. 2 e 3.
47
Alagoas para a de Porto Calvo a distância era de somente vinte e sete léguas. Finalmente, o
ouvidor tomou posse na câmara da Vila de Alagoas levando em consideração todos aqueles
motivos alegados pelos seus oficiais, entre eles a justificativa de que a Vila de Alagoas era a
mais populosa106. Algumas décadas depois não somente o número de habitantes da Vila do
Penedo superou o da sede da comarca, como também era maior que o da população de Porto
Calvo, o de Santa Luzia do Norte (da qual fazia parte a futura sede e capital Maceió) e de
Camaragibe.
Como dito, nos mapas populacionais coletados no século XVIII não há o registro das
especificidades dos indivíduos, nem das condições jurídicas o que seria esperado em se
tratando de uma sociedade escravista. Dos que viveram em Penedo, deduzimos algumas das
qualidades partindo da existência de instituições que carregavam, no nome, a sua composição:
a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, cujo perfil era de uma instituição
composta geralmente por homens e mulheres pretos e pretas, africanos e/ou crioulos, escravos
e/ou libertos; o Regimento de Milícia dos Homens Brancos107; a Irmandade de São Gonçalo
Garcia dos Homens Pardos e do Regimento de Milícias dos Homens Pardos. Além dos
indígenas já mencionados anteriormente. Assim, a partir dos números do quadro 2,
discutiremos algumas características das dinâmicas populacionais - tais como nascimentos,
envelhecimento da população, mortes, mobilidade espacial- e políticas da região, esta
representada pela criação de novos lugares e freguesias na Comarca de Alagoas.
A população de Penedo em fins do século XVIII contava com de pouco menos de
8000 habitantes, um número bastante significativo se compararmos, por exemplo, com a
população da Sé da Cidade de Olinda, vizinha à Vila do Recife (de grande circulação de
pessoas, intensa atividade comercial, um dos portos mais movimentados da colônia americana
de Portugal), e que possuía cerca de dois mil habitantes a mais que Penedo em 1774 108. Esse
número torna-se mais interessante se pensarmos que Penedo estava localizada distante do
mar, no caminho para os sertões. Aliás, a função de entreposto para viagens mais longas que
106
Ibid, fl. 2.
A Ordem Terceira de São Francisco, por ser uma das instituições de maior prestígio da sociedade colonial,
possivelmente contou com homens brancos da região no seu corpo de associados, porém não temos como
afirmar.
108
MENEZES, Jozé Cezar de. Op. Cit., pp. 98-101.
107
48
adentravam o rio São Francico certamente foi um fator que interferiu no fluxo populacional
de Penedo109.
Em 1774, os habitantes da Vila do Penedo estavam dispersos por quatro freguesias: 1)
São José, e Madre de Deus, Curato do Poxim, 2) Nossa Senhora do Rosário da Vila do
Penedo, principal núcleo urbano de toda a vila, 3) Nossa Senhora da Conceição do Porto Real
e 4) Nossa Senhora do Ó. Poxim, como ficou posteriormente conhecida, foi ereta à condição
de freguesia em 1718 quando foi desmembrada da freguesia de Nossa Senhora do Rosário da
Vila do Penedo. Fazia limites com a Freguesia de São Miguel da Senhora do Ó (pertencente à
Vila de Alagoas) e, ao sul, com a freguesia do Penedo e, em 1774, ano em que foi elaborado
um rol da desobriga, tinha uma igreja, duas capelas, dois engenhos, catorze fazendas, 472
fogos e 1682 pessoas o que dá cerca de 3 pessoas por domicílio110.
A Freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Vila do Penedo (o principal núcleo de
toda a região), foi ereta em 1636. Possuía sete engenhos e quatro enginhocas111, um convento
de São Francisco, três igrejas e a igreja matriz, construída em 1746, dez capelas, oitenta
fazendas, 1661 fogos e 5626 pessoas, que também revela uma proporção de três pessoas por
domicílio112. A Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Porto Real foi criada em 1773 e
era uma das vilas criadas após a Direção para os índios Crópotos e Kariris, na qual também
viviam alguns portugueses. De acordo com a desobriga feita em 1774, tinha uma igreja, 112
fogos e 256 pessoas.
A última freguesia, a de Nossa Senhora do Ó, segundo o Governador, foi
desmembrada da freguesia da Vila do Penedo em 1712 e em suas quarenta léguas de
comprimento e vinte de largura existiam uma igreja, cinco capelas e 114 fazendas, o que
justifica os seus habitantes viverem da criação de gado113. Sua população contabilizava 2.333
pessoas distribuídas em 689 fogos; porém tal número não está em conformidade com os dados
presentes no quadro da população geral (quadro 2). Na verdade, se somados, esses números
de habitantes das freguesias não coincide exatamente com o número do quadro 2, mas
109
Segundo Avé-Lallemant, já citado anteriormente, em meados do século XIX uma linha de vapores que saía da
Bahia colocava Penedo em rápida comunicação com Maceió e a Bahia, e em seguida diz de forma direta:
“Penedo é o entreposto de todo o baixo São Francisco”. In: AVÉ-LALLEMANT, Robert. Op. Cit., pp. 301-302.
110
MENEZES, Jozé Cezar de. Op. Cit., p. 60.
111
Acreditamos que esse termo tenha sido utilizado como uma forma de indicar que não eram engenhos de
grande produção. In: MENEZES, Jozé Cezar de. Op. Cit., p. 60.
112
MENEZES, Jozé Cezar de. Op. Cit., p. 60.
113
MENEZES, Jozé Cezar de. Op. Cit., p. 61.
49
trouxemos pois nos dão outras referências sobre a Vila a partir das quais podemos ter ideia
das dinâmicas locais114.
Retomando os números do quadro 1, podemos ver como a quantidade de mulheres e
de homens variou entre as localidades e entre as duas datas. Enquanto nas demais localidades
da Comarca de Alagoas a quantidade dos habitantes dos dois sexos estava relativamente
equilibrada, em Penedo há diferenças grandes entre os números nos dois anos. A população
do sexo feminino de Penedo passou por variações bastante expressivas, como pode ser visto
no quadro 3 abaixo.
QUADRO 3: População do sexo feminino por ano e faixa etária na Vila do
Penedo
Faixa etária
1774
1791
Até 07 anos
963
821
Dos 08 aos 14 anos
1456
313
Dos 15 aos 50 anos
1935
2516
De 51 para cima
484
214
TOTAIS
4838
3864
A quantidade total de mulheres que habitava a Vila do Penedo teve um decréscimo
intrigante nesse intervalo de dezessete anos. Em 1774, a quantidade de mulheres era quase
duas vezes maior que a de homens, já no ano do segundo mapa populacional, o contrário
acontece. Foram quase mil habitantes do sexo feminino a menos na região e vários podem ter
sido os fatores. O aumento das atividades no porto do Jaraguá em meados do século XVIII,
consequência do crescimento do comércio de madeira com a capitania da Bahia115 e também
com o Reino116, pode ter instigado o interesse das famílias no novo núcleo urbano que surgia
na região central da comarca. As más condições sanitárias da Vila do Penedo, causadas pelo
fenômeno natural das cheias do Rio São Francisco117, pela falta de cuidado da Coroa com a
saúde pública, que estão diretamente ligadas à tardia criação do primeiro hospital de caridade,
construído somente na primeira década do século XIX e que trataria das enfermidades da
população pobre da Comarca de Alagoas, talvez tenha ocasionado o eventual afastamento da
região ribeirinha ou a saída definitiva de famílias da vila.
A criação de novas povoações certamente foi um fator que interferiu nas dinâmicas
sociais e de povoamento da Comarca de Alagoas. Palmeira de Índios e Porto da Folha foram
114
Não sabemos se foi erro do Governador José Cesar de Meneses ou de quem transcreveu o documento.
AHU_ACL_CU_004, Cx. 2, D. 161.
116
AHU_ACL_CU_015, Cx. 136, D. 10163.
117
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 203.
115
50
criadas entre os governos de José César de Meneses e D. Tomás José de Melo e a segunda,
posteriormente chamada de Traipu, também ribeirinha e próxima à Vila do Penedo,
concentrou uma quantidade relativamente grande de habitantes em 1791 para uma vila recém
criada apresentando a sexta maior população da Comarca de Alagoas naquele ano. O processo
de povoamento de Porto da Folha muito possivelmente contou com habitantes que saíram da
Vila do Penedo, pois a distância entre as duas não passava de quinze léguas (mais ou menos
70km). Todos estes motivos interferiram nos modos de viver dos habitantes de Penedo: as
possibilidades de prosperidade financeira apresentada pela criação de novas povoações e
vilas, a falta de cuidados com a higiene pública podem ter sido razões do abandono, no
primeiro caso, e do óbito de muitas mulheres.
As mudanças nos números por faixa etária são igualmente curiosas. Apesar da
diminuição da quantidade de mulheres com mais de cinquenta anos, que é pequena nos dois
mapas, houve um envelhecimento da população do sexo feminino da Vila do Penedo na
segunda metade do século XVIII. As mulheres que estavam, em 1774, nas duas primeiras
faixas etárias (das recém-nascidas até as de 14 anos) muito provavelmente estão inclusas na
terceira faixa etária em 1791, afinal levando em conta o intervalo entre as datas de coleta a
pessoa mais nova em 1774 teria pelo menos 17 anos em 1791. O aumento do número de
moças com mais de catorze anos possivelmente foi acompanhado pelo crescimento dos
matrimônios e da constituição de famílias. Percebemos isto quando vemos que a quantidade
de meninas da primeira faixa não teve uma baixa tão impressionante. Desse modo, os
nascimentos de crianças continuaram ocorrendo na Vila do Penedo no último quartel do
século XVIII, o que evidencia a constituição de famílias, o crescimento (ainda que discreto)
da população entre 1774 e 1791 e confirma o status de vila mais habitada, apesar de não ter
sido a sede da Comarca118.
A população masculina também apresentou alterações nas quais podemos perceber
indícios das relações sociais cotidianas. Da mesma forma que aconteceu com as mulheres, a
quantidade de homens revela igualmente um envelhecimento acompanhado de uma grande
taxa de natalidade, conforme o quadro 4 abaixo.
118
Penedo, no século XIX, continuou com a maior quantidade de pessoas da Província de Alagoas. Segundo
Abelardo Duarte, em 1828, “possuía a Vila do Penedo, na época, uma população superior à de Maceió, pois
contava 20.423 habitantes. In: DUARTE, Abelardo. Notas sobre a população do termo da Vila do Penedo.
1828. Arquivo Público de Alagoas. Caixa 313.
51
QUADRO 4: População do sexo masculino por ano e faixa etária na Vila
do Penedo
Faixa etária
1774
1791
Até 07 anos
483
806
Dos 08 aos 14 anos
727
423
Dos 15 aos 50 anos
969
2703
De 51 para cima
241
157
TOTAIS
2420
4089
Comparando com o número de habitantes de 1774, a quantidade dos homens na faixa
etária entre os 15 e 50 anos mais do que dobrou em 1791, visto que também passou a incluir
os meninos que, antes, tinham até 14 anos (duas primeiras faixas etárias). Houve também um
aumento do número, para quase o dobro, de crianças com idade até 07 anos, certamente
resultado de nascimentos gerados da constituição ou chegada de famílias com crianças de
ambos os sexos (pois o mesmo se dá com a população da mesma faixa do sexo feminino) na
década de 1780, pois para existirem crianças com até 07 anos em 1791, elas definitivamente
nasceram, na Vila do Penedo ou fora dela, em 1784. Em relação ao total de habitantes,
diferente do número de mulheres, o de homens aumentou e, além disso, apresentou maior
quantidade comparado com as demais localidades da Comarca. Uma das justificativas para
esse aumento específico do número de homens pode ter sido o exercício militar, atividade
sempre imprescindível na colônia tanto para a proteção contra investidas estrangeiras como
para manter a ordem social e, assim, continuar consolidando o controle e domínio luso.
Falaremos das atividades dos regimentos de milícias na Vila do Penedo no terceiro capítulo,
no qual analisaremos os corpos de homens pardos e como essa instituição atuou nas trajetórias
desses homens. Por ora, nos interessa mais demonstrar, através de dados de outra
documentação e por outra perspectiva, o alcance da área de abrangência do principal núcleo
urbano do baixo Rio São Francisco.
Em 1647, o holandês Georg Marcgraf produziu um mapa de Pernambuco no qual
retratou a região sul da Comarca de Alagoas onde estava localizada a Vila do Penedo, como
segue a imagem abaixo.
52
IMAGEM 5 - Recorte de mapa holandês da região meridional de
Pernambuco (1647)*
Praefecturae Paranambucae pars
Meridionalis. Amsterdam: Tipografia Blaeu, 1647.
Fonte: MARCGRAF, Georg.
Em meados do século XVII já existiam algumas povoações (indicadas por setas no
mapa acima) ao redor do principal núcleo da Comarca de Alagoas, a Vila do Penedo. Na
segunda década do século XIX, quando foi feita a lista dos oficiais do regimento de milícias
dos homens pardos da Vila do Penedo, dois dos oito dados coletados eram os locais de
nascimento e de moradia que indicam, antes de tudo a circulação de pessoas pelo território.
No quadro 5, abaixo, estão as localidades de onde os pardos saíram e onde residiam,
lembrando que os indivíduos pardo compunham somente uma parcela do total da população
de Penedo que, certamente contava com mais de oito mil pessoas na segunda metade do
século XIX.
QUADRO 5: Locais de nascimento e moradia dos oficiais do Regimento de Milícia dos
Homens Pardos de Penedo e Poxim (1819)
LOCAIS DE NASCIMENTO
Alagoas
Goiazes
Paraíba
Recife
Anadia
Ipojuca
Penedo
São Miguel
Bahia
Ilha do Príncipe
Porto Calvo
Sergipe
Camamú
Laranjeiras
Porto da Folha
Várzea
Cotinguiba
Minas
Poxim
Vila Nova
Do Norte
Olinda
Propriá
LOCAIS DE MORADIA*
Anadia
Coroa dos Patos
Limoeiro
Pontes
Angico
Coroas
Malhadas
Porto Velho
53
Araçá
Cortada
Maratuba de Baixo
Raposo
Bairro Vermelho
Coruripe
Maratuba/Marituba
Remendo
Bananeiras
Curral de Cima
Massangano
Riacho Seco
Banguela
Curral do Meio
Mata Seca
Rodeiados
Barra da Oitiuba
Diserto
Mato Grosso
Rumeiro
Barra das
Domiciano
Miahi
Saco do Morro
Laranjeiras
Barreiras
Fazenda Velha
Mucambo
Saco dos Espinhos
Batel
Francisco (?)
Oitiuba
Sapé
Bebedor
Frexeiras
Pastos de Cima
Sítio do Jacinto
Boasica
Fundão
Peba
Tabocas
Cabeção
Funil
Penedo
Taboleiro
Cabo do Pasto
Gondim
Perucaba
Tapera
Cacimbas
Grabossú
Piaçabuçu
Taquara
Cajueiro
Guargina
Piauhí
Taquarí
Camaçary
Guitiba
Piauhí dos Meireles
Telha
Campina
Ilha da Pereira
Pintas
Timbó
Campo Redondo
Ilha do Carmo
Pioré
Timucú
Canavieiras
Ilha do Gregório
Piranga
Vareda
Capella
Ilha Grande
Pitombeira
Várzea Grande
Caramujeiro
Lagoa do Pau
Poção
Carnaúba/Carnaíbas
Lagoa dos Mandins (?)
Ponta da Ilha
Cerquinha
Lagoinha
Ponta das Pedras
Coqueiro
Laranjeiras
Pontal
Fonte: Relação dos oficiais existentes no Regimento de milícias dos Homens Pardo da Comarca
das Alagoas. In: Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de
Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
Os locais de nascimento demonstram localidades mais abrangentes como vilas e
mesmo províncias, nos casos da Bahia, de Sergipe e da Paraíba. A saída de homens pardos
destas regiões e de locais como a Vila do Recife, de Olinda, da Vila de Alagoas, Porto Calvo,
Alagoas do Norte, São Miguel pode ter sido ocasionada, sim, pelas oportunidades que o
regimento de milícia dos pardos de Penedo proporcionava, e veremos isto mais a frente, mas a
necessidade do sustento provavelmente foi uma prioridade. Todos os oficiais que haviam
nascido em regiões que não constavam nos locais de moradia e que sabemos ser localidades
de outras jurisdições possuíam outras profissões, somente dois viviam de soldo. Isto é, não foi
somente as possibilidades de ascensão social que a instituição da milícia proporcionava que
atraiu e manteve os homens e suas famílias na Vila do Penedo, a subsistência sem dúvida
exerceu papel importante, se não definitivo, nas escolhas das famílias em residirem na Vila do
Penedo ou em seus arredores.
Os locais de moradia também são reveladores, porém de forma mais detalhada, da
mobilidade espacial na Comarca/Província de Alagoas bem como da ocupação do território e
54
de alguns dados da vida econômica da região. Foram 96 localidades diferentes de moradia 119
que eram habitados, em 1819, por homens tanto casados como solteiros, de idade que ia dos
08 anos (o porta-bandeira da 2ª Companhia) aos 67 (o quartel-mestre do Estado Maior) e em
sua grande maioria, 67,97%, vivia da profissão de lavrador. Conforme Corcino Santos, em
pequeno ensaio, Penedo não seguiu a tendência geral de privilegiar a monocultura do açúcar,
chegou a ter alguns engenhos no século XVII, mas no XVIII só possuía sete moentes e três de
fogo morto. Diferente das regiões do Rio de Janeiro, Bahia e demais vilas de Pernambuco, “a
região do Penedo, administrativamente fizesse parte da Capitania de Pernambuco, não seguiu
a tendência geral”120 e afirma:
Ela [a cidade de Penedo] possuiu características próprias do ponto de vista do
ecossistema, que desestimularam a seus habitantes o comprometimento com a
cultura da cana de açúcar voltada para atender à demanda do comércio internacional.
Assim, quando na década de 1770 se verifica uma intensificação da atividade
açucareira na Capitania de Pernambuco, os penedenses se voltam para a criação de
gado, o cultivo do arroz, mandioca, tabaco, algodão, etc. Com exceção do tabaco e
do algodão que atendiam também ao mercado externo, o grosso da produção
penedense se destina ao mercado interno121.
E, de fato, diferente das demais vilas da Comarca de Alagoas, Penedo caracterizou-se
por uma economia de serviços e produtos diversos que pareciam atender mais às demandas
internas do cotidiano do que a um mercado internacional que exigia grandes plantações e
grandes investidores e investimentos. Existiram sim fazendas, como visto anteriormente, e
engenhos122 naquela região, para as quais talvez muitos dos homens pardos provavelmente
venderam sua mão de obra e serviços, mas a grande quantidade de lavradores entre eles e os
mais de noventa locais de moradia diferentes nos fazem acreditar na prática de dinâmicas
econômicas que produziam para a subsistência e abastecimento internos, como assevera
Corcino Santos. A documentação produzida pelos holandeses, ainda no século XVII, já
atestava a diversidade de gêneros produzidos na região sanfranciscana. O holandês Adriaen
Verdonk123 relata, em 1630, que:
119
Já contabilizadas ou dispensadas as possíveis correspondências ou diferenças de escrita de uma mesma
localidade. / Nos anexos, colocamos um mapa da divisão política atual apontando a localização de alguns locais
de nascimento e moradia que conseguimos mapear.
120
SANTOS, Corcino Medeiros dos. Três ensaios de história colonial. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2007, p. 180.
121
Idem.
122
Moacir Medeiros de Sant’Ana, em sua Contribuição à História do Açúcar em Alagoas, lista todos os
engenhos que existiam em Penedo no ano de 1849 totalizando um número de 20 engenhos no termo da vila. In:
SANT’ANA, Moacir Medeiros de. Contribuição à História do Açúcar em Alagoas. Recife: Instituto do
Açúcar e do Álcool, 1970, pp. 250-251..
123
“Nascido no Brabante cerca de 1589, Verdonk viveu por algum tempo em Lisboa (por volta de 1611),
passando-se a Pernambuco onde estava pelo ano de 1618. Em 1630 tendo servido por algum tempo aos
55
Nessa região, os poucos habitantes, quase todos pastores, vivem unicamente de bois
e vacas, para a criação dos quais a terra se presta muito, havendo ali grande
quantidade desse animais; fazem também ali bastante farinha, pescam muito peixe e
plantam também muito fumo; encontra-se igualmente algum pau-brasil, mas pouco
açúcar e todas essas mercadorias são trazidas anualmente de uma vez para
Pernambuco; à beira-mar tem se achado frequentemente muito âmbar124.
Outro holandês, diretor da Câmara da Zelândia da Companhia das Índias Ocidentais,
Adriaen van Bullestrate125, em relatório de viagem de uma visita à região do rio São Francisco
feita em fins de 1641 e início de 1642, afirma ter assistido à captura de gado pelo sesmeiro
Belquior Álvares e que, tendo falado com os portugueses moradores de um morro da região,
estes disseram viver da criação de gado e outras atividades. Criação de bois e vacas, produção
de farinha (que demanda plantação de mandioca ou milho), plantação de fumo, pesca, trato da
madeira (pau-brasil), mineração (âmbar); os processos de todos esses produtos, desde a
plantação até a etapa final de comercialização, demandaram profissionais de ofícios diversos e
não somente de lavradores.
A variedade de ofícios e também a distribuição desses profissionais pelo território,
conforme o quadro 6 abaixo, são elementos que nos fazem acreditar que as atividades
praticadas pelos pardos são relativas a trabalhos voltados para a vida cotidiana e às
necessidades mais urgentes do dia a dia. Além disso, nos mostram que cada localidade
concentrava as atividades nas quais sua principal fonte de economia se sustentava, à exceção
dos principais núcleos do sul da Comarca, Coruripe, Piaçabuçu e Penedo, que possuíam
atividades diversas praticadas por esses homens pardos, demonstrando, ainda que de forma
implícita, uma dinâmica maior de pessoas e serviços.
QUADRO 6: Profissões por locais de moradia dos oficiais do
Regimento de Milícia dos Homens Pardos de Penedo e Poxim
(1819)
Lavrador – Piaçabuçu, Peba,
Pedreiro – Penedo
Penedo, Coruripe
Alfaiate – Penedo, Coruripe,
Talhador – Ilha Grande
Piaçabuçu
Sapateiro – Penedo, Piaçabuçu,
Oleiro – Penedo, Bairro
Coruripe
Vermelho
invasores, na verdade conservou-se fiel aos luso-brasileiros mas, descobertas suas ligações com estes, foi
justiçado pelos holandeses em 1631”. In: MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do
Brasil holandês: a economia açucareira. – [2. ed.] – Recife: CEPE,2004, p. 33.
124
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. Cit., p. 35.
125
“Adriaen van Bullestrate era Diretor da Câmara da Zelândia da Companhia das Índias Ocidentais em 6 de
abril de 1640, quando os Estados Gerais o nomearam Alto e Secreto Conselheiro no Brasil. Chegou ao Recife
em 20 de dezembro de 1640 e tomou posse do seu cargo em 22 seguinte. Em maio de 1644, com o regresso do
Conde de Nassau aos Países Baixos, o Alto e Secreto Conselho, de que ele fazia parte, passou a órgão supremo
da administração do Brasil holandês”. In: MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do
Brasil holandês: a administração da conquista. – [2. ed.] – Recife: CEPE, 2004, pp. 144-145.
56
Carapina – Penedo, Coruripe
Ferreiro – Penedo, Coruripe,
Banguela, Bairro Vermelho
Pescador – Batel, Peba, Barreiras
Vive de soldo – Penedo, Coruripe
Músico – Penedo
Vaqueiro – Boasica, Angico
Tanoeiro – Barreiras
Serrador – Coruripe
Inquiridor – Penedo
Fazendas de gado –
Limoeiro
Ourives - Penedo
Marceneiro – Penedo
Negociante – Penedo, Coruripe
Sangrador – Penedo
Pintor – Penedo
Vive de agência - Penedo
Carpinteiro – Penedo, Coruripe
Fonte: Relação dos oficiais existentes no Regimento de milícias dos
Homens Pardo da Comarca das Alagoas. In: Ofícios do
comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de
Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa
1511.
A grande maioria dos profissionais acima listados morava na Vila do Penedo (e suas
freguesias), uma vez que estavam alistados na milícia e o regimento se reunia para o serviço
na própria vila, porém alguns deles nasceram em outras localidades (quadro 5), inclusive na
Capitania de Sergipe, com a qual o contato sem dúvida foi cotidiano, particularmente com a
Vila Nova. Contudo, a relação com os habitantes do outro lado do rio São Francisco não foi
sempre tranquila chegando ao ponto de as autoridades de Pernambuco e Sergipe terem
entrado um conflito desencadeado pelo interesse nas ilhas de Paraúna do Brejo Grande e
adjacentes. Em 1733, o governador da Capitania de Pernambuco Duarte Sodré Pereira Tibão
enviou uma carta ao rei D. João IV para relatar uma querela causada pela criação de uma nova
vila em Sergipe no ano anterior126. De acordo com as palavras do governador, quando
Cypriano José da Rocha, ouvidor da Comarca de Sergipe, criou a Vila Nova, “nomeou por
termo umas ilhas que estão povoadas no meio do grande Rio São Francisco que sempre foram
do termo da dita Vila do Penedo” 127 e
obrigou por força a que os barcos que vinham despachar a esta vila de tempo
imemorial que pagavam uma porção para as despesas do conselho; o passem a
fazer dali em diante a nova vila que fica de fronte da do Penedo, prejudicando
também a cobrança do donativo real pelo descaminho que _________ os gêneros
em que está imposto, e indo embarcá-los à dita nova vila128.
O governador Duarte Sodré relatou que o Ouvidor de Sergipe chegou a realizar
algumas prisões para evitar motins, pois, conforme a carta, os moradores das ilhas não
queriam ser subordinados à Vila Nova. Em 1755, a situação ainda não havia sido resolvida,
126
Idem.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 3988.
128
Idem.
127
57
por isso uma nova carta foi enviada ao rei129 D. José desta vez pelos oficiais da câmara da
Vila do Penedo que pediam a restituição das ilhas alegando continuar sofrendo prejuízos,
primeiro porque eram seus oficiais que faziam as diligências, ou seja, que atuavam jurídica e
militarmente na região. Em segundo lugar porque os impostos dos produtos que saíam de lá
sempre foram tributos que sustentavam a Vila do Penedo. A criação de Vila Nova colocou em
xeque o escoamento dos produtos produzidos nas ilhas, a economia das populações que os
produziam, o abastecimento das vilas do Penedo e na Vila Nova, a coleta de impostos nas
duas vilas e, consequentemente, pagamento dos tributos da Coroa. Foi um verdadeiro entrave
no cotidiano das duas localidades. Além disso, segundo a carta dos oficiais, os moradores de
Vila Nova, claramente os que eram a favor da nova conformação territorial, passaram a
perturbar a paz fazendo com que os povos vivessem sem sossego “quando deviam praticar
com esta jurisdição e vila [de Penedo] como vizinha, uma boa paz e tranquilidade”130. Por um
tempo houve paz entre as duas vilas, até que o crescimento das regiões as colocou em pólos
opostos e em disputa pela garantia de mais terras e, consequentemente, mais impostos.
Numa tentativa de apelar para uma decisão favorável, os oficiais da Câmara de
Penedo, ainda na carta de 1755, não somente questionaram a perda das ilhas para a nova vila,
mas o fizeram atingindo a imagem do rei alegando que “só à Vossa Majestade era permitido
dar ou tirar limites de jurisdição”131, insinuando assim que em tal disputa os oficiais e as
autoridades de Sergipe tiveram mais autoridade do que a própria Coroa Portuguesa.
Aparentemente tais súplicas e apelos parecem ter surtido um efeito positivo para Penedo, pois
em 1774 o governador José César de Meneses, no relatório “Idea da população da Capitania
de Pernambuco e das suas anexas [...]”132 declara que a Vila do Penedo
contém em si no espaço da dita Villa para cima de trinta ilhas, sendo as mais delas
habitadas de muitos moradores, por serem terras fecundas para todos os frutos, e
muito principalmente a chamada do Brejo Grande [...] dentro da qual tem três
Engenhos de açúcar e muita abundância de frutos e árvores de espinhos; a maior
delas chamada Ilha Grande, tem três léguas de comprido e quase uma e meia de
largo, dentro da qual se acham cinco fazendas de gado vacum e cavalar, com
capacidade de se fabricarem nela alguns engenhos133.
129
AHU_ACL_CU_004, Cx. 2, D. 148.
Idem.
131
Idem.
132
MENEZES, Jozé Cezar de. Ideia da população da capitania de Pernambuco [...]. Rio de Janeiro: Officinas
Graphicas
da
Biblioteca
Nacional,
1923.
Disponível
em:
<
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais_040_1918.pdf>.
133
Ibid, pp. 59-60.
130
58
A propósito, em 1819 alguns dos soldados alistados no regimento de milícias dos
homens pardos da Vila do Penedo declararam residir em algumas ilhas do rio São Francisco,
entre elas a Ilha Grande, uma das ilhas disputadas algumas décadas antes entre as duas
capitanias. Em meados do século XIX, segundo o viajante alemão Robert Avé-Lallemant,
Vila Nova “nem de longe se pode comparar com a cidade [de Penedo] da Província de
Alagoas, por muito que deseje lhe fazer concorrência”134.Não sabemos exatamente quando o
conflito acabou, se é que acabou, sabemos sim que, apesar desse episódio, os contatos entre as
duas vilas não cessaram.
Agora que compreendemos um pouco do universo político, social e econômico em que
estavam inseridos os homens pardos da Comarca de Alagoas, nos debruçaremos sobre suas
estratégias de sobrevivência, de distinção, mobilidade e ascensão social. Duas instituições
foram imprescindíveis nesse processo: a irmandade de São Gonçalo Garcia e o Regimento de
Milícia dos Homens Pardos. Esses dois espaços foram os lugares mais comuns de
sociabilidades entre os descendentes de africanos, pois proporcionavam não apenas a
distinção social, mas uma real função e participação no projeto colonizador e de expansão do
império da Coroa Portuguesa. Fazer parte de uma irmandade significava estar inserido em
uma rede de sociabilidade e solidariedade composta geralmente por pessoas com perfis
semelhantes e também significava estar envolvido com a vida religiosa e cotidiana da
sociedade colonial. A realização de missas, da festa anual para o santo de devoção, as esmolas
recolhidas para a manutenção da igreja e eventuais necessidades, as procissões são exemplos
da religiosidade católica, obviamente, mas também de formas de inserção social. Veremos, a
seguir, os significados e a importância de instituições como essas nas trajetórias de homens e
mulheres descendentes de africanos, sobretudo pardos e pardas que viveram na Vila do
Penedo.
134
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Op. Cit., p. 302
59
3. RELIGIOSIDADE, IRMANDADES E DISTINÇÃO SOCIAL
Um dos produtos do processo de mundialização das instituições do Império Ibérico e
da cultura europeia ocidental foi a vida religiosa calcada nas práticas do cristianismo
católico135. No ultramar, a precária assistência religiosa, fruto da negligência da Igreja de
Roma136 para com as possessões coloniais de Portugal, foi remediada com a iniciativa da
Coroa Portuguesa em tomar a frente da missão evangelizadora através do Padroado Régio,
“uma combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa de
Portugal na qualidade de patrocinadora das missões católicas e dos estabelecimentos
eclesiásticos missioneiros”137. Essa negligência é reconhecida pelo clero do Brasil em 1707,
quando D. Sebastião Monteiro da Vide e os demais componentes do primeiro sínodo
diocesano concluíram a redação das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e
relataram que a forma como estavam sendo administrados os assuntos da religião católica não
estavam sendo efetivas, pois as Constituições de Lisboa não acomodavam a diversidade da
colônia, especialmente em relação ao perfil da população e aos traços culturais da sociedade,
resultando disso a ocorrência de alguns abusos do culto divino, da administração da justiça,
vida e costume dos súditos138.
A dificuldade do clero139 em alcançar mais fiéis e súditos para o projeto de expansão e
consolidação do Império Português foi um dos principais motivos para a Coroa incentivar e
135
Não vamos abordar aqui as práticas das religiões indígenas e africanas que passaram por processos de
omissão e anulação por terem sido consideradas como produtos de sociedades inferiores pelos “invasores
ocidentais [que geralmente qualificavam] as culturas asiáticas como mais evoluídas, embora inferiores à do
Ocidente cristão; em segundo lugar, classificavam as grandes civilizações do continente americano (astecas incas
e maias); em último, vinham os negros africanos junto com os índios caraíbas, tupis e outros “selvagens”
indomados do Novo Mundo”. In: BOXER, Charles R. Igreja Militante e a expansão ibérica: 1440-1770. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 62.
136
À época, em fins do século XV e no século XVI, segundo Charles Boxer, mais preocupada em assuntos
terrenos do que espirituais e seus papas preocupados em engrandecer suas famílias, com a política europeia, com
a ameaça dos turcos no Mediterrâneo e nos Bálcãs e com a ascensão do protestantismo na Europa. In: BOXER,
Charles R. Op. Cit., p. 99.
137
BOXER, Charles R. Op. Cit., p. 98.
138
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2011.
139
Segundo Charles Boxer, os representantes da Igreja de Roma do período da expansão ultramarina se
preocuparam pouco com a evangelização dos novos territórios. Assim, de acordo com o autor: “os monarcas
ibéricos foram autorizados pelo papa a construir e permitir a construção de todas as catedrais, igrejas, conventos
e ermidas no âmbito de seus respectivos padroados, a apresentar a Santa Sé uma pequena lista de candidatos
adequados a todos os arcebispados, bispados e abadias, bem como encaminhar os postulantes a dignidades e
cargos eclesiásticos de categoria inferior aos bispos pertinentes, a administrar as jurisdições e receitas
eclesiásticas, e vetar bulas e breves papais que não fossem primeiramente autorizadas pela chancelaria das
respectivas Coroas. [...] O Estado monárquico, além disso, ganhou o direito de transferir, promover ou afastar os
clérigos, de determinar os limites de suas jurisdições; de arbitrar os conflitos de jurisdição que porventura
60
chegar a patrocinar a construção de igrejas e a criação de irmandades pelos próprios colonos.
A gênese das irmandades que se multiplicaram na América Portuguesa no século XVIII
remete ao período medieval, quando, a partir do século XII europeu, começaram a florescer as
guildas de artesãos, corporações de ofício e confrarias. Estas instituições eram associações
compostas geralmente pelos indivíduos mais abastados de uma localidade ou, no caso das
guildas e corporações de ofício, eram compostas especificamente por artesãos ou determinado
grupo de pessoas que exercia o mesmo ofício. O auxílio mútuo e o exercício da caridade cristã
eram os principais motivadores do socorro econômico, social e espiritual/religioso prestado
aos membros associados ou a toda população. Esse movimento se deu em resposta à crescente
urbanização e à situação socioeconômica das vítimas da fome e da peste que abandonavam o
campo e migravam para as cidades140.
Dessa forma, as irmandades se tornaram os lugares nos quais os leigos puderam
proporcionar alguma prática religiosa e, consequentemente, a evangelização e cristianização
da população das colônias, além de assegurar alguma assistência material e financeira. Esta
instituição acabou se tornando a forma predominante de organização social e de expressão
religiosa que se espalhou pela América, junto com as confrarias e Ordens Terceiras, e marcou
a vida social na colônia. Os principais responsáveis pela instituição das irmandades na
sociedade colonial e tudo o que elas proporcionaram foram os próprios fieis, que organizaram
festas, procissões e várias manifestações cheias da pompa característica da religiosidade cristã
do período em foco movimentando a vida cotidiana.
Se na sociedade medieval essas associações eram geralmente lugares de assistência
financeira e espiritual, na sociedade moderna escravista com uma organização hierárquica
fundamentada no modo como se organizava a sociedade europeia, essas instituições, mais do
que lugares de auxílio espiritual e financeiro, se tornaram espaços que proporcionavam
mobilidade, distinção e inserção social. Estar em uma irmandade, fazer parte de determinado
grupo organizado em torno da devoção a algum santo era indicativo da posição social que os
indivíduos ocupavam, pois ser filiado a uma instituição desse tipo exigia mais do que a
participação em festas, procissões e demonstrações externas da fé que aconteciam em
momentos específicos ao longo do ano. Existia outro tipo de entrega à organização das
ocorressem. [...] Em outras palavras, a Igreja colonial estava sob o controle direto e imediato da Coroa, exceto
nas questões de doutrina e dogma.” In: BOXER, Charles. Op. Cit., p. 99-100.
140
RUSSELL-WOOD, A. J. R.. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005, p. 191.
61
irmandades, uma entrega que era cotidiana e acontecia portas a dentro das igrejas como as
reuniões, as eleições e o exercício de cargos administrativos de mesa ou de nobreza (como os
de reis, típicos das irmandades compostas por africanos), o pagamento das taxas de
mensalidade ou anuidade, a arrecadação de esmolas, tudo isso geralmente justificado pela
busca do crescimento da instituição e que acontecia no correr dos dias, semanas e meses.
Para a população negra, independente de sua condição, as irmandades também
respondiam a algumas questões específicas: educação religiosa ou socorro espiritual,
assistência médica, morte digna e busca de identidade141. Algumas ainda protegiam os irmãos
contra maus tratos de seus senhores, ajudavam com a compra da alforria, garantiam enterros
para os escravos, cujos corpos geralmente eram abandonados nas portas das igrejas ou nas
praias para que fossem levados pela maré142. Dessa forma, junto à demonstração da
religiosidade e da fé, a participação nas irmandades conferiu, aos seus associados,
possibilidades de mobilidade social. Dependendo da região era também uma forma de
ascensão na hierarquia social e também revelava posições de status e autonomia –
demonstradas na escolha voluntária de uma devoção, no pagamento das taxas, na participação
nos eventos da irmandade - e de relativa independência, pois como dissemos, a prática do
catolicismo na América portuguesa dependeu muito mais da devoção dos fieis e súditos da
coroa do que de algum interesse de Roma.
O funcionamento de uma irmandade, sua organização e dinâmica internas, a
composição do corpo de irmãos e o perfil destes, tudo isto são elementos que nos mostram
como a questão da distinção era algo sempre presente na colônia. As irmandades, além de
agregar valores simbólicos (como a prática da religiosidade e da caridade cristã, a organização
e participação nas festas e procissões) às trajetórias de mulheres e homens, reproduziam esses
valores com o objetivo de alcançar distinção social. Assim, a organização interna de uma
irmandade diz muito do que os componentes esperavam alcançar. Os compromissos são os
documentos que nos mostram as intenções primeiras tanto da instituição como de quem a
compunha, pois era comum que esses estatutos sofressem algum tipo de alteração no decorrer
do tempo de existência e atividade das irmandades. Não existia uma norma fixa geral para a
composição dessas associações, a diversidade de seus membros e seu funcionamento variou
141
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. Cit., p. 193.
QUINTÃO, Antônia Aparecida. As irmandades de pretos e pardos em Pernambuco e no Rio de Janeiro na
época de D. José I: um estudo comparativo. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e
escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 164.
142
62
de acordo com as dinâmicas de cada região em que se fizeram presentes. Em relação à
composição das irmandades na Capitania de Minas, por exemplo, Célia Borges verificou
grande diversidade de devoções e grupos distintos uns dos outros:
Pessoas de todos os grupos sociais estavam representadas nas 322 organizações
religiosas de leigos que se criaram na Capitania de Minas. Os brancos, as classes
dirigentes e os reinóis congregavam-se nas Confrarias do Santíssimo Sacramento,
Nossa Senhora da Conceição, São Miguel e Almas, Bom Jesus dos Passos e Almas
Santas; os donos de lavras, ricos comerciantes e funcionários da Coroa nas Ordens
Terceiras de São Francisco e do Carmo; os escravos africanos, nas Irmandades do
Rosário, São Benedito e Santa Efigênia; os escravos crioulos, forros e mulatos na
143
Irmandade das Mercês; e os pardos na Irmandade de São Gonçalo Garcia .
Na verdade, na maioria das vezes as devoções já eram indicativas do perfil dos fieis
que faziam parte das irmandades. Tanto no exemplo da autora para Minas Gerais como para
várias outras localidades da América Portuguesa, a distinção estava presente já na devoção a
que a irmandade se dedicava e, levando em consideração estarmos analisando as dinâmicas de
um domínio de escalas continentais como é o território do Brasil, claro que a diversidade dos
perfis dos indivíduos dependeu muito das dinâmicas de cada região. As Ordens Terceiras de
São Francisco e do Carmo e as Irmandades do Santíssimo Sacramento, por exemplo, foram
associações que regularmente congregaram os “homens bons” da sociedade, indivíduos
comumente considerados brancos, de grande cabedal financeiro e que geralmente também
compuseram as elites políticas dos locais em que estavam inseridos. No Rio de Janeiro,
capital do Estado do Brasil, praça que possuía a mais intensa atividade do sistema mercantil
do Império Português onde homens de negócios e comerciantes chegaram a compor grupos de
elite144, a composição da irmandade do Santíssimo Sacramento certamente agregou sujeitos
com esse perfil145. De forma diferente se deu a composição em Porto Calvo, na Comarca de
Alagoas, região de intensa atividade açucareira na qual o perfil dos fieis que compuseram a
Irmandade do Santíssimo Sacramento englobava os “proprietários de engenho e mais
moradores da freguesia de Camaragipe”146. Apesar de diferenças como essas, típicas de um
143
BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário: devoção solidariedade em Minas
Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005, p. 59.
144
Ver: SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Os homens de negócio do Rio de Janeiro e sua atuação nos quadros
do Império português (1701-1750). In: BICALHO, Maria Fernanda Baptista; FRAGOSO, João; GOUVÊA,
Maria de Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVIXVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 73-106.
145
No site do Arquivo Histórico Ultramarino há o registro do compromisso reformado da Irmandade do
Santíssimo da Catedral da Cidade do Rio de Janeiro (AHU_CU_COMPROMISSOS DO BRASIL, Cód. 1954),
mas para consulta somente em Portugal ou na Biblioteca Nacional. Igualmente se dá com o compromisso da
Irmandade do Santíssimo Sacramento de Porto Calvo (AHU_CU_COMPROMISSOS DO BRASIL, Cód. 1539).
146
AHU_ACL_CU_004, Cx. 4, D. 319.
63
espaço de dimensões continentais como é o Brasil, algumas semelhanças também foram
percebidas.
No capítulo anterior vimos que os irmãos da Ordem Terceira da Vila do Penedo
envolveram-se, em 1774, numa disputa com os pardos da Irmandade de São Gonçalo Garcia.
Desse episódio, destacamos o uso da alcunha de mulatos para referir-se aos pardos, um termo
depreciativo que revelava um traço dos membros da Ordem Terceira: a posição hierárquica
não apenas distinta como também superior. Gustavo Barbosa, cuja dissertação trata das
Ordens Terceiras em Minas Gerais, a Ordem Terceira de Mariana - da qual faz análise -, por
ter elaborado seus critérios de organização interna de forma mais rebuscada levando em conta
as noções de pureza de sangue e hierarquias, atraiu os setores sociais que aspiravam à
nobilitação e à ascensão nas hierarquias locais. Assim, afirma que a Ordem Terceira de São
Francisco da cidade de Mariana, para além das atividades religiosas, configurou-se como um
espaço de poder e distinção na sociedade mineira147. O acontecido na Vila do Penedo não só
expôs a composição das hierarquias locais e as dinâmicas das relações sociais na vila, mas
confirma a existência de padrões de admissão e composição nas organizações religiosas e em
suas congêneres de outras vilas. Se o processo de admissão dos confrades da Ordem Terceira
em Minas Gerais distinguiu os componentes dos demais indivíduos da sociedade mineira,
conforme Gustavo Barbosa, não temos razão para acreditar que em Penedo tenha acontecido
de forma diferente, haja vista a forma como trataram um grupo que consideravam inferiores
motivados pela disputa aparentemente ordinária de um objeto.
Os africanos e seus descendentes também integraram irmandades e foram
protagonistas da vida religiosa da colônia. Suas presenças foram mais comuns nas irmandades
dedicadas a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia, Santo Elesbão,
devoções negras que, segundo Larissa Viana, visava atingir também os libertos e livres de
cor148. Assim, até que os processos de mobilidade social tornasse os pardos um grupo de
indivíduos distintos dos demais, não tão próximo da ascendência africana que de fato
possuíam, especialmente da experiência do cativeiro, as irmandades instituídas em torno de
devoções negras como as mencionadas acima foram o espaço que abrigou mulheres e homens
pardos que já buscavam alguma diferenciação social.
147
BARBOSA, Gustavo Henrique. Associações religiosas de leigos e sociedade em Minas colonial: os
membros da Ordem terceira de São Francisco de Mariana (1758-1808). Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Federal de Minas Gerais. FAFICH. Programa de Pós-Graduação em História. Belo Horizonte,
2010, pp. 58-59. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/VGRO-8BJRWB>.
148
VIANA, Larissa. Op. Cit., p. 105.
64
3.1 Irmandades e devoção negra no Brasil colonial
As irmandades leigas foram um dos lugares onde os africanos e seus descendentes
puderam buscar e alcançar alguma mobilidade na hierarquia e alguma distinção na sociedade
escravista. As devoções construídas por e para eles e as dinâmicas das irmandades que
compuseram nos ajudam a compreender a participação dessa instituição em seus processos de
distinção social. O caminho percorrido para alcançar alguma mobilidade, principalmente uma
manutenção da liberdade no caso dos pardos, envolveu também o comprometimento e
dedicação ao culto de santos, a participação em atividades como festas, procissões, missas, a
mendicância, a interação com outros indivíduos formando redes de sociabilidades e
solidariedade que aconteciam cotidianamente não só na América portuguesa, mas em outras
possessões ibéricas no ultramar e na própria metrópole.
Segundo Mariza de Carvalho Soares, no século XV na Península Ibérica já existia
irmandade composta por pretos. A primeira de que se tem notícia é a de Nossa Senhora do
Rosário do Mosteiro de São Domingos, criada em 1460149. O culto ao Rosário foi a principal
devoção praticada por africanos na América, mas se fez presente também na África Central,
particularmente no Congo, um dos principais portos de onde saíram escravos em direção ao
Brasil, e está diretamente ligada ao projeto de expansão do catolicismo naquela região. A
propósito, a religião católica nos domínios portugueses da África foi um dos mediadores do
contato entre portugueses e africanos, uma estratégia que facilitou a aproximação entre esses
dois povos e garantiu as relações comerciais, entre as quais o comércio de escravos. Também
pode ser vista como um elemento que facilitou a evangelização dos africanos que
desembarcaram nos portos da América portuguesa para serem inseridos na sociedade colonial.
Na Comarca de Alagoas, os pretos devotos do Rosário praticaram sua religiosidade na
Freguesia do Senhor Bom Jesus de Camaragibe na Vila de Porto Calvo; na Freguesia da Vila
das Alagoas da Senhora da Conceição, Freguesia de São Miguel da Senhora do Ó e Freguesia
da Povoação da Alagoa do Norte da Senhora Santa Luzia na Vila de Alagoas; e na Freguesia
de Nossa Senhora do Rosário na Vila do Penedo. Na Freguesia de Camaragibe, Vila de Porto
Calvo, segundo o já citado relatório de José César de Meneses de 1774, existia uma capela de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mas naquele ano já estava totalmente arruinada 150. Na
149
SOARES, Mariza de Carvalho. O Império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII.
Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 3, n. 4, p. 61, Junho 2002. Disponível em:
<http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi04/04_artigo03.pdf>.
150
MENEZES, Jozé Cezar de. Op. Cit., p. 53.
65
Freguesia da Vila de Alagoas existiam três igrejas de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
Ambas as localidades possuíam engenhos produtivos: Porto Calvo tinha 18 engenhos moendo
e a Vila de Alagoas, 27, do total de 61 contabilizados para meados do século XVIII 151. O
número de engenhos em atividade na Vila de Alagoas provavelmente demandou grande
quantidade de braços negros para o trabalho manual, o que explica a existência de três igrejas
diferentes dedicadas à devoção à Senhora do Rosário. Podemos supor, inclusive, que esse
número pode indicar a presença de africanos de diferentes origens (ou nações), como vemos
ocorrer na cidade de Salvador por exemplo.
Lucilene Reginaldo identifica que no século XVIII, só na cidade, existiam sete
irmandades dedicadas ao Rosário em 8 freguesias diferentes152. Em uma das Irmandades do
Rosário, a das Portas do Carmo, a autora identificou nove grupos étnicos diferentes que
fizeram parte do quadro de irmãos entre os anos de 1719 e 1826153. Para a Vila de Alagoas,
sabemos apenas que os pretos eram indivíduos presentes e que também foram protagonistas
da religiosidade local. Enquanto para as outras duas regiões encontramos registros apenas de
Igrejas do Rosário, para a Vila do Penedo existe documentação que atesta presença de uma
irmandade, ou seja, de homens e mulheres pretos organizados em uma associação religiosa
leiga em torno da devoção ao Rosário. Possuíam igreja própria e, no ano de 1781, o juiz e os
irmãos enviavam requerimento pedindo à rainha Dona Maria I “uma esmola para as obras da
capela da Mãe de Deus com a qual renovarão mais os ânimos dos devotos”154.
Além da devoção à Nossa Senhora do Rosário, outras também estiveram ligadas às
trajetórias de africanos, na África, na Península Ibérica e na América. Irmandades dedicadas a
São Benedito, Santo Elesbão, Santa Efigênia existiram em Goiás 155, no Rio de Janeiro156 e na
Comarca de Alagoas, a Irmandade de São Benedito erecta no Convento de Santa Maria
Madalena da Vila das Alagoas157. Fazer parte dessas instituições sempre foi algo significativo
e necessário, pois proporcionavam vários benefícios como a proteção contra maus tratos de
151
CARVALHO, Cícero Péricles de. Op. Cit., p.114.
REGINALDO, Lucilene. Op. Cit., p. 123.
153
Ibid, p. 347.
154
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 227. Nos anexos, colocamos uma foto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos. A dificuldade no acesso às fontes primárias na cidade de Penedo não nos permitiu, ainda, especificar
quem eram os pretos da Vila do Penedo que fizeram parte da irmandade do Rosário.
155
Irmandade do Senhor São Benedito, novamente erecta na capela de Nossa Senhora do Carmo de Vila Boa de
Goiás. AHU_CU_COMPROMISSOS DO BRASIL, Cod. 1285.
156
Na verdade uma Capela
157
AHU_CU_COMPROMISSOS DO BRASIL, Cod. 1923.
152
66
senhores, compra de liberdade, destaque social, e, especialmente na América, exerceram
papel especial.
Mariza Soares percebeu as irmandades do Rio de Janeiro como espaços em que os
africanos puderam recompor, na sociedade colonial, grupos compostos na África, uma
possibilidade de “reforçar antigas fronteiras étnicas ou estabelecer novas configurações
identitárias”158. Anderson Oliveira, em estudo sobre a construção de devoções de africanos e
seus descendentes, também conclui que os cultos a alguns santos além de terem sido uma
ferramenta de evangelização e controle da população negra, também foram parte importante
do processo de conformação das identidades de africanos no Brasil 159. O autor vê as
irmandades como o lugar propício para o pleno desenvolvimento de algumas devoções
direcionadas para negros cativos e libertos e identificou essas instituições como lugares onde
eles puderam expressar suas identidades afirmando que “ao demarcar uma identidade
religiosa, a devoção desempenha um papel fundamental na construção da identidade mais
abrangente do grupo em questão”160. À conclusão semelhante chega Lucilene Reginaldo em
relação aos africanos denominados “angola” que viveram na Bahia. As irmandades,
especificamente as dedicadas ao culto a N. S. do Rosário, tiveram participação crucial na
construção identidade angola da Bahia. Conforme a autora, o espaço que seus componentes
tiveram na Irmandade do Rosário dos Pretos da Porta do Carmo foi o elemento chave no
processo de constituição de uma identidade dos africanos na diáspora.
Percebe-se então como as irmandades de negros operaram em suas trajetórias e foram
uma importante ferramenta que proporcionou lugares de devoção, de distinção e de
(re)criação de identidades (um outro processo de distinção). A constituição de devoções com
as quais a população negra se identificasse, a escolha dessas devoções para cultuar e ser
devoto em uma instituição reconhecida pelo Estado e pela Igreja foram etapas nas vidas de
muitos indivíduos no Brasil colonial na busca por um lugar na sociedade que não estivesse
diretamente ligado à escravidão, ao trabalho mecânico, à uma ascendência considerada
impura ou gentílica. As devoções a santos pretos instaladas em irmandades compostas por
africanos é um meio interessante de entendermos a distinção buscada pelos pardos. Se os
africanos, que eram arrancados de suas terras, afastados de suas famílias, culturas e mantidos
158
SOARES, Mariza de Carvalho. Op. Cit., p. 60.
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio
de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008.
160
Ibid, p. 267.
159
67
como escravos lograram algum êxito em utilizar essas instituições como meio de amenizar as
dificuldades da vida na escravidão, de forma relativamente semelhante aconteceu com os
pardos no século XVIII, porém partindo de lugares e condições diferentes. Os pardos
conformaram indivíduos que possuíam ascendência africana, que também tinham ligação
(ainda que indireta e distante) com a escravidão, que também exerciam ofícios mecânicos e
tinham sua ascendência questionada. Da mesma forma que os africanos buscaram distinguirse socialmente os pardos o fizeram e utilizaram as irmandades nesse processo.
Segundo Larissa Viana, esse desejo de distinção dos pardos já existia no século XVII,
quando foram criadas irmandades e títulos devocionais que os diferenciavam dos demais 161.
Partindo da análise da autora que identifica, no século XVII, um movimento dos pardos de se
distinguirem de africanos e principalmente crioulos, nos perguntamos: será que as irmandades
e devoções de pardos do século XVIII, entre as quais está a de São Gonçalo Garcia, foram
criadas para dar início a algum processo e alcançar alguma mobilidade social? Ou tal processo
(de ascensão) já acontecia e as dinâmicas empreendidas pelos pardos, especialmente as que
envolviam questões religiosas que são objeto desse capítulo, reforçaram, fortaleceram e
consolidaram, no XVIII, a distinção que os pardos já conquistavam desde o século XVII,
como observado pela autora?
Não sabemos se conseguiremos responder a esse questionamento no espaço desse
trabalho, pois as pesquisas sobre os pardos concentram-se majoritariamente no século XVIII.
Ainda que tenhamos dados e trabalhos sobre os pardos no XVII, são escassos e não há
aprofundamento de análise. Outro motivo é o desconhecimento da existência de dados
quantitativos que demonstrem os processos de mobilidade social dos descendentes de
africanos para antes do XVIII (ao menos para Alagoas), mas temos razões para acreditar que
os descendentes de africanos que se identificam como pardos no século XVIII já estão em
ascensão desde, pelo menos, o início daquela centúria.
Para compreender a importância das devoções e irmandades nas trajetórias de
africanos e de seus descendentes na sociedade escravista colonial, precisamos ter sempre em
mente a questão constante da proximidade e distanciamento do cativeiro. As necessidades que
cada um dos indivíduos de sangue africano, pretos e pardos, buscou suprir eram diferentes e
nasciam de experiências diversas, da mesma forma aconteceu com as irmandades. Uma
161
Para leitura mais aprofundada desse tópico, ver o VIANA, Larissa. Capítulo 2: A construção da diferença –
devoção e mestiçagem. In: VIANA, Larissa. Op Cit. p. 97-139.
68
irmandade que era idealizada e instituída por homens pretos cativos buscava atender às
carências destes indivíduos, fator que possivelmente foi afastando os pardos que não se viam
mais identificados com tais espaços. Dividir um campo de atuação como as irmandades com
africanos e crioulos, particularmente com os que ainda viviam na condição do cativeiro, foi
um processo que motivou a busca pela distinção alcançada pelos pardos.
Acreditamos que o divisor de águas nas trajetórias dos pardos na América portuguesa,
especialmente os que viveram na Capitania de Pernambuco, foi a festa da Irmandade de Nossa
Senhora do Livramento da Vila do Recife, realizada no ano de 1745. Na ocasião, o
franciscano Antônio de Santa Maria Jaboatão proferiu um sermão no qual exaltava a imagem
dos pardos da vila perante toda a sociedade ao tratar da vida do primeiro santo pardo das
Américas: São Gonçalo Garcia. Antes da institucionalização do culto a este santo,
considerado o primeiro santo pardo das Américas162, as devoções consideradas como
protetoras dos pardos eram as dedicadas à Nossa Senhora de Guadalupe, de Conceição e do
Amparo. Como veremos a seguir, os pardos da Comarca de Alagoas, antes de reunirem-se em
torno da devoção à São Gonçalo Garcia, chegaram a edificar um templo em homenagem a
Nossa Senhora do Amparo, na Freguesia da Vila das Alagoas da Senhora da Conceição163.
Somente depois da festa da Irmandade do Livramento da Vila do Recife, os pardos de
Penedo se organizaram em torno de uma devoção com a qual se identificaram, seja pela dita
cor parda, pela origem misturada (no caso do Santo, filho de pai português e mãe indiana e,
dos pardos de Penedo, descendentes de africanos) ou pelas palavras de Frei Jaboatão que mais
do que pregar sobre a vida do Santo, o faz ao mesmo tempo em que enaltece o fato dele ser
pardo164. A irmandade, dessa forma, se torna o lugar onde consolidam a distinção social que
já vinham conquistando, na estruturada Comarca de Alagoas. Dessa forma, a devoção a São
Gonçalo Garcia conferiu aos pardos um lugar social próprio e que os distinguia das demais
devoções praticadas por indivíduos com os quais eles não mais se assemelhavam. O tópico a
162
San Martín de Porres é o outro santo descendente de africano das Américas, porém sua beatificação ocorreu
somente no século XIX. Martín de Porres era um mulato filho de espanhol e de uma negra liberta. Buscou uma
vida de santidade que foi permeada de desqualificações e humilhações, calcadas em sua ascendência africana,
que aceitou de bom grado por acreditar ser esse o caminho para a santidade. Colocamos uma imagem do santo
nos anexos. Ver: GARCINDO DE SÁ, Eliane. Martín de Porres, mulato, santo: um “perro mulato” entre os
domine cane no Vice-Reino do Peru. In: IVO, Isnara Pereira; PAIVA, Eduardo França (orgs.). Dinâmicas de
mestiçagens no mundo moderno: sociedade, cultura e trabalho. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2016,
pp. 91-109. / SOLIMEO, Plinio María. San Martín de Porres - El extraordinario santo, de las cosas
extraordinárias. Tesoros de la fe, Lima (Peru), n. 11, Novembro de 2002. Disponível em:
<http://www.fatima.pe/articulo-29-san-martin-de-porres>.
163
MENESES, José César de. Op. Cit., p. 56.
164
O sermão completo está transcrito nos anexos.
69
seguir será dedicado à análise das dinâmicas da Irmandade de São Gonçalo Garcia da Vila do
Penedo, desde sua criação, às relações com outras associações religiosas do período e como se
tornou uma das instituições de maior prestígio na região.
3.2 A Irmandade de São Gonçalo Garcia da Vila do Penedo.
No afastado ano de 1683 os moços pardos daquela vila (Santa Maria Madalena de
Alagoas do Sul), reunidos na igreja matriz do lugar, fundavam a irmandade de
Nossa Senhora do Amparo. A base do compromisso daquela confraria dos homens
pardos foi firmada em abril de 1685, na matriz da vila, com a assistência do Vigário
licenciado Joseph Nunes de Souza165.
Essa é a referência mais antiga166 que temos de pardos em Alagoas. Eles teriam
instituído a irmandade do Amparo na referida vila, no entanto não encontramos dados que
possam confirmar sua existência e suas dinâmicas internas. Sabemos sim que existiu (e ainda
existe167) uma igreja dedicada à Senhora do Amparo e composta por pardos, e, como visto, a
devoção a Nossa Senhora Amparo foi abrigo dos pardos, juntamente com outros cultos, como
o de N. S. de Guadalupe e da Conceição. Na documentação que temos em mãos, os pardos só
aparecem novamente em meados do século XVIII participando da Irmandade de São Gonçalo
Garcia e atuando, através desta instituição, no cotidiano da Vila do Penedo.
Ainda que os irmãos tenham alegado não existir nenhum livro sobre o início da
instituição, afirmaram que houve “uma ermida no mesmo lugar onde é hoje a Igreja zelada
por ermitães esmoleiros que convocavam o povo para as suas solenidades, elegendo Juízes,
Escrivães, Tesoureiros, Procuradores, e Mordomos”168. Em testamento de 1713, padre Manoel
Pereira, clérigo na Vila do Penedo, declarou que comprou, de um ermitão de São Gonçalo um
escravo de nome Miguel Gomes169. Por mais sútil que seja essa referência, atesta as
informações registradas pelos pardos cerca de um século depois. Foi justamente no período
entre as duas datas que a devoção a São Gonçalo Garcia tornou-se oficial e largamente
praticada por toda a América portuguesa. Foi também dentro desse recorte temporal e da
instituição da irmandade que assistimos a ascensão social dos pardos na Vila do Penedo.
165
LIMA JÚNIOR, Félix. Irmandades. Maceió: Imprensa Oficial, 1970. P. 7.
E não se trata de fonte primária, mas de referências à obra de memorialistas do Instituto Histórico e
Geográfico de Alagoas.
167
Colocamos uma foto da igreja nos anexos.
168
Idem.
169
Testamento do Padre Manoel Pereira. 1713. Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1272. Apud: TEIXEIRA,
Luana; MARQUES, Danilo Luiz; SILVA, Gian Carlo de Melo (orgs.). História da escravidão em Alagoas:
diálogo contemporâneo. Maceió: EDUFAL, 2017, p. 34.
166
70
A história da Irmandade de São Gonçalo Garcia dos homens pardos da Vila do Penedo
é um dos exemplos de como esses descendentes de africanos se destacaram perante às demais
irmandades e à sociedade como um todo. Não há registro de quando a irmandade foi
formalmente instituída, mas logo nos primeiros anos de culto oficial àquele santo (após a festa
da irmandade do Livramento da Vila do Recife), a irmandade já estava organizada e
conseguiu construir uma igreja particular às próprias custas e com esmolas dos fieis 170, algo
que não era tão comum. Tal feito foi alcançado devido à ajuda de um oficial da região, o
Comandante Manoel Martins Ramos. Além de militar (Capitão das Ordenanças da Vila do
Penedo), Manoel era, à época, procurador da irmandade e, no ano de 1758, com “um ardente
zelo com a Irmandade, se ofereceu a erigir uma Igreja a sua custa para depois lhe irem
pagando com as esmolas que adquirissem no que convieram todos”171, tendo sido finalizada a
construção no ano de 1759. Novamente, não sabemos em que data a irmandade foi criada,
mas em fins da década de 1750 já possuía igreja própria e, consequentemente, algum destaque
social172.
Era comum que os associados e demais fieis que não participavam de irmandades
fizessem doações, fato que colaborava para o crescimento dessas instituições, visto que não
podiam contar com esse tipo de auxílio nem da Coroa e nem da Igreja de Roma. Assim, os
recursos da estrutura financeira das associações religiosas tiveram origens variadas:
1) através de “jóias” pagas pelos irmãos no ato de entrada e anuidades; 2) esmolas
coletadas à porta de suas Igrejas e no arraial; 3) doações e arrecadação de esmola nas
festas; 4) acompanhamento de féretro; 5) doações deixadas em testamentos; 6)
aluguel de imóveis173.
A Irmandade de São Gonçalo Garcia, desde o princípio de suas atividades (pelo menos
das que temos algum registro), contou com o apoio de pessoas de destaque na Vila do Penedo.
Além de ter a construção de sua igreja financiada por doação, a instituição recebeu, também
através de doação, alguns bens (em dinheiro e imóveis) para a construção do hospital de
caridade da vila do qual seria gestora. Em março do ano de 1762 (cerca de três anos após a
finalização da construção da igreja), a mesa da administração da irmandade enviou ao rei um
requerimento solicitando permissão para possuir um esquife com a justificativa de que não
havia casa de misericórdia na Vila do Penedo e que precisavam desse objeto para levar seus
170
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...]. fl.3.
Ibid, fl. 4.
172
A Igreja é uma das mais imponentes da região e está situada em uma localização onde pode ser vista de vários
pontos da cidade e, provavelmente, foi palco de várias atividades cotidianas. Nos anexos, colocamos algumas
fotos.
173
BORGES, Célia Maia. Op. Cit., p. 89.
171
71
irmãos para serem sepultados174. Uma década depois, em janeiro de 1772, no episódio já
relatado no capítulo anterior - em que os pardos foram acusados de perturbar a ordem pública
e tratados pelo termo mulato pelos confrades da Ordem Terceira de São Francisco -, estes
buscaram revogar a provisão dos pardos de possuírem o esquife alegando terem mais tempo
de existência e, ao utilizar um termo pejorativo, atacar a imagem daquele grupo 175. Alguns
meses após esta tentativa de revogação da provisão pela Ordem Terceira, os pardos enviaram
ao rei um novo requerimento solicitando a confirmação de uma doação feita pelo Coronel
João Pereira Álvares “de quatro moradas de casas térreas para construção e estabelecimento
de um hospital para serem nele curados os enfermos pobres, necessitados que pela falta dele
miseravelmente costumam perecer”176.
Mais de 30 anos transcorreram para que alguma providência fosse tomada. Nesse
período, a irmandade buscou assegurar o direito à administração desses bens entrando
inclusive em conflito com possíveis herdeiros do oficial militar177. Somente em 1807 aparece
algum resultado sobre o litígio da herança do falecido Coronel João Pereira Álvares, quando
Francisco Manuel Martins Ramos, então procurador da irmandade178, pediu provisão à Coroa
para a eleição e constituição de uma mesa independente [à da irmandade] para a
administração do hospital, o que nos faz concluir que a causa dos pardos de construí-lo foi
mais interessante do que a doação dos bens como herança. Isto também pode ser indicativo de
uma continuidade da influência das reformas pombalinas na cultura política na América
Portuguesa revelada pela postura do Estado de continuar intervindo nos assuntos relativos às
irmandades. Uma vez que na Vila do Penedo não havia hospital e já que havia iniciativa
particular, foi mais interessante aos cofres da Coroa Portuguesa a construção sem que fosse
necessário dispender de impostos.
O hospital a que estamos nos referindo é a Santa Casa de Misericórdia, criado com o
título de Hospital de Nossa Senhora da Conceição cujo exercício só teve início de fato em
174
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 175.
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 201.
176
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 203, fl. 1.
177
Encontramos dois documentos no acervo online do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) em que
estavam envolvidos possíveis herdeiros do Coronel João Pereira Álvares interessados na parte que lhes tocasse a
herança deixada por ele. Os documentos são dos anos de 1789 e 1801 e ainda não transcrevemos, mas no AHUAlagoas há um requerimento em que os oficiais da mesa e irmãos da irmandade de São Gonçalo Garcia pedem
confirmação da doação feita pelo coronel alegando que apareceram alguns herdeiros do testador querendo a
anulação da doação. AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 455.
178
Filho do Comandante Manoel Martins Ramos, doador do dinheiro que custeou a construção da Igreja, mas a
questão da família será aprofundada no próximo capítulo quando falaremos das milícias.
175
72
dezembro de 1827 por provisão de 17 de abril de 1820179. O hospital funcionava (e ainda
funciona) no norte da cidade e recebeu o título, privilégio e mais prerrogativas de Santa Casa
de Misericórdia após Assembleia Provincial de 15 de fevereiro de 1838. O interesse em sua
organização, no entanto se dá ainda no século XVIII, como visto. A irmandade de São
Gonçalo Garcia além de receber nominalmente a doação para a construção do hospital, o que
mostra que possuíam prestígio perante a sociedade, encarregou-se da administração do
mesmo através da instituição de uma mesa, a Mesa da Administração, que seria independente
da Mesa Geral da Irmandade e administraria os bens do falecido Coronel João Pereira Álvares
e do hospital:
Lembra-se o suplicante [Francisco Manoel Martins Ramos, procurador da
irmandade] de requerer a Vossa Alteza Real uma Provisão Régia em que Vossa
Alteza Real por sua Augusta Piedade Determine que para a Administração do
mesmo Hospital e dos dinheiros e casas a ele [?] tementes se eleja uma Mesa
positiva e independente da Mesa da Irmandade denominada Mesa da Administração,
composta de 12 irmãos da mesma Irmandade, os mais condignos, imparciais,
180
cordatos, zelosos e antigos [...] .
Sabe-se que, durante o período colonial, a instituição responsável pelos cuidados com
os doentes, famintos, pobres, necessitados de atenção e ajuda em geral, foram as
Misericórdias, das quais geralmente eram confrades os homens bons da sociedade que, de
acordo com Laurinda Abreu, deviam ser virtuosos e de boa fama 181. Segundo Luciana
Gandelman, em artigo sobre a Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, uma das
existentes na América Portuguesa de maior poderio do projeto colonizador, a construção do
conjunto arquitetônico daquela instituição “seguia lento à medida que se angariavam recursos
entre homens ávidos por garantir a salvação de suas almas, por investir parte de seu capital no
prestígio social da instituição e de si próprios”182. A autora atribui aos esforços de dois
provedores, “dois homens bons, envolvidos na governança da cidade”183 o crescimento da
179
Compromisso da Irmandade do Glorioso Martyr São Gonçalo Garcia [...]. 1865. Arquivo Público de
Alagoas. Caixa 5585, fls. 2-3.
180
AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 462, fl. 3. No compromisso da irmandade também há referência à forma de se
proceder em relação ao hospital, em um capítulo específico que trata “do dinheiro que se há de dar a Juízes tanto
da Irmandade, como do Hospital”.
181
In: ABREU, Laurinda. O papel das Misericórdias dos 'lugares de além-mar' na formação do Império
português. Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 591-611, Dez. 2001. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702001000400005&lng=en&nrm=iso>,
p.
593.
182
GANDELMAN, Luciana Mendes. A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro nos séculos XVI a XIX.
Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, pp. 613-630, Dez. 2001. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702001000400006&lng=en&nrm=iso>,
p.
615.
183
GANDELMAN, Luciana Mendes. Op. Cit., p. 616.
73
instituição por terem conseguido doações, em dinheiro e em moradas de casas, que
permitiram a execução de várias obras.
De forma semelhante se deu com os pardos de São Gonçalo Garcia da Vila do Penedo,
com o diferencial de que estes não se encaixavam no conjunto de características do que era
considerado “homem bom”. A depender das dinâmicas de cada região, a ideia de homem bom
pode ter sido diferente e os perfis podem ter sido variados, porém Ronaldo Vainfas resumiu o
“homem bom” como:
aquele que reunia as condições para pertencer a um certo estrato social, distinto o
bastante para autorizá-lo a manifestar sua opinião e a exercer determinados cargos.
Na América Portuguesa, associava-se àqueles que podiam participar da governança
municipal, elegendo e sendo eleitos para os cargos públicos que estavam reunidos
nas câmaras. Uma provisão de 1705 determinava que estavam excluídos desse
processo eleitoral “os mecânicos, operários, degredados, judeus” e outros que
pertencessem à categoria dos “peões”. Por oposição, homens bons eram os que não
portavam essas características, sendo por isso reconhecido como nobres184.
Assim, teoricamente, descendentes de africanos, pessoas que exerciam ofícios
mecânicos ou possuíam sangue impuro de judeu, mouro ou mulato não seriam considerados
homens bons. No entanto, a vida cotidiana no Brasil demonstrou que isso nem sempre
acontecia. Homens pretos alcançaram altos postos militares (ainda que, geralmente, em
períodos e situações bastante específicas como o caso de Henrique Dias e as tropas pretas que
atuaram na restauração pernambucana), homens que exerciam ofícios manuais formaram
grupos de elite185 e, na Vila do Penedo, os pardos foram os escolhidos para construir e
administrar o hospital da Misericórdia. Escolhido porque, como visto, foi através de doação
que a irmandade recebeu as posses para a construção do hospital.
Embora não fossem considerados homens bons, os pardos foram os escolhidos para
construir e administrar uma instituição tradicionalmente composta e gerida pelos que o eram,
porém dividiram o espaço com alguns homens brancos. No documento em que indicou os
184
A depender das dinâmicas de cada região, a ideia de homem bom pode ter sido diferente e os perfis podem ter
sido variados, porém Ronaldo Vainfas resumiu homem bom como sendo “aquele que reunia as condições para
pertencer a um certo estrato social, distinto o bastante para autorizá-lo a manifestar sua opinião e a exercer
determinados cargos. Na América Portuguesa, associava-se àqueles que podiam participar da governança
municipal, elegendo e sendo eleitos para os cargos públicos que estavam reunidos nas câmaras. Uma provisão de
1705 determinava que estavam excluídos desse processo eleitoral “os mecânicos, operários, degredados, judeus”
e outros que pertencessem à categoria dos “peões”. Por oposição, homens bons eram os que não portavam essas
características, sendo por isso reconhecido como nobres”. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil
colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, pp. 284-286.
185
Ver GUEDES, Roberto. Ofícios mecânicos e mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo (Sécs. XVIIXIX). Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 379-423, Dez. 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2006000200379&lng=en&nrm=iso>.
access on 22 Oct. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X007013004.
74
membros da mesa da administração do Hospital da Misericórdia da Vila do Penedo, Francisco
Manoel Martins Ramos anunciou que a composição seria de doze irmãos: seis pardos e seis
brancos186. Não há uma justificativa explícita para tal escolha. Acreditamos que o prestígio
que os pardos conquistariam entre os que ocupavam a alta hierarquia foi algo que motivou a
inclusão de alguns homens brancos em suas dinâmicas e em um espaço de tamanha distinção
que era o Hospital da Misericórdia, talvez numa tentativa de colocar-se o mais próximo
possível da posição ocupada pelos brancos na sociedade e livrar-se de provocações como, por
exemplo, serem chamados de mulatos. Cada passo dado pelos pardos em suas trajetórias nos
parece terem sido estratégias para distanciarem-se das diversas formas depreciativas de
tratamento. Dessa forma, estar à frente de uma instituição de origem europeia, cuja estrutura e
composição se baseavam nas Misericórdias de Portugal e que era considerada como lugar
para “homens bons e virtuosos e de boa fama”187 foi um dos elementos que tornaram os
pardos da Vila do Penedo distintos de outros pardos sobre os quais lemos e de que falamos no
primeiro capítulo, em constante ascensão social e de trajetória incomum se comparados a
outros perfis de descendentes de africanos.
Outro elemento essencial para compreender a irmandade e seu significado nas
trajetórias de mulheres e homens comuns da sociedade colonial é a constituição e organização
de seu compromisso, o regimento que dava as diretrizes do funcionamento da instituição. Por
mais que as irmandades criadas na América Portuguesa tenham buscado seguir os modelos
metropolitanos como base para elaborar seus próprios estatutos, as dinâmicas locais e
cotidianas das regiões nas quais as irmandades estavam inseridas interferiram diretamente na
estruturação dos compromissos. O da irmandade de São Gonçalo Garcia é um exemplo desse
contexto, pois o documento que iremos analisar aqui, que nos aproxima mais do
funcionamento da instituição, é uma versão reformada do original. Segundo os irmãos da
mesa que o escreveram, foi necessário ”reformar o Compromisso antigo ampliando o presente
com as regras, e prevenções que pareceram mais necessárias e úteis”188. Sabe-se que na
segunda metade do século XVIII, Portugal e suas possessões coloniais ficaram sob a
influencia do secretário dos Negócios do Estado, Sebastião José de Carvalho e Melo, o
Marquês de Pombal. Seu governo ficou marcado por uma acentuada centralização e
186
AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 462, fls. 3 e 4.
ABREU, Laurinda. Op. Cit., p. 593.
188
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], fl. 5.
187
75
intervenção da Coroa em múltiplos âmbitos do cotidiano dos súditos189, e as coisas da
religião, principalmente o aparelho eclesiástico, foi um dos espaços influenciados pelas
reformas de Pombal.
Ainda que não diretamente, as irmandades leigas também passaram por uma
reorganização durante o governo de Pombal. A ingerência do Estado nos negócios
eclesiásticos repercutiu nas irmandades de forma que, a partir de 1765 estas além de
submeter-se exclusivamente ao juízo régio, deveriam sujeitar seus compromissos para
aprovação da Mesa de Consciência e Ordens e não mais da Igreja190. Com algumas décadas
de atraso (ao menos da data de expedição da provisão), a irmandade de São Gonçalo Garcia
escreveu e enviou seu compromisso “para ser remetido à Mesa da Consciência e Ordens para
obter a competente confirmação”191 e para que tivesse “o mesmo compromisso força da lei,
sujeitando eles suplicantes da dita Irmandade à Jurisdição suprema de Vossa Alteza Real”192.
Em março de 1808, os mesmos solicitam que o Conselho Ultramarino devolva o
compromisso para que pudessem ser acrescidas “mais algumas regras que não ocorreram na
ocasião em que o fizeram”193. Não encontramos o compromisso anterior ao de 1807 nem o
que foi reformado depois desse194, mas ficou evidente para nós a preocupação em se adequar
às normas do Estado para o bom funcionamento e continuidade das atividades da irmandade
que, em 1807, já contava com mais de 400 membros195 e administrava o único hospital da
vila.
O compromisso era um documento que, além de deixar registrado o surgimento, os
objetivos e motivos da constituição da irmandade (o que nos ajuda bastante especialmente
pela dificuldade de acesso a outros tipos de documentos, como o livro de registro de irmãos,
189
FIGUEIREDO, Luciano. Pombal cordial. Reformas, fiscalidade e distensão política no Brasil: 1750-1777. In:
FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia (orgs.). A “Época Pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 125.
190
“Em 8 de março de 1765, a Mesa expediu provisão notificando a obrigatoriedade de confirmação dos
compromissos por aquele tribunal, inclusive obrigando a que irmandades renegassem sua jurisdição eclesiástica,
quando fosse o caso, de forma que a aprovação estatutária se desse a partir de então somente pela autorização
régia”. In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As irmandades religiosas na Época Pombalina: algums
considerações. In: FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia (orgs.). Op. Cit., p. 351.
191
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807 fl.
1.
192
Ibid, fl. 3.
193
AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 469.
194
Há apenas o compromisso do ano de 1865 da mesma irmandade, porém o contexto é completamente diferente
do que estamos abordando aqui visto que na segunda metade do século XIX as teorias racionalistas e
evolucionistas tornam mais complicado e o modo como os africanos e seus descendentes são vistos e tratados.
195
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807, fl.
4.
76
de receita e despesa), regulamentava as suas demandas. Nele podemos ver o que a instituição
procurava construir em termos de práticas religiosas e sociais, que tipo de pessoas eles
permitiam que fossem inseridas na rede e o que a irmandade exigia dessas pessoas, questões
financeiras, de comportamento e de moral também estavam presentes e outros elementos das
dinâmicas cotidianas. O compromisso da Irmandade de São Gonçalo Garcia dos homens
pardos da Vila do Penedo que temos em mãos foi aprovado em mesa geral de 16 de fevereiro
do ano de 1807. A organização e funcionamento internos estão detalhados em dezoito
capítulos nos quais, além das responsabilidades, deveres e privilégios de cada cargo de acordo
com as posições na hierarquia interna da irmandade, estavam registradas informações sobre a
festa, a entrada de novos irmãos, as eleições e tópicos relativos a finanças, administração e
funcionamento geral.
À entrada dos irmãos, não foi registrada qualquer restrição relacionada à qualidade ou
condição196. Apenas “os infiéis, os excomungados, os cismáticos, apóstatas e hereges da nossa
Santa Fé, semelhantemente os que cometerem crime de lesa Majestade Divina ou Humana e
por eles forem sentenciados e condenados nas penas estabelecidas nas leis do Reino”197 não
seriam aceitos na irmandade e, se o fossem, seriam riscados logo que a Mesa descobrisse
podendo retornar caso “reconciliados com Deus e com a Igreja e com o Soberano”198.
Alertaram, todavia, para a decisão de não excluírem “qualquer homem ou mulher brancos” 199.
Assim como a escolha de inserir alguns homens brancos na mesa da administração do
hospital, que estava sob o comando dos pardos da irmandade, essa decisão de não excluir
qualquer branco parece-nos uma estratégia de mobilidade social, uma tentativa de alguma
forma de aproximação do mundo dos brancos. Uma vez que a qualidade de pardo não os
permitiria ascender o quanto desejassem na hierarquia social (mesmo que isso já fosse uma
realidade), fizeram um movimento diferente: aproximaram os brancos (que desejassem) dos
lugares nos quais estavam inserido e dos processos de distinção que estavam perpetrando,
nomeadamente a presença no Hospital da Misericórdia, para aumentar o prestígio perante a
sociedade.
196
No compromisso de 1865 passa a haver restrição relacionada à condição jurídica e o termo pardo (e outros
que identificassem descendentes de africanos) está mais relacionado ao fenótipo: seriam apenas admitidos “todos
os homens e mulheres livres sem distinção alguma de cor.”. In: Compromisso da Irmandade do Glorioso
Martyr São Gonçalo Garcia [...]. 1865. Arquivo Público de Alagoas. Caixa 5585. Fl. 5.
197
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807. Fl.
10.
198
Idem.
199
Ibid. Fl. 9.
77
De fato cinco dos seis brancos escolhidos para a mesa administrativa do hospital
apareciam, em 1807, como associados da irmandade. São os casos do Padre Gabriel José
Pereira de Sampaio, capelão, o Capitão-Mor José Gregório da Cruz, o Coronel Antonio Luiz
Dantas de Barros Leite, o Capitão Antonio Matias Álvares Teixeira e o Capitão-Mor André de
Lemos Ribeiro200. O ofício militar exercido por todos (à exceção do padre, mas inclusive pelo
que não consta como associado da irmandade, o Capitão João de Souza Vieira) é algo que
deixaremos para discutir no capítulo seguinte, nesse momento nos deteremos apenas ao fato
de que esses homens identificados como brancos foram pessoas de grande destaque na
sociedade, devido a seus postos militares e, com certeza, suas presenças agregavam algum
valor complementar à irmandade dos pardos. Em relação a outras categorias de distinção,
particularmente os pretos, não temos qualquer indicação de restrição à presença destes na
irmandade de São Gonçalo Garcia.
Além das restrições à entrada dos hereges, havia a exigência do pagamento de, pelo
menos, duas taxas. A primeira era a taxa para entrar na irmandade: os que tivessem mais de
quarenta anos de idade pagariam $1280 réis e os demais pagariam $640 réis 201. Uma vez que
o membro estivesse associado à irmandade, a permanência na instituição e a manutenção
desta se dava através do pagamento da esmola anual, que era de 200 réis por pessoa 202, e da
dedicação às obrigações para com a instituição. Havia também a possibilidade de ingresso na
irmandade no momento da morte, pois como já dissemos, uma das principais funções dessas
instituições era a assistência caritativa que proporcionava enterro digno, funeral e missas ao
fim da vida de seus associados. Para os que procurassem a irmandade somente na hora da
morte, a esmola cobrada tinha o valor mínimo de 10.000 réis. A discrepância nas taxas era
justificada por a Mesa achar injusto que qualquer um gozasse dos benefícios que os irmãos
levaram anos para conquistar203. Evidentemente uma manifestação do espírito corporativo
característico da sociedade colonial evidenciado nessa iniciativa da irmandade em garantir o
melhor aos seus filiados fortalecendo e solidificando o processo de distinção social dos pardos
na região.
200
Não tivemos acesso a nenhum livro de assento de irmãos. Todos os nomes que apareceram e aparecerão no
decorrer deste trabalho estão nos ofícios enviados ao Conselho Ultramarino ou na lista dos que assinaram ao
final do compromisso, um total de 76 homens.
201
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807. Fl.
10.
202
Idem.
203
Idem.
78
A realização da festa para o santo patrono também estava estabelecida no
compromisso. Esse era o momento mais esperado pelas irmandades que passavam todo o ano
organizando o evento. Para Mary Del Priore, a festa também era fato político204. Era o
momento de ir a público carregando o nome da instituição a qual pertencia e a imagem e
mensagem do santo de devoção, de mostrar à sociedade o poderio e a capacidade da
irmandade em se articular para organizar um grande festejo católico e proporcionar a todos
alguns momentos de descanso, alegria e prazeres205 (algo que, quando em excesso, era alvo de
críticas pelos clérigos206). Manifestação bastante comum da religiosidade de africanos e seus
descendentes no Brasil foram as Coroações de Rei e Rainha do Congo, tradicionalmente
ligadas às Irmandades do Rosário. José Ramos Tinhorão acredita que essas cerimônias bem
como as festas de Nossa Senhora do Rosário constituía uma reprodução de solenidades da
vida político-social de suas nações207. O pintor Jean-Baptiste Debret, nas primeiras décadas
do século XIX, registrou alguns momentos da vida cotidiana no Império do Brasil, entre eles
a coleta de esmolas por mulheres negras e homens negros de uma Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário (imagem 6). A cena os retrata na porta da Igreja, vestidos de rei e rainha
enquanto outras pessoas participam tocando instrumento ou apenas observando, um dos
poucos recursos visuais das expressões culturais e religiosas da população negra e da
participação das irmandades na vida social.
IMAGEM 6 - Coleta para a manutenção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (1828)
Fonte: DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Firmin
Didot
Frères,
1834-1839.
Disponível
em:
<https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3252>.
204
DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 10.
Idem.
206
No parágrafo 874 do título LXII do Livro Quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia há
uma instrução para que as irmandades comprem ornamentos e peças ao invés de fazer gastos demasiados e
excessivos com comida, bebida, danças, comédias e coisas semelhantes. In: VIDE, Sebastião Monteiro da.
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D.
Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2011.
207
TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo:
Editora 34, 2012, p. 118.
205
79
Apesar da falta de detalhamento dos pormenores da festa da irmandade de São
Gonçalo Garcia, sabemos que deveria ser realizada no domingo da quinquagésima (o
domingo antes da quarta-feira de cinzas, exatos cinquenta dias da páscoa) e teria missa
cantada, sermão, novena e procissão208. Não há detalhamento de como seria o festejo, se a
procissão seria como a que aconteceu na Vila do Recife descrita por Sotério da Silva Ribeiro.
De acordo com Janaína Bezerra, a festa em Recife não teve participação somente dos pardos
da Irmandade do Livramento, mas os pardos desta irmandade foram os principais
financiadores. A procissão foi marcada por várias figuras alegóricas, algumas montadas a
cavalo, acompanhadas em sua maioria por carros, uns puxados por negros, outros por
cavalos209. O figurino de uma das figuras alegóricas era composto de “justinho de seda azul
de ouro com manguitos de renda”, por cordões de ouro e jóias de diamantes; outra vestia
carmesim bordado a ouro, crinas e caudas tecidas com fitaria de prata azul 210 e seguia-se por
uma riqueza de ornamentos, vestes e figuras que enriqueceram as vistas das ruas da Vila de
Santo Antônio do Recife e, certamente, da Vila do Penedo.
Na realidade, a festa só ocorreria se o juiz desejasse organizá-la, e seria na noite
anterior às solenidades do domingo211. Caso fosse realizada, alguns dos cargos de mesa
deveriam colaborar com taxas específicas: o juiz deveria dar 25$000 réis, os mordomos
dariam 20$000 réis, a juíza, 10$000 mais fogueiras e luminárias e as mordomas, 20$000
réis212. Não encontramos registro de realização da festa na Vila do Penedo. Partindo apenas
do compromisso, os pardos se limitaram a promover a prática da liturgia católica (missa,
procissão, sermão), sem pompa, abusos ou exageros, porém estavam abertos à colaboração
com outras irmandades para a realização de procissões suas e das demais instituições213, algo
que propiciava o sentimento de solidariedade com que muitas dessas instituições iniciaram
suas atividades.
208
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807. Fl.
8.
209
Ver BEZERRA, Janaína dos Santos. Pardos na cor & impuros no sangue: etnia, sociabilidade e lutas por
inclusão social no espaço urbano pernambucano do XVIII. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Recife: UFRPE, 2010, p. 171. Disponível em: <
http://200.17.137.108/tde_arquivos/15/TDE-2010-11-05T071441Z-505/Publico/DISSERTACAO.pdf>.
210
Ibid, pp. 171-172.
211
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807. Fl.
8.
212
Capítulo 7º e Capítulo 12º. In: Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da
Vila de Penedo [...], 1807.
213
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807. Fl.
9.
80
O auxílio aos necessitados também era algo previsto pelo compromisso. Quando
algum irmão, por motivo de pobreza, não podia arcar com a taxa anual para sua permanência
na irmandade e garantia dos benefícios que ela proporcionava, a mesa definia que fossem
dadas “de dez em dez dias uma quarta de farinha, e meia arroba de carne por conta da
Irmandade”214. Existia igualmente uma preocupação em não deixar morrer desamparados os
irmãos pobres que estivessem doentes. Estes receberiam esmolas doadas por todos os irmãos
(à exceção do juiz, escrivão e tesoureiro) para seu sustento e cura e, em caso de morte, “se
lhes dará uma mortalha, exporá em um altar a cabeceira um crucifixo com duas velas, o corpo
sobre uma alcatifa e estrado com 4 luzes, e assim se conservará até a Irmandade o ir buscar
para a nossa Igreja”215. Quando aconteciam falecimentos de necessitados, a mesa se reservava
ao direito de conceder sepultura gratuitamente a algum pobre nos casos em que a igreja matriz
não estivesse em condição de fazê-lo216. A preocupação com a boa morte, tanto dos
associados quanto dos necessitados, foi algo presente nas intenções que irmandade apresentou
ao Estado, à Igreja e à sociedade civil com a criação da instituição – ao menos no estatuto.
Assim como a festa dependia da iniciativa do juiz, todas as outras atividades
cotidianas também dependiam da dedicação dos irmãos da mesa que era composta pelos
seguintes cargos:
“Um Protetor, um Juiz, um Escrivão, um Tesoureiro, um Procurador, Geral da
Irmandade, outro das casas, um Zelador, e doze Mordomos. [...] Além destes se
elegerão os Procuradores que forem precisos para fora da Vila os quais ficam ao
arbítrio da mesma Mesa bem como o Reverendo Capelão e o Sacristão seguido o
217
ajuste que convencionarem” .
A eleição dos oficiais para ocuparem os cargos de mesa acontecia anualmente quinze
dias antes da festa e eram feitas para que fossem evitadas discórdias 218, porém não havia
restrição a reeleições, uma das coisas que mais causou conflitos nas irmandades da sociedade
colonial. Isso nos faz questionar como eram escolhidos os irmãos para tais cargos antes da
elaboração do compromisso e também perceber que o objetivo principal era que os irmãos
entrassem na instituição visando e, principalmente, colaborando para a sua manutenção e
crescimento. Todo e qualquer irmão que quisesse poderia votar, porém somente os de mais
214
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807. Fl.
33.
215
Ibid. Fl. 34.
216
Ibid. Fl. 32.
217
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo [...], 1807. Fl.
9.
218
Ibid, fl. 11.
81
capacidade deveriam ser escolhidos. Para o cargo de Protetor, por exemplo, deveria ser
escolhido o irmão mais condigno que houvesse na Irmandade219 e somente seria substituído
após seu falecimento. De fato, o Protetor, no ano de 1807, em que foi indicado para a Mesa da
Administração do hospital de caridade, era o Capitão Vicente Ferreira Santos, “o mais antigo
irmão da Irmandade”220. Algumas daquelas pessoas de “maior capacidade” que estavam
exercendo cargos administrativos na instituição eram brancos (o Capelão Padre Gabriel José
Pereira de Sampaio221) ou estavam também na milícia dos pardos, principalmente os que
ocupavam os cargos de mais responsabilidade.
Quem ocupava o cargo de Juiz em 1807 era Manoel Félix do Carmo. Nascido em
Recife, foi soldado e chegou a alcançar a patente de tenente e o posto de capitão no regimento
de milícia dos pardos da Vila do Penedo. Era pintor, oficio mecânico, porém das artes, então
não tão passível de julgamentos como outras profissões mecânicas. O cargo de Juiz ocupado
por Manoel Félix do Carmo, segundo o compromisso, era o primeiro da Mesa. As suas
competências iam desde avisar ao reverendo sobre as eleições a ter o voto de minerva quando
ocorressem quaisquer tipos de empates. Ao juiz, também era incumbido o dever de elencar os
assuntos das reuniões, tarefa que exigia informação e envolvimento com o cotidiano da
irmandade e o funcionamento da instituição. Os valores que deveria desembolsar, quando
exigido, também seguia a ordem hierárquica interna, reproduzindo assim as hierarquias da
sociedade colonial.
§ 1º Os juízes são os primeiros Irmãos da Mesa, e por isso se lhes terá todo o
respeito. Dará o Juiz quando não queira fazer a festa a sua custa 25$000 reis, para
adjutório da mesma, e a Juíza 10$000 reis quando não quiser fazer a _________.
Deve dar mais a Juíza para a festa, as fogueiras, e luminarias. E posto que se ponha
aqui somente taxa poderão contudo dar mais avantajada esmola e fazerem a festa
com mais solenidade, que quiserem. As mais obrigações do Juiz já ficam
expressadas nos § § 1º, 3º, 4º, 6º, 7º e 9º do Capítulo 3º, e nos § § 2º, 3º e 4º do
capítulo 4º, e ___zere a festa, e procissão as suas custas darão os sermões a
pregadores da sua satisfação, sendo as Juízas obrigadas a assistir a festa do Nosso
Santo.
§ 2º Adverte-se mais ao Irmão Juiz que não ____te a sua obrigação em dar sua
esmola para a festa e nos mais que fica exposto. Dar também como pessoa principal
da Mesa a___tos todos os Domingos, e dias Santos Missa conventual da Irmandade,
ordenado separadamente a Igreja com a decência e examinando as coisas precisas
para bem da mesma e da Irmandade, po_to em que deve fixar luz [?] da ___ razão.
Nas procissões, e enterros levará avará [?] indo a_ que_____ do Reverendo
219
Ibid, fl. 14.
AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 462.
221
É a partir da visão e da fala dos pardos que assumimos que o padre é um homem branco. Não temos nenhum
registro de batismo ou óbito para confirmar sua cor/qualidade, mas sua trajetória como clérigo, sua participação
na mesa da administração do hospital (na lista de homens brancos escolhidos pela irmandade), seu cargo de
professor de latinidade (AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 465).
220
82
Capelão no meio das duas alas de Irmãos, ou cobrindo a ala direita. Em seu poder
estará a primeira chave do cofre.
§ 3º Acomodará com o Reverendo Capelão todas as discordias entre os Irmãos: nos
atos da Irmandade pedirá mandar calar aos perturbadores, sempre com atenção e
caridade e com a mesma mandará sair para fora dos atos principalmente no das
Mesa, ao que lhe não obedecer mandaras convocar as mesas que lhe forem
requeridas pelo Irmão Procurador e as que lhe parecer necessárias. Terá maior
cuidado em que os Irmãos satisfaçam as suas obrigações, admoestando-os com
caridade aos omissos; e nomeará dois Irmãos para reverem as contas do Tesoureiro
a fim de que nem sejam contra o mesmo por engano, nem contra a Irmandade; e
será obrigado a mandar o Escrivão fazer as pautas dos Irmãos que hão de assistir a
Santíssimo Sacramento nos Júbilos rubricando-os com o seu sobrenome: bem como
todos os bilhetes e r____s que o Escrivão der aos Procuradores para que nada se faça
sem sua inspeção. Quando for a Igreja, os Irmãos o irão receber, e dis [?] pedir [?]
à porta da mesma pela que ele entrar, ou sair, e aos mais oficiais até a porta da
sacristia. 222.
Como se vê, o ocupante desse cargo, no exercício de suas obrigações, estaria sempre
em contato com os demais irmãos e bastante envolvido com a instituição. Dessa forma, o
dever de estar envolvido nas atividades diárias da irmandade e em contato constante com os
associados provavelmente resultou em mais reconhecimento e maior confiança pelos irmãos.
A distinção que muitos descendentes de africanos não alcançavam na sociedade, era possível
de ser alcançada entre os seus semelhantes. Se não conseguiam, ao menos não com a
facilidade que outros conseguiram, alcançar cargos administrativos e jurídicos, isso se tornava
possível em instituições como as irmandades.
O tesoureiro, em 1807, era Manoel José de Santana. Nascido em Penedo, foi soldado,
porta-bandeira, furriel e alferes na milícia (as participação nas duas instituições, deste e dos
demais, será melhor analisada no capítulo seguinte). A primeira exigência do compromisso
era que o cargo devia ser ocupado por “um Irmão de muita consciência e verdade, e que tenha
dos bens da fortuna para poder suprir com o seu dinheiro algumas faltas ordinárias da
Irmandade”223. Manoel Santana vivia de negociações, esta profissão provavelmente depôs em
seu favor na eleição que o escolheu para tesoureiro da instituição. O cargo tinha as seguintes
obrigações:
§ 1º O Tesoureiro deve ser um Irmão de muita consciência e verdade, e que tenha
dos bens da fortuna para poder suprir com o seu dinheiro algumas faltas ordinárias
da Irmandade. Terá em sua mão o cofre da Irmandade onde guardará todo o
dinheiro, prata e ouro da Igreja, tendo a terceira chave em seu poder dispendendo
do dinheiro que for preciso até a quantia de 50$ reis para si, e daí para cima por
ordem da Mesa. Terá muito cuidado da Sacristia, Altares, vigiando que a Sacristia
traga tudo muito ariado; e por isso nunca faltará a Missa Conventual dos
Domingos e dias Santos.
222
223
.Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia [...]. fl. 21.
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia [...], fl. 23.
83
§ 2º De nada do que receber por inventário disporá sem parecer da Mesa, ou da
maior parte dela sendo para bem da casa: dará sempre com prontidão o guizamento
para as Missas, azeite para as lâmpadas e vinho para os Irmãos que comungarem nos
dias dos Júbilos e satisfará toda a despesa que se fizer pelo Sacristão com a lavagem
e engomadura da roupa da Igreja. Todos os meses ajustará contas com o Procurador
Geral recebendo dele, o que houver cobrado por si e pelos de fora da Vila, e
igualmente as ajustará com o Procurador das casas. Terá muito cuidado em mandar
dizer as Missas pelos Irmãos que falecerem, e satisfará prontamente os quartos do
Reverendo Capelão e Sacristão; e convidará os Sacerdotes que forem precisos para
ajudarem o Reverendo Capelão nas confissões por [?] da Irmandade pedindo-lhes
vão dizer Missas em nossa Igreja pela tenção [benção?] dos Irmãos vivos e defuntos,
e por conta da Irmandade.
§ 3º Dará conta de toda receita e despesa do seu ano dentro de 8 dias depois da
festa que infalivelmente no primeiro Domingo depois desta que será obrigado a
fazer ainda no caso de ser reeleito pelo seu bom zelo, e o mesmo se praticará a
respeito do inventário, e nunca deixando as contas de um para outro ano sem serem
aprovadas pela Mesa e sentenciadas pelo Doutor Provedor de Capelas. Entregará a
Mesa todo o dinheiro que sobrar das despesas, [?] e o mais que tiver recebido
pertencente à Igreja e Irmandade. Nas procissões, enterros, e Mesas terá o lugar que
vai determinado no § 4 capítulo 1º, 3º.
§ 4º Havendo obras na Igreja ele será o Administrador delas fazendo férias aos
oficiais todas as semanas pela conta do Mestre da obra que será rubricada pelo
Irmão Juiz na forma sobredita portando-se nesta diligência com muito zelo.
Querendo emprestar alguma alfaia da Igreja, poderá fazer de modo que lhe convier
atendendo ao seu benefício, pois que deverá dar conta de tudo do mesmo ano do
estado em que se lhe entregar, pagando de sua bolsa todo extravio, e ruína que
tiverem as mesmas por causa do empréstimo; e não pagará coisa alguma de
Mordomagem se não o simples anal [sic], atendendo ao seu trabalho, e por sua
morte terá os sufrágios que adiante vão prescritos224.
Ao tesoureiro cabia, basicamente, tomar conta dos bens financeiros da irmandade. Este
oficial era responsável por guardar dinheiro e cuidar do cofre, providenciar objetos para a
realização de cerimônias, era também encarregado da realização das missas para os irmãos,
era administrador de quaisquer obras que porventura a igreja e a irmandade necessitassem.
Em síntese, era responsável pela conservação financeira e material da irmandade, por isso a
exigência de alguém com algum cabedal: os rendimentos advindos da profissão de negociante
exercida por Manoel José de Santana devem ter suprido necessidades da irmandade em
épocas de instabilidade ou eventuais dificuldades (roubos, desfalques, empréstimos não
devolvidos) o que lhe garantiu cargo de tesoureiro.
Francisco Manuel Martins Ramos, natural de Penedo, na milícia foi soldado e
ascendeu aos postos de Porta-bandeira, ajudante de número, sargento-mor e a coronel do
regimento. Era filho do Comandante Manoel Martins Ramos (benfeitor que doou os bens para
a construção da igreja da irmandade) e enteado do Sargento-Mor Libório Lázaro Leal (homem
de destaque na localidade) e também fez parte da irmandade, chegando a ocupar mais de um
224
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia [...]. Fls. 23-24.
84
cargo durante sua trajetória nessa instituição religiosa: o de escrivão e o de procurador geral.
Enquanto escrivão, sua posição foi inferior apenas à de juiz e devia, como acusa o nome do
cargo, escrever tudo o que fosse solicitado pelo dito juiz e pela Mesa como cartas, bilhetes,
termos de entrada, petições, protestos. Deveria também, e isto era tarefa exclusiva do
escrivão, registrar nos livros tudo o que acontecesse no cotidiano da instituição especialmente
termos relativos a pagamentos. Em resumo, ao escrivão cabia fazer todo e qualquer tipo de
registro de que necessitasse a instituição para seu pleno funcionamento e manutenção da
organização.
Já enquanto procurador geral, no qual Francisco Martins Ramos estava desde pelo
menos 1807, suas obrigações eram bem maiores:
§ 1º O procurador geral da Irmandade deve ter as mesmas qualidades do
Tesoureiro pois que a ele pertence cobrar todas as dívidas da Irmandade, como
Anuais, mesadas, Juros, __a para todos os meses entregar ao Tesoureiro junto com o
que tiver recebido dos Procuradores de fora da Vila que lhe remeterão como adiante
se declara, declarando nas contas que der as pessoas que pagarão e dando a elas
recibo se lhe pedirem, e apresentação a Mesa das contas as suas relações mensais
com recibo do Tesoureiro no fim de cada uma, para serem conferidas com a relação
geral do mesmo Tesoureiro.
§ 2º Procurará e requerirá tudo aquilo que for a bem da Irmandade quando vir que
contra ela se obra, fazendo igualmente as partes de toda ela, julgando-se necessária
a Mesa dará parte ao Juiz que a deverá mandar logo convocar, e nela própria a
matéria que ninguém lhe a poderá exigir, antes, ou fora dela, não se contentando
com a resolução da Mesa particular requererá feral devendo ____ pelo que for por
esta deliberado. Não sofrerá coisa alguma contra o disposto nesse compromisso,
nem contra o bem temporal, e espiritual da Irmandade.
§ 3º Irá com frequência a Igreja ver se há falta de alguma coisa, e em qualquer ato
da Irmandade principalmente no da Missa Conventual dos Domingos, e dias Santos
será o primeiro que nela se ache indagando o que falta, e levando o que for
necessário e requerido ao Tesoureiro toda a______ providência; o mesmo fará
quando morrer algum Irmão, dando parte logo ao Juiz, Escrivão e Tesoureiro, e
mandando o Zelador avisar aos mais Irmãos da Mesa; e da Irmandade que estiverem
dentro da Vila para o acompanharem, e o mesmo fará a respeito das Procissões e
Mesas obedecendo a estas em tudo o que for a bem da Irmandade e ao Juiz como
cabeça dela.
§ 4º Aos seis meses avisará ao Juiz, e Juíza, que senão d_______ de prepararem-se
para a Festa. Estando doente algum Irmão, o visitará da parte da Irmandade,
advertindo lhe se mormente a Deus para que disponha o que for melhor para sua
Salvação. Se falecer dirá logo ao Escrivão para lhe fazer a conta, e ver se ficou
devendo alguma coisa, e verá se os herdeiros querem pagar, e não querendo avisarão
ao Tesoureiro para descontar nas Missas que requererá logo ___ as mande dizer sem
perda de tempo. Lembrará aos Procuradores de fora da Vila a pronta cobrança das
dívidas da Irmandade. Repartirá a bolsa pelos Mordomos a cada um seu mês,
recebendo deles quando lha [sic] forem entregar no fim de cada mês o dinheiro que
tiverem tirado, e dando-lhes recibo, e tendo nisto descuido, ele será obrigado a t__ar
__as esmolas.
§ 5º Além das ocasiões sobreditas convocará Mesa de três em três meses para se
determinar o que for a bem da Irmandade, e por todo este trabalho nada pagará de
85
mordomagem mais que o simples anual [sic]. Nas procissões, e enterros ele levará a
Cruz da Irmandade o Procurador das Casas, e o Zelador os seriais.
§ 6º Pelas obrigações do Irmão Procurador Geral se deduzirão as dos Procuradores
de fora da Vila com a diferença que ele sem p__ furrirá [?] [sic] aos outros, e até ao
das casas, posto que todos tenham o mesmo lugar; __dos de fora da Vila farão
remessa do que cobrarem pertencente à Irmandade do Irmão Procurador Geral para
este fazer entrega ao Irmão Tesoureiro, as suas mordomagens. São as mesmas do
Procurador Geral e uns, e outros por sua morte terão os sufrágios que adiante se
referirão e da mesma forma o procurador das casas.
§ 7º O Procurador das casas da Irmandade o será também d'Administração do
Hospital, tendo cuidado a Mesa de lhe advertir a distinção, que deve haver para
senão confundirem os re_ditos dos a n_ng__ de umas com as d'outras, tendo dois
reis para uma, e = outra cobrança, por que os do Hospital serão lançados em seu
livro competente, e os da Irmandade no seu respectivo livro. Deverá todos os meses
depois de cobrados os alugueis dar conta ao Irmão Tesoureiro, havendo deste os
r_____ no fim dos seus reis mensais, em que declare as pessoas que pagarão para na
conta geral do Tesoureiro conformem.
§8º Sem parecer do atual Tesoureiro não poderá alugar as casas à pessoa alguma;
ficando ambos responsáveis por todo o prejuízo que se seguir do abuso desta
disposição, não consentindo que os alugadores deixem o pagamento de um para
outro mês225.
Como podemos ver, o cargo de procurador geral da irmandade de São Gonçalo Garcia
era o que fazia a ligação entre a instituição e a sociedade. Francisco Manoel Martins Ramos
esteve várias vezes à frente da irmandade, representando a mesa e mais irmãos associados
perante o Conselho Ultramarino, na busca por garantir os interesses da instituição. Dessa
forma, tinha a maior quantidade de obrigações sendo o encarregado de resolver toda e
qualquer pendência e assunto inerente à irmandade, tendo seus serviços auxiliado e
complementado pelas tarefas do Procurador de fora e, às vezes, condicionados à autoridade do
Tesoureiro. Por exigência da mesa, deveria ter as mesmas qualidades de quem ocupasse o
cargo de tesoureiro já que, entre suas responsabilidades, estava a de cobrar todas as dívidas e
pendências financeiras e outros assuntos relativos à economia da instituição e repassar tudo ao
tesoureiro. Também estava incumbido de convocar mesas e visitar irmãos doentes e vários
outros deveres. Já o procurador das casas também teria o mesmo cargo na administração do
hospital e seria o responsável por cuidar do patrimônio imobiliário da irmandade, que possuía,
em 1807, 12 moradas de casas das quais arrecadava algum recurso financeiro.
Francisco Manuel Martins Ramos foi um dos homens de maior destaque na Vila do
Penedo em fins do século XVIII e, particularmente, nas duas primeiras décadas do XIX,
voltaremos a abordar sua trajetória no próximo capítulo. A rede de sociabilidade que compôs
deve ter sido bastante extensa: era filho de um dos homens que fundou a primeira e única
225
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia [...]. Fls. 25-27
86
irmandade de pardos da vila (que também era um militar de destaque), além de fazer parte de
duas instituições de importantes da sociedade colonial (a milícia e a irmandade), ocupou os
postos mais altos das hierarquias internas de ambas. Sua trajetória na milícia, seu parentesco e
sua rede de contatos certamente foram fatores que favoreceram sua ascensão na hierarquia
social das instituições e da própria sociedade colonial.
O cargo de zelador era cheio de responsabilidades, porém não tão almejado quanto os
outros. No capítulo em que estão especificadas suas obrigações há algo interessante sobre a
forma como seriam escolhidos. Ainda que houvesse eleições, existia a possibilidade desse
cargo não ser preenchido através desta, mas sim em troca do que se devia pagar pela entrada
na irmandade. Conforme o compromisso:
§ 1º O Zelador terá muito cuidado em avisar aos Irmãos para as mesas, Procissões,
e enterros, tocando para estes a campainha [sic] pelas ruas da Vila sendo
necessário. Terá igual cuidado em avisar ao Sacristão para repiscar [?], dobrar,
tocar mesa, abrir a Igreja, e preparar tudo aquilo que lhe pertencer desempenhando
o seu mesmo nome em tudo que disser a bem da Irmandade, e asseio da Igreja:
levará todos os papeis, cartas e recados que a Mesa ou o Juiz mandarem portandose contudo com o maior zelo, e prontidão de sorte que diga bem o lugar que ocupa
com a Pessoa que o executar, este poderá ser perpétuo, querendo ele e também
poderá ocupar o lugar de Procurador quando este estiver impedido ficando isto ao
arbítrio do Juiz atual.
§ 2º Será obrigado a assistir a Missa Conventual nos Domingos e dias Santos a sua
mordomagem será o anual [sic] de Irmão simples. Havendo alguma pessoa qualquer
servir a dita ocupação não sendo Irmão o sendo útil à Irmandade no fim do ano se
lhe fará termo de Irmão, ficando oferecido [o serviço] de Zelador pela entrada226.
Ao zelador, portanto, eram designadas as tarefas mais próximas do que seria um
trabalho mecânico: estar nas ruas tocando campainha e avisando aos membros da irmandade
sobre reuniões e outras solenidades, entregar papeis, cartas e recados que a mesa ordenasse e
zelar pelo bem da Irmandade e asseio da Igreja, tanto que existia a possibilidade de algum não
associado ocupá-la em troca da entrada na instituição. Diferente deste último cargo, os de
Sacristão e Capelão eram escolhidos pela Mesa. O Sacristão poderia ser um irmão da
irmandade e ficava encarregado dos cuidados com a igreja: abrir as portas da igreja em dias
de missa, cuidar das lâmpadas do santo, varrer a igreja e sacristia, espanar os altares, mandará
lavar roupa, enfim, deveria deixar tudo limpo e asseado para o uso da igreja e andamento das
atividades religiosas da associação227.
226
227
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia [...]. Fls. 27-28
Ibid, fls. 28-30.
87
O Padre Gabriel José Pereira de Sampaio era o capelão no ano de 1807. Era obrigado a
dizer missa todos os domingos e dias santos, fazer a novena, assistir a festa do Santo e
cuidaria de tudo quanto fosse relacionado à “economia espiritual”228 dos irmãos e da
irmandade e estar presente em momentos solenes da irmandade, como a posse de mesa após
as eleições anuais. Uma vez que somente o capelão era membro do clero, sua função parece
ter sido a de manter o elemento religioso e a ligação com o Deus católico nessa instituição
composta por civis e militares e que reproduzia tantas características da sociedade colonial.
Porém o próprio padre conquistou alguma distinção através de sua participação na irmandade,
pois, antes de ser escolhido capelão, havia exercido por cinco anos o cargo de juiz e foi um
dos escolhidos para compor a mesa da administração do hospital, na lista dos homens
brancos, considerado um bem feitor e alguém que teve muito zelo com a irmandade229.
Como vimos, a irmandade foi uma instituição cuja estrutura interna seguia a lógica da
forma como a sociedade se organizava. Existiam hierarquias, lugares e funções específicos
que deveriam ser ocupados por pessoas distintas, com características e qualidades notáveis.
Os ritos da morte também demonstram como a distinção alcançada durante a vida era algo
significativo. Segundo João José Reis, uma das formas mais temidas de morte era a morte
sem sepultura certa230 e as irmandades foram unânimes quanto à necessidade de proporcionar
funerais decentes aos confrades e a seus familiares e mesmo a não-associados231. Como se vê
no quadro abaixo, a irmandade se prontificava a rezar missas e colocar tumba dos irmãos
dentro da igreja, território considerado sagrado. A depender do quanto cada indivíduo pode
ascender na hierarquia interna da instituição, a quantidade de missas aumentava e a tumba
seria posta em lugares distintos.
QUADRO 7: Dados sobre os enterros dos irmãos (1807)
CARGO
QTDE. DE MISSAS
LOCAL DA TUMBA
Protetor
16
Carneiro
Juiz
16
Carneiro
Juíza
16
Carneiro
Escrivão
12
Capela-mor
Escrivã
12
Capela-mor
Tesoureiro
12
Capela-mor
Procurador geral
12
Capela-mor
Outros procuradores
11
Das grades para cima
Zelador
11
Das grades para cima
Mordomos
11
Das grades para cima
228
Ibid, fl. 19.
AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 462, fls. 3-4.
230
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 171.
231
Ibid, p. 146.
229
88
Substitutos
11
Das grades para cima
Demais irmãos
10
Corpo da igreja
Fonte: Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da
Vila de Penedo. [...]. 1807. Fl. 31.
Conforme o quadro acima, dependendo da função do associado na irmandade, o lugar
de sua tumba era mais perto ou mais afastado do altar, local privilegiado e uma segurança a
mais para a alma, atitude relacionada à prática medieval de valorizar a sepultura próximo aos
túmulos de santo e mártires da cristandade232. A lógica era que a dedicação à irmandade e os
deveres (que aumentavam conforme a posição na hierarquia) colocava os irmãos
simbolicamente mais próximos da salvação, representada pelo altar-mor.
O carneiro, ainda conforme Reis, foi um lugar que representou uma outra forma de
distinção que acabava com a proximidade entre mortos socialmente diferentes tendo sido
concebido como um tipo de sepultura privilegiada233. E de fato, a irmandade de São Gonçalo
Garcia da Vila do Penedo destinou o sepultamento em seu carneiro para os cargos de maior
relevância que eram o de juiz, o da juíza, do protetor e ao Comandante Manuel Martins
Ramos “em recompensa do muito que obrou em benefício desta Irmandade, e o seu Carneiro
servirá para todos os seus descendentes como já está determinado”234.
Em relação aos filhos dos irmãos associados, os “machos”235, até a idade de 14 anos,
ganhavam sepultura gratuita no corpo da igreja e as “fêmeas”236, tinham o mesmo direito até
quando se casassem. Os que não eram irmãos também tinham acompanhamento da irmandade
na hora da morte. Para enterrar crianças no corpo da igreja, eram cobrados 1$000 réis, no
cruzeiro, 4$000, na Capela-mor, 8$000 e nos Carneiros, 16$000. Já para adultos, a cobrança
era de 2$000 réis para serem enterrados no corpo da igreja, 8$000, no cruzeiro, 16$000 na
Capela-Mor e nos Carneiros, 32$000. A mesa também se reservava ao direito de conceder
tumba gratuitamente a algum pobre. Por mais que todos gozassem do direito a um enterro
digno no fim da vida, uma preocupação da sociedade colonial, as responsabilidades que
exerceram no cotidiano da irmandade apontam a importância das posições hierárquicas
ocupadas, que eram representadas pelos lugares em que os irmãos eram sepultados e pela
quantidade de missas que se deveria dizer. É importante frisar que não eram os indivíduos que
232
REIS, João José. Op. Cit., p. 176.
Ibid, pp. 178-180.
234
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia [...]. Fl. 32.
235
Idem.
236
Idem.
233
89
teriam uma determinada quantidade de missas, e sim os cargos que ocupavam. Também na
hora da morte, no momento em que distinção era um elemento presente refletindo a
organização social dos vivos237.
É interessante notar que, embora em nenhum dos registros da irmandade de São
Gonçalo Garcia tenhamos encontrado presença efetiva de mulheres, havia espaço e cargos
para elas na irmandade238. A elas eram reservados os cargos de juíza, escrivã e mordoma 239.
A juíza além de contribuir com o estipulado no compromisso para a realização da festa
deveria custear também as fogueiras e luminárias necessárias para a cerimônia. Fora isso, nos
capítulos em que aparecem seus deveres e funções no cotidiano da instituição 240, sua
participação se assemelha a do juiz, devendo ela estar o acompanhando ou substituindo.
Diferente do cargo de escrivão, que, como dito anteriormente, era o que detinha a
responsabilidade de registrar as movimentações financeiras e de pessoal da irmandade, à irmã
escrivã só foi dedicado um parágrafo do compromisso, no qual é estabelecido o quanto esta
deveria pagar de mesada e as obrigações religiosas específicas que deveria cumprir, pois
atividades comuns como a festa, cortejos fúnebres e outras celebrações de maior importância
contariam com a participação de todos os confrades.
Embora a única ligação aparente entre a irmandade e a milícia de que estamos tratando
neste trabalho seja o fato de terem sido compostas por homens pardos, a presença de vários
deles nos dois lugares é significativa e revela que além de estarem ocupados em várias
atividades da vida cotidiana, os pardos estavam em contato com pessoas de qualidades
variadas e ganhando visibilidade fortalecida pela entrada e permanência naquelas duas
instituições. No capítulo seguinte, nosso foco será a análise do regimento de milícia dos
homens pardos da Vila do Penedo. Essa instituição foi o lugar que conferiu maior distinção
aos pardos da Comarca de Alagoas, revelando tensões com outros indivíduos, grupos e
instituições sociais e proporcionando uma oportunidade de mobilidade social que poucos
pardos haviam experimentado.
Os pardos da Vila do Penedo, além de se organizarem em uma irmandade, também o
fizeram em corpos militares. Vimos que alguns dos oficiais da milícia também estavam na
237
REIS, João José. Op. Cit., p. 176.
Infelizmente, ainda não encontramos evidência de nenhuma mulher associada à irmandade, na verdade ainda
não temos qualquer registro de mulheres pardas na documentação.
239
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia [...]. Fls. 25-27.
240
Capítulos 1º, 3º, 7º, 10º, 13º e 15º.
238
90
Irmandade de São Gonçalo Garcia não apenas como irmãos ou soldados, mas ocupando
cargos da alta hierarquia interna das duas instituições. Se não possuíam cargo na irmandade,
algum familiar possuía (e vice-versa: pai na milícia, filho na irmandade, ou pai na irmandade
e filho na milícia)241, configurando uma estratégia comum de manutenção na rede de
sociabilidade dos pardos e dos benefícios que a participação em uma dessas instituições
poderia propiciar. A entrada em uma associação militar ou religiosa, ou nas duas, parece ter
virado estratégia comum entre os pardos da Vila do Penedo no período colonial. Dependendo
da família, da região, das dinâmicas sociais e da economia local, do período, entrar para a
milícia e/ou para a irmandade poderia ser garantia de ascensão social, como será visto a
seguir.
241
E nas duas instituições encontramos somente homens entre os membros, ainda que na irmandade houvesse
cargos reservados para mulheres e algumas especificidades como o valor que pagariam de esmola.
91
4. MILÍCIA, PARDOS E MOBILIDADE SOCIAL
De acordo com Francis Cotta, as organizações militares foram criadas no Brasil para
serem empregadas basicamente em três situações: 1) na manutenção da ordem social
(suprimindo comportamentos e movimentos que iam contra a ordem vigente, especialmente
os de origem quilombola e indígena), 2) na defesa das fronteiras e 3) na expulsão de
estrangeiros242. A necessidade de assegurar a presença e a conservação do Império Português
e de todo seu corpo de instituições nos territórios coloniais foi a principal justificativa para a
criação dos vários corpos militares que existiram ao longo de todo o período aqui tratado e
sua atuação buscou afirmar o poder do Estado moderno, absoluto, burocrático e barroco243
português nos territórios de seu império.
A conjuntura da década de 1760 foi decisiva na forma como Portugal se organizou
militarmente pelo restante da segunda metade do século XVIII, recorte do nosso trabalho. As
relações diplomáticas e comerciais com a Inglaterra, por mais de uma vez, colocaram nas
mãos da Coroa Portuguesa a necessidade de tomar decisões difíceis e custosas às suas
dinâmicas. “A troca da proteção política da Inglaterra pelo apoio luso nos conflitos
continentais e por vantagens econômicas em suas possessões ao redor do mundo”244
impossibilitou que Portugal se mantivesse como uma nação neutra nos conflitos que
porventura envolvessem os ingleses. Um desses episódios, a Guerra dos Sete Anos contra os
franceses, exigiu que os lusos colocassem à prova a sua organização militar. Dentre outras
consequências, como a transferência da capital do Estado do Brasil de Salvador para o Rio de
Janeiro, o resultado foi uma reforma política, já mencionada anteriormente, que abrangeu
também o modo como estavam organizados os corpos militares e, por conseguinte, a proteção
dos territórios sob domínio da Coroa Portuguesa na América.
A reforma militar se deu a partir de Carta Régia de 22 de Março de 1766245, cuja
finalidade era disciplinar e corrigir as irregularidades notadas pelo rei nas tropas auxiliares,
que considerava uma das principais forças para a defesa246. Na carta, o rei ordenava que
242
COTTA, Francis Albert. Negros e mestiços nas Milícias da América Portuguesa. Belo Horizonte:
Crisálida, 2010, pp. 35-36.
243
VANDERLEI, Kalina. Nas solidões vastas e assustadoras – os pobres do açúcar e a conquista do sertão
de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de
Pernambuco. Recife: Domínio Público, 2003, p. 13. Disponível em:< http://www.dominiopublico.gov.br/>.
244
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 52.
245
A transcrição da carta encontra-se nos anexos.
246
AHU_ACL_CU_015, Cx. 103, D. 8006.
92
fossem alistados todos os moradores das terras da jurisdição de Pernambuco “sem exceção de
nobres, plebeus, brancos, mestiços, pretos, ingênuos e libertos”247 e que fossem formados
terços Auxiliares, de Ordenanças, de Infantaria e de Cavalaria para que, auxiliando as Tropas
Regulares, realizassem a proteção das comarcas.
Se antes dessa carta, já existiam oficiais pardos, e em menor frequência, pretos, nos
regimentos, essa exigência de que se extinguissem as distinções a partir da reforma causaram
uma multiplicação do fenômeno das milícias pardas, notado por Ana Crispin248. Apesar da
ordem régia de os moradores serem alistados sem distinção, o que de fato foi feito como
vimos nos dados populacionais do quadro 2 coletados durante a gestão dos governadores José
César de Meneses e D. Tomás José de Melo, os corpos militares que atuaram na defesa da
Comarca de Alagoas mantiveram a composição baseada nas diferenças e estavam divididos
pelas qualidades dos seus componentes: Terço Auxiliar dos Homens Brancos e o Terço
Auxiliar dos Homens Pardos. Ana Crispin acredita que não só os brancos evitavam servir
com os pretos e pardos, mas existia um desejo por parte dos descendentes de africanos de
manter regimentos próprios e suas distinções249.
De acordo com a Carta, na sua execução somente receberiam soldo os oficiais
responsáveis por disciplinar os novos terços a serem formados, que seriam escolhidos pelo
Governador da Capitania entre os integrantes das Tropas Regulares. Os demais, somente
receberiam um uniforme. Além disso deveriam custear suas espadas e armas, no caso dos das
tropas auxiliares e de ordenanças, e possuir cavalo e um escravo, no caso da cavalaria 250. Tal
ordem seguia a organização militar clássica de Portugal, na qual somente as tropas regulares
receberiam soldo, fardamento, armamento, farinha, azeite, capim, cavalos e assistência
médico-hospitalar. As tropas auxiliares, como era o caso do regimento dos pardos da Vila do
Penedo, teoricamente gozariam de foro militar, sendo isentos de contribuir com fintas, taxas e
247
Ibid, fl. 1.
CRISPIN, Ana Carolina Teixeira. Além do acidente pardo: os oficiais das milícias pardas de Pernambuco
e Minas Gerais (1766-1807). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense , Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História – 2011, p. 22. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1490.pdf>.
249
Ibid, p. 35.
250
“Formeis terços de Auxiliares e Ordenanças, assim de Cavalaria, como de Infantaria, que vos parecerem mais
próprios para a defesa de cada uma das Comarcas dessa Capitania criando os oficiais competentes e nomeando
um Sargento-Mor escolhido entre os oficiais das tropas pagas, que vos parecerem mais capazes de exercitar o
referido posto. Com o qual vencerão o mesmo soldo que vencem os outros sargentos-mores da tropas regulares
dessa Capitania, pago na mesma forma pelos rendimentos da Câmaras dos Respectivos distritors”.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 103, D. 8006, fl. 1.
248
93
outros encargos ou tributos impostos pelas câmaras e as ordenanças deviam possuir armas e
equipamentos, mas não recebiam soldo251.
O Terço Auxiliar dos Homens Pardos da Vila do Penedo foi criado em 3 de agosto de
1774, na onda da repercussão das ordens da carta do Rei de 1766. Não possuímos dados sobre
sua organização e composição para o período inicial, mas em 1789 o governador D. Tomás
José de Melo mandou que fosse feita revista em todos os regimentos, o que nos legou
informações sobre sua estrutura interna. Neste ano, o terço de pardos, comandado pelo Mestre
de Campo Martinho Pereira Álvares, possuía 506 homens (nas 507 vagas existentes): seis
eram os oficiais de alto escalão (Mestre de campo, Sargento mor, este cargo encontrava-se
vago no ano da revista, Ajudante, Capelão-mor, Cirurgião-mor, Furriel-mor e Tambor-mor),
os demais eram os oficiais e soldados distribuídos nas dez companhias, cada uma com
cinquenta homens252, organizados da seguinte forma:
a) 1ª Companhia sob o comando do próprio Mestre de Campo Martinho Pereira
Álvares;
b) 2ª Companhia de Granadeiros do Capitão Manoel José Correa;
c) 3ª Companhia do Capitão Antonio Pereira dos [?];
d) 4ª Companhia do Capitão Reinaldo Correa da Costa;
e) 5ª Companhia do Capitão Francisco da Rocha Barbosa;
f) 6ª Companhia com cargo de capitão vago;
g) 7ª Companhia do Capitão Antonio José dos Santos;
h) 8ª Companhia do Capitão de Manoel Ferreira de Mello;
i) 9ª Companhia do Capitão Libório Lázaro Leal;
j) 10ª Companhia do Capitão Anselmo Gomes da Cunha253.
Na virada para o século XIX, o terço auxiliar dos pardos de Penedo passou a utilizar a
denominação de Regimento de Milícia dos Homens Pardos, seguindo Real Decreto de 7 de
agosto de 1796. Em 1819, todo o efetivo do regimento estava distribuído por “7 distritos e na
251
Somente as tropas regulares receberiam soldo, fardamento, armamento, farinha, azeite, capim, cavalos e
assistência médico-hospitalar. As tropas auxiliares receberiam armas e gozariam de foro militar, sendo isentos de
contribuir com fintas, taxas e outros encargos ou tributos impostos pelas câmaras. As ordenanças deviam possuir
armas e equipamentos e não recebiam soldo. In: COTTA, Francis Albert. Op. Cit., pp. 41-46.
252
“Mappa do terço terço auxiliar da Vila do Penedo de que é Mestre de Campo Martinho Pereira Álvares em 23
de novembro de 1788”. In: AHU_ACL_CU_015, Cx. 167, D. 11870.
253
Idem.
94
extensão de 37 léguas”254. As companhias da Vila do Penedo possuíam 512 homens alistados
e operavam dentro da seguinte organização:
a) 1ª Companhia de Caçadores: do Capitão Manoel do Rozario da Silva: atuação e
moradia dos militares no distrito da Povoação de Piaçabuçú;
b) 1ª companhia do Capitão Manoel José de Santa Anna: atuação e moradia dos
militares no distrito da Vila do Penedo;
c) 2ª companhia do Capitão Manoel Felix do Carmo: atuação e moradia dos militares
no distrito da Vila do Penedo;
d) 3ª companhia do Capitão Joaquim José de SantaAnna: atuação e moradia dos
militares no distrito da Povoação de Coruripe;
e) 9ª Companhia de Granadeiros sem capitão: atuação e moradia dos militares no
distrito da Vila do Penedo
f) Estado Maior, que não era companhia e era formado na Vila do Penedo.
Tinham como objetivo a defesa das barras do Rio de São Francisco, Barra do Peba e
de Coruripe255, que juntas formam a foz do rio São Francisco. O Regimento possuía, no total,
dez companhias, mas encontramos somente as listas dos corpos acima elencados. A propósito,
segundo ofício do Coronel, alguns postos encontravam-se vagos e a maioria era justamente os
das companhias das quais não encontramos o registro: Sargento-mor (vago pela ascensão de
Francisco Manuel Martins Ramos à Coronel do Regimento), Capitão da 4ª Companhia (vago
por baixa), Tenente da 5ª companhia (vago pela ascensão do tenente ao posto de capitão da
mesma companhia), Tenente da 6ª companhia (vago pela ascensão do tenente ao posto de
capitão da mesma companhia), Capitão da 7ª companhia (vago por falecimento), Capitão da
9ª de Granadeiros (vago por falecimento)256.
A Vila de Alagoas, nesse mesmo período, também chegou a possuir um braço do
regimento dos pardos, porém na forma de Terço de Infantaria Auxiliar que, inicialmente, não
possuía distinção de qualidade na sua composição257. Em 1819 a sede da Província tinha em
sua jurisdição 98 homens alistados também sob a autoridade do Coronel Francisco Manuel
254
Ofício de 29 de janeiro de 1819. In: Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos
de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
255
Idem.
256
Ofício de 18 de março de 1819. In: Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos
de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
257
“Mappa do Terço Auxiliar da Vila das Alagoas de que é Mestre de Campo José Pereyra de Castro em 1º de
dezembro de 1788”. In: AHU_ACL_CU_015, Cx. 167, D. 11870.
95
Martins Ramos. Também a Vila de Maceió recebeu uma das companhias do regimento
segundo ordem do governador da Capitania de Alagoas, Sebastião Francisco de Melo e
Póvoas, expedida em 13 de agosto de 1819258. Sobre os homens que compuseram o
Regimento de Milícias dos Homens Pardos na Capitania de Alagoas, tanto para a Vila do
Penedo como para a de Alagoas, Francisco Manuel Martins Ramos coletou as seguintes
informações:
1) Nome;
2) Idade
3) Local de nascimento;
4) Local de moradia;
5) Estado civil;
6) Filiação;
7) Profissão;
8) Cargo na milícia.
Foram anotados igualmente alguns dados sobre o tempo e trajetória na milícia de cada
um dos indivíduos. Essa quantidade de informações nos permitiu conhecer alguns aspectos
das dinâmicas da Vila do Penedo no primeiro capitulo e permitirá conhecer a singularidade
dos perfis dos homens pardos verificando a extensão e o poder da rede construída por esses
indivíduos ao longo da segunda metade do século XVIII. Dessa forma, neste capítulo
buscaremos mostrar como a instituição da milícia operou nas trajetórias de homens pardos na
Província de Alagoas utilizando como referência a organização, a composição das
companhias e o perfil dos militares alistados no regimento de milícias dos pardos no ano de
1819, sob o comando do Coronel Francisco Manoel Martins Ramos, personagem de destaque
não só na milícia e na irmandade de São Gonçalo, mas também na Vila do Penedo como um
todo. Ainda que seja um período relativamente distante da data em que foram criados e se
multiplicaram os regimentos de milícias no XVIII, veremos que algumas características foram
permanentes como, por exemplo, a busca pelo afastamento do cativeiro, o uso dessa
instituição, e do acúmulo da participação em mais de uma instituição, como estratégia de
distinção social, a influência da família.
258
Ofício de 31 de agosto de 1819. In: : Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens
Pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
96
4.1 Estratégias de distinção: milícia dos Pardos.
Revelando um aumento do número de pardos no contingente populacional e
contrariando exigências antigas da Coroa Portuguesa259, os regimentos milicianos
continuavam a perpetuar a distinção social entre os indivíduos. A relação dos regimentos de
milícias da Capitania de Pernambuco, elaborada em 1806 pelo Governador Caetano Pinto de
Miranda Montenegro, atesta a continuidade da hierarquização da sociedade, que estava
refletida também nos corpos militares:
Todos os Regimentos de Cavalaria são de Brancos. O Regimento de Pardos de
Olinda tem companhias nos distritos da Vila de Iguarassú e de Goiana, e por isso foi
denominado Regimento dos Pardos da Repartição do Norte. Um dos regimentos dos
Pardos do Recife estende-se até o princípio da Comarca das Alagoas, e por esta
razão se denomina Regimento dos Pardos da Repartição do Sul. Os dois Regimentos
de Henriques são muito dispersos, principalmente o Regimento Velho deste nome, o
qual tem vinte e quatro Companhias, e até na Vila do Penedo tem duas, distando a
dita Vila desta Capital noventa léguas. O Regimento dos Pardos do Penedo
compreende toda aquela Comarca, e a sua verdadeira denominação é Regimento dos
Pardos da Comarca das Alagoas260.
Segundo esse ofício do governador, os mestiços (referindo-se aos pardos em particular
e provavelmente às suas condições de livres em contraposição aos pretos) “excedem já, ou
hão de vir a exceder a cada uma das outras espécies [e] ajuntando-se os pardos aos pretos,
virão a fazer o quádruplo dos brancos” 261.. Embora não tenha feito referências à quantidade
quando tratou dos regimentos de brancos, ao compararmos os números reais percebemos que
a relação foi escrita de forma que passasse intencionalmente a imagem de uma maior
quantidade de milícias compostas por pardos e pretos, quando na verdade, segundo a
contagem do próprio governador, os regimentos de brancos estavam em quantidade
superior262. Percebe-se, dessa forma, que a autoridade se mostrou bastante avessa à
quantidade de corporações compostas por pretos e pardos e às possibilidades de mobilidade
social ofertadas por essa instituição a indivíduos que considerava detentores apenas de uma
força física, quando o que deveria ser estimulado era o crescimento da força moral, que,
259
“Tal era a Provisão de 4 de Janeiro de 1751, a qual proibia, que houvessem corpos separados de Pardos, e
Bastardos, mandando alistar indistintamente todos os moradores de um distrito; e a Provisão de 12 de janeiro de
1733, que dispôs o mesmo a respeito dos Pretos. Tal poderia ser um dos fins da Provisão de 8 de setembro de
1753, ordenando que nesta Capitania, e suas Anexas, houvessem somente quatro Terços Auxiliares, os quais não
podiam acomodar nem a primeira espécie de habitantes [brancos]”. In: AHU_ACL_CU_015, Cx. 259, D. 17405,
fl. 2.
260
AHU_ACL_CU_015, Cx. 259, D. 17405, fl. 6.
261
Ibid, fl. 1.
262
Do total de 19 corpos da Capitania, treze eram compostos por brancos, quatro por pardos e dois por pretos.
97
obviamente, pela posição contrária que tomou em relação aos descendentes de africanos, era
de posse exclusiva dos homens brancos263.
Assim, é seguro dizer que a participação na milícia foi de fato um fator diferencial na
trajetória dos pardos da Capitania de Pernambuco. É nessa instituição que vemos acentuadas
as tensões que envolveram processos de mobilidade e distinção social, pois além de
disputarem espaço de atuação com os brancos, de terem suas conquistas diminuídas de várias
formas, de serem reduzidos à força física, existiram disputas dentro do próprio círculo dos
pardos causadas por interesses particulares, mas também pelo que acreditamos ter se tornado
um sentimento de grupo, de pertencimento a uma determinada qualidade de pessoas.
Janaína Bezerra relata um caso de desentendimento entre dois oficiais pardos na Vila
do Recife. A querela era a respeito de questões relativas ao perfil dos pardos da região ligado
às possibilidades de ascensão social. Em 1800, foi escolhido, por uma junta governativa, um
oficial para ocupar o posto de Tenente-coronel do regimento do Coronel José Rabelo de
Vasconcelos. Segundo a carta-régia de 1766, o Coronel indicaria três nomes e a junta
escolheria o mais apto, mas isto não aconteceu, pois os oficiais apontados por Vasconcelos
não possuíam carta patente confirmada. O escolhido foi outro oficial, o Capitão Dionísio
Antônio Gomes de Sá que, ao contrário dos outros, possuía a patente. José Rabelo de
Vasconcelos prontamente colocou-se contra a escolha da junta justificando que os generais
não haviam deixado cientes aos chefes das milícias que as patentes deviam ser confirmadas e
por um motivo que revela uma preocupação com a trajetória e a imagem do próprio Coronel
e, consequentemente, dos demais pardos da região. José Rabelo considerava que Dionísio não
merecia ocupar tal posto por ser músico, praticante das artes liberais e viver “cantando
modinhas por casas particulares, e por assembleias de prostitutas públicas”264. Para o Coronel,
esse comportamento, diferente do dele próprio, era motivo de vergonha e justificativa
plausível para tornar Dionísio indigno de respeito e admiração265. Além do descrédito de ter
tido suas indicações invisibilizadas, o que pode ter sido motivo de constrangimento e
possivelmente do enfraquecimento de sua autoridade, o Coronel preocupou-se ainda com a
263
“Os brancos são os possuidores das Terras e das riquezas. Os Pardos e Pretos em geral são pobres, e vivem do
seu trabalho, e indústria: Sendo porém em muito maior número, e mais robustos nestes climas, tem a força física
da sua parte. Por consequência a força moral, e de Opinião deve estar a favor dos Brancos. [...]Algumas ordens
antigas eram coerentes com estes princípios, e tinham por objeto o diminuir a força física, e aumentar a força
moral”. In: AHU_ACL_CU_015, Cx. 259, D. 17405, fls. 1-2.
264
BEZERRA, Janaína Santos. A fraude da tez branca: a integração de indivíduos e famílias pardas na elite
colonial pernambucana (XVIII). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife:
UFPE, 2016, p. 173. Disponível em: <http://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/17551>.
265
Ibid, p. 174.
98
possibilidade de ter em seu regimento, ao seu lado e ao lado de outros homens pardos,
ocupando uma posição de comando, alguém que considerava indigno de ocupar o posto para a
qual tinha sido escolhido.
Na Vila do Penedo, ocorreu algo semelhante. Em 1807, Francisco Manuel Martins
Ramos, à época Sargento-Mor, escreveu uma carta ao príncipe regente, D. João, denunciando
o pedido de Manoel Antonio de SantaAnna Ferreira para que fosse confirmada a patente no
posto de Capitão da 5ª companhia do Regimento de Milícias dos Homens Pardos da Vila do
Penedo. Para Francisco, esse oficial não estava nos termos de se lhe passar a sua Patente
Régia, pois o julgava criminoso266. Sem provas, Francisco apenas denunciou o outro homem
por julgar que ele não havia verdadeiramente se livrado por completo das acusações que havia
sofrido e o colocado na cadeia, sendo levado inclusive para a Relação da Bahia. Francisco
chega inclusive a apontar um erro cometido pelo próprio Coronel Martinho Pereira Álvares,
seu superior, dizendo que este havia se esquecido de um artigo e perdido de vista a utilidade
do Serviço Real sugerindo que tal fato havia sido favorável à ascensão na carreira militar do
“criminoso”. Na listagem dos militares de 1819 – ano em que Francisco Manoel Martins
Ramos já era Coronel -, o 2º sargento da 2ª companhia, Manoel do Rosário Ferreira, declara
ser filho de Manoel Antonio de Santa Anna. Atentemos para o sobrenome do filho, Ferreira, e
na possibilidade de uma obliteração do sobrenome do pai, que casaria justamente com o
homem que fora anteriormente julgado “criminoso” pelo Coronel do Regimento. Vemos aí,
pelo menos três possibilidades de desfecho da situação: o pai, Manoel Antonio de SantaAnna,
não era o mesmo que foi acusado criminoso em 1807; ou Manoel do Rosário, pensando no
futuro de sua trajetória, escolheu não revelar ser filho do homem que fora acusado antes de ser
criminoso pelo seu Coronel ocultando a patente do pai, apesar de possuir o mesmo sobrenome
de Ferreira; ou o rei, influenciado pelo julgamento de Francisco Manuel Martins Ramos,
acabou por anular a patente de Manoel Antonio de SantaAnna Ferreira.
O que interessa mais aqui é atentar, primeiramente, para o fato da não utilização do
canal que a figura do Governador representava na relação dos súditos com a Coroa e de
Francisco não ter se dirigido nem ao Conselho Ultramarino, se reportando diretamente ao
Monarca. Categórico e metódico, Francisco se dirigiu logo ao Príncipe Regente (o fato de
estar em Lisboa naquele ano também pode ter ajudado), fez uma acusação baseado apenas no
seu conhecimento de um determinado caso, apontou um erro cometido pelo seu superior e um
266
AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 467, fl. 1.
99
possível ato de irresponsabilidade do mesmo, tudo isto baseado em um julgamento pessoal.
Assim como José Rabelo de Vasconcelos, no caso relatado por Janaína Bezerra, Francisco
pode ter se sentido ofendido com a nomeação de alguém que não tinha uma trajetória como a
sua, sem marcas ou motivos de desonra. Mas, por outro lado, a importância da instituição da
milícia em sua trajetória pode o ter deixado preocupado com o perfil de pessoas que
passariam a entrar e ascender na hierarquia interna.
O que queremos dizer é que percebemos mais do que uma preocupação com as
trajetórias pessoais, ao menos nos casos de José Rabelo de Vasconcelos e Francisco Manuel
Martins Ramos, dois homens de destaque na sociedade em que estavam inseridos. Esses dois
pardos demonstraram enxergar a Milícia como um lugar em que somente homens de honra e
prestígio público mereciam estar. Não foi somente o afronte às suas dignidades que pareceu
tê-los afligido, a preocupação de ambos era também com a presença de indivíduos pardos de
conduta questionável e suspeita em um espaço cujo objetivo era fazer bem ao Real Serviço e
não causar ruína aos súditos do rei267. Por isso falamos anteriormente em um sentimento de
grupo e de pertença a uma determinada qualidade de pessoas. O regimento de milícia dos
pardos da Capitania de Pernambuco nos parecer ter se configurado como um espaço para
homens pardos afirmarem-se publicamente como pessoas dignas e merecedoras de respeito
pela sociedade e, dependendo do caso, afirmar que também possuíam ascendência africana.
Ana Crispin chegou à conclusão semelhante quando analisou os regimentos de pardos de
Pernambuco e Minas Gerais. Para a autora, a presença na instituição tornou-se um meio de
minimizar os estigmas da escravidão e proporcionar inserção social de homens de cor tanto
por iniciativa da Coroa, que buscava inseri-los em seu projeto de Império, como por iniciativa
dos próprios pardos que tentavam alcançar e defender eventuais direitos e privilégios
conquistados268.
Francisco Manuel Martins Ramos foi a principal figura à frente dos interesses dos
homens pardos da milícia. Nascido em Penedo, provavelmente no ano de 1780, Francisco era
filho de Anna Teresa de Jesus com o Comandante Manuel Martins Ramos, já referido no
capítulo anterior como o autor da doação da quantia para o início das obras da construção da
Igreja de São Gonçalo Garcia. Após a morte do pai, que faleceu abintestato269, sua mãe
267
“Longe de servir de bem ao Real Serviço, [Manoel Antonio de SantaAnna Ferreira] com um Título Régio
será de uma ruína grande para os seus súditos [do príncipe regente]”. In: AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 467, fl.
3.
268
Ibid., p. 142-143.
269
Sem deixar testamento.
100
casou-se novamente com outro oficial, o Sargento-Mor Libório Lázaro Leal, a quem também
já nos referimos anteriormente (o Capitão da 9ª Companhia do ainda Terço Auxiliar dos
Homens pardos de quem era Coronel Martinho Pereira Álvares). Do primeiro casamento,
Anna Teresa teve dois filhos (Francisco Manoel e outro de nome desconhecido) e, do
segundo, teve duas filhas (também de nomes desconhecidos). Em carta escrita no ano de 1807
pelo próprio Francisco, mas ditada por sua mãe, esta pede ao Secretário de Estado da Marinha
e Ultramar esmola referente ao pagamento do tempo de serviço do segundo marido (37 anos,
6 meses e 13 dias), por este ter feito despesas no montante de 2:187$643 a 59 credores que
queriam ser todos pagos ao mesmo tempo enquanto ela encontrava-se em estado de
decadência depois da morte do primeiro marido após ter sido “lançada fora de casa em
mandas de camisa não levando mais que os dois filhos e sendo preciso mandar pedir a uma
vizinha um timão e uma saia preta”270. A mulher ainda relata que se não fosse o ânimo do
filho militar, com o pequeno soldo que recebia, não tinha como sustentar-se e às suas filhas271,
visto que era viúva pela segunda vez, encontrava-se sem o pagamento do soldo do tempo de
serviço de seus maridos e devendo na praça.
Filho e enteado de dois militares, Francisco também seguiu carreira na milícia e ainda
criança assentou praça de soldado voluntariamente no Terço Auxiliar, em 1788 certamente
influenciado pela trajetória do pai e indicado pelo padrasto, que 1789 era capitão da 9ª
Companhia do Terço Auxiliar. Falaremos da relação entre família e exercício na milícia no
próximo tópico, por ora, basta termos em mente que a atividade militar na Comarca de
Alagoas foi uma estratégia procurada tanto para alcançar distinção social, como para manter o
oficialato dentro da família. Analisando as profissões exercidas pelos militares, a partir dos
dados registrados por Francisco em 1819 quando já ocupava o posto de Coronel do
Regimento aos 39 anos (idade relativamente pouca se compararmos com o status de outros
oficiais do Estado Maior que tinham mais idade, porém ocupavam cargo inferior na
hierarquia), também podemos dizer que a entrada na milícia proporcionava a inserção em uma
rede de pessoas que era praticamente autônoma. Quer dizer, a diversidade de profissões
presentes no quadro 8 abaixo é uma demonstração da capacidade de articulação dos pardos da
região e revela que não existia um perfil universal destes homens, diferente do que pensava o
Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro alguns anos antes.
270
Carta de Ana Teresa de Jesus a solicitar patrocínio em que pede para si e suas filhas, ainda solteiras,
remuneração dos serviços de seus falecidos maridos. AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 448, fl. 2.
271
101
QUADRO 8: Profissões exercidas pelos oficiais do
Regimento de Milícia dos Homens Pardos de
Penedo e Poxim (1819)
PROFISSÃO
QUANTIDADE
Lavrador
348
Alfaiate
32
Sapateiro
32
Carapina
19
Ferreiro
18
Pescador
12
Vive de soldo
11
Músico
08
Ourives
07
Negociante
05
Pintor
03
Carpinteiro
02
Pedreiro
02
Talhador
01
Oleiro
02
Vaqueiro
02
Tanoeiro
01
Serrador
01
Inquiridor
01
Fazendas de gado
01
Marceneiro
01
Sangrador
01
Vive de agência
01
Sem declarar
01
512
TOTAL
Fonte: Relação dos oficiais existentes no Regimento de
milícias dos Homens Pardo da Comarca das Alagoas.
In: Ofícios do comandante do Regimento de Milícias
dos Homens Pardos de Poxim e Penedo. 1819.
Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
Por ser um tipo de regimento que exigia que cada oficial patrocinasse suas próprias
armas e às vezes também o fardamento272 e que não pagava soldo, pois os serviços eram
solicitados apenas eventualmente como apoio às tropas regulares, essas sim de caráter
profissional e permanente273, a permanência na tropa dependeu exclusivamente do interesse e
mais ainda do trabalho exercido pelos pardos. O Alferes da 2ª Companhia, Antonio do Carmo
Lima, por exemplo, além de ser negociante, possuía lavras de canas (talvez uma atividade
complementasse a outra) e, em maio de 1819, pediu licença para ir à Cotinguiba, na Capitania
da Bahia, para que pudesse moê-las274. Nesse mesmo ano, Francisco Manuel Martins Ramos
indicou o Secretário do Estado Maior, Francisco Xavier da Mota, para ocupar o posto de
272
VANDERLEI, Kalina. Op. Cit., p. 66.
Ibid, p. 65.
274
Ofício de Antonio do Carmo Lima de 10 de maio de 1819. In: Ofícios do comandante do regimento de
milícias dos homens pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
273
102
Capitão da 1ª Companhia (vago por pedido de demissão de Manoel José de SantaAnna)
alegando que o mesmo além de possuir patente confirmada, tinha posses que o sustentariam
no ofício275. Francisco Xavier da Motta era um dos 32 homens que exercia a profissão de
alfaiate, além, claro, do oficialato no Regimento de Milícias.
Apenas alguns homens viveram somente do oficialato, ou seja recebendo pagamento
com o exercício da profissão de militar e não necessitando de outro ofício. Dos onze homens
que viviam de soldo, oito ocupavam o posto de Tambor, Pífano ou Tambor-mor276. Tinham
entre treze anos (João Felix Cardoso, tambor da 1ª Companhia) e 42 anos (Marcelino de Jesus
Jardim, Tambor-mor no Estado Maior). Os pífanos eram cargos presentes na hierarquia da 1ª
companhia, certamente complementares ao de tambor e estavam ocupados por Eusébio da
Assumpsão Lima, nascido e morador de Penedo, e Miguel Arcanjo, nascido na Vila de
Alagoas e morador na do Penedo. Provavelmente esses homens recebiam não
necessariamente soldos, mas esmolas dos oficiais para que tocassem chamando as
companhias dos regimentos para alguma reunião ou atividade nas regiões em que estavam
alocadas. Os outros três que viviam de soldo eram oficiais do Estado Maior, isto é, possuíam
tempo e experiência na milícia, patente confirmada, o que justificava a existência de
pagamento. Eram eles: o Coronel Francisco Manuel Martins Ramos com 31 anos de
atividade, o Ajudante do Número Antonio Luiz de Souza que possuía 21 anos na carreira
militar e o Ajudante Supra Manoel Luiz das Chagas com 22 anos de experiência.
Do quadro 8 destacamos ainda duas características bastante interessantes: primeiro, a
variedade de profissões que faz lembrar da diversidade da economia na Vila do Penedo, já
comentada anteriormente. Da mesma forma nos faz constatar que os pardos não possuíam um
perfil único e não eram apenas detentores de “força física” como alegou Caetano Pinto de
Miranda Montenegro. Contrariando as expectativas de pessoas como este governador, os
pardos chegaram a exercer ofícios nas artes como pintores e músicos, nos negócios, na justiça
como “inquiridor, distribuidor e contador do juízo”, profissão exercida pelo Secretário no
275
Ofício de 31 de maio de 1819. In: Ofícios do comandante do regimento de milícias dos homens pardos de
Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
276
Tambor “é instrumento militar, composto de uma caixa de pau de carvalho delgado e dobrado em figura
cilíndrica com duas faces e cada uma delas coberta de uma pele de carneiro, estirada sobre arcos e apertada com
cordéis, toca-se com duas baquetas, retumba com grande estrondo, serve nas marchas da infantaria e para incitar
os ânimos à batalha”. In: BLUTEAU, Raphael. Op. Cit.. Disponível em: < http://dicionarios.bbm.usp.br/ptbr/dicionario/1/tambor>. O Tambor-mor era uma graduação do Tambor. Pífano era a “flauta fina e aguda que
toca nos regimentos, a pessoa que a toca”. In: SILVA, Antonio de Moraes. Op. Cit.. Disponível: <
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/p%C3%ADfano>.
103
Estado Maior Ignácio Joaquim Passos277. Para Recife, Janaína Bezerra identificou pardos que
foram advogados, comerciantes, pintores, que alcançaram cargo de oficial mor da secretaria
do Governo da Capitania de Pernambuco278.
Percebemos também a formação de uma rede quase autossuficiente de pessoas que
exerciam ofícios complementares uns aos outros. Por exemplo, um negociante que precisasse
de determinados produtos para exportar, tinha uma grande quantidade de lavradores
conhecidos do seu regimento miliciano com que contar. Os reparos na Igreja de São Gonçalo
Garcia dos Homens Pardos certamente foram feitos pelos pintores, pedreiros e carpinteiros
que já estavam inseridos na milícia. Os alfaiates, sapateiros, músicos, ourives devem ter
participado ativamente da organização e preparo dos detalhes da festa da Irmandade de São
Gonçalo Garcia e assim deve ter se constituído a rede de sociabilidades e os processos de
mobilidade, distinção e inserção social entre os pardos na Vila do Penedo.
O segundo ponto que merece destaque é a esmagadora proporção de lavradores, cerca
de 67% do total, em comparação com os demais serviços. Como mostramos anteriormente, a
economia em Penedo, diferente da forma como se desenvolveu a economia nas vilas de
Alagoas e de Porto Calvo, não dependeu somente da atividade açucareira. Analisando a
grande quantidade de locais de moradia dos pardos (quadro 5), de solo e clima naturalmente
diferentes, podemos deduzir que os produtos cultivados também eram diferentes e que de fato
não existiu a monocultura do açúcar que vemos nas outras duas principais vilas da Comarca
de Alagoas. Além disso, apostamos numa produção que privilegiava o consumo interno,
inclusive de subsistência, ao invés do mercado com outras capitanias e províncias ou nações
amigas da Coroa Portuguesa.
Esses lavradores possuíam perfis diferentes entre si. A maioria era soldado, ou seja,
não possuía patente, não tinha uma trajetória sólida nos regimentos militares. Porém
encontramos também alguns lavradores ocupando postos de comando nas companhias. Na 1ª
Companhia de Caçadores, às exceções do Capitão, que era ourives, do Tenente, um alfaiate, e
do Tambor, que vivia de soldo, os demais homens que ocupavam os altos postos de seus
comandos (Capitão, Tenente, Alferes, 1º Sargento, 2º Sargento, Furriel, Cabo e Tambor)
declararam exercer tal profissão. Nas demais companhias (1ª, 2ª e 3ª companhias e a 9ª de
277
Relação dos oficiais existentes no Regimento de milícias dos Homens Pardo da Comarca das Alagoas. In:
Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo
Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
278
BEZERRA, Janaína. Op Cit., pp. 149-179.
104
granadeiros), entre os homens que ocupavam cargos de patente, no máximo dois eram
lavradores (em cada corpo). As exceções mais notáveis foram os casos do Capitão da 3ª
Companhia, Joaquim José de SantaAnna, e do Sargento-Mor Graduado do Estado Maior,
Antonio José dos Santos.
Antônio José dos Santos (não o Capitão da 7ª Companhia em 1789, mas outro) tinha
43 anos de idade, era casado e morava na Vila de Anadia na época que ocupava o posto de
Sargento-Mor Graduado do Estado Maior e Capitão da 5ª Companhia, que realizava as
operações no Distrito da Povoação de São Miguel279. Alcançou a confirmação naquele posto
“por carta patente de Sua Majestade de 31 de julho e decreto de 22 de janeiro de 1818 em
consideração ao distinto e louvável comportamento”280 com o qual passou pelos demais
cargos do Regimento de Milícia. Também vivia do ofício de lavrador. Apesar do
reconhecimento dos serviços prestados à Coroa, de alcançar os mais altos postos da hierarquia
militar e de exercer um ofício mecânico, sua trajetória, mais especificamente o fato de ter
alcançado a patente de Sargento-Mor, foi alvo de questionamento com tom de rejeição e ódio
por alguns habitantes da região onde morava. Segundo uma pequena biografia sobre Antonio
presente nos Anais da Igreja de Alagoas, os “grandes de Anadia [dirigiram suas indignações
ao Governo Imperial e] pediram providência para que não continuasse a hombrear e a ter
parte nos Comícios governamentais um pardo sobre quem pesara o ferrete da escravidão
com exclusão dos homens nobres”281.
Note-se que não só a qualidade de pardo foi criticada, mas o fato de um pardo com
uma ligação com a escravidão ter sido escolhido pelo Governador para ocupar um posto
militar de destaque e que provocou a sensação de exclusão entre os “nobres” (brancos 282).
Vimos, anteriormente, que algo semelhante ocorreu com Francisco Manuel Martins Ramos.
Retomando nossa discussão sobre o que era ser pardo na colônia, feita no primeiro capítulo,
lembremos que o afastamento da experiência do cativeiro e a manutenção da condição de
liberto e da própria liberdade foram o primeiro passo no processo de mobilidade social dos
279
Ofício de 27 de Janeiro de 1819. In: Ofícios do comandante do regimento de milícias dos homens pardos
de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
280
Lista dos oficiais do Estado Maior do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de Penedo. In: Ofícios do
comandante do regimento de milícias dos homens pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de
Alagoas. APA. Caixa 1511.
281
JOBIM, Nicodemos. Parte 3: Memorial Biographico de Antonio Jose dos Santos Tenente-coronel do batalhão
de milícias dos homens pardos e vogal da 1ª junta de governo nesta província. In: JOBIM, Nicodemos. História
de Anadia. Imperatriz: S/Ed, 1880. Pp. 159-162. Agradeço à professora Irinéia Franco por ter cedido a
documentação.
282
Ibid, p. 162.
105
descendentes de africanos, porém tais processos parecem ter tido limites. Como bem nota
Roberto Guedes, a escravidão (temática trabalhada pelo autor através da análise da
mobilidade social de forros) impunha referenciais de hierarquia283. Para o caso das dinâmicas
na Comarca de Alagoas, no lugar de escravidão cabe perfeitamente o termo ascendência
africana (que, claro, remetia à escravidão, mas preferimos utilizar por não trabalharmos
diretamente com escravos ou forros em nossas fontes). Por mais que alguns dos pardos, os
que alcançaram algum destaque na Comarca de Alagoas, conquistassem alguma distinção,
isso não era aceito fora do círculo deles. Essas circunstâncias nos fazem concluir que a
distinção social deste contingente deveria ser entre os próprios descendentes de africanos. Se
ultrapassasse o círculo ou a rede na qual os pardos estavam inseridos, a sociedade, os nobres,
os homens bons, os brancos não legitimavam os resultados. “Um forro ou descendente de
escravo não priorizaria ser um barão, mas o rei dos forros e dos descendentes de escravos”284.
A grande quantidade de lavradores na milícia, juntos dos demais trabalhadores
manuais, poucos entre os 512 militares não o eram, nos faz crer que o trabalho mecânico,
diferente do que pensava a sociedade da época, não era motivo de desonra entre os pardos do
Regimento de Milícias de Penedo. Um pardo considerado criminoso ou que vivia cantando
modinhas eram mais prejudiciais às trajetórias dos outros do que homens que exerciam a
força física para o seu sustento ou do que os que ainda estavam no limiar da liberdade. A
visão pejorativa do trabalho, comum no pensamento da nobreza de Portugal, que acreditava
que ocupações inferiores eram para os plebeus, não aplicou-se integralmente nas dinâmicas da
vida social da colônia americana, muito devido à falta de homogeneidade, de centralidade e
de hierarquia rígida do império português285. Dessa forma, a visão sobre o trabalho variava de
acordo com a região. Novamente retomando Roberto Guedes, para o autor o trabalho manual
não foi um fator que necessariamente interferiu de forma negativa nos processos de
mobilidade social, pelo contrário, era associado à autonomia e ao bom comportamento286.
Acreditamos que os corpos de militares (regulares, auxiliares e ordenanças) passaram
a ser vistos não só como instrumentos da Coroa Portuguesa de manutenção da ordem social e
de defesa externa, mas também uma ferramenta através da qual os pardos puderam alcançar
alguma mobilidade social, que era limitada, em paralelo ao próprio exercício militar. A partir
283
GUEDES, Roberto. Ofícios mecânicos e mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo (Sécs. XVII-XIX).
Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 379-423, Dez. 2006, p. 399.
284
Idem.
285
Ibid, p. 380-383.
286
Ibid, p. 408.
106
de meados do século XVIII, as milícias não atendiam apenas aos interesses políticos de poder
e controle da Coroa, mas se constituíram também, e arriscamos dizer que com a mesma
intensidade em que atendiam aos interesses do império português, em um lugar que atendia às
necessidades de mobilidade social de indivíduos como os pardos que buscavam afastar-se de
um antepassado escravo. Isso fica mais evidente principalmente nos corpos em que o sustento
na instituição era iniciativa particular e não investimento da Coroa, como foi o caso do
regimento de milícia dos pardos da Vila do Penedo.
4.2 Família, milícia e inserção social
A temática da família na historiografia é conteúdo que tem sido discutido desde pelo
menos o início do século XX. Gilberto Freyre a percebeu como sendo uma das bases da
formação social do Brasil. Para ou autor, a constituição da família patriarcal calcada nos
princípios cristãos assegurou a presença e manutenção da colonização portuguesa na
América287. De acordo com Gian Silva, a família, no período e no espaço coloniais, deve ser
pensada a partir da pluralidade, da existência de uma diversidade de famílias que seguiam
padrões diferentes de composição e atuação288. Embora o termo “família” não apareça com
frequência na documentação colonial analisada pelo autor, os arranjos entre parentes e
agregados são a formação que se aproxima do que hoje entendemos por família: núcleos de
pessoas com alguma dependência, principalmente social e econômica, entre si ou em relação a
uma figura central (geralmente o pai/senhor) e que proporcionava proteção e garantia de
sobrevivência entre sujeitos com laços consanguíneos ou não ou que estavam em lugar de
subordinação, como no caso dos escravos. Em suas palavras: “existiu sempre um sentimento
de pertencer a um grupo, a um núcleo, a uma rede de parentes, a uma casa”289. O que
falaremos aqui não é tanto acerca da composição de famílias no ambiente colonial, mas das
relações que se deram entre parentes, ascendentes e descendentes de um mesmo núcleo290,
enquanto estratégias de manutenção da mobilidade e distinção social entre os homens pardos
287
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. [52. ed.] - São Paulo: Global, 2013.
288
SILVA, Gian Carlo de Melo. Alguns caminhos para entender a “família” no período colonial. In: PAIVA,
Eduardo França; CHAVES, Manuel F. Fernández; GARCÍA, Rafael M. Pérez (orgs.). De que estamos falando?
Antigos conceitos e modernos anacronismos – escravidão e mestiçagens. Rio de Janeiro: Editora Garamond,
2015,
pp.
123-137.
Disponível
em:
<https://www.academia.edu/28201450/De_que_estamos_falando_Antigos_conceitos_e_modernos_anacronismo
s_escravid%C3%A3o_e_mesti%C3%A7agens>.
289
Ibid, p. 137.
290
BLUTEAU, Raphael. Verbete “parente”. In: Op. Cit., p. 272. Disponível em: <
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/parente>.
107
na milícia na busca por ascensão na hierarquia interna dessa instituição e por inserção na rede
de sociabilidades desses descendentes de africanos.
Antes de entrar nos casos pontuais sobre pais e filhos que exerceram o ofício militar, é
preciso elucidar alguns pontos sobre a organização dos regimentos de milícias e como foram
registradas as filiações (e demais informações). Como vimos anteriormente, a criação das
tropas auxiliares, posteriormente transformadas em milícias, não foi um movimento solto no
tempo nem independente de outras conjunturas. Foram consequências de um contexto maior
que envolvia relações internacionais da Coroa Portuguesa com outras nações e gerou uma
série de consequências, entre elas a reforma militar. Esta, principalmente na forma da Carta
Régia de 1766, orientou os Governadores das Capitanias que alistassem todos os moradores
das vilas e freguesias que pudessem servir nas tropas auxiliares para dar fim à irregularidade e
falta de disciplina em que as tropas se encontravam. Vimos que o alistamento foi feito pelos
governadores e, em Penedo no ano de 1774, foi criada a Tropa Auxiliar dos Homens Pardos.
Os dados recolhidos certamente obedeciam a orientações gerais sobre a forma como deveriam
ser assentados, igualmente como vemos nas fontes eclesiásticas de casamento, óbito ou
batismo, como segue:
“Aos tantos de tal mês, e de tal ano batizei, ou batizou de minha licença o Padre N.
nesta, ou em tal Igreja, a N. filho de N. e de sua mulher N. e lhe pus os Santos
Óleos: foram padrinhos N. e N. casados, viúvos, ou solteiros, fregueses de tal Igreja,
e moradores em tal parte”291.
Já a “fórmula” utilizada no registro da relação dos oficiais, para todos independente da
posição na hierarquia, foi a seguinte:
[Posto na Milícia]
[Nome do oficial] filho de [nome do pai], natural de [lugar], morador em [lugar],
[casado/solteiro/viúvo], de idade [X] anos, [Profissão]292.
Não sabemos se, em outras localidades, os militares foram alistados seguindo esse
modelo. Embora pareça um texto padrão, se privilegiarmos a análise de cada dado de forma
isolada buscando entendê-los enquanto fragmentos de vida, conseguimos perceber nuances
das trajetórias dos pardos escondidas em informações aparentemente vazias de significados.
Por esse motivo fizemos alguns recortes e cruzamentos na Relação dos oficiais existentes no
291
VIDE, Sebastião Monteiro da. Título XX - Livro Primeiro. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2011, p. 29.
292
Relação dos oficiais existentes no Regimento de milícias dos Homens Pardo da Comarca das Alagoas. In:
Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo
Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
108
Regimento de milícias dos Homens Pardo da Comarca das Alagoas, para que nos
aproximássemos o máximo possível das vidas desses descendentes de africanos.
Retomando a discussão a respeito do parentesco e a forma como este foi expresso na
nossa fonte, vemos que não foi em todos os casos que o nome do pai foi declarado revelando
mais um traço do perfil dos pardos que diz respeito às suas origens. No quadro 9, que segue
abaixo, estão elencados os três tipos de filiação que foram declarados no alistamento.
QUADRO 9: Filiações dos oficiais do Regimento de
Milícia dos Homens Pardos de Penedo e Poxim (1819)
FILIAÇÃO
Nº
Consta o nome do pai
412
Filho da igreja
85
Filho de outro
15
512
TOTAL
Fonte: Relação dos oficiais existentes no Regimento de
milícias dos Homens Pardo da Comarca das Alagoas. In:
Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos
Homens Pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo
Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
Os casos em que consta o nome do pai, como se vê, foram os mais comuns e nesses
registros, somente o nome do pai aparecia. Nenhuma menção a outro parente era feita, nem
quando acontecia do oficial possuir um irmão também militar e às vezes alocado na mesma
companhia, como foram os casos de três dos cinco filhos militares do Tenente Joaquim
Antonio do Nascimento e de outros que veremos no próximo quadro. Antes de qualquer
dedução, devemos ter em mente que o exercício militar tratava-se de uma prática, em regra293,
era exclusivamente masculina. Contudo podemos supor outros motivos para entender por que
essa forma de conhecer os oficiais foi utilizada, deixando de lado nesse momento os motivos
estratégicos da instituição.
Podemos supor que um dos motivos tenha sido a intenção de descobrir possíveis
parentes igualmente militares e pardos, no caso dos indivíduos que estamos observando, numa
tentativa de mapear e aumentar a rede desses descendentes de africanos pelas partes do sul da
Comarca de Alagoas. Ou então, tendo em vista as experiências anteriores de situações
incômodas com outros pardos, o Coronel concebeu um processo parecido com as provanças
típicas das seleções de admissão em Ordens Militares, da qual ele mesmo fazia parte e
buscava nos antepassados dos candidatos ao hábito provas de sua honra e dignidade ou de
293
Não esqueçamos de Maria Quitéria que, disfarçada, se alistou em um regimento militar na Bahia inspirando
outras mulheres a fazer o mesmo e formando um grupo de oficiais somente mulheres na década de 1820.
109
possíveis defeitos de sangue, e procurou conhecer as famílias dos oficiais deixando
registrados os locais onde residiam e evitando, assim, quaisquer preocupações em relação ao
comportamento e à estima social desses indivíduos (uma forma de vigilância?).
Os outros dois tipos de registros que detectamos foram os casos em que os oficiais
declararam uma filiação não-parental. Eram os “filhos de outro” e os “filhos da igreja” que,
somados, constituíram menos de 20% do total. “Filho da igreja” pode ter possuído mais de
um significado. Inicialmente nos remeteu aos enjeitados, também chamados de expostos pela
historiografia, termo que classificava as crianças deixadas nas rodas dos expostos presentes
em Casas de Misericórdia, quando estas existiam nos espaços urbanos, em casas de
particulares ou em portas de igrejas. Sheila Faria acredita que esse tipo de abandono era
causado menos por motivos financeiros e mais por gravidez indesejada, não prevista294.
José Sutério da Rocha novamente nos abriu os olhos para outra possibilidade de
interpretação desse termo. Esse soldado de 45 anos, era nascido e morador da Vila do Penedo
e vivia da profissão de sangrador. Essa profissão, e é bom lembrar que era um ofício
mecânico, normalmente era exercida por africanos, escravos ou libertos nascidos no Brasil 295.
José Sutério da Rocha nos fez pensar que esse termo também pode ter sido utilizado por
libertos (o que significa maior proximidade do cativeiro) para facilitar a entrada na milícia. E,
visto que a ocorrência do termo “filho de outro” é bem menor que as demais, acreditamos que
a Igreja pode ter aparecido nas filiações como uma testemunha do bom comportamento e vida
regrada nos preceitos cristãos, visando, da mesma forma, facilitar a entrada na milícia e
alguma mobilidade social dentro da instituição.
O último termo referente à filiação foi “filho de outro”. Acreditamos que tenha se
tratado dos filhos ilegítimos, nascidos de relações que não seguiam a moralidade cristã ou de
gravidez indesejada296. Embora o desconhecimento da filiação pudesse ser mal visto pela
sociedade cristã colonial, possuí-la não foi fator que impediu movimentos de ascensão dentro
da milícia. Em todas as companhias do regimento que estamos analisando, encontramos
oficiais de patente cuja filiação era desconhecida. Na 1ª Companhia de Caçadores, os filhos
da igreja estavam ocupando os postos de 1º Sargento, Cabo e Tambor. Na 1ª e 2ª Companhias,
294
In: FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 68-87.
Ver PARES, Luis Nicolau. Milicianos, barbeiros e traficantes numa irmandade católica de africanos minas e
jejes (Bahia, 1770-1830).
Tempo, Niterói, v.
20, p. 1-32, 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042014000100204&lng=en&nrm=iso>.
296
Ibid, pp. 68-96.
295
110
os Cabos é que constavam como filhos da igreja e um era filho de outro. Na 3ª companhia, o
1º e 2º Sargentos e, novamente, o Tambor eram filhos da igreja e um Cabo constava como
filho de outro. Na 9ª, o Tenente e um Cabo eram também filhos da Igreja. No Estado Maior, o
oficial que possuía filiação desconhecida era o mesmo Antonio José dos Santos que fora
destratado por ser “um pardo sobre quem pesara o ferrete da escravidão”. Ser filho da Igreja
no caso dele, talvez seja um indicativo de sua proximidade com o cativeiro, como foi para
José Sutério da Rocha. E se o termo “filho de outro” sugeria a ilegitimidade da relação que os
originou, podemos deduzir que os que declararam os nomes dos pais nasceram de relações
legítimas, referendadas pelas normas da Igreja Católica e que esses pardos viviam num
círculo familiar aceito socialmente, pois não quebrava nenhum tipo de preceito do
catolicismo.
A milícia foi basicamente um instrumento de inserção social. De um lado, num
contexto global, inseriu os indivíduos nas dinâmicas do império luso, afinal o domínio
português sobre o ultramar era profundamente dependente da negociação entre Coroa e
súditos e dependeu dos não europeus para criar, consolidar e manter o império297. Por outro
lado, pensando nas dinâmicas locais, a milícia inseriu os indivíduos em uma malha social
composta por outros homens de trajetórias e perfis semelhantes. Percebemos isto para Penedo.
O mais frequente foi vermos casos de homens comuns, com idades diversas e em sua maioria
lavradores que não possuíam nenhum tipo de ligação com a milícia, além do próprio
assentamento. Mas queremos destacar os casos em que os oficiais já possuíam algum tipo de
proximidade com o exercício da carreira militar. O quadro 10 traz os nomes dos pardos que
seguiram os passos dos pais, indo além da carreira inicial de soldado e ascendendo na
hierarquia militar.
QUADRO 10: Cargos e filiação dos homens do Regimento de Milícia dos Homens Pardos de Penedo e
Poxim (1819)
NOME DO OFICIAL
CARGO NA MILÍCIA
FILIAÇÃO (PAI)
1 Antonio Joaquim do Nascimento 2º Sargento na 1ª Comp.
de Caçadores
2 Manoel Joaquim do Nascimento
Cabo na 1ª Comp. de
Tenente Joaquim Antonio do
Caçadores
Nascimento
3 Francisco
Antonio
do
Soldado na 1ª Comp. de
Nascimento
Caçadores
4 José Virginio da Conceição*
Soldado na 1ª Comp.
5 José Francisco do Nascimento
Soldado na 9ª Comp. de
Granadeiros
6 Felix da Rocha Cirqueira
Tenente na 1ª Comp.
Alferes João da Rocha Cirqueira
297
RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 234.
111
7
8
9
10
Bernardino da Silva Laudacio
Manoel Vitorino da Rocha
José Carlos da Silva
João Pereira Alvares
11
12
13
14
Vicente Pereira Alvares
Agostinho Pereira Leal
Agostinho Ferreira Duarte
Joaquim Elesbão
15
16
17
18
Antonio José
Manoel Rodrigues
José Joaquim de Santa Anna
Manoel Moreira Sampaio Silva
Leite
Vicente Moreira Sampaio
Luiz Vieira da Costa
Felippe Neri da Trindade
Valerio José da Trindade
José de Araujo Passos
Joaquim de Araujo Passos
João Baptista Cabral
Manoel de Jesus Passos
José Joaquim de Araujo Passos
Joaquim Fortunato de Santa
Anna
Veríssimo José dos Santos
José Gomes Furtuoso
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
Ignacio Joaquim Passos Leal
Francisco
Manoel
Martins
Ramos
Manoel Ferreira de Mello
Alferes na 1ª Comp.
1º Sargento na 1ª Comp.
2º Sargento na 1ª Comp.
Porta Bandeira na 1ª
Comp.
Soldado na 1ª Comp.
Soldado na 2ª Comp.
Soldado na 1ª Comp.
Soldado na 1ª Comp.
Soldado na 1ª Comp.
Soldado na 1ª Comp.
Soldado na 1ª Comp.
Tenente na 2ª Comp.
1º sargento na 2ª Comp.
Furriel na 2ª Comp.
Cabo na 2ª Comp.
Tenente na 3ª Comp.
Soldado na 2ª Comp.
Soldado na 2ª Comp.
Soldado na 2ª Comp.
Soldado na 2ª Comp.
Soldado na 2ª Comp.
Alferes na 9ª Comp. de
Granadeiros
2º Sargento
Soldado na 9ª Comp. de
Granadeiros
Porta-bandeira
Coronel no Estado Maior
Capitão Felix da Silva Laudacio
Alferes Antonio Victorino da Rocha
Alferes Manoel Victorino da Silva
Coronel Martinho Pereira Alvares
Tenente Pantaleão Pereira
Alferes Antonio Francisco de
Alcantara
Tenente Manoel da Silva
Tenente Procopio Rodrigues de Farias
Alferes Francisco Tavares
Alferes Vicente João Damasceno
Alferes Vicente João Damasceno
Capitão Joaquim Manoel da Trindade
Alferes Sebastião de Araujo Passos
Alferes José de Araujo Passos
Capitão Joaquim Mendes Teixeira
Ajudante Manoel Pinto dos Santos
Alferes Gabriel de Santa Anna
Secretário Ignacio Joaquim Passos
Capitão Manoel Martins Ramos
Tenente-coronel no
Capitão João Carlos de Mello
Estado Maior
* José Virgínio da Conceição diz que é “filho natural” do Tenente Joaquim Antonio do Nascimento.
Provavelmente o caso de um filho bastardo, especialmente pela diferença de sobrenome entre os demais.
Fonte: Relação dos oficiais existentes no Regimento de milícias dos Homens Pardo da Comarca das
Alagoas. In: Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de Poxim e Penedo.
1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
Já citamos antes o caso dos filhos do Tenente Joaquim Antonio do Nascimento, que
tiveram não só um parente na instituição, mas cinco pessoas com quem tinham laços de
consanguinidade. O núcleo familiar da família Nascimento provavelmente era formado pelo
pai, os três filhos que residiam em Piaçabuçu, a mãe (se estivesse viva) e a esposa de Manoel
Joaquim do Nascimento, o filho que era Cabo na 1ª Companhia de Caçadores, os demais eram
solteiros. Os outros dois filhos residiam em Penedo, e um deles, José Virginio da Conceição,
nos intrigou por dois motivos: a) não possuía o mesmo sobrenome do pai nem dos irmãos e b)
afirmou que era filho natural do Tenente. Não podemos tirar muitas conclusões com as
informações que temos, arriscamos somente a presumir que tratou-se de mais um filho fruto
de relação ilegítima, traço que já vimos que não era mau visto entre os pardos, que
112
valorizavam mais um bom comportamento e trajetórias limpas de atritos e outros tipos de
confusão.
Característica importante de ser salientada é o fato de muitos dos filhos de oficiais
também terem sido oficiais e não apenas soldados, postos que eram ocupados pelos civis,
aqueles que foram alistados pelos governadores a mando do rei de Portugal na onda da
reforma militar. Os postos de comando das tropas eram preenchidos por homens que fizeram
a escolha de permanecer na instituição militar, que optaram por fazer carreira e buscaram
meios de ascender na hierarquia interna. Afinal de contas, quando o exercício militar não era
algo desejado, existia a opção da deserção, como aconteceu nas tropas regulares dos
regimentos de Recife e de Olinda, motivadas por reformas que extinguiram o número de
oficiais (extinguindo também as possibilidades de mobilidade social) e aumentaram o de
soldados, por soldos em atraso (lembrando que as tropas regulares eram as únicas de caráter
profissional, portanto, pagas), pelas péssimas condições para exercer o serviço (falta de armas
e de outros suprimentos), pelo medo de invasões e da iminência de guerra na fronteira sul do
Brasil (o caso da disputa pela Colônia do Sacramento) e também pela falta de vontade de
exercer algum ofício (o caso dos vadios)298.
Os casos dos oficiais de patente é que mostram de forma mais evidente o interesse na
mobilidade social que essa instituição proporcionava, as estratégias de manutenção do
oficialato dentro do círculo familiar e a influência das relações de parentesco nas dinâmicas
internas da milícia para alcançar distinção social dentro da malha social formada pelos pardos.
As trajetórias de quatro oficiais de que falaremos a seguir detalharão melhor esse quadro.
Alguns deles estavam no ofício de militar desde o Terço Auxiliar no século XVIII
participando inclusive do processo de sua criação como é o caso de Martinho Pereira Álvares.
Durante quase 30 anos Martinho esteve à frente do terço como Mestre de Campo e mantevese no posto de maior autoridade quando, em 1796, foi criado o regimento de Milícias, do qual
foi Coronel até ser substituído por seu subordinado Francisco Manuel Martins Ramos. Em
1802, requereu ao príncipe regente que fosse nomeado Mestre de Campo para atuar nas
companhias de homens pardos não só em Penedo, mas também na Vila de Alagoas e de Porto
298
SILVA, Giovane Albino. Capítulo 2: As deserções na Capitania de Pernambuco durante a segunda metade do
século XVIII e início do XIX. In: SILVA, Giovane. “Povo que foge e mostra presentemente grande aversão à
vida militar”: A deserção nas tropas regulares da Capitania de Pernambuco (1774-1808). Dissertação
(Mestrado em História Social da Cultura Regional) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento
de História, Recife, 2015, pp. 76-130.
113
Calvo299. Pela antiguidade como militar, Martinho foi um canal facilitador utilizado pelos
demais pardos nos pedidos de confirmação de suas patentes em inícios do século XIX 300. Seu
nome foi utilizado como referência em alguns requerimentos, pois Martinho tinha
merecimento e posses e gozava de todas as honras, graças, franquezas, despachos, liberdades,
privilégios e isenções de que lograva os coronéis das tropas pagas 301. Não temos muitas
informações sobre a trajetória de Martinho fora do oficialato, sobre suas origens, vida
cotidiana, de que vivia, sabemos apenas que era um homem de posses que conseguiu
“desempenhar com acerto as obrigações do posto de Mestre de Campo”302, teve três filhos que
também foram alistados na milícia dos pardos, e moravam e atuavam na Vila do Penedo.
Martinho deve ter permanecido na milícia até Francisco Manuel Martins Ramos assumir seu
posto.
Um dos homens que conviveu com o Coronel Martinho e utilizou de seu nome e
prestígio para solicitar a confirmação de uma patente foi Libório Lázaro Leal. Libório atuou
como subordinado de Martinho no posto de Capitão da 9ª Companhia do Terço Auxiliar de
Homens Pardos da Vila do Penedo, porém não continuou na milícia nem na Comarca de
Alagoas, pois recebeu promoção do príncipe regente, D. João, e foi transferido do cargo de
Sargento-Mor na Vila do Penedo para assumir o mesmo posto no Terço de Infantaria da Vila
do Recife303. Libório foi casado com a mãe de Francisco Manuel Martins Ramos, a viúva
dona Anna Teresa de Jesus, e com certeza foi influente na trajetória de Francisco.
Provavelmente foi a pessoa que o inseriu em 1788, aos oito anos de idade, no Terço como
soldado. Libório prestou serviços à Coroa pelo tempo de 37 anos, 6 meses e 13 dias304,
informação presente em carta de sua esposa enviada, em 1807, após sua morte, ao rei para
pedir a esmola referente a esse tempo de serviço.
A relação de Libório e Francisco certamente foi um elemento que agiu a favor dos
demais pardos que declararam serem “filhos da igreja” e “filhos de outro”, pois por mais que
Francisco soubesse de quem era filho, após a morte do pai e do segundo casamento de sua
299
AHU_ACL_CU_004, Cx. 4, D. 332.
AHU_ACL_CU_004, Cx. 4, D. 312, AHU_ACL_CU_004, Cx. 5, D. 345, AHU_ACL_CU_004, Cx. 5, D.
376, AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 452.
301
Carta patente pela qual Vossa Excelência há por bem nomear a Martinho Pereira Alvares no posto de Mestre
de Campo do novo terço que manda criar das companhias de homens pardos das três vilas de Porto Calvo,
Alagoas, Penedo e seus termos, formando o de infantaria e auxiliar, na conformidade da Carta Régia de 22 de
Março de 1766, pelos respeitos nela declarados e para Vossa Excelência ver. In: AHU_ACL_CU_004, Cx. 4, D.
332.
302
Idem.
303
AHU_ACL_CU_015, Cx. 203, D. 13907.
304
AHU-ALAGOAS, Cx. 6, D. 448, fl. 2.
300
114
mãe, passou a ser literalmente um “filho de outro” homem, seu padrasto, o novo marido de
sua mãe. Não acreditamos que os demais pardos o tenham considerado como alguém indigno
de honra por ser de uma família com tal configuração, mas o fato de ser um homem de
destaque deixava mais evidente também sua vida pessoal e ser filho de uma família que
violava os valores que a Igreja Católica almejava para os colonos possivelmente teve um
efeito negativo em sua imagem perante à sociedade.
Francisco Manoel Martins Ramos era filho de Manuel Martins Ramos, Capitão das
Ordenanças da Vila do Penedo305, o mesmo que, em 1758, fez a doação que patrocinou a
construção da Igreja de São Gonçalo Garcia. Sua trajetória se confunde com a das duas
instituições de pardos existentes na Vila do Penedo, como veremos mais adiante. Francisco
começou sua carreira de militar precocemente, tendo assentado praça de soldado
voluntariamente em 1788 na 4ª Companhia. Foi um dos oficiais mais novos a entrar na tropa
ao lado de Ignacio Joaquim Passos Leal, filho do Secretário Ignacio Joaquim Passos, que
também aos 8 anos já estava alistado como porta bandeira da 2ª companhia. Aos 39 anos, era
coronel do regimento miliciano da Vila do Penedo, que estendia suas operações até a Vila de
Maceió, era Cavaleiro da Ordem de Santiago, residia em Penedo, solteiro e vivia de soldo.
Provavelmente não exerceu outra profissão além desta, visto que estava completamente
inserido na vida militar desde criança, rodeado de militares do círculo de seu pai e,
posteriormente, seu padrasto. Dedicou-se com afinco ao exercício de suas funções declarando
ao governador da Capitania, quando este o indicou para o posto de Comandante Interino da
Vila do Penedo, que “o mais doce fruto da vida, por não dizer o único, era a satisfação que
teria de poder desempenhar dignamente a comissão honrosa de Vossa Excelência”306.
Manoel Ferreira de Mello igualmente fez parte dos dois corpos militares de homens
pardos da Vila do Penedo. Assentou praça de Alferes no Terço Auxiliar em 1774 e, em 1789,
ocupava o posto de Capitão da 8ª companhia, cujo superior era Martinho Pereira Álvares. O
fato de ser filho de um capitão pode ter sido o fator que o colocou no terço já no posto de
Alferes, o terceiro cargo na ordem hierárquica de comando de uma companhia, sem
aparentemente nem ter passado pelo de soldado. Passou a Capitão da 3ª companhia em 1785 e
305
De acordo com o compromisso, Manoel Martins Ramos era comandante, não especificam corpo ou
regimento. Já segundo carta de sua viúva, de 02 de fevereiro de 1807, Ana Teresa de Jesus, onde pede ajuda para
sobrevivência si e suas filhas, Manoel Martins Ramos foi Capitão das Ordenanças da Vila do Penedo, e de ter
morrido ab intestato. In: AHU-ALAGOAS, Cx. 6, D. 448.
306
Ofício de 5 de agosto de 1819. In: Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos
de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
115
a Capitão de Granadeiros e 1799, permanecendo na tropa quando esta passou a ser
denominado de regimento de milícias em 1819, na qual exercia o cargo de Tenente-Coronel.
Manoel morava em Limoeiro, era casado e um dos mais velhos oficiais do regimento com 61
anos. Vivia de suas fazendas de gado, o único que vivia de tal ofício entre todos os pardos
alistados e provavelmente um dos poucos na Vila.
A entrada em uma associação militar parece ter virado estratégia comum entre os
pardos da Vila do Penedo na segunda metade do século XVIII e duas primeiras décadas do
XIX. No contexto geral da sociedade colonial, entrar para a milícia foi garantia de mobilidade
e ascensão social, mas também de inserção numa rede que se tornava cada vez mais
consolidada na Vila do Penedo já que, em termos de recursos humanos da milícia, a malha
composta por eles saiu dos limites da Vila do Penedo e seu termo e chegou a operar na sede
da comarca, Vila de Alagoas.
4.3 Papel social da irmandade e da milícia
Vimos que a milícia não foi o único espaço da Comarca de Alagoas composto por
pardos. A Irmandade de São Gonçalo Garcia também apareceu como possibilidade de
inserção social para esses descendentes de africanos. Mais antiga que a instituição militar de
mesma composição, em Penedo a irmandade foi como uma matriz, um lugar essencial para o
início do processo de formação da rede de sociabilização dos pardos da região e traduziu a
ânsia da afirmação de trajetórias pessoais bem sucedidas que, além de afastadas, em sua
maioria, da experiência do cativeiro, identificava um grupo distinto socialmente
principalmente dos pretos e pardos que ainda viviam na condição de escravos. O regimento
militar dos pardos foi criado alguns anos depois da construção da Igreja de São Gonçalo
Garcia e representou igualmente um lugar de afirmação, mas principalmente de continuidade
do processo de mobilidade social desse contingente da população.
Fazer parte de uma irmandade, segundo Larissa Viana, significou mais do que investir
em uma boa morte e em precaver-se diante quaisquer imprevistos da vida cotidiana, remetia à
busca de maior integração e estabilidade comunitária307. Unindo essa concepção à ideia de
que a participação nos regimentos militares proporcionou mudanças e melhorias, mesmo que
em alguns casos apenas simbólicas (distinção social) nas vidas dos pardos, pode-se concluir
que a presença nas duas instituições ou dobraria as possibilidades de êxito ou agiriam de
307
VIANA, Larissa. Op. Cit., p. 182.
116
forma complementar. Ou seja, a participação numa associação religiosa proporcionava
experiências que a milícia complementava e o contrário também é válido. Pensando na rede
de pessoas, por exemplo, a milícia colocou os pardos em contato com toda a sociedade já que
era no espaço público das ruas que elas operavam, e a devoção a São Gonçalo Garcia, nos
momentos de missa, de procissão, de confissão, aproximou os indivíduos milicianos e devotos
dos civis que frequentavam a Igreja de São Gonçalo.
Pela falta de documentação mais detalhada e de outra origem, especialmente os
testamentos nos quais vemos registrados desejos, conquistas, narrativas de vidas, não temos
como mensurar a forma como as instituições (as irmandades principalmente por se tratarem
de um espaço de devoção e fé) atuaram particularmente nas vidas dos pardos em Penedo. Mas
o que temos em mãos nos permite fazer algumas incursões em alguns fragmentos de vida,
mesmo que de forma tímida e superficial.
Diferente das atividades realizadas na irmandade, a milícia foi um lugar
profissionalizante, diferente de profissional como eram as tropas regulares, que eram pagas.
Dizemos que é profissionalizante no sentido de proporcionar um lugar que pudesse ser
apropriado por um pardo como uma profissão, como vimos acontecer em alguns casos
anteriormente. Além disso o alistamento dos civis era obrigatório, diferente da irmandade que
aglutinou homens que professavam a religião católica308, se identificavam com o santo de
devoção e/ou tinham condições de manter-se na instituição e colaborar com o crescimento
dela. Lucilene Reginaldo aponta que, juntamente com as confrarias, as corporações militares
de homens de cor foram efetivos canais de expressão e integração da população negra no
período colonial309. A autora identifica, para Salvador, o ingresso de vinte e dois militares na
Irmandade do Rosário das Portas do Carmo. Percebemos o mesmo movimento na nossa
documentação, conforme o quadro 11 abaixo.
QUADRO 11: Perfil dos oficiais da milícia associados à Irmandade de São Gonçalo Garcia (1819)
NOME
IDADE
CARGO NA
CARGO NA
PROFISSÃO
MILÍCIA
IRMANDADE
Francisco Manuel Martins Ramos
39 anos
Coronel
Procurador
Vive de Soldo
Manoel Felix do Carmo
52 anos
Capitão na 2ª
Juiz
Pintor
companhia
Manoel José de SantAnna
64 anos
Capitão na 1ª
Tesoureiro
Vive de
Companhia
negociações
Felix da Rocha Cirqueira
41 anos
Tenente na 1ª
Irmão
Alfaiate
308
Apesar de ser a tradição portuguesa, sabemos que a religiosidade indígena e africana existia e era utilizada
também por cristãos. Ver: SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de
coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
309
REGINALDO, Lucilene. Op. Cit., p. 345.
117
Companhia
Soldado na 1ª
Irmão
Lavrador
Companhia de
Caçadores
Antonio do Carmo Lima
34 anos
Alferes na 2ª
Irmão
Negociante
Companhia
José da Costa Baião
20 anos
Cabo na 2ª
Irmão
Alfaiate
Companhia
Miguel Arcanjo da Costa
32 anos
Soldado na 1ª
Irrmão
Carpinteiro
Companhia
José Carlos da Silva
27 anos
2º Sargento na
Irmão
Ourives
1ª Companhia
Manuel Moreira de Sampaio Silva
36 anos
Tenente na 2ª
Irmão
Músico
Companhia
Antonio José Pereira
17 anos
Soldado na 1ª
Irmão
Lavrador
Companhia de
Caçadores
Fonte: Relação dos oficiais existentes no Regimento de milícias dos Homens Pardo da Comarca das
Alagoas. In: Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de Poxim e
Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
Francisco Antonio do Nascimento
16 anos
Na irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos, vemos alguns milicianos se
fazendo presentes. De forma menos relevante, falando da hierarquia interna especificamente
dos cargos de Mesa, temos alguns soldados, tenentes, um cabo, um alferes e um 2º sargento
fazendo parte do corpo de irmãos. Apesar de não ocuparem cargos de mesa, certamente foram
peças fundamentais na organização dos festejos da irmandade, principalmente o músico
Manuel Moreira de Sampaio Silva. Aconteceu também de o pai de algum miliciano estar na
irmandade, e não o filho, como foram os casos de Antonio Vitorino da Rocha, pai de Manoel
Vitorino da Rocha, 1º Sargento da 1ª Companhia; Antonio Francisco de Alcantara, pai de Pai
de Joaquim Elesbão, Soldado na 1ª Companhia; João Americo da Lus, pai de Pai de Manoel
do Rosário, Capitão na 1ª Comp. de Caçadores entre outros. Interessa-nos mais aqui atentar
para os que estavam nas duas instituições e ocupavam cargos de destaque em ambas:
Francisco Manuel Martins Ramos, Manoel Felix do Carmo e Manoel José de SantAnna.
Novamente, vemos a figura de Francisco Manuel Martins Ramos. A trajetória da
família Martins Ramos, na verdade, confunde-se com a constituição da Irmandade e com as
atividades na Milícia. Com muita frequência vemos, na documentação, Francisco
representando a irmandade, nos cargos de escrivão, juiz, procurador, na busca pelos interesses
dos irmãos e eventuais direitos. Seu pai, como dito, foi o homem responsável pela construção
da Igreja e isso foi um fato que permaneceu na memória coletiva dos irmãos. Na escritura do
compromisso de 1807, foi registrada a sua contribuição e no capítulo em que trataram dos
enterros, o comandante Manoel Martin Ramos, “em recompensa do muito que obrou em
118
benefício desta Irmandade”310. Seu padrasto, Libório Lázaro Leal, também foi irmão
chegando a ocupar o cargo de procurador geral da irmandade.
De acordo com Lucilene Reginaldo, a presença em duas instituições como estas foi de
grande significado para os descendentes de africanos, especialmente quando acontecia de
ocuparem posições de poder e destaque em ambas, como foi o caso do procurador, Francisco
Manuel Martins Ramos, e também do juiz Manoel Felix do Carmo que era Capitão na 2ª
Companhia e do tesoureiro Manoel José de SantaAnna, Capitão na 1ª Companhia. Vimos, no
capítulo anterior, as responsabilidades e exigências para ocupar os cargos de mesa na Milícia.
Uma vez que existia esse trânsito de indivíduos nos dois espaços, podemos supor que o fator
chave a elegê-los para os cargos que ocupavam não esteve livre da influência que suas
patentes militares exerciam. Dessa forma, estar ligado ao corpo de associados de mais de uma
irmandade e ainda exercendo cargos administrativos e de poder nas duas demonstrava
aceitação social em mais de um círculo de pessoas. Revela da mesma forma a existência de
posses individuais para o sustento pessoal dentro das instituições, afinal como se sabe, a
existência de uma associação leiga, a exemplo das irmandades, tinha como uma de suas bases
o pagamento de valores (eventuais, mensais e/ou anuais), como os que se seguem no quadro
12 abaixo cobrados pela Irmandade de São Gonçalo Garcia de Penedo e acordado em
compromisso.
QUADRO 12: Valores cobrados pela Irmandade de São Gonçalo Garcia dos
Homens Pardos de Penedo (1807)
CARGO
VALORES
ENTRADA/ESMOLA
ANUIDADE
FESTA
Esmola opcional
200 réis
Protetor
200 réis
25$000 réis
Juiz
200 réis
Escrivão
200 réis
Tesoureiro
200 réis
Procurador
geral
200 réis
Procurador
das casas
200 réis
Zelador
200 réis
20$000 réis
Mordomos
200 réis
10$000 réis +
Juíza
fogueiras e
luminárias
Mesada de 4$000 réis
200 réis
Escrivã
Mesada de 4$000 réis
200 réis
20$000 réis
Mordomas
200 réis
Procuradores
para fora da
vila
310
Capítulo 15º - Dos enterros dos sufrágios dos irmãos.ºIn: Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo
Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo. [...]. 1807.
119
640 reis
200 réis
1280 reis (acima de 40
anos)
Fonte: Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos
da
Vila
de
Penedo.
[...].
1807.
Disponível
em
<http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/02441400>.
Irmãos
A cobrança dessa quantidade de valores demonstra que os interessados em associar-se
e usufruir dos benefícios ofertados eram pessoas distintas, social e, nesse caso,
financeiramente. Janaína Bezerra registrou alguns valores cobrados pelos confrades da Ordem
Terceira do Carmo de Recife311, instituição tradicionalmente composta pelas elites locais na
qual a autora encontrou homens pardos entre os confrades, e nós vimos algumas proximidades
dos valores cobrados pela irmandade de São Gonçalo Garcia. Enquanto que numa instituição
como a Ordem do Carmo eram cobrados 2$000 réis de entrada para os irmãos (pessoas que já
tinham passado por uma série de requisitos dentre os quais o poder aquisitivo falava mais alto
e acabou revelando um perfil elitista dos noviciados), os irmãos de São Gonçalo Garcia,
lembrando que eram trabalhadores mecânicos, descendentes de africanos, pagavam um valor
de 640 para entrar, 1280 reis por mês e a anuidade de 200 reis. Características bastante
contrastantes, mas que revelam traços da vida econômica da população parda. Também são
claras demonstrações da importância de sempre atentarmos para as particularidades de cada
região.
Lucilene Reginaldo afirma também que os militares negros que entravam em
irmandades geralmente faziam parte de uma elite negra da América portuguesa. Esse traço, do
acúmulo não de irmandades, mas de instituições, que discutimos é justamente o que
consideramos ter dado a eles uma posição não só de destaque, mas também de poder. A
trajetória do grupo fez dos pardos da Vila do Penedo uma elite local, tanto no próprio círculo
dos pardos, como no contexto da vila. As aparentemente pequenas conquistas ao longo da
segunda metade do século XVIII foram importantes etapas na configuração dos pardos como
um grupo de indivíduos com perfis semelhantes (ainda que diferentes internamente), que
tinham objetivos próximos (afastar-se ou permanecerem afastados da vivência da escravidão)
e operaram em conjunto, mesmo que focados em suas trajetórias pessoais. Na milícia não
vemos esse processo de operar coletivamente, visto que era um lugar onde a atuação era
individual, mas na irmandade é possível identificar um sentimento de grupo. Eram homens e
mulheres que estavam na associação religiosa por escolha, porque se identificavam com o
311
BEZERRA, Janaína Santos. Op. Cit., p. 133.
120
santo ou com os demais associados ou queriam ser inseridos na malha social organizada e
composta por indivíduos que possuíam ascendência africana, mas não eram mais escravos e
também não tinham o mundo de privilégios dos brancos.
Por isso dissemos que uma instituição complementava a outra. O que uma não
proporcionava, a outra o fazia; o que uma oferecia, a outra complementava. Além dos pardos,
só vemos essa busca e construção de uma identidade entre os pretos, como nos casos
estudados por Lucilene Reginaldo, Anderson Oliveira, Mariza Soares. Aos brancos, e
dependeu muito do caso em se tratando de um país onde as mestiçagens foram um dos
sustentáculos da própria colonização e a maior parcela da população (preta, branca ou parda)
sempre foi pobre, nunca foi imposta a necessidade de estar entre os seus semelhantes ou de
formar redes de sociabilidades, ou construir identidades e, a partir daí, entender seus lugares
no mundo.
A sociedade colonial portuguesa da América, cuja forma de ordenação social baseavase nas diferenças e na hierarquização dos indivíduos, criou um cenário padrão onde todos os
seus personagens deveriam seguir um roteiro específico que mantivesse as estruturas da
escravidão, da economia e da cultura cristã europeia ocidental. Neste contexto, no qual a
maior parcela da população em fins do século XVIII era de ascendência africana, não deveria
ser surpresa vê-la nos mais diversos espaços e alcançando conquistas que a historiografia
tradicional negou, perpetuando a visão típica dos que estavam no poder de que os africanos e
seus descendentes serviam apenas de força física, que não tinham força moral como os
brancos. As instituições europeias, a Coroa Portuguesa, o império ultramarino que a coroa
estava constituindo, a sociedade, a economia colocaram os “homens bons” como modelo a ser
alcançado por todos os indivíduos, mas não quebrava os muros que as estruturas da
escravidão, do patriarcalismo, da distinção social impunha aos grupos sempre marginalizados
e excluídos, particularmente o contingente negro da sociedade que se desenvolveu no Brasil.
121
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Logo no começo do trabalho citamos trechos de uma fala de Francisco Manuel
Martins Ramos que retomaremos agora.
Fiz publicar o Edital incluso por cópia, não tanto para que o povo me conhecesse por
Comandante, porque não ignorava que isto ia chocar com o amor próprio de
algumas pessoas da primeira espécie dos habitantes, que olham a mistura de
sangue Africano com odiosa preocupação; como para o prevenir dos motivos
porque seriam castigados, autorizando algumas medidas de Polícia com o
Respeitável Nome de Vossa Excelência, esperando que Vossa Excelência se Digne
de Aprovar este meu arbítrio, que só teve por fim a tranquilidade pública, e o evitar,
mais com prudência, do que com castigo, os abusos da plebe312.
Loreto Couto, quando falou da plebe de Pernambuco, disse que “todo aquele que é
branco na cor, entende estar fora da esfera vulgar. O mesmo é ser alvo que ser nobre, nem
porque exercitem ofícios mecânicos perdem esta presunção”313. Ou seja, excluía os brancos
do conjunto de pessoas que constituía a plebe. O autor afirmou igualmente que pardos e
pretos também podiam ser nobres, ou pelo menos deixar de ser plebe, mas com a condição de
praticarem boas obras e ações virtuosas – em contraste com os brancos que já nasciam com
essa qualidade. Francisco Manuel Martins Ramos, no trecho acima transcrito, deixa explícito
o significado de ser pardo na Comarca de Alagoas: era ter lugar incerto na sociedade.
Vejamos: no mesmo trecho em que denuncia a odiosa preocupação por parte de algumas
pessoas de primeira espécie com a mistura de sangue Africano, deixando transparecer a
distinção entre ele e essas pessoas e um sentimento de inferioridade, também deixa avisado
que os abusos da plebe podem ser tratados com medidas de Polícia e em nome do
Governador. Ora, como vimos logo no início nos dicionários de Raphael Bluteau e Morais e
Silva, e particularmente de acordo com Loreto Couto, os indivíduos que compunham a plebe
de Pernambuco eram justamente os não brancos, termo que é compatível com o perfil de
Francisco Manuel Martins Ramos, um pardo.
O que queremos dizer é que Francisco, assim como provavelmente todos os pardos,
passava pela experiência de estar em mais de um lugar ou em um não-lugar na hierarquia da
sociedade. Utilizava, em suas estratégias, mais de uma referência para conseguir alguma
mobilidade, distinção e inserção social. Através da análise de sua trajetória, que se assemelha
312
Ofício de 1º de setembro de 1819. Ofícios do comandante do regimento de milícias dos homens pardos de
Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
313
COUTTO, Domingos do Loreto, 1759. Op. Cit. – livro terceiro, capítulo 21, pp. 226-227.
122
a de vários dos pardos sob seu comando na milícia e irmandade de São Gonçalo Garcia,
percebemos que, enquanto homem pardo, buscava afastar-se de qualquer semelhança com sua
ascendência africana, que remetia à experiência do cativeiro, e aproximar-se do mundo de
privilégio dos brancos. Nesse processo, os pardos encararam diferentes formas de tratamento.
Utilizando novamente o exemplo de Ramos, percebemos esse contraste: em um momento era
escolhido pelo governador da Capitania de Alagoas, Sebastião Francisco de Melo e Póvoas,
para o cargo de maior autoridade da região onde residia e, em seguida, viu todas as suas
conquistas diminuídas por indivíduos de primeira espécie, status que certamente o governador
possuía.
Como visto neste trabalho, para compreender quem eram os pardos e qual lugar
ocuparam na sociedade colonial, é imprescindível falar das trajetórias de africanos e seus
descendentes nascidos no Brasil. Ainda que os pardos que viveram em fins do século XVIII o
tivessem feito com a condição jurídica de livres em sua maioria, as possibilidades de agência
da própria vida em algum momento esbarravam na ascendência africana que possuíam. Por
mais que tivessem alcançado alguma distinção, por mais que tivessem ascendido socialmente
e alcançado posições semelhante às de homens nobres, ou brancos, portugueses ou brasileiros,
ainda que tivessem composto extensas e consolidadas redes de sociabilidades, a ascendência
africana de pardos e pardas, era como um alarme que era acionado em qualquer momento
para desqualificar as trajetórias e barrar outros processos de mobilidade social. Nem o homem
pardo que mais se distinguiu na Comarca de Alagoas, Francisco Manuel Martins Ramos, que
foi o principal porta-voz da Irmandade de São Gonçalo Garcia, que foi à Portugal resolver
assuntos pessoais e de sua família, que alcançou o posto de Coronel do Regimento de Milícias
da Comarca/Província de Alagoas e foi indicado pelo Governador para o posto de
Comandante Interino da Vila do Penedo, conseguiu se livrar dos julgamentos calcados em sua
ascendência africana.
Vimos que muitas das características que seriam (e foram) mau vistas pela sociedade,
pela nobreza, brancos e outros indivíduos de altas posições na hierarquia, não foram motivos
de constrangimento entre os pardos. Para os oficiais do regimento de milícias de Penedo,
exercer trabalho mecânico, ser filho nascido de relações ilegítimas ou ter origem
desconhecida não foram traços dignos de desonra nem impediram movimentos de ascensão
social no próprio grupo dos pardos. Manter uma imagem digna de honra e respeito na
sociedade eram mais importantes, pois provavelmente significou a manutenção de todo o
123
processo de distinção social que alcançaram. Um pardo que não se comportasse de forma
socialmente aceitável e disciplinada não abriria as portas para tratamentos como o que
aconteceu na década de 1770, quando os confrades da Ordem Terceira os chamaram de
mulatos, ou evitaria disseminar a ideia de que a mistura de sangue africano era motivo de
ódio.
Assim, fica claro que a escravidão foi o elemento que operou de forma mais acentuada
nas dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais e moldou a forma como a população
negra foi tratada ao longo de toda a história do Brasil. A própria organização da sociedade foi
estruturada a partir das dinâmicas dessa instituição e pela busca constante do afastamento da
condição de escravo, que usurpou a humanidade de tantas pessoas ao longo da história.
Após o distanciamento do cativeiro, que era o primeiro passo do processo de ascensão
social, seguia-se o que optamos por chamar de embranquecimento da população, ou seja, a
atribuição de um novo perfil através principalmente de termos diversos que classificaram uma
população igualmente diversa dando nova identidade, novas características à um contingente
populacional que não era branco, não alcançaria o mundo de privilégios dos brancos, mas não
vivia mais na condição de escravo. A partir do abandono, da anulação ou do desligamento de
uma ascendência africana (na religião, na forma de vestir, de falar, de viver, de dançar, de se
alimentar, de interagir com os demais), seus descendentes estavam teoricamente aptos a ser
inseridos nas instituições, na política (muito raramente até hoje), na cultura e demais esferas
da sociedade. Todas essas etapas são estágios do projeto de ocidentalização das sociedades do
Novo Mundo.
As irmandades leigas foram um dos principais espaços de sociabilidade do período
colonial nos quais a população como um todo, desamparada dos cuidados da Igreja de Roma,
pode exercer sua fé. Para a população negra, mais do que isso, representou a possibilidade de
exercer o mínimo de liberdade que conseguissem escolhendo os santos de sua preferência,
buscando inserir-se em irmandades participando da liturgia religiosa católica e nos festejos
profanos, formando redes de contatos, de parentesco, clientelares, relacionando-se com a
sociedade. Os regimentos militares, apesar das limitações do seu acesso especialmente aos
escravos, também foram espaços utilizados pela população no período colonial como
ferramenta nos processos de distinção social. Comparados com as irmandades, os regimentos
militares foram ainda mais significativos, pois atuavam na manutenção da ordem social, eram
responsáveis pela tranquilidade, pela defesa do território e da população contra possíveis
124
invasores, atuavam literalmente no projeto de mundialização do império ultramarino de
Portugal.
Sob a categoria dos pardos existiram vários indivíduos com perfis distintos: uns já
afastados do cativeiro com mais de uma geração de distância, outros próximos, mas com
alguma parcela de liberdade. Na Vila do Penedo, por exemplo, enquanto alguns pardos
exerciam ofícios mecânicos, outros ascenderam socialmente e viviam somente do soldo pago
pelo exercício militar, sem precisar de outro oficio que os sustentassem nos regimentos
militares, como era comum. Essa diversidade ratifica nossa hipótese de que o termo pardo
funcionava como um grande guarda-chuva que servia aos interesses de uma população livre
de ascendência africana.
Uma última observação que faremos refere-se à cor da pele. Por mais que tenhamos
evitado nos referenciar aos pardos como pessoas livres de cor ou somente por pessoas de cor
(pois não temos nenhum tipo de fonte visual dos pardos de tratamos314) ao longo do trabalho,
ou, existiu sim uma forma de tratamento distinta dada aos pardos. Por mais que os pardos
analisados aqui já tivessem se distanciado da ascendência africana que possuíam, se a cor
escura da pele não era fator de exclusão social, Frei Jaboatão não teria evidenciado de forma
tão categórica que São Gonçalo Garcia não só possuía origem distinta, mas também a cor
parda (resultado da mistura da cor negra com a branca) impressa em sua pele. Francisco
Manuel Martins Ramos, com toda sua trajetória de destaque na Comarca de Alagoas, também
não teria denunciado o tratamento odioso em relação à “mistura de sangue africano” que
possuía e, sabemos, provavelmente saltou logo aos olhos dos demais indivíduos.
Na Vila do Penedo, as dinâmicas da escravidão, da sociedade e as trajetórias
individuais proporcionaram não apenas um afastamento dos pardos da ascendência africana,
que representava uma ligação direta à experiência do cativeiro, como também a ascensão
social que os colocou em condições de disputar lugar e privilégios com indivíduos que
tradicionalmente ocupavam posições superiores na hierarquia (brancos, homens bons). Se as
dinâmicas econômicas eram as guias no processo de criação de elites, os pardos (alguns deles
ao menos) tiveram condições de compô-la, pois, como vimos, os pardos em Penedo eram
negociantes, viviam de fazendas de gado, viviam do soldo do oficialato. Se o fator que
operava de forma mais incisiva na organização social era a participação em instituições, isso
foi igualmente traço presente nas trajetórias dos pardos, que mantiveram e sustentaram suas
314
E até hoje o processo de heteroidentificação é custoso para a sociedade.
125
presenças em irmandades e milícias. Nos parece que não havia lugar em que os pardos não
estiveram na região sul da Comarca de Alagoas (e também na própria sede da comarca, região
central). Sobram motivos para crermos que, na Alagoas colonial, a presença e a distinção
social alcançada pelos indivíduos pardos configurou-se como ameaça aos que se
consideravam superiores.
Para nós, este trabalho deixa claro que entender as estratégias, as características, a
diversidade regional, os recortes temporais, o lugar dos pardos, esses homens e mulheres
livres e descendentes de africanos integrantes da sociedade escravista, são passos essenciais
para compreender o lugar dos negros na sociedade contemporânea que é extremamente racista
e o porquê do tratamento violento e excludente dado a essa população até os dias de hoje,
mesmo depois de mais de cem anos sucedidos desde a abolição da escravidão. Julgamentos
como os que sofreram os pardos que trabalhamos foram igualmente calcados na ascendência
africana que possuíam, refletidas no trabalho, na cor da pele que podia ser mais escura ou
mais clara, e no nível de distinção social que alcançaram. Ou seja, a população parda no
Brasil, apesar de distanciada de sua ascendência africana, não estava livre do tratamento que
recebiam os pretos, estavam livre, talvez, da violência escancarada, que exclui, julga e mata
alguém apenas pela tonalidade escura da sua pele.
Ainda falta muito para que alcancemos alguma mudança de fato e de direito que
provoque a igualdade e equidade sociais que se deve a essa parcela da população, que embora
sofra na pele, literalmente, os cruéis resquícios da desumanidade da escravidão, ainda acredita
que pardo não é negro, que descendentes de africanos são apenas os que podem ser
identificados pelo tom mais escuro da tez e excluem outras formas de discriminação como a
intelectual, a cultural, a afetiva e também a econômica, social, política. Nosso objetivo aqui
foi dar um primeiro passo no estudo do que era ser pardo em Alagoas e mostrar que mais do
que a cor da pele, era a existência ou ausência (entrando aqui também a negação) de sequer
um antepassado africano – com toda a sua bagagem religiosa, cultural, social, política
totalmente diferente do modo de vida ocidental europeu implantado nas Américas – que
dificultou ou facilitou as vidas dos milhões de homens e mulheres negros e negras (pretas e
pretos, pardas e pardos).
126
6. REFERÊNCIAS
FONTES
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136
7. ANEXOS
Mapa das comunidades quilombolas em Alagoas
137
Mapa com as localizações atuais dos locais de nascimento e moradia indicados no quadro 5.
138
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Penedo.
139
Pintura anônima de San Martín de Porres em cobre existente no Monastério de Santa Rosa de las Monjas de
Lima (Peru)
Igreja de Nossa Senhora do Amparo, Marechal Deodoro.
Avenida Floriano Peixoto, ao fundo, a Igreja de São Gonçalo Garcia, Penedo.
140
Igreja de São Gonçalo Garcia, Penedo.
Discurso Histórico, Geográfico, Genealógico, Político, e Encomiástico; recitado na nova
celebridade, que consagrarão os Pardos de Pernambuco ao Santo da sua cor: o beato
Gonçalo Garcia.
FONTE VII
Nasce do V. 22, e 23. Do Cap. 6. Lue.
Beati eritis cum vos oderint homines, & cumseparaverint, & exprobraverint vos, &
ejecerint nomen vestrum tamquam malum...Gaudete in illa die, & exultate
E com as suas místicas águas entra a unir-se com as desta primeira Corrente em um discurso Histórico,
Geográfico, Genealógico, Político, e Encomiástico; recitado na nova celebridade, que consagrarão os Pardos de
Pernambuco ao Santo da sua cor:
O BEATO GONÇALLO GARCIA,
Na sua Igreja do Livramento em Santo Antonio do Recife aos 12 de Setembro do ano de 1745.
J. M. J.
Sendo tantas as ocorrências da festa; não podiam ser menos as palavras do tema. Serviram de tema estas palavras
para o Sermão; porque é justo que o Sermão tenha tema: mas a mim mais me parecem uma ajustada profecia da
presente solenidade, e de todas as circunstâncias, que nela ocorrem. Dedicam-se hoje estes reverentes cultos,
estes custosos aplausos, estes grandes festejos, estes devidos obséquios, e toda esta nova, e grande celebridade ao
glorioso, e invicto Martyr S. Gonçallo Garcia; crédito, lustre, honra, e glória, de todos, os que pela sua cor se
chamam Pardos. Este é aquele nome, que proferido com outros termos, e tomado em linguagem vulgar, se vos
lançava até agora em rosto, quase por desprezo, como com menos política faziam alguns, sem mais razão, ou só
com a sem razão, de não teres, os Pardos, um Santo, que canonizasse a vossa cor; mas hoje, que vos aparece um
Santo da vossa cor, e já canonizado, já o nome vos não pode ervir de desdouro algum, antes fim de muita gloria,
141
pois no Beato Gonçallo Garcia, Santo de vossa cor, vos deparou Deus um Restaurador, ou Redentor das calúnias
de vosso Nome.
Este é em suma o objeto todo desta nova, e grande celebridade. Festejar-se aqui um Pardo Santo, que
sabendo-se até agora que era Santo, não se conhecia fosse Pardo; e por este Pardo Santo, verem todos os da sua
cor tornado bom aquele Nome, que se se supunha até agora como mau. E tudo isto temos misteriosa, e
profeticamente incluído nas palavras, que me serviram de tema, que são do Evangelho, com que a Igreja
declarou por Santo ao Beato Gonçalo Garcia: Beati eritis, cum vos oderint homines, e cum separaverint, e
exprobraverint, e ejecerint nomen vestrum tamquam malum. Gaudete in illa die, e exultate. Alegrai-vos, dizem
as palavras do Evangelho, falando em profecia com os Pardos hoje, alegrai-vos: Gaudete; porque, ainda que
vejais muitas vezes o vosso Nome desprezado, e lançado à parte como mau: Et ejecerint nomem vestrum
tamquam malum, e por este mesmo Nome sejais caluniados, e tidos como em ódio pelos homens e por eles
separados até de tudo o que é ação boa, e virtuosa: Cum vos oderint homines, e separaverint vos, e
exprobraverint; alegrai-vos: Et exultate; porque lá há de chegar tempo, lá há de vir um dia: In illa die, em que
por esse mesmo Nome caluniado, e desprezado haveis de ser bem aventurados, haveis de ficar muito gloriosos:
Beati eritis. Nem as palavras do Evangelho dizem mais, e nem vós tendes experimentado menos.
Quantas calúnias, quantos opróbios, que de desprezos, e irrisões não tem ouvido os Pardos sobre a falta,
que tinham de Santo da sua cor atribuindo-se esta falta ao defeito da mesma cor; como se a cor, por acidente,
pudesse ser sujeito de alguma maldade. E com tanto empenho, que, por malícia da mesma cor, os queriam
separar (ao nosso modo de dizer) e até da comunicação dos Santos. A alguém ouvi dizer (seria talvez por chiste)
que do Beato Gonçallo Garcia uma só coisa duvidava, e era, que fosse Santo sendo Pardo, com seus termos
vulgares. É verdade, que neste mundo todos fomos como as abelhas de S. Pedro (conforme dizem), que pelo que
fazem uns, perdem os outros, e alguma abelha má poderá ter havido, que com o veneno da sua malícia
inficionasse aos mais; e o que foi defeito particular de algum ficou sendo contágio universal para todos: mas
como isso não é culpa original, que por força de Decreto hajam de contrair todos, o que cometeu um; seja
embora mau o que é mau, dê-se o Nome ao que obra mal, que aos mais nada lhes pode o Nome fazer mal, se
obram bem. E assim com estes falo.
Alegrai-vos uma vez: Gaudete, e outra vez vos alegrai: Et exultate; porque isso, que até agora passou
por vós, é o mesmo que disse Christo havia acontecer aos seguidores do seu Evangelho, ou do seu Nome. O
Nome dos seguidores do Evangelho, que é o do Crucificado, ou de Christão, nem era mau nem continha em si
maldade alguma, senão aquela, que os contrários do mesmo Nome lhe queriam por; e com tudo os Discípulos do
Senhor eram caluniados, e desprezados, só por terem aquele nome: e sendo os Discípulos os caluniados, Christo
é o que principalmente vinha a ser o ofendido pelo Nome: Nomem vestrum tamquam malum propter Filium
hominis: o mesmo passa em nosso caso. O Evangelho em comum parece fala com todos os Pardos mas
determinadamente se encaminha ao Beato Gonçallo Garcia; porque ele é o que se achava mais ofencido, quando
os Pardos pelo seu Nome eram caluniados, pois ao mesmo tempo que o Beato Gonçallo Garcia era Santo; e
estava beatificado, o mundo julgava o contrário, e não queria; que sendo Pardo fosse Santo, só porque tinha
aquele Nome: Nomem vestrum tamquam malum.
Christo, para desenganar aos Escribas que o seu Nome não continha em si maldade alguma, dizia aos
Discípulos que se alegrassem, porque daquele mesmo Nome caluniado, e desprezado, lhes haviam resultar todas
as suas glórias. Porque aquela partícula: Cum, aqui é causal, e quer dizer que as glórias lhes haviam sobrevir
depois da mesma causa, donde lhes nasciam então as calúnias: Cum vos oderint homines, e separaverint, e
exprobraverint, e ejecerint, nomen vestrum, tamquam malum. Eis aqui a causa das calúnias Beati eritis, eis aqui
as glórias deduzidas daquela causa. Da mesma sorte, para deixarmos hoje desenganados, aos caluniadores deste
Nome Pardo, que não contém em si maldade alguma o Nome, lhes havemos mostrar, que deste mesmo Nome
caluniado resultam aos Pardos todas as suas glórias: Beati eritis cum vos oderint homines, e cum separaverint
vos, e exprobraverint, e ejecerint nomem vestrum tamquam alum. Gaudete in illa die, e exultate.
Christo dizia aos Discipulos, que haviam ter um dia destes; mas não lhes declarou quando havia de ser
este dia; talvez, porque quis que pelo dia de hoje viéssemos em conhecimento daquele dia comumente acode
Deus nas tribulações, quando elas apertam mais aos atribulados, e quando nelas se espera menos algum socorro,
e alívio: nunca aos Pardos esperaram menos um Santo da sua cor, do que na presente ocasião, e nunca tanto
como agora os apuraram e apertaram mais as tribulações dos caluniadores do seu Nome: e por isso, nunca tanto
como nesta ocasião se faria neles mais apetecido um Santo da sua cor. Pois agora, diz o Senhor, agora é tempo,
já chegou o dia. Agora sim, que cresceram e chegaram a seu termo as calúnias do vosso Nome: Cum vos oderint
homines, & ejecerint nomen vestrum tamquam malum; agora é o tempo de se publicarem as vossas glórias: Beati
eritis, e já chegou o dia do vosso grande prazer, e gosto: Gaudete in illa die, & exultate.
A bem aventurança, ou glória, de que o Senhor aqui fala, não é a do Céu, é a da terra; não é a que se
goza lá na Pátria, é a que se pode ver neste mundo: aquela glória, aquele prazer, aquele gosto, e aquela alegria,
que costuma sobrevir, depois de vencido o trabalho, desfeita a calúnia, e passada a tribulação: é sentido literal do
texto; porque tudo o que nele se trata é coisa que havia passar cá no mundo, e entre os homens, adonde a glória,
que pode haver, não passa de um prazer, e gosto, que passa: Beati eritis. Gaudete, & exultate.
142
Daqui suponho se está percebendo, que não venho hoje pregar da bem aventurança, e glória, que o
Beato Gonçallo Garcia goza no Céu, como Santo, nem tampouco hey de discorrer sobre a declaração, que o
Sumo Pontífice fez da sua Santidade, porque isto não é hoje coisa nova, e nem padece dúvida alguma: a
declaração, que eu me parece devo fazer hoje, é daquilo, que pode ter e com efeito tem alguma contrariedade, e
faz repugnância a alguns, que é a natureza, e cor parda deste Santo. Esta cor parda, é a que eu venho hoje
beatificar, ou declarar por bem aventurada; quero dizer, venho mostrar como o Beato Gonçalo Garcia é pardo
por nascimento, e descendência, e declarar que a sua cor parda não só é tão bem aventurada, e ditosa como as
mais; mas ainda algum coisa mais. E como isto tudo há de resultar em glória do nosso Santo, ao menos
acidental: Beati eritis, e em gosto, e prazer de todos os da sua cor: Gaudete, & exultate; todos me devem ajudar a
pedir para o acerto, por intercessão do mesmo Santo, o patrocínio daquela Senhora, em cuja casa estamos, que
nos não há de faltar, como Mãe que é de graça. Ave Maria.
Assuntos há que melhor é ouvi-los, que dizê-los; não está também o discorrê-los em conceito próprio,
mais conveniente é ouvi-los em discurso alheio. Assim devia muitas vezes ser, não tanto pelo difícil dos
assuntos, quanto pela diversidade dos ouvintes; pois não havendo assunto tão inacessível, que se não possa
penetrar, e ainda dar alguma saída, a dificuldade toda está em deixar satisfeitos aos que ouvem; porque
certamente já gênios de paladar tão desgostoso, que sempre lhes desagrada o alheio, por mais concertado que vá,
talvez só porque é alheio; e só lhes parece bem o próprio, e muitas vezes sem mais tempero, que o ser próprio.
Um dos assuntos mais repugnantes, que tem tocado o meu discurso, é o presente; porque entro nele conhecendo,
que não tendo tanto de dificultoso pela matéria de que trata, há de ter muito de contrariedade elo assenso, que
muitos lhe deram, ou tem já dado. O que eu posso afirmar e, que não trago intento, e nem o tive nunca, de
persuadir coisas novas porque só determino mostrar a verdade delas; e esta, não ditada pela minha estimação,
mas deduzida de vários Autores: da verdade de todos eles há de constar o presente discurso, que não há de ter de
meu, mais que a forma, a composição, e ornato; e ainda que por força há de começar em narração histórica, não
deixará por isso de continuar, e acabar em discurso Panegírico, atado todo às palavras do Evangelho; entremos
nele.
O Beato Gonçallo Garcia nasceu em Baçaim, Cidade do Estado da Índia Oriental, Conquista dos
Sereníssimos Reis Portugueses, nossos Senhores. É Baçaim, além de outras excelentes, que dela contam os
Historiadores, uma das mais nobres Cidades da India, assim em edifícios, como em moradores; pois apenas,
dizem eles, se achará em Portugal casa, ou família ilustre, que lá não tivesse descendência; por cujo respeito
eram ali tantos os Dons, que até a Cidade lhe tocou o seu, pois a chamavam alguns D. Baçaim. Suponho, que ao
nosso Santo, lhe não coube em sorte Dom algum destes, porque nenhum dos Escritores, que vi lho declaram nem
ainda os nomes de seus pais. Só nos dizem, que um era Português, e por consequência branco, e outro natural da
terra, e conseguintemente negro; esta era a mãe, natural de Baçaim, e aquele o pai, filho de Portugal: Assim o
trazem, além dos Escritores da Ordem o Agiologio Lusitano ou Calendário Português, do Licenciado Jorge
Cardoso, no dia cinco de Fevereiro. Não achamos escrito, nem o dia, nem o ano do seu nascimento, nem
tampouco os que teve de idade, só achamos, que entrando os Portugueses a tomar posse da Cidade de Baçaim no
ano de 1534 e sendo o martírio deste Santo no de 1597 correm deste meio tempo de 63 anos, e assim podemos
afirmar certamente, que dos 61 ou 62 não podia passar a sua idade, dado caso que nascesse logo no primeiro, ou
segundo ano daquela entrada dos Portugueses em Baçaim.
Também não achei coisa particular da sua vida até o Estado de Religioso; só sim que nela exercitou
Primeiro o trato da Mercância, navegando da Índia para a Ilha de Manilha, uma das chamadas Filipinas, no mar
da China. Nestas Ilhas tem os Religiosos Franciscanos Reformados uma Província intitulada de S. Gregório, e
em Manilha um Convento; aonde Gonçallo Garcia costumava muitas vezes ir, quando se achava na terra com o
seu negócio. E, ou afeiçoado aos Religiosos, ou chamado por Deus, pediu ali o hábito, e fez profissão para Frade
Leigo. Também não pudemos descobrir o tempo desta Profissão; só achamos que no ano de 1593, estando por
Comissário dos Religiosos nas Filipinas o Beato Fr. Pedro Batista, e sendo enviado Embaixador por Philippe
Philippe II de Castella, a Taycozame Imperador do Japão, levou consigo por companheiros a dois Religiosos
mais, e a Fr. Gonçalo Garcia por intérprete, porque, como Mercador, que tinha tratado com aquelas gentes,
entendia melhor a língua da terra.
Não só compôs Fr. Pedro os negócios de Espanha com o Japão, como Embaixador, mas também como
Missionário: (para cujo emprego levava breve do Papa Clemente VIII) alcançou licença do Imperador para
pregar a Fé aqueles Gentios, como com efeito o fez, converteu a muitos, edificou Conventos, e Hospitais; e
passadas nestas, e em semelhantes obras mais de três anos, movido o Imperador, por um Médico seu, e alguns
Sacerdotes dos Ídolos contra os Religiosos, foram presos todos, que eram em número de seis, com quinze
terceiros, e três seculares mais, naturais todos do Japão; e sentenciados à morte na Cidade de Meaco, depois de
quase dois meses de cárcere, e cortada a cada um a orelha esquerda, e levados a correr as ruas açoutados áspera,
e afrontosamente com as mãos atrás; dali os conduziram atropelados, e em tempo de inverno por mais de cem
léguas de caminho à Cidade de Nangan Zaqui, onde os crucificaram, traspassando com duas lanças a cada um.
Estando já na sua Cruz o Beato Gonçallo Garcia, e tocando-lhe por forte o ficar no meio daquele triunfante
triunfante exército, era o que a vozes pregava a todo aquele povo, assim Christão, como Gentílico; a estes,
143
advertindo-lhes os erros em que ficavam, e àqueles admoestando-os à perseverança da Fé: e ao tempo, que o
traspassaram com aquelas lanças, foram estas as suas últimas palavras, que proferiu: Senhor havei misericórdia
de mim. Também se acha, que no tempo, em que esteve no Japão o Beato Gonçallo Garcia, escrevera várias
Epístolas àqueles Christãos, que andavam espalhados por aquelas Ilhas, cheias de fervor, e zelo do seu abraçado
espírito; por cuja causa o Padre Salmantino o põe no número dos Escritores no 2 Tomo da sua Biblioteca
Germanica Franciscana na letra G. Foi o Martírio deste Santo a cinco de Fevereiro, do ano de 1597 e daí a trinta
anos, no de 1627 foram declarados todos verdadeiros Mártires, por Bula do Sumo Pontífice Urbano VIII no
quinto ano do seu Pontificado. Consta todo o referido do Breviário, e Martirológico Seráfico, Agiológico
Lusitano, com mais de trinta Autores, lá apontados.
Do que fica dito, já sei que o que só se duvida agora, é da cor da mãe do Beato Gonçallo Garcia; porque
dizendo os Escritores todos, que era natural de Baçaim, se acrescenta agora, que era da cor preta, e talvez dirão
que só a fim de fazermos Pardo ao Beato Gonçallo Garcia, como descendente de preto, e branco. Como este é o
ponto principal, e todo o tropeço do nosso discurso, para procedermos nele com a clareza necessária, e distinção
possível havemos definir primeiro, que coisa seja Pardo, não só nesse sentido, mas também no comum, e vulgar
do Povo. Pardo em termos vulgares, diz o Padre. D. Rafael Bluteau no seu Vocabulário da língua Portuguesa, na
letra M. Mulato é aquele, que é filho de branco, e negro; Pardo, assim como nós o proferimos, diz o mesmo
Autor na letra P, é aquele, que nem é branco, nem é negro, mas participa destas cores ambas; é misto, vem a ser
o mesmo, que Pardo, porque é uma cor meia, que participa de ambas as cores, preta, e branca; diz o sobredito
Bluteau na letra M.
Que o Beato Gonçallo Garcia seja Pardo por todos estes princípios, que participasse da cor preta, e
branca; enquanto a esta não há dúvida, porque sem contradição dizem todos, que o pai era Português; que
participasse da cor preta, por parte da mãe é a maior dificuldade. Sabemos certamente, que era ela natural de
Baçaim, mas também sei, que muitos duvidam, qual seja a cor dos seus naturais. E assim digo, que a cor dos
naturais de Baçaim, como de todos os demais da Índia, é a cor preta, e negra; porque são todos negros, e pretos.
Para assentarmos por indubitável esta proposição havemos referir rir, o que dos naturais daquelas terras, e da cor
deles, dizem os Escritores: e para isto tudo se perceber melhor havemos fazer um abreviado mapa do que
chamamos Índia, especialmente desta, de que falamos, seus termos, costas, e divisões.
Dividem os Escritores, e Geógrafos a tudo o que se chama Índia em três partes: e deixando a primeira,
que chamam Índia maior, terra firme, ou Império do Mogol, e a terceira, que é uma Península mais Oriental, a
segunda, que é a de que falamos, é outra Península, a que chamam Ocidental. Começa esta Península, ou ponta
de terra com 230 léguas de largo, entre as desembocaduras dos dois famosos rios, o Ganges, que fica para a parte
do Oriente, e do Indo, para a parte do Ocidente, e fazendo costa por uma, e outra parte vai igualmente estreitando
até acabar, com 280 léguas em um cabo, ou ponta, que chamam de Comori. Corre direito de Norte para o Sul,
ficando-lhe para o sul o cabo, e o grosso para o Norte. E deixando as costas, que correm pela parte do Oriente, e
discorrendo pelas que ficam cá da parte do Ocidente, um dos primeiros lugares, começando do Norte para o Sul,
é a Cidade de Baçaim, com 16 léguas de costa; daqui passados alguns lugares de menos nota, entra o distrito de
Goa, que é uma Ilha ao longo da terra com pouco mais de três léguas. Dos confins de Goa entra o que chamam
Reino de Malabar, e costa da Pescaria, por quase duzentas léguas até o cabo de Comori. E que os naturais de
toda esta Índia sejam negros, e da cor preta, o dizem comumente todos os Escritores.
Monsiur de Chevigni Francês, nos seus livros intitulados Sciencia para las Personas de Corte, Espada,
y Toga, na tábua, ou mapa da Índia maior ou Império do Mogol, falando dos seus naturais, que são os que
confinam com os da nossa Índia, diz estas palavras: Son morenos, pero no tanto como los de las otras costas de
la Peninsula Ocidental, en cuya comparacion, estos del Mogol se llaman blancos. Duas coisas temos aqui que
notar: A primeira é que, Mogol na língua daquela gente, quer dizer branco, e por isso aqueles, por se terem por
brancos, se chamam Mogoles. A segunda é, que a estes, que lá se tem por brancos, chama este Autor, e outros
muitos, Morenos. E se quisermos saber, que cor é esta de Moreno, dirá o Vocabulário Português, que Moreno é
aquele, que tem a cor escura, e quase negra, que em latim é Subniger: também se deve aqui advertir, que estes
Morenos, que são quase negros, são os que lá chamam brancos, e isto a respeito dos da nossa Índia, que ainda
são mais negros. Agora quisera me respondessem sem paixão: Para um Moreno destes, que é quase negro, se
chamar branco a respeito de outro, que é mais negro, que cor há de ser a deste mais negro? É sem dúvida, que há
de ser negro, e muito negro. Pois esta era a cor da mãe do Beato Gonçallo Garcia, natural da Cidade de Baçaim
lugar principal da costa da Nossa Índia.
D. Francisco Giustiniani no seu Athlas abreviado no mapa da nosssa Índia descrevendo-a diz assim:
Está situada entre los 7 y 22 grados de longitude Septentrional, por cuya causa el ayre es estremadamente
caliente, y sus naturales mas negros, que los del Indostan, o Mogol. Os do Mogol são Morenos, e quase negros,
os da nossa Índia são ainda mais negros: bem se deixa ver, que são negros e muito negros. D. Francisco de la
Torre, no seu Athlante Peregrino, Vida do grande Padre S. Francisco Xavier, falando da entrada, que este
Apóstolo das Índias fez na Cidade de Goa, e descrevendo os seus naturaes, diz estas poucas, e elegantes
palavras: Son negros, por ser blanco a los tiros del Sol. O Author do Oriente Conquistado na I part. afol. 100
144
diz que no Seminário de Goa se criavam noventa meninos, entre brancos, e pretos, estes pretos são os naturais da
terra.
De Goa para diante entra o que chamam Reyno de Malabar, por quase 200 léguas até o cabo de Comori;
e todos estes Malabares dizem geralmente os escritores todos são negros, e os mais negros de toda a Índia. Seja o
primeiro o nosso Homero Português, pois foi não só dos primeiros que os descrevo, mas como que escrevia pelo
que tinha visto. Fala ele na oitava 93 do Canto 8 das suas Lusíadas, de um Catual, que é dos primeiros ministros
do Rei de Calecut, o qual teve como preso ou retido, dia e meio, ao grande Vasco da Gama, e diz assim:
Concertão-se que o Negro mande dar: Negro, diz que era este Malabar, e pessoa principal daquele reino. Por
negros os trata também a todos estes Malabares o P. Alonso de Sandoval, em várias partes do seu tratado De
Instauranda Ethiopu Salute, com vários Authores por ele citados; baste por todos a Authoridade do mesmo
Apóstolo das Índias S. Francisco Xavier, em o Cap. de uma carta, que este Santo escreveu da Cidade de Cochim
ao seu glorioso Patriarcha Santo Ignacio em 15 de Janeiro de 1544 vão as palavras do Santo falando dos naturais
do Malabar: Também perguntaraõ se Deos era branco, ou negro, pela differença de cores, que viaõ nos homens,
e porque aqui todos saõ negros. São palavras de S. Francisco Xavier. E de caminho se deve aqui advertir, que
destes negros da Índia, e não dos da África, é que se diz que estimam tanto a sua cor preta, que até aos seus
Ídolos, e Deuses pintam negros. E se os naturais da Índia, e de todas as suas costas são negros todos, e todos da
cor preta, desta cor há de ser também a mãe do Beato Gonçallo Garcia, pois é natural de Baçaim, Cidade
principal na costa da Índia.
Do que fica dito já podíamos concluir que o Beato Gonçallo Garcia é Pardo legítimo por natureza, e
descendência; pois participa por uma parte de cor branca, e da preta pela outra. Mas porque me parece ouvir
dizer a alguém, que o Pardo para se ter por legítimo, não só há de descender de negro, mas de tal negro, que,
além da cor preta, há de ter mais duas propriedades: uma, que há de ter o cabelo retorcido, ou demasiadamente
crespo; a outra, que se há de poder chamar Ethiope, isto é, que há de ser natural da Ethiopia. Os da Índia, dizem
estes duvidosos, nem são Ethiopes, nem tem o cabelo retorcido: logo, ainda que tenham a cor preta, nem por isso
se devem própria, rigorosamente por negros; e assim o Beato Gonçallo Garcia, ainda que descenda de um destes
da Índia, da cor preta, nem por isso se pode dizer que é Pardo com propriedade.
A isto se responde: que esta dúvida só vem a fazer-nos mais dilatado este discurso, e a obrigar-nos a
mostrar com maiores razões como os naturais da índia são própria e rigorosamente negros; não só pela cor preta,
mas pelos mesmos princípios, que querem os duvidosos. E assim digo, que a sua dúvida não tem força alguma,
porque se funda em princípios falsos. O primeiro, é supor, que os cabelos retorcidos, ou demasiadamente crespos
são de tal forte conaturais a todos os negros que não haja negros naturais sem cabelos retorcidos, o que é falso,
porque os há.
Em Moçambique pela terra adentro, diz Fr. João dos Santos na sua Ethiopia Oriental, citado pelo Padre
Sandoval, há uma nação de Ethiopes, a que chamam Machacatos, e habitam nas Cidades de Brava, e
Magadacho, os quais dizem estes Authores são negros como azeviche, e tem os cabelos lisos, e corredios; e nem
por isso deixam de ser negros, e Ethiopes verdadeiros. E na Índia nas Ilhas Filipinas, e Malucas, diz o mesmo
Sandoval há negros com os cabelos tão engrenhados, e retorcidos, como os de Guiné, e mais não são naturais da
África, ou Ethiopia. Donde se segue, que os cabelos retorcidos não são de tal sorte conaturais a todos os negros,
que se não achem negros naturais sem cabelos retorcidos; e assim os da Índia, ainda que não tenham todos, e de
todo o cabelo retorcido, não deixam por isso se ser rigorosamente negros. Ouçamos aqui umas palavras de
Heródoto, que traz o Padre Vieira na sua História do futuro, tocando, ainda que a outro intento, este mesmo
ponto; e ficará mais evidente o que imos dizendo: Hi Ethiopes, qui funt ab ortu folis sub Pharnarzatre,
censebantur cum Indis Speciee nibil admodum cateris diferentes, sed sono vocis duntaxat, atque capillatura;
nam Ethiopes, qui ab ortu folis funt, permixtos crines, qui ex Africa crespíssimos inter homines habent. Não se
podia dizer, nem mais, nem melhor para o intento. Diz, que na Índia, que é parte da Ásia, também há negros, ou
Ethiopes, assim como na África; e que só se distinguem uns dos outros, no som da voz, e nos cabelos; porque os
da Ásia, ou da Índia, tem o cabelo entre crespo, e solto; e os da África muito crespo, e retorcido: e assim fica
bastantemente claro, e entendido, que os da Índia, ainda que não tenham todos, e nem de todo o cabelo retorcido,
nem por isso deixam de ser rigorosamente negros.
A segunda suposição, que fazem os duvidosos, é entenderem que os Negros se chamam Ethiopes, por
serem naturais da Ethiopia, e daqui se segue também terem para si, que a Ethiopia é a que deu aos Negros o
nome de Ethiopes, o que tudo é erro. Porque devem saber, que os Negros se chamam Ethiopes, pela mesma
razão de serem Negros; e como Negros, ou Ethiopes, eles foram os que deram o nome à Ethiopia. Plínio diz, que
a Ethiopia se chamou assim, de um filho de Vulcano chamado Ethiopes, que reinou na África muitos anos; e já
por aqui se vê, que um Ethiope foi o que deu nome à Ethiopia. Melhor o diremos com a Sagrada Escritura, e
Santos Padres. Assentam todos, que os primeiros habitadores da Ethiopia foram os Negros descendentes de
Chus, filho de Cham. Cham que dizer Negro, ou negrura: Cham id est, nigredo, seu niger, e negro na língua
Hebreia, é o mesmo, que Ethiope na Latina; porque os Hebreus chamam Ethiope ao que, tem a cor negra, e
preta: Niger id est Ethiops. S. Jeronymo, Josepho, Isidoro, o Tostado com setenta Intérpretes, diz Alapide,
afirmam que aquela parte da África, que estes descendentes de Chus povoaram, se chama Ethiopia, ou Chusia,
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porque estes fundadores se chamavam Chusios, ou Ethiopes porque eram negros, e pretos na cor; e Chusios
como filhos, e descendentes de Chus: Filli aut Cham Chus: diz o Sagrado Texto; Chus, acrescente Alapide, ab
hoc orti sunt Ethiopes, qui hinc se sua língua Chusius vocant. Chus enim nomen dedit Ethiope, diz o mesmo
Alapide em outro lugar. Daqui se vê claramente, que os Ethiopes foram os que deram o nome a Ethiopia, e não a
Ethiopia aos Ethiopes; e que o Negros se chamam Ethiopes não por serem da Ethiopia, senão porque são pretos,
e negros na cor: Niger, id est, Ethiops. Chis, qui nomen dedit Ethiope. Por estas razões, conclui o Padre
Sandoval, convém chamemos a todas as nações de cor negra, Ethiopes; e assim este Author, falando de negros,
que diz há não só na Ethiopia em África, mas na Ásia, na Arábia, na Índia, e na nossa América, adonde diz há
também nações de negros, a todos chama Ethiopes. E se o negro, para ser própria e rigorosamente negro, nem é
necessário que seja natural da Ethiopia, e nem que tenha cabelos retorcidos, porque basta só que seja preto na
cor, para se chamar com propriedade negro; os naturais da Índia, ainda que o não sejam da Ethiopia, e nem
tenham todos os cabelos retorcidos, são negros naturais, e Ethiopes verdadeiros, porque tem o que lhe basta para
isso, que é serem pretos na cor; e por consequência o Beato Gonçallo Garcia, porque descende de um preto
destes com branco, é Pardo legítimo por natureza.
Mas porque desejo nesta parte deixar de todo satisfeito a estes duvidosos, digo mais: a mãe do Beato
Gonçallo Garcia, como todos os demais da Índia, não só sçao Ethiopes legítimos por serem pretos na cor, mas
também são Ethiopes verdadeiros, porque são também naturais da Ethiopia. Para o que devem saber, que a
primeira parte do mundo, que teve o nome de Ethiopia, foi a Índia Oriental. Assim o disseram S. Epifanio, e
Anastasio Niceno citados pelo Doutor Solorzano no seu primeiro tomo de Fure Indiarum a fol. 6 § 50 falando
desta Índia Oriental, de que nós agora com ele também falamos: Totam banc Indiam Orientalem, de qua
loquimur, magnam Ethiopiam appellant, & fatis appositè. Notem bem os termos: Satis appositè: Que querem
dizer, que os chamam à Índia Oriental Ethiopia o fazem com muita propriedade, e acerto: Satis appositè.
E se isto parecer muito, muito mais há de parecer, se nós dissermos mais, e é o que se vai seguindo: que
a Índia Oriental é aquela Ethiopia dos Antigos tão celebrada nas Divinas letras, da qual diz o Profeta David, foi a
primeira que as mais partes do mundo no conhecimento de Deus feito homem: Ethiopia pravenit manus ejus
Deo: id est, prima proveniet, acrescentam os Sagrados Expositores: Pois saibam, que esta Ethiopia, que dizia
David havia ser a primeira no conhecimento de Deus feito homem, é a Índia Oriental. Assim o traz o Padre
Leblanc sobre o vers. II do Salmo 72. Et adorabunt eum omnes Reges terrae, acarretando para aqui o vers.
passado: Ethiopia praevenit manus ejus Deo,e juntamente o v. 10 do cap. 3 de Sophonias: Ultra flumina
Ethiopiae, onde diz, que por esta Ethiopia entendem Arias, Vatablo, e o Caldeo a Índia: Arias, Vatablus, &
Chaldeus intelligunt ibi Indiam. E mais largamente o já tinha escrito antes o P. Alapide sobre este mesmo vers.
de Sofonias; onde diz, que o Caldeo em lugar do vers. Ultra flumina Ethiopiae, põem Ultra fluvios Indiae, e que
estes Authores todos juntos com à Castro, de tal sorte entendem por esta Ethiopia da Escritura a Índia Oriental,
que a estendem até o Japão, e a China, : Alii, diz Alapide, quibus favet à Castro, putant híc notari Indiam
Orientalem, usque ad Japonem, & Chinam. Não se podia estender mais, porque não havia mais para onde
estender. E aqui se ficará também entendendo, que o primeiro Ethiope, ou negro, que por esta India Oriental, ou
grande Ethiopia rendeu vassalagem a Deus feito homem, foi Gaspar terceiro Rei dos Magos, que duvidando-se
muitos séculos donde fosse, depois que os nossos Portugueses entraram na Índia se sabe certamente era seu
natural, e Rei de Crangranor na costa do Malabar.
E se acharem isto muito, muito mais acharam ainda se nós formos dizendo; porque assim se vai
seguindo, que primeiro houve negros na Índia, do que os houvesse na África; e que da Índia é que vieram os
primeiros negros para a África. Assim o traz o Padre Leblanc no lugar já citado, pouco adiante vão as suas
palavras: Adde, quod Ethiopes filios Chus, quidam velint olim ad Indum flumem habitasse, reliclisque sedibus
suis juxta Egyptum consedisse inter Nilum, & Oceanum supra Heliopolim, & inde paulatim ad interiora Africae
penetrasse. Quer dizer, que os Ethiopes, ou negros, filhos, ou descendentes de Chus, saindo de suas pátrias
fizeram a sua primeira habitação na Índia às margens do seu rio, e saindo daqui, se partiram para o Egypto, e
fizeram o seu assento entre o rio Nilo, e o mar Oceano sobre a Cidade de Heliopolis, e daqui pouco a pouco se
foram espalhando por toda a África. Não cita este Padre Authores, talvez por julgar ser opinião provável; mas no
Doutor Solorzano achamos os que bastam para a probabilidade desta opinião; foi o primeiro, que escreveu, ou
dos primeiro, Heródoto, e depois dele Eusebio, e Torquemada, concordando em que esta passagem dos Negros
da Índia para a África, ou Egypto, aconteceu no ano da criação do mundo de 3580. Juxta hanc Aegypti
Assiaticam partem AEthiopes ab Indo flumine consurgentes, consedisse, anno mundi 3580, ut post Herodotum
tradidit Eusebius, & Torqumada.
E se, conforme a vontade dos duvidosos, Pardo legítimo é aquele só, que é descendente de branco, e
negro, e tal negro, que se possa dizer que é Ethiope, ou natural da Ethiopia; sendo a primeira Ethiopia, que houve
no mundo, a Índia, e sendo os seus naturais sempre Ethiopes, ou negros desde o seu princípio, bem dizia eu, que
vos havia mostrar hoje como o Beato Gonçallo Garcia é pardo legítimo por natureza, e descendência, pois é
descendente de um Português branco, e de uma Ethiope, natural de Baçaim na Índia, que foi a primeira Ethiopia
do antigos: Totam hanc Indiam Orientalem magnam AEthiopiam appellant; & satis appositè.
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Suposto está bastantemente proado, que os naturais da Índia são negros, e Ethiopes, não só pela cor
preta, mas também pela natureza, como descendentes de Chus, filho de Cham, como me podem ainda alegar,
que, dado caso que assim fosse naqueles princípios, hoje já não é assim; porque ainda que pela costa de
Malabar, cabo de Comori, e outros lugares hajam ainda destes negros, como também na Ilha de Ceilão, e outras
muitas das Malucas, e Filipinas; com tudo dos confins do Malabar, correndo a costa de Goa até Baçaim, e para
diante, consta de pessoas, que por elas tem andado, que os seus naturais hoje, e já no tempo, que os Portugueses
entraram na Índia, não eram absolutamente negros, e pretos, mas trigueiros, baços, ou morenos, que assim os
tratam também alguns Escritores: e vulgarmente lhes chamam alguns Cafres, ou Canarins, e não Negros. E assim
parece, que de balde tem trabalhado o nosso discurso, em querer fazer aos da Índia todos Negros. Ouçam a
resposta, que poderá ser fiquemos ainda melhor.
Digo pois, que estes baços, ou morenos, que não são absolutamente pretos, se não devem chamar
Cafres, ou Canarins, porque isto é erro do vulgo. Canarim, conforme os mesmos naturais da Índia, quer dizer o
que é natural de Canará, que é uma Província, ou Reino, que fica entre os confins de Goa, e princípios do
Malabar pela terra a dentro, cuja Cidade principal se chama também Canará. Vejam ao Padre Bluteau no seu
Vocabulario. Também se não devem chamar Cafres os naturais da Índia; porque, conforme ao meso Bluteau,
Cafre vem da palavra Arabiga Cafir, que quer dizer Homem sem lei, e este nome Cafre se dá somente pelos
Escritores a uma nação de negros, que habita na costa de África pelo Cabo da Boa Esperança até quase
Moçambique, chamada Cafraria, ou Província, e Reino do Monomutapa; e daqui vem, que os naturais da Índia,
quando lá aparece algum negro da África, a estes é que chamam Cafres, porque os da Índia se tem ainda por
mais negros, do que os próprios da África.
Também é necessário advertir aqui a alguém, que ouvindo dizer que o Beato Gonçallo Garcia era Índio,
entendeu seria algum indivíduo dos Tapuias da nossa América, porque a estes chamam também Índios, ainda
que com pouca propriedade; porque, como nota certo Escritor, impropriamente se chamam Índias as terras da
América; porque Índias somente se entendem as Orientais, ditas assim em razão do rio Indo, que as rega, e
parece não podem ter muita congruência entre si estas duas partes da terra, sendo tão diferentes uma da outra,
quanto vai do Oriente ao Ocidente; do princípio ao fim do mundo. E sendo os naturais de ambas tão diferentes
em tudo, que até o são nas cores, os da América vermelhos, e os da Índia negros.
E se me perguntarem o como devemos chamar a estes da Índia, que não são totalmente negros, mas
baços, ou morenos; digo que os havemos chamas mistos, Pardos, ou mulatos; porque esta em termos é a cor dos
baços, ou morenos da Índia. Também temos Authores, que assim o escrevem. O nosso Homero Português na
Oitada 100 do Canto 10, falando das Arabias, e descrevendo os seus naturais, diz assim: Olha as Arábias três,
que tanta terra tomaõ, todas da gente vaga, e baça. Manoel de Faria e Sousa, explicando esta cor baça, ou
morena dos naturais das Arábias, diz: Quiere dezir, que la gente dessas parte es de color ni blanca, ni negra, que
em Portugal llamamos Pardo, ò Mulato, porque se llamam mulatos los hijos de negro, y blanco. Daqui devemos
notar mais, que a cor morena, ou baça, não é outra mais que a mista, ou parda, e parda legítima; porque diz este
Author, ou dá a antender, que assim a parde, como a morena é cor mista, que procede de branco, e preto. Melhor
o diremos ainda com Authores, que falam determinadamente dos baços, ou morenos da Índia.
O Sandoval, já alegando aqui tantas vezes, no lib. 4 cap. 4 pag. 11 falando da estimação, que a Sagrada
Companhia de Jesus fez de ser nomeada pelos Sumos Pontífices, e Reis de Portugal para o emprego da
conversão dos negros da Índia, diz estas palavras: Estimó-lo tanto, que seña-lo para él, y para la Mission de la
India Oriental, cuyos naturales (reparem aqui) son todos, ó negros, ó mulatos, como lo dizen graves Authores. E
no mesmo liv. 4 cap. 7. Pag 44 falando dos naturais das Malucas, torna a dizer: Y que estos sean negros, dexando
à parte lo que dizen los que escriven las cosas de la India Oriental, que sus naturales todos, ò son negros, ò
mulatos. Eis aqui temos com toda a clareza como a cor morena dos naturais da Índia não é outra mais que a
Parda, de que falamos, e Pardo legítimo; porque aqueles Morenos da Índia vem por descendência direita da cor
branca com a preta. E se quiserem averiguar esta razão, é deduzida do que da Índia, e dos seus naturais dizem os
Authores, que deixamos referido.
Dizem que a Índia é aquela grande, e primeira Ethiopia dos Antigos; dizem que os Ethiopes, ou negros,
primeiro habitaram na Índia, e depois se passaram para a África; e o que daqui se segue é, que os da Índia, que
não forem negros, hão de ser Pardos, ou Mulatos legítimos por descendência. E a razão é concludente. Porque
ainda que da Índia vieram os primeiros negros para a África, não era possível passassem todos de tal sorte, que
não ficassem muitos, e a maior parte deles; porque, além de estarem espalhados pelas três Índias, e muitas Ilhas,
os que falam nesta retirada, sódizem que passaram para África os que habitavam as margens do rio Indo: Ab
Indo flumine consurgentes, que é donde tem princípio as Índias. Também é provável, que com a saída dos negros
do rio Indo para a África, haviam ser povoadas aquelas ribeiras de gentes estrangeiras, e brancas: estas haviam
entrar pelas Índias a dentro, e comunicando-se com os mais negros, que ficaram, daqui resultou aquele misto, ou
terceira espécie, que alguns Escritores chamam morenos, outros baços, e os nossos com mais propriedade dizem
Pardos, ou Mulatos, como descendentes de preto, e branco.
E é tão natural que este discurso, que os que habitam mais para a terra a dentro, e da Península, e costas
da nossa Índia, que correm para o Sul, e Cabo de Camori, Ilha de Ceilão, e outras mais, que lhes não era tão tão
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fácil a comunicação com aquela gente branca, que entrou pelo rio Indo, são ainda hoje tão negros, e pretos, como
dantes o eram; e os que ficavam para as margens do Indo, e terra intermedia, como os do Mogol, e alguns da
nossa Índia, que podiam mais facilmente comunicar-se com aquela gente branca estrangeira, estes são os que
hoje chamam morenos, baços, pardos, ou mulatos, como misturados de negro e branco. E este é o fundamento
todo, com que dizem estes Authores, que os naturais da Índia são todos, ou negros, ou mulatos: mulatos os que
procedem daqueles negros, que e misturaram com brancos; e negros os que não entram naquela mistura.
E quem haverá ainda de tão cativo da sua vontade, que, vendo o que dizem estes Authores, possa
duvidar mais, que o Beato Gonçallo Garcia, como natural que é da índia, seja Pardo legítimo por natureza, e
descendência? Até agora podia-o ser por um só princípio; agora já o pode ser por dois: até agora podia ser Pardo
sendo os naturais da índia todos, e somente negros, e sendo ele descendente de um destes com branco; agora já o
pode ser tamém, sendo os naturais da índia, que não forem negros, mulatos, ou Pardos; Pardo, e mulato, há de ter
também o Beato Gonçallo Garcia; pois o que descende de mulato, ou Pardo com branco, é pardo, e mulato. E
fiquemos nisto: ou me hão de conceder que os naturais da Índia são todos negros, ou que são negros, e
juntamente mulatos outros; e de qualquer sorte, que seja, sempre o Beato Gonçallo Garcia fica sendo mulato
legítimo, como descendente de negro, e branco.
Assentado assim com tão sólidos fundamentos, que o Santo Gonçallo Garcia é Pardo legítimo por
nascimento, e descendência, é tempo já de beatificarmos a sua cor, e declararmos que é tão bem aventurada e
ditosa como as mais e mais ainda. As cores, que tem, e teve sempre opostas a sua cor parda, foram a branca, e a
preta: o que tem feito ditosas, e bem aventuradas estas duas cores, foram os povos, e nações de que cada uma
delas tem sido princípio, e origem; os Príncipes, Reis, e Monarcas, que dominaram estes povos; as Pessoas
grandes, e assinaladas em todos os estados e Hierarquias: e porque assim a cor branca, como a preta tinham para
si que tudo isto faltava na cor parda, este era o motivo de a terem por menos ditosa, e bem aventurada. Mas
enganava-se certamente, assim a cor branca, como a preta; porque a cor parda em tudo isto tem sido não só bem
aventurada, e ditosa como elas, mas ainda alguma coisa mais.
A cor parda também tem sido princípio, tronco, e origem de povos, e nações inteiras. Todos sabem que
os Ismaelitas, Agarenos, ou Mautiranos, São descendentes de Ismael. E também devem saber, que desta nação
está tão cheio o mundo, que ela só ocupa toda a Ásia, a maior parte da África, e muita da Europa; sendo quase
assentado, que esta só gente excede em número, e multidão aos da cor branca, e preta. Vendo-se assi cumprida
nela aquela promessa, que repetidas vezes fez Deus a Abraão sobre Ismael, que de tal sorte multiplicaria a sua
descendência, que dele nasceriam doze Capitães, e se faria daqui um povo tão grande, que se não poderia
numerar: Super Ismael quoque exaudivi te; multiplicabo eum valde. Duodecim Duces generabit, & faciam eum
in gentem magnã. Disse Deus uma vez; e outra disse: Multiplicans multiplicabo sêmen tuum;... & non
numerabitur prae multidtudine.
E quem era este Ismael? Ismael era um homem da cor parda, e Pardo legítimo; porque era filho de
Abraão, que era branco, e de Agar sua escrava, a qual era preta, e negra por nascimento, porque era natural do
Egypto, como dizia Sara falando com Abraão sobre Agar: Habens ancillam Egyptiam nomine Agar. E que os
Egípcios por natureza, e descendência sejam negros, é opinião comum dos Sagrados Expositores; porque dizem
que os primeiros habitadores do Egito foi Mefraim com seus descendentes, e por esta causa o Egito na língua
Hebreia se chama Mefraim, e ainda hoje os Arábios, e Turcos, chamam ao Egito Mefra; e Mefraim, consta do
Sagrado Texto, era negro, porque era filho segundo de Caim. Filii autem Cham, Chus, & Mefraim, diz o texto, e
acrescenta Alapide: Mefraim, ad hoc habitata, & propagata est Egyptus, que inde Hebraice Mefraim vocatur, &
etiam nunc ab Arabibus, & Turcibus vocatur Mefra. E aqui temo a Ismael Pardo legítimo, como descendente por
uma parte de branco por Abraão, e pela outra de negro por Agar. E por aqui temos a cor parda não só tão bem
aventurada, e ditosa, como a preta, e a branca, pois como elas tem sido tronco e origem de povos, e nações
inteiras, mas ainda mais; pois esta só gente Parda por Ismael, excede em multidão e branca, e a preta.
A outra dita, e bem aventurança da cor branca, e negra, consiste nos Reis, Príncipes, e Monarcas, que
cada uma teve, e tem nessas gentes, que delas procederam. Também por aqui a cor parda é tão ditosa, e bem
aventurada como elas, e ainda mais. Tanto, porque a cor parda, nesse Povo, que dela saiu, tem sido muitos, e
muitos Reis; e só Ismael, consta do Sagrado Texto, teve doze filhos, nomeados aí por Capitães, e Príncipes:
Duodecim Duces generabit: Duodecim Principes Tribuum suarum, e diz Josefo que todos estes foram Reis;
porque saindo Ismael com sua mãe Agar desterrado da casa de Abraão seu pai, viera ao Deserto de Pharan, como
consta do texto, e casando aí com uma mulher natural do Egito: Habitavit que in deserto Pharan, & accepit illi
mater sua uxorem de terra Egypti, desta teve aqueles 12 filhos, os quais espalhados por toda a África, foram nela
reis, e dominaram várias Províncias; e daqui se tem espalhado por quase todo o mundo, com o nome de
Ismaelitas por Ismael, Agarenos por Agar, e Mauritanos da palavra grega Mauron, que quer dizer coisa quase
negra, e queimada, por eles serem desta cor. E por estes Reis, e outros muitos, que tem tido a cor Parda, é tão
bem Aventurada, e ditosa como a preta, e a branca, e ainda mais; porque os primeiros Reis, Príncipes, e
Monarcas, que houve no mundo, assim entre os da cor branca, como da preta, foram da cor Parda: parece-me que
o hei de mostrar, um com certeza, outro com probabilidade.
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Da criação do mundo até o tempo do dilúvio, na computação do Alapide, correram 1656 anos: e em
todo este tempo não consta no Sagrado texto, ou de Author algum houvesse filho, ou descendente de Adão, que
dominasse na terra com título de Rei, e Senhor absoluto; porque cada um governava a sua família como pai, e
cabeça dela; veio o dilúvio, e ainda se passaram 170 anos que tem no mundo se ouvisse o nome de Rei; mas
neste mesmo ano, estando já Noé com todos os seus filhos retirados para o campo de Senaar, entre o rio Tigre e
Eufrates, para onde vieram no ano 131 depois do dilúvio, e tendo dado princípio à fundação da Cidade de
Babilônia, e Torre de Babel, Nemrod, principal agente de toda esta máquina, começou a mostrar-se poderoso na
terra, a dominar aquele Povo, e a fazer-se senhor dele, até que no ano 184 do dilúvio estava reconhecido, e
adorado de todos como Príncipe, Rei, e Monarca absoluto: Nemrod, ipse caepit esse potens interra: fuit Babylon
principium Regni ejus: diz o texto, e o Alapide diz: Primus in orbe Princeps, & Rex fuit Nemrod. E que era este
Nemrod? Nemrod era um homem da cor Parda. Assim o podemos trará com boa probabilidade, porque Nemrod
era filho sexto de Chus: Porro Chus genuit Nemrod, e já por aqui temos a Nemrod com uma parte de preto por
seu pai: e que tivesse outra parte de branco por sua mãe, provavelmente se pode afirmar; porque, ainda que não
achamos quem fosse a mulher de Chus, e mãe de Nemrod, podemos discorrer era da cor branca, e descendente
dos dois irmãos de Cham, que eram Sem, ou Jafet; porque Chus, como filho primeiro de Cham, e o primeiro, que
por castigo do pai saiu da cor preta, não podia, como primeiro, ter outra da sua cor, com quem casasse; porque,
para ser da sua cor, não podia ser senão filha do mesmo Cham, e irmã de Chus; e não consta do texto, e nem de
Author algum, que tenhamos notícia, que houvesse esta irmã de Chus, ou filha de Cham; e nem, dado caso que a
houvesse, podíamos afirmar que Chus tomasse por mulher uma sua irmã, em tempo que havia mulheres de outra
geração mais remota, como eram as de Sem, e Jafet da cor branca; provavelmente podemos dizer, que Nemrod,
porque por uma parte participasse da cor preta por seu pai, e pela outra da branca por sua mãe, era um homem da
cor parda, e este o Primeiro Príncipe, Rei, e Monarca, que houve no mundo, assim entre os da cor preta, como da
branca, que todos se achavam ali juntos, porque isto tudo aconteceu antes da confusão de Babel, e divisão das
gentes. Este foi o primeiro Rei, e Monarca, que achamos ser da cor Parda com discurso provável; e com certeza,
ainda temos mais.
Reynaldo em Jerusalém Salomão, filho de David, levada da fama da sua sabedoria, veio a vê-lo, e ouvilo a Rainha de Sabá, a esta recebeu também Salomão por mulher, como Rainha, e teve dela um filho, que lhe
nasceu estando já retirada da sua Corte, e lhe pôs o nome David, como seu avô; este Príncipe sendo já de vinte e
um anos e desejando ver seu pai, e tomar-lhe a benção veio a Jerusalém, e Salomão não só o reconheceu por
filho, mas com todas as cerimônias, e insígnias Reais o fez coroar no Templo por Rei, e Imperador da Ethiopia, e
foi o primeiro, que ali houve, porque até então se governava aquele Povo só pelas suas Rainhas sem admitirem
os varões a sucessão. Agora pergunto: e que casta de homem era este? Seria da cor branca, ou da preta? Não era
senão da parda, e Pardo legítimo; porque era filho de pai branco, que era Salomão, e mãe negra, que era a Rainha
de Sabá, e negra natural de Ethiopia, na opinião de muitos.
E que dirá agora isto a cor preta? Que há de dizer; que ouve agora, o que nunca cuidou de ouvir. Que
um Pardo, ou mulato, como eles dizem, fosse não só Rei, e Imperador dos negros, mas o primeiro Imperador, e
Rei, que tiveram, e na sua própria terra, e pátria dos mesmos negros. Que dirá a cor preta? Não tem outro
refúgio, mais que apelar para a dúvida, e dizer, que como isso não consta da Sagrada Escritura, e nem é mistério
de fé, não estão obrigados a dar-lhe crédito. Mas saiba que tem contra si muitos, e graves Authores, e o maior de
todos a mesma tradição antiga, pela qual consta, que muitos dos Imperadores da Ethiopia tiveram nome de
David, e todos até o presente nas suas escrituras se tratam por filhos de David, e Salomão, e assim o fazia um
deles, que no ano de 1507 mandou uma Embaixada ao Papa Clemente VII, e a ElRei de Portugal D. Manoel,
jactando-se este, e todos eles, da Real regalia desta descendência. E aqui temos a cor Parda não só tão ditosa, e
bem aventurada, como a preta, e a branca, pois, como esta, teve Reis; mas ainda muito mais bem aventurada, e
ditosa, pois os primeiros Reis, e Monarcas, que houve entre os da cor branca, e preta, foram os da cor Parda.
Dos Príncipes, e Reis que se seguem os Generais, Governadores, Mestres de Campo, e mais Posto da
Milícia: e sem sairmos do nosso Brasil, e ainda de Pernambuco, podíamos fazer de todos uma boa lista, se assim
como lhe sabemos os nomes, não achássemos alguns com cores mudadas. Na hierarquia Eclesiástica também
tem a cor Parda sujeitos assinalados: Sacerdotes sem número, Curas, Vigários, e outros ainda de maior hierarquia
também, sem irmos muito longe de Pernambuco, podíamos de todos fazer um catálogo muito bom, uns, que
conhecemos, outros, que talvez se não conhecerão.
Nas letras não menos tem a cor Parda homens dignos de se nomearem. O Padre Manoel Gonçalves
natural de Pernambuco, Doutor formado pela Universidade de Coimbra, aplaudido na Corte, e de quem ElRei D.
Pedro fazia muitas estimações, e pela sua virtude, e humildade foi prática, não não quis este Clérigo admitir a de
o querer aquele Rei nomear Bispo para São Tomé. Dommingos de Sá e Silva, também de Pernambuco, Doutor
em ambos os Direitos pela mesma Universidade, Advogado de Casa da Suplicação, e geralmente celebrado por
Douto, e buscado das primeiras pessoas para as dependências das suas causas; e outros muitos Letrados, e
Doutos, assim nas letras humanas, como Divinas.
Na virtude, e Santidade, que é o principal objeto deste discurso, tem a cor Parda sujeitos ainda de maior
distinção. E sem sairmos ainda da nossa América que temos aqueles, que bastam para crédito da mesma cor. E
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deixando alguns mais modernos, como um Irmão Ignacio, muito celebrado nestes nossos tempos na Cidade da
Bahia, aonde faleceu o ano passado, não deixaremos de fazer particular memória do Venerável Padre Pedro
Soares Pereira, natural do Rio de Janeiro, que desaparecendo daquela terra, sem se entender para onde, se soube
depois fora achado em uns lugares desertos da Cidade de Gênova na Itália, morto, e de joelhos, e com um papel
na mão, em que dava notícia de quem era, e de onde natural; e nesta mesma postura se conserva na Sé de
Gênova: consta o referido de um Sumário, que dessas partes se mandou tirar ao Rio de Janeiro, e foram Juiz, e
Escrivão dele o Padre João de Barcellos Machado Vigário no Rio, e o Padre Bartholomeu de França, Cura da Sé.
O Venerável Fr. Martinho Donato professo de meu Patriarca S. Domingos, na Cidade de Lima, Reino
do Peru da América, assinalado em todas as virtudes, e com excesso na da Caridade, a qual se estendia até aos
brutos, e irracionais: são espantosos, por nunca ouvidos, os prodígios da sua Caridade, acham-se escritos na 4
parte do Agiologio Dominicano no dia 3 de Novembro.
Na Capitania do Espírito Santo para parte do Rio de Janeiro, duas mulheres desta vossa cor, uma
casada, e outra viúva, as quais em uma guerra, que ouve entre o Gentio com os moradores, foram cativas, e
entregues ao maioral deles; e querendo este usar mal delas, em defensa da sua pureza, e castidade foram
martirizadas. Teve revelação do seu martírio o Venerável P. José de Anchieta, da Companhia d Jesus, que se
achava dali distante muitas léguas, no mesmo dia, e hora em que sucedeu, que foi a 18 de janeiro de 1560, e indo
para o altar, no seu modo, as beatificou celebrando delas Missa do Comum. Assim o traz o Calendário
Português.
E quanto na virtude, e santidade não tivesse a cor Parda mais que o Beato Gonçallo Garcia, este só
bastava para se poder gloriar com ele, tanto como com todos os seus se gloria a cor branca, e a preta. Até aqui
aqui temos visto, e parece-me que iguais a cor preta, e branca, com a Parda; porque se a dita, e bem aventurança
destas duas cores consistia em terem Santos, e por isso motejavam a Parda pelos não ter; saiba agora a cor preta,
e mais a branca, que a cor Parda não só é tão bem aventurada, e ditosa como elas, pois já tem também Santos da
sua cor, mas saiba que ainda o é alguma coisa mais; e saiba que esta maior dita, e bem aventurança vem à cor
Parda, por isso que é Parda. Porque a cor arda, por isso que é Parda, é mais perfeita que a branca, e que a preta.
Tudo havemos ver sem ofensas das partes, e por princípios, natural, Filosófico, Teológico, Moral, e Divino, ou
da Sagrada Escritura.
É a cor Parda tão perfeita, que todo o fim, com que aparece nos homens, não é outro mais que perfeição.
Comecemos por este fim, como princípio, que é desta cor, A cor Parda nos homens resulta, e tem princípio da
cor branca, e da preta. E para que, ou com que fim? Não descubro hoje outro mais que a fim de perfeiçoar-se por
aqui nos homens a cor preta. A cor preta nos homens, como sinal, que é de uma culpa e castigo de um pecado,
(pois na opinião mais conforme às Divinas letras, e texto Sagrado, quis Deus com esta tinta negra, escrever a
malícia de Cham, e a maldade de seus descendentes, e distingui-los com esta divisa, tão feia, como ignominiosa
dos mais filhos de Noé) vem a ser juntamente um borrão da natureza, uma nota infame, e uma mancha deforme.
Mas como a natureza sempre aspira a perfeiçoar-se, e mais a mais, comunicando-se, ou misturando-se a cor preta
com a branca, por meio da mesma natureza, assim se vai com a branca perfeiçoando-se a preta, até tornar ao seu
princípio, e ficar no seu natural. E quem negará que a cor Parda, que resulta assim da preta, e da branca, não
aspira toda à perfeição desde o seu primeiro princípio?
Adiantemos esta natural razão com outras razões tiradas de princípios também naturais, e ainda veremos
melhor esta perfeição da cor parda. De quatro princípios descubro eu agora procede nos homens a mudança das
cores. Primeiro, por castigo do pecado, como já notamos em Cham filho de Noé. Segundo, por mudança de
clima, ou por atividade do Sol, como escrevem alguns dos naturais da África, e os da nossa América. Terceiro,
por predominação de algum dos quatro humores, como vemos ainda nos mesmos homens de cor branca, huns
mais claros, outros baços, e trigueiros outros; conforme em cada um destes predomina mais o sangue, a cólera,
ou fleuma, &c. Quarto, por mistura das naturezas, como sabemos que do branco, e preto nasce o Pardo. Mas o
que eu aqui agora quero notar, é que nas mais cores a mudança procede de defeito; na parda é para perfeição.
Pecou Cam, e ficou negro; predomina o sangue, ou algum dos outros humores, e ficam com várias cores os
homens: intempera-se o Sol, e faz vermelhos, e morenos a outros: misturam-se as natureza, e sai a cor parda. E
quem deixará de entender assim, que nas mais cores a mudança está mostrando o defeito, de que procede; e que
na parda está inculcado a perfeição, a que aspira?
Sendo, como se vê, a cor parda toda perfeição pelo seu princípio natural, entremos por aqui mesmo a
realçar a perfeição desta cor, entre a preta, e a branca.
Naturalmente falando, é a cor parda tanto mais perfeita que a branca, e que a preta, que a primeira
imagem do homem, que houve no mundo, havendo Deus de lhe dar cor, não quis para isso, nem a preta, nem a
branca, senão só a parda. Não se há de negar que a primeira matéria, e o primeiro princípio natural do nosso
corpo foi o barro; e que a este barro assim amassado, e formado em corpo humano, ou figura de homem, lhe pôs
Deus por nome Adam, que quer dizer: vermelho, por ser este vermelho a cor daquele barro: Adam, id est, Ruber.
Agora pergunto: e como era vermelho, a que chamamos próprio, ou rubicundo; era outro vermelho impróprio,
qual é do barro porque não há barro natural, que seja propriamente vermelho, senão baço, ou pardo, que esta é a
própria, e rigorosa significação do nome Ruber , que quer dizer: Cousa vermelha, loura, ou que tira a roxo, que
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he o baço, ou pardo do barro. E é isto tanto assim, que este nome Pardo dá o P. Antonio Vieira a este barro de
Adam, discorrendo sobre estas mesmas cores branca, preta e Parda, e apropriando o Pardo do barro à cor nos
Pardos; e fazendo o reparo, porque não havia Deus chamar a Adam com o nome do barro, senão da cor: est foi o
seu reparo, o que eu faço agora, é este. E porque não quis Deus, para dar cor àquela primeira Imagem do homem,
nem a cor branca, nem a preta, senão só a Parda? A razão, que devemos dar hoje é; porque a cor Parda era mais
perfeita que a preta, e que a branca. Das mesmas palavras daquele grande Pregador havemos tirar esta razão. Diz
ele assim: Não quiz Deos que aquella côr fosse alguma das extremas, quaes saõ a branca, e a preta, senaõ outra
côr meya, e mista, que se compuzesse, de ambas, qual he a vermelha, ou a Parda no seu sentido. Agora digo
assim:
A cor Parda, diz aquele Pregador, é uma cor meia, ou mista, que participa da branca, e da preta: logo
bem se segue, que a cor Parda é mais perfeita que a preta, e que a branca; é sem dúvida, pois os mistos, como
sabem os Filósofos, são mais perfeitos que as partes, de que resultam; porque participam das perfeições destas
partes. E aqui temos já, por princípio natural, a cor Parda mais perfeita, que a cor preta, e branca. E esta é a
razão, porque não quis Deus para dar cor àquela primeira imagem do homem, nem a cor branca, nem a preta,
senão só a Parda, porque a Parda era mais perfeita que a preta, e que a branca. E assim o pedia a mesma razão
natural; porque, ainda naturalmente falando, aquela imagem do homem, era a obra mais perfeita que tinha saído
das mãos de Deus, e como mais perfeita, devia ser adornada com a mais perfeita cor; a cor foi a Parda: logo a cor
Parda, naturalmente falando, é mais perfeita que a preta, e que a branca: Adam, id est Ruber. Para confirmação
nos não há de faltar, nem a Filosofia, nem a Teologia com as suas razões. E ainda que os exemplos, que
apontamos, não pertençam todos à linha dos mistos, os que vêm fora dela, é porque tem para o nosso intento o
que basta, que é conterem em si as perfeições das partes, que contêm, e por isto querem mais perfeitos que estas
partes.
Na boa Filosofia o corpo misto elementar é mais perfeito que cada um dos elementos, e a razão é;
porque o corpo misto contêm em si todas as qualidades elementares, e participa da perfeição de cada uma delas.
A alma racional é mais perfeita que a alma só vegetativa, e que a alma sensitiva só: e a razão é; porque a alma
racional contêm em si estas duas, e todas as suas perfeições. O Sol entre todos os Planetas é o mais perfeito: e
uma das razões é; porque no Sol se vem juntas, e unidas as perfeições de todos, e cada um dos Planetas In unum
collectis. Deus é mais perfeito que todas as criaturas: e a razão é; porque Deus contêm em si todas as perfeições
das criaturas. Logo, se a cor parda inclui, e participa as perfeições da negrura, e alvura; bem se segue que a cor
Parda é mais perfeita que a branca, e que a preta.
Mais ainda, e é razão Teológica. O conhecimento simul intuitivo, e abstrativo é mais perfeito, extensivè,
que o conhecimento só intuitivo, e que o conhecimento abstrativo só: e a razão é; porque o conhecimento simul
intuitivo, e abstrativ há-se como uma terceira espécie, que participa dos dois conhecimentos intuitivo, e
abstrativo. Agora nossa conclusão: A cor Parda há-se como uma terceira espécie, que participa da cor branca, e
da cor preta: logo a cor Parda é mais perfeita que a cor preta, e que a cor branca. Vamos à razão moral.
Moralmente falando, aquela virtude é mais perfeita, que põem ao sujeito em grau mais superior, e lhe dá
o primeiro lugar. O martírio na Hierarquia da Igreja tem o primeiro lugar, e põem aos Santos em grau mais
superior que a confissão: logo, é mais perfeito que a confissão o martírio. Agora digo assim: A cor parda o
primeiro Santo, que deu para a Igreja foi um Santo Mártir; a cor branca, ainda que tem dado muitos Mártires, os
primeiros que deu foram Confessores; e a cor preta só Confessores é que tem dado até agora; o martírio, na
ordem da Igreja, põe aos Santos em grau mais superior, e lhes dá o primeiro lugar que aos Confessores: logo a
cor Parda, moralmente falando, é mais perfeita que a branca, que os primeiros Santos, que deu, foram
Confessores; e que a preta, que só Confessores tem dado. Venha já a Divina Escritura com a sua luz a fazer-nos
mais claro este discurso, e seja em um passo todo de luzes.
Quae est ista, quae progreditur quase aurora consurgens, pulchra ut luna, electa ut Sol? Que alma
Santa é esta? Quem é este Santo, que levantando-se como engraçada aurora, e participando juntamente dos
resplanadores do Sol, e dos reflexos da Lua, vem dando passos, que inculcam vagares, e mostram primazias:
Quae est ista, quae progreditur quase aurora consurgens, pulchra ut luna, electa ut Sol? Se a Sabedoria de
Salomão se pusesse de propósito a fazer-nos um rascunho da Imagem do nosso Santo, o não podia deixar
debuxado com melhores cores. Notem: três cores divisou a grande luz do Padre Antonio Vieira neste quadro de
Salomão: a preta, a branca, e a Parda. No Sol a branca, que é o dia, na Lua a preta que é a noite; e a Parda na
aurora, que são uns crepúsculos, que não são noite nem dia, mas participam do branco, e do preto de ambos. Já
por estas cores temos descoberto que a Imagem, ou figura, que aqui descrevia Salomão, era a do nosso Santo:
Pardo pela cor, com participação de branco, e preto: Quase aurora consurgens, pulchra ut Luna, electa ut Sol.
Aqui, como sombras, para darem algum realce a este quadro, e fazerem mais própria esta pintura,
parece podemos aplicar o que na Oit. 14 Do Cant. I disse o nosso Portugês Homero. Reinos da Aurora chama ele
ali aos da Índia Oriental: e da mesma Aurora direi eu agora são filhos os seus naturais, pela proporção, que tem
com os crepúsculos daquela a cor destes Pardos com propriedade, como o nosso Canto, por participar do branco,
e preto como natural dos Reinos da Aurora: Quase aurora consurges, pulchra ut Luna, electa ut Sol.
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Ainda conheceremos melhor ao nosso Santo nesta figura, se repararmos de caminho nos passos, com
que disse Salomão havia ele fazer esta sua jornada: Quae prograditur: Progreditur quer dizer passar avante de
um a outro lugar, não com passos apressados, mas com decurso vagaroso. Assim tem feito esta sua viagem do
Japão até Pernambuco o Beato Gonçallo Garcia, pois partindo das Índias há 148 anos, que tantos há desde o seu
martírio até o presente, ainda agora chega aqui: Progreditur. Mas os vagares, com que veio, nos deram lugar a
reparar em que a sabedoria de Salomão, não só o quis deixar conhecido por Pardo, senão que no modo com que
o deixou, logo exprimiu também a singularidade, e primazia da sua cor Parda sobre a branca, e a preta; porque
não só põem a autora primeiro que o Sol, e a Lua, e a cor parda em primeiro lugar que a preta, e a branca:
Aurora, Luna, & Sol; mas diz também que entre a branca, e a preta se levanta a Parda com a primazia, que isso
quer dizer o Consurgens: Quase aurora consurgens, pulchra ut Luna, electa ut Sol.
E tanto fica, em ordem de perfeita, a cor Parda superior à branca, e à preta, que nem a preta, nem a
branca, senão a Parda aguardou Deus, para que com a glória dos seus Santos pusesse na sua Igreja a última
coroa. Temos texto quase expresso: Veni de Libano sponsa mea; veni de LIbano, veni coronaberis; de capite
Amana, de vértice Sanir, & Hermon, de cubilibus Leonum, & de montibus Pardorum. É sentido de Hortunalo,
que traz Alapide, que neste lugar convidava Christo a sua Igreja para ser coroada com a glória, que lhe havia
resultar pelas gentes, que a esta Igreja haviam vir de todas as quatro partes do mundo, representadas naqueles
quatro montes, que de tal sorte estão situados, que cada um deles corresponde a cada uma das quatro regiões do
Orbe. O Líbano, que olha para o Setentrião, o Amaná para o Ocidente, o Sanir para o meio dia, e o Hermon para
o Oriente. Vejam ao Alapide neste lugar. Agora duvido assim: Se as gentes, que se nomeiam aqui para coroarem
a Igreja, são as que habitam as quatro regiões do mundo, como não são as coroas também quatro? As coroas hão
de ser três, significadas naqueles três Veni, veni, veni coronaberis; e as gentes divididas em quatro partes: De
Libano, de Amana, de Sanir, de Hermon? Sim; e porque? Porque ainda que as partes do mundo sejam quatro, as
gentes que as habitam, constam só de três cores, que são a branca, a preta, e a parda; porque fora destas três não
há gente no mundo de outra cor. E daqui se ficara entendedo que fora do branco, e preto, tudo o mais se deve
reduzir a cor parda, e buscar nesta cor a sua própria estação. E como as cores de todas as gentes, ainda que
estejam espalhadas pelas quatro partes do mundo, se reduzem só a três, e destas três queria Christo compor as
coroas para a sua Igreja, por isso diz que haviam ser as coroas três, porque três são as cores de todas as gentes:
Veni, veni, veni coronaberis.
Antes que concluamos o conceito, é que preciso notarmos aqui alguma coisa mais. A comum opinião
dos sagrados Expositores tem, que aquelas últimas palavras: Decubilibus Leonum, & de montibus Pardorum, se
devem referir aos três montes: Amaná, Sanir, e Hermon; porque neles, e nas suas cavernas, e grutas tem os
Leões, e Pardos a sua morada, e assistência. Adricomio na descrição da terra Santa, com Brocardo, e
Brandebachio, dizem que este: De cubilibus Leonum, & de montibus Pardorum, é outro monte muito diferente
dos quatro nomeados, e afastado do Líbano para a parte do meio dia. Agora discorro assim:
Ou aqueles montes sejam quatro, como querem alguns, ou o monte dos Pardos seja o quinto, como
afirmam outros; sempre neles havemos de descobrir as três cores de gentes, que habitam toda a terra, a branca, a
preta, e a parda. Se forem só quatro os montes, e neles estejam as grutas dos Leões, e Pardos, neles temos todas
as três cores. A branca repartida por todos os quatro montes; porque em todas as quatro partes do mundo
acharemos a cor branca, e em todas as quatro partes dando Santos para glória, e coroa da Igreja de Deus. E em
algumas destas quatro partes, como na África, e Ethiopia, que é covil de Leões, a cor preta, formando também
para a Igreja a sua coroa com os seus Santos; e a nossa América, em cujas serranias abundam tigres, e onças, e
onde os racionais Pardos mais tem dilatado as suas descendências, a sua cor compondo também para a Igreja a
sua coroa, com sujeitos assinalados em virtude, e santidade.
E se com este monte dos Pardos fizermos outro nome distinto dos quatro, ainda acharemos mais ao vivo
estas três cores. A branca repartida pelos quatro, como dissemos; e com mais extensão no monte Líbano que
significa alvo, ou branco, e olha para o Setentrião, ou Norte, onde foi, e é o maior ajuntamento da gente branca:
Libanus significat álbum: Respicit ad Septentrionem. No monte dos Pardos, e Leões, as duas cores preta, e
parda: ou porque estas, sendo duas meias irmãs na cor, e andando quase sempre juntas, são tão pouco unidas,
que se tratam como duas feras; ou porque neste monte dos Pardos, diz o mesmo Adricomio, em uma grande
gruta se acha um magnífico sepulcro, que diz Alapide ser de Canaã filho de Cham, negro pela cor, e preto por
castigo. E aqui temos neste só monte a cor parda, e mais a preta. A preta por Canaã negro, e a parda pelos
Pardos: De montibusPardorum. Adde quod ibi ostendit in spelunca monumentum, quod incolae putant esse
sepulchrum Josue, sed verius videri esse sepulchrum Chanaan filii Cham, diz Alapide. Agora para concluirmos
o pensamento, pergunto: e qual destas três cores foi a que pôs na Igreja com a glória dos seus Santos a última
coroa? O mesmo texto está dizendo foi a cor parda, pois é a última, que aqui se põem, Veni, veni, veni
coronaberis... De montibus Pardorum. E nós o estamos hoje vendo assim, pois vemos ao Beato Gonçallo Garcia,
Pardo pela cor, sendo o último, que entre os da cor branca, e preta vem a pôr na Igreja esta coroa: Veni
coronaberis... de montibus Pardorum. Grande excelência da cor parda! Grande dita a desta cor! Guardá-la Deus,
para que nestes últimos tempos com a glória dos seus Santos pusesse na sua Igreja a última coroa! Grande dita!
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Ainda não está encarecida, como pede o dia, esta dita da cor parda sobre a branca, e a preta; e para o acabarem
de ver notemos mais.
Se fizermos reflexão neste texto, acharemos que só diz que a Igreja fora convidada para ser coroada por
estas três cores; mas não declara qual delas foi a que pôs esta coroa. Diz que haviam de coroar: Coronaberis,
mas não diz qual foi a que coroou. E se lermos os Sagrados Expositores, e Santos Padres, acharemos que só da
cor parda diz S. Gregório que foi a que pôs na Igreja aquela coroa: de montibus Pardorum coronatur Ecclesia. E
pois como assim? É convidada a Igreja, para ser coroada pela cor branca, pela preta, e pela parda: Veni, veni,
veni Coronaberis, e no remate só a cor parda é a que põem esta coroa: De montibus Pardorum coronatur
Ecclesia? Havemos dizer que a Igreja não foi coroada pelas mais cores? Não diremos tal; porque não só foi
coroada por elas, mas elas foram as primeiras, que lhe deram coroas, pois foram as que primeiro tiveram Santos.
Mas por isso mesmo, que foram primeiras, se não havia dizer que foram elas as que coroaram; porque a glória de
pôr a coroa, só a leva aquele, que vem por último; porque o último dizem, é o que coroa: e a razão toda ser
porque a cor parda, por isso mesmo que era a última, era mais perfeita que a branca, e que a preta; e como mais
perfeita por última, havia ser guardada para que com a glória se seus Santos pusesse na Igreja de Deus a última
coroa: Veni, veni, veni coronaberis... De montibus Pardorum. De montibus Pardorum coronatur Ecclesia. Nem
o Beato Gonçallo Garcia podia ter hoje maior glória Beati eritis, e nem os da sua cor podem ter neste dia gosto, e
prazer maior: Gaudete in illa die, & exultate.
Glorioso Santo, Mártir sempre invicto, agora, que tenho concluído este discurso, é que conheço um
grande erro, que cometi: fui nele muito dilatado, não podia ser muito compreensivo; pois foi sempre achaque de
compreender pouco o dizer muito, e certamente, não podia discorrer muito fundo, quem não passou da
superfície. Arrebataram-me os acidentes da vossa cor, não pude chegar ao substancial das vossas virtudes: mas
como podia entender de substâncias, discurso possuído de acidentes? Fiquem pois estas virtudes para quem com
maior juízo possa formar delas melhor conceito. Que o que eu agora vos quero pedir tanto pelos da vossa cor,
como pelos da branca, e preta, é que despacheis para todos aquelas duas petições, que por vós fizemos hoje a
Deu na oração, que vos cantamos com a Igreja, é assim: Praesta, quaesumus, omnipotens Deus, ut intercedente
Beato Gundisalvo Garcia, & à cunctis adversitatibus (digamos assim) mundemur in corpore, & à pravis
cogitationibus liberemur in mente. Os da vossa cor, meu Santo, vos pedem lhes alcanceis de Deus fiquem para
sempre limpos e purificados da maldade, que lhe punham os adversários do seu nome nos acidentes da sua cor:
Et á cunctis adversitatibus mundemur in corpore; e os da cor branca vos pedem também, ou eu por eles, lhes
alcanceis do mesmo Senhor lhes queira livrar o entendimento de cuidarem mais, que os da vossa cor tem
impedimento algum para terem Santos; porque isto é um pensamento mau: Et à pravis cogitationibus liberemur
inmete. Para que, assim como a vossa, se acabe também esta nossa oração para maior honra, e glória de Deus.
Amém. O que aqui s diz da virtude de alguns sujeitos, que ainda não estão declarados pela Igreja, e nem tem por
ela culto, não queremos tenha mais fé, que a que se deve a uma pura narração; e o sujeitamos à determinação da
mesma Igreja, e Decretos Pontifícios.
Fr. Antonio de Santa Maria Jaboataõ.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 103, D. 8006: Carta Régia (cópia) do rei [D. José I] ao [Governador da
Capitania de Pernambuco], conde de Vila Flor e copeiro-mor [Antonio de Sousa Manoel de Meneses]
ordenando que se liste todos os moradores daquela jurisdição sem exceção, capacitados para o regime
militar e que forme os Terços Auxiliares, Ordenanças e Cavalaria.
[Fl. 1] Conde de Vila Flor, Governador e Capitão General da Capitania de Pernambuco. Amigo. Eu El Rei envio
muito saudar, como aquele que amo. Sendo informado da irregularidade e falta de disciplina a que se acham
reduzidas as tropas auxiliares dessa capitania e atendendo o que nela sendo regulada e disciplinada como devem
ser consiste uma das principais forças que tem a mesma Capitania para se defender: Sou servido ordenar-vos que
logo que receberes esta, mandeis alistar todos os moradores das terras de Vossa jurisdição que se acharem em
estado de poderem servir nas Tropas Auxiliares, sem exceção de nobres, plebeus, brancos, mestiços, pretos,
ingênuos e libertos e a proporção dos que tiver cada uma das referidas classes. Formeis terços de Auxiliares e
Ordenanças, assim de Cavalaria, como de Infantaria, que vos parecerem mais próprios para a defesa de cada uma
das Comarcas dessa Capitania criando os oficiais competentes e nomeando um Sargento-Mor escolhido entre os
oficiais das tropas pagas, que vos parecerem mais capazes de exercitar o referido posto. Com o qual vencerão o
mesmo soldo que vencem os outros sargentos-mores da tropas regulares dessa Capitania, pago na mesma forma
pelos rendimentos da Câmaras dos Respectivos distritos; E por esperar da fidelidade dos sobreditos oficiais e
soldados dos Terços Auxiliares e Ordenanças, que me servirão muito à minha satisfação em tudo o de que forem
encarregados, pertencente ao meu Real Serviço, e à defesa dessa capitania hei por bem que os serviços que
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fizerem os mesmos oficiais desde o posto de Alferes até o de Mestre de Campo inclusivamente sejam
despachados como os dos oficiais das tropas
[Fl. 2] tropas pagas, não obstante o Decreto do ano de 1706 que o contrário dispõe, e que possam usar assim os
ditos oficiais como os soldados de uniformes, diviras [?] e caireis [?] nos chapéus somente com a diferença de
que os diviras [?] e caireis [?] dos oficiais poderão ser de ouro ou prata e as dos soldados, não passarão de lã.
Para o pronto serviço dos sobreditos Terços serão obrigados todos os oficiais e soldados a terem à sua custa
espadas e armas de um mesmo [?]; e os da Cavalaria a terem e sustentarem também à sua custa um cavalo e um
escravo, para cuidar nele, sem que nas ditas armas, e cavalos, e escravos se lhes possa fazer penhora, embargo,
ou execução alguma, por qualquer título que seja, porque a tudo deve preferir a utilidade pública do Meu Real
Serviço, e da Defesa dessa Capitania; Com declaração porém que desta isenção não gozarão ampla e
ilimitadamente os sobreditos oficiais e soldados, para graudarem aos seus credores, antes usarão dele somente
com a [?] a firma declarada. O que tudo executareis e fareis executar, não obstante quaisquer leis, ordens,
disposições, ou estilos, o sejam em contrato, porque todas e todos hei por derrogados para os referidos efeitos
somente ficando aliás sempre em seu vigor. E para que chegue a notícia de todos esta minha Real Determinação,
a farei publicar por editais afixados nos lugares públicos dessa cidade e das vilas da vossa jurisdição registrandose esta nos livros da Secretaria desse Governo, e os exemplares dela nos livros das respectivas Câmaras. Escrita
no Palácio de N.
[Fl. 3] Nossa Senhora da Ajuda a 22 de Março de 1766.
DECRETO – 16 DE SETEMBRO DE 1817: Cria a Capitania das Alagoas,
desmembrando-a de Pernambuco.
Convindo muito ao bom regime deste Reino do Brasil, e à prosperidade a que me proponho elevá-lo, que a
Província das Alagoas seja desmembrada da Capitania de Pernambuco, e tenha um Governo próprio que
desveladamente se empregue na aplicação dos meios mais convenientes para dela se conseguirem as vantagens
que o seu terreno e situação podem oferecer em beneficio geral do Estado e particular dos seus habitantes e da
minha Real Fazenda: sou servido isentá-la absolutamente da sujeição, em que até agora esteve do Governo da
Capitania de Pernambuco, erigindo-se em Capitania com um Governo independente que a reja na forma
praticada nas mais Capitanias independentes, com faculdade de conceder sesmarias, segundo as minhas reais
ordens, dando conta de tudo diretamente pelas Secretarias de Estado competentes. E atendendo às boas
qualidades e mais partes que concorrem na pessoa de Sebastião Francisco de Mello e Povoas : Hei por bem
nomeá-lo Governador dela para servir por tempo de três anos e o mais que decorrer enquanto lhe não der suecessar. Palácio do Rio de Janeiro em 16 de Setembro de 1817.
Com a rubrica de Sua Magestade.
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