COM O TERÇO ENTRE OS DEDOS: AS MARCHAS DA FAMÍLIA COM DEUS PELA LIBERDADE EM SERGIPE (1964) - Raphael Vladmir Costa Reis

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                    UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES - ICHCA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH

RAPHAEL VLADMIR COSTA REIS

COM O TERÇO ENTRE OS DEDOS: AS MARCHAS DA FAMÍLIA COM DEUS
PELA LIBERDADE EM SERGIPE (1964)

Linha de pesquisa: História Cultural
Orientadora: Profª. Drª. Janaína Cardoso de Mello

Maceió
2019

RAPHAEL VLADMIR COSTA REIS

COM O TERÇO ENTRE OS DEDOS: AS MARCHAS DA FAMÍLIA COM DEUS
PELA LIBERDADE EM SERGIPE (1964)

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História, da Universidade Federal
de Alagoas (PPGH – UFAL), como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Janaína Cardoso de Mello

Maceió
2019

Para Valdemir Reis, Edênia Maria e Mara Jane.

AGRADECIMENTOS

Com o término deste ciclo, marcado por algumas atribulações de ordem pessoal, não
me furtaria em mencionar as pessoas e instituições que, sob formas distintas, contribuíram
para a chegada deste momento tão ansiosamente aguardado. Em primeiro lugar, eu quero
agradecer incomensuravelmente aos meus pais, Valdemir Reis e Edênia Maria, pelo suporte
concedido durante a curta, porém significativa jornada.
Outrossim, estendo os meus mais sinceros agradecimentos a Mara Jane, minha
namorada e companheira inseparável, pois ela desempenhou papel fundamental ao longo
destes 26 meses de mestrado, empenhando-se, sobretudo, em me motivar naqueles momentos
nos quais o desenvolvimento da escrita não fluía e cooperando para a logística das viagens
realizadas no decurso deste período repleto de aprendizagens. Quero expressar minha
gratidão, também, a Profª. Drª. Janaína Mello, minha orientadora desde a graduação, por
disponibilizar uma relevante parcela de contribuição para o meu amadurecimento acadêmico,
instigando-me a pesquisar e produzir incessantemente, mesmo atravessando um momento tão
difícil em sua vida pessoal.
Não poderia deixar de registrar um agradecimento especial, ainda, aos centros
sergipanos de salvaguarda documental pelos esforços em disponibilizar os materiais
solicitados, aos depoentes entrevistados durante esta jornada e a CAPES, que possibilitou o
desenvolvimento desta pesquisa, demonstrando, portanto, sua importância para a capacitação
e formação de pesquisadores/professores no país. Por fim, mas não menos importante, quero
agradecer aos colegas de curso por compartilharem momentos de descontração, tristezas e
angústias, tão constantes neste caminho que estamos percorrendo, bem como aos professores
do Programa, que sempre se mostraram prestativos quando acionados, desconstruindo alguns
paradigmas atribuídos a pós-graduação. Enfim, muito obrigado a todos e todas!

RESUMO

A presente dissertação consiste em investigar as Marchas da Família com Deus pela
Liberdade em Sergipe, utilizadas enquanto instrumento para legitimar o golpe civil-militar e
realizadas entre abril-maio de 1964, identificando seus organizadores, percursos,
participantes, motivações e reações causadas na cultura política dos municípios nos quais tais
manifestações transcorreram. Para tanto, em grande medida, julga-se apropriado analisar as
dinâmicas da conjuntura política nacional/local, evidenciando o modus operandi empregado
pela Igreja Católica, setores femininos e demais atores sociais para a construção do
anticomunismo, corrente ideológica que impulsionou a execução daquelas mobilizações
cívico-eclesiásticas. Portanto, no sentido de alcançar estes objetivos à luz da História Cultural,
o trabalho propõe-se a dialogar com conceitos que compõem o repertório desta corrente
historiográfica ressignificada pela terceira geração dos Annales, empregando, também, relatos
extraídos de entrevistas semiestruturadas e tentando desvelar, desse modo, as raízes do
conservadorismo em Sergipe.

Palavras-chave: Sergipe; Igreja Católica; Marchas da Família; Golpe civil-militar

ABSTRACT

This dissertation consists of investigating the Marches of the Family with God for Freedom in
Sergipe, used as a tool to legitimize the civil-military coup and carried out between April and
May 1964, identifying their organizers, paths, participants, motivations and reactions caused
in culture municipalities in which such events took place. To a large extent, it is considered
appropriate to analyze the dynamics of the national / local political conjuncture, highlighting
the modus operandi employed by the Catholic Church, female sectors and other social actors
for the imagistic construction of anti-communism, ideological current that propelled the
realization of those civic-ecclesiastical Therefore, in order to reach these objectives in the
light of Cultural History, this work proposes to dialogue with concepts that make up the
repertoire of this historiographical current re-signified by the third generation of the Annales,
using also reports extracted in semi-structured interviews and trying to expand, thus, the
understanding of conservatism in Sergipe.
Keywords: Sergipe; Catholic Church; Family Marches; Civil-military coup

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Participantes da segunda Marcha da Família em Aracaju.

LISTA DE SIGLAS

AC – Ação Católica
ACB – Ação Católica Brasileira
ADP – Ação Democrática Parlamentar
APS – Aliança Proletária de Sergipe
ASD – Aliança Social Democrática
ASPES – Associação dos Servidores Públicos Estaduais em Sergipe
AMFBN – Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais
AP – Ação Popular
CAMDE – Campanha da Mulher pela Democracia
CGT – Comando Geral dos Trabalhadores
CNA – Cruzada Nacional de Alfabetização
CNPq – Comissão Nacional de Pesquisa e Tecnologia
COPLAN – Comissão de Planejamento Nacional
CPI – Comissão de Inquérito Parlamentar
DIPE – Departamento de Imprensa e Propaganda Estadual
DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda
EUA – Estados Unidos da América
FMI – Fundo Monetário Internacional
FMP – Frente de Mobilização Popular
FPN – Frente Nacional Parlamentar
HC – História Cultural
IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IHGSE – Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

IHTP – Instituto de História do Tempo Presente
IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais
JEC – Juventude Estudantil Católica
JK – Juscelino Kubistchek
JUC – Juventude Universitária Católica
LFA – Liga Feminina Anticomunista
MEB – Movimento de Educação de Base
NHC – Nova História Cultural
NSDAP – Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães
OEA – Organização dos Estados Americanos
PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PDC – Partido Democrata Cristão
PL – Partido Liberal
PRT – Partido Republicano Trabalhista
PSD – Partido Social Democrático
PSB – Partido Socialista Brasileiro
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PTN – Partido Trabalhista Nacional
PSP – Partido Social Progressista
SUPRA – Superintendência da Reforma Agrária
TPF – Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade
UNE – União Nacional dos Estudantes
28º BC – Vigésimo Oitavo Batalhão de Caçadores

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 12
2. O DESMONTE DA EXPERIÊNCIA POPULISTA: reflexões sobre a crise
institucional e o surgimento das mobilizações populares (19601964)........................................................................................................................................ 29
2.1. A súbita era Jânio Quadros: do pleito de 1960 ao discurso de posse............................... 30
2.2. Sob a fleuma da ingovernabilidade: problemas econômicos, renúncia e a crise
sucessória................................................................................................................................. 35
2.2.1. O plano econômico........................................................................................................ 35
2.2.2. A renúncia...................................................................................................................... 38
2.2.3. A crise de sucessão, o esboço das articulações golpistas e a ―solução alternativa‖ ...... 43
2.3. Entre a ―solução‖ parlamentarista e o presidencialismo: desdobramentos da era
Goulart..................................................................................................................................... 47
2.3.1. Sob a batuta do sistema parlamentarista....................................................................... 47
2.3.2. Ação dos núcleos de desestabilização............................................................................ 49
2.3.3. Irrupção dos movimentos populares e a inflexão para o espectro
esquerdista............................................................................................................................... 53
3. SOB A RUBRICA DO ANTICOMUNISMO CATÓLICO: a consolidação do pacto
“sacrário-coturno” mediante as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e suas
ressonâncias em Sergipe........................................................................................................ 58
3.1. O catolicismo: apontamentos historiográficos sobre a dicotomização ideológica da Igreja
e seus ecos na estrutura clerical sergipana............................................................................... 59
3.2. Entre o Comício da Central e as Marchas com Deus pela Liberdade em São Paulo: a
polarização do catolicismo e o fortalecimento da ação conspiratória que depôs João
Goulart..................................................................................................................................... 65
3.3. O longo 31 de março: desdobramentos do movimento civil-militar que culminou com o
golpe de 64............................................................................................................................... 74
3.4. ―Pelotão, sentido!‖: João Goulart sitiado, a ―Marcha da vitória‖ e os impactos da ação
golpista em Sergipe.................................................................................................................. 78

4. ENTRE TERÇOS E QUEPES: cultura política, conservadorismo social e as Marchas
da Família com Deus pela Liberdade em
Aracaju.................................................................................................................................... 86
4.1. Aracaju: centro irradiador da cultura política sergipana? Breves apontamentos sobre a
conformação de uma tradição conservadora............................................................................ 87
4.2. Dos anos 30 à ordem populista (1930-1964): faces e contrafaces da cultura política
aracajuana-sergipana................................................................................................................ 94
4.3. Coturnos, sacrários e o anticomunismo: reflexões sobre a primeira Marcha da Família
com Deus pela Liberdade em Aracaju................................................................................... 103
4.4. Entre cânticos, louvores e pregações reacionárias: a segunda Marcha da Família com
Deus pela Liberdade em
Aracaju................................................................................................................................... 113
5. A REGIÃO METROPOLITANA E O INTERIOR TAMBÉM MARCHARAM:
apontamentos sobre as Marchas da Família com Deus pela Liberdade em 7 cidades
sergipanas ............................................................................................................................ 119
5.1. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade atravessou o Rio Sergipe: considerações
sobre a manifestação cívico-eclesiástica transcorrida em Barra dos
Coqueiros............................................................................................................................... 119
5.1.1. Breve histórico do município....................................................................................... 119
5.1.2. A Marcha na ―Barra‖................................................................................................... 120
5.2. Do Rio Sergipe ao Rio Cotinguiba: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em
Laranjeiras.............................................................................................................................. 123
5.2.1. Breve histórico do município....................................................................................... 123
5.2.2. A Marcha em Laranjeiras............................................................................................. 124
5.3. Terços, rosários e o anticomunismo na região centro-sul: a Marcha da Família com Deus
pela Liberdade em Simão Dias.............................................................................................. 128
5.3.1. Breve histórico do município....................................................................................... 128
5.3.2. A Marcha em Simão Dias............................................................................................ 129
5.4. Propriá, Aquidabã, Cedro do São João e Japoatã: as Marchas da Família no Baixo São
Francisco................................................................................................................................ 136
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 140
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 146

ANEXOS............................................................................................................................... 153

12

1. INTRODUÇÃO

Durante os anos 60, o Brasil encontrava-se inscrito em um contexto de profunda
dissensão político-institucional responsável pelo desencadeamento de crises e conspirações
que desestruturaram o nosso convalescente Estado Democrático de Direito. Para além da sua
suscetibilidade estrutural, a polarização incrustada na Guerra Fria, que se acentuou na década
de 60, mobilizando os Estados Unidos a adotarem políticas externas alinhadas a uma
propaganda anticomunista, emitiu fortes ressonâncias nas bases daquela experiência populista.
Em 1961, não obstante as ações desempenhadas pelo governo estadunidense, o
historiador Thomas Skidmore (1988)1 atribui tamanha desestabilização a efêmera e arbitrária
gestão Jânio Quadros. Havia como elemento desestruturante, também, a ação do núcleo
oposicionista liderado por Carlos Lacerda, governador da Guanabara, a quem o autor
empregou o estigma de ―demolidor de presidentes‖ 2.
O objetivo do agrupamento que operava sob a liderança de Lacerda consistia em
combater os desdobramentos de um programa denominado Política Externa Independente
(PEI), através do qual o presidente em exercício foi acusado veementemente de inflexionar-se
para uma orientação ―nacionalista‖, comumente associada aos líderes populistas de esquerda e
avessa a corrente ideológica concitada pela União Democrática Nacional (UDN), agremiação
partidária liderada por Lacerda que concedeu sustentação à candidatura de Quadros.
Tal postura foi qualificada, ainda, de antiamericanismo, sobretudo no que se referia ao
seu posicionamento em relação a Cuba, pois, conforme assinalam Jorge Ferreira e Ângela de
C. Gomes (2014)3, foi recusado o apoio brasileiro aos Estados Unidos para a expulsão
daquele país da Organização dos Estados Americanos (OEA). Entretanto, o alinhamento entre
Brasil e países do bloco comunista não se reduziu às tratativas com a ilha caribenha 4. Como
parte integrante da agenda correspondente a PEI, Quadros enviou para a República Popular da
China o vice-presidente João Goulart, cuja carreira política esteve associada ao sindicalismo.
1

Ver: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 2ª Edição. São Paulo: Paz e terra, 1988.
Para Skidmore (1988), julgou-se apropriado qualificar Lacerda como ―demolidor de presidentes‖, pois o
dirigente contribuiu significativamente para mobilizar a opinião pública contra Getúlio Vargas, em pleno
governo democrático, e Juscelino Kubistchek, ambos considerados inimigos políticos. Quanto a Jânio Quadros,
o motivo pelo qual foi alvo de ferrenha oposição, em grande medida, esteve associado ao fato deste afastar-se do
controle exercido pela UDN.
3
Ver: FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2014.
4
De acordo com os autores mencionados acima, o Brasil foi pioneiro, ainda, no reconhecimento do governo
comunista de Angola e causou, posteriormente, grande insatisfação interna quando enviou representantes do
governo para missões diplomáticas na União Soviética.
2

13

Com o advento destas dinâmicas no decorrer dos sete primeiros meses de gestão, o
presidente estava imerso em uma conjuntura caracterizada pela crise generalizada. Enquanto
Goulart permanecia em terras chinesas, como já mencionado, Quadros assinava sua cartarenúncia no dia 25/08/1961, constituindo, segundo Caio Navarro Toledo (1982)5, as primeiras
manobras para uma trama golpista. O historiador, ainda, conclui que:
Julgava o demissionário que os ministros militares não apenas impediram a
posse de João Goulart, como também procurariam impor, juntamente com o
massivo e sonoro ―clamor popular‖, o retorno do ―grande líder‖. Na sua
fantasia, Quadros voltaria, pois, nos ―braços do povo‖6.

Ao interpretar todo o contexto de instabilidade institucional sob ótica similar,
Skidmore (1988) assinala que a ―encenação‖ de Quadros, cujo propósito inicial visava à
concentração de maiores poderes após a renúncia para conquistar apoio entre as massas
populares, inspirava-se em uma manobra política empreendida por Charles De Gaulle, na qual
o ex-Brigadeiro e líder da resistência francesa durante a 2ª Guerra Mundial obteve plenos
poderes para governar a recém-instaurada 5ª República.
As circunstâncias, contudo, incompatibilizaram significativamente aos seus desígnios
e Quadros oficializou sua renúncia em 25/08/1961, após o Congresso endossar o seu pedido
para afastar-se do Executivo. Instaurou-se, portanto, a partir daquele evento, uma crise
sucessória que mobilizaria uma robusta parcela da conjuntura social brasileira, pois havia
certa animosidade dos congressistas e ministros militares com uma eventual posse de João
Goulart, cuja nomeação como presidente estava assegurada pela constituição.
Neste contexto, em linhas gerais, destacou-se a ―Campanha da Legalidade‖, uma
mobilização composta por forças governistas que visava garantir a ascensão de Goulart ao
gabinete do Planalto. Idealizada pelo governador rio-sulgrandense Leonel Brizola, esta
escalada legalista articulou várias redes radiofônicas do país e evidenciou a importância de
cumprir-se o rito constitucional para, conforme vociferava seu ―patrono‖, preservar as
instituições democráticas.
Após alguns dias de tratativas, a composição provisória do Executivo instituiu uma
votação para a efetiva implementação ou não de um sistema inédito em nossa trajetória
republicana: o parlamentarismo. Este regime, através do qual João Goulart governaria
desprovido de plenos poderes, foi a alternativa encontrada pelos ministros militares para
5

Ver: TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense,
1982.
6
Ibid., p. 08.

14

suprimir os intentos do trabalhista, já que seus estreitos vínculos com o sindicalismo eram
erroneamente compreendidos como suscetíveis ao viés ―comunizante‖. Quando assumiu a
presidência em 07 de setembro daquele agitado 1961, Jango conviveu sob a tutela do sistema
parlamentarista até janeiro de 1963, período no qual o novo regime demonstrou fragilidades
que implicaram em graves problemas econômicos.
Diante deste cenário, o petebista, não obstante a significativa crise financeira pela qual
o país atravessava, empenhava-se na restituição dos poderes presidenciais. Com o
estabelecimento de uma conjuntura que era favorável aos intentos janguistas, os ―tuteladores‖
do Poder Executivo anteciparam a realização de um plebiscito no qual o eleitorado decidiria
pela permanência da experiência parlamentarista ou restauração do presidencialismo. A
votação promovida no dia 06/01/1963 computou 80% dos votos válidos, determinando o
retorno ao presidencialismo e selando, portanto, o primeiro triunfo – e, talvez, único - daquela
atribulada gestão.
Logrado o restabelecimento do sistema presidencialista, Jango testemunhou uma
ostensiva campanha de desestabilização cujo principal artífice era o empresariado. Reflexo do
fracasso ocasionado pelo ―Plano Trienal‖, idealizado em fins de 1962, as atividades
desenvolvidas pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e seu coirmão Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), em linhas gerais, consistiam em executar ostensivos
esforços de propaganda visando à desestabilização do governo Jango e uma interrupção em
suas aspirações continuístas, haja vista que a política econômica empregada por Goulart,
assentada nas diretrizes do nacional-reformismo, violava os interesses da classe empresarial,
contumaz partidária do capital multinacional e associado.
No entanto, o complexo IPES/IBAD, para além de financiar a candidatura daqueles
dirigentes alinhados aos partidos direitistas, não operava isoladamente. Articulado com
movimentos sociais e blocos interpartidários, como a Campanha da Mulher pela Democracia
(CAMDE) e a Ação Democrática Parlamentar (ADP), por exemplo, a escalada ideológica
conduzida com base no anticomunismo registrou um considerável raio de alcance, porém não
obteve os resultados projetados. A esquerda, conforme apontaram os resultados das eleições
gerais decorridas em 1962, fortaleceu-se ao eleger um relevante número de deputados e o
governo Goulart continuaria a incorrer pela estratégia da conciliação.
Nesse ínterim, o enfraquecimento do ―governo trapézio‖ se intensificou, pois a
inflação não fora mantida sob controle e os índices de desenvolvimento estagnaram. Sofrendo
forte pressão exercida por simpatizantes de projetos políticos, econômicos e sociais distintos,
Goulart anunciou energicamente a implementação das reformas e sacramentou, em fins de

15

1963, seu apoio a historicamente desorganizada esquerda brasileira. Após a definitiva
―guinada‖, o presidente idealizou a realização de vários comícios para promover as Reformas
de Base. O primeiro e único evento orquestrado pelo governo foi executado no Rio de Janeiro,
dia 13/03/1964, naquele que ficaria conhecido como o ―Comício da Central‖.
Contando, inclusive, com a participação de Seixas Dória, governador sergipano eleito
no pleito transcorrido em 1962, o comício foi considerado bem sucedido pelos organizadores,
que planejavam, conforme mencionado, realizar uma caravana para anunciar o pacote de
reformas estruturais. Como força reativa a mobilização pró-Jango, no dia 19/03/1964,
agrupamentos civis, políticos, empresariais e eclesiásticos, sob influência do amparo logístico
fornecido pelo complexo IPES/IBAD e demais células de desestabilização, como a CAMDE,
planificaram uma ―contramanifestação‖ intitulada Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, a qual, sob ostensiva batuta do anticomunismo e demasiada utilização de
elementos religiosos, conclamava uma intervenção emergencial das Forças Armadas para,
segundo avaliação dos participantes, dirimir o ―viés comunizante‖ da estrutura
governamental.
Enquanto as esquerdas ignoravam a mobilização das forças conservadoras, as marchas
se ampliavam pelos grandes centros urbanos e cidades interioranas, alcançando Sergipe entre
abril e maio de 1964. Neste recorte espacial, também, foi possível constatar um significativo
engajamento das esferas política, social e eclesiástica no que diz respeito à planificação destas
manifestações, cabendo a Igreja e determinadas representações sociais exercerem a função de
congregadoras daquelas ações antigovernistas.
Todavia, a historiografia sobre o golpe civil-militar7, não obstante uma empolgante
retomada destes estudos a partir de 2004, privilegia tais esforços analíticos para retratar o
modus operandi das marchas nas principais capitais do país, relegando alguns estados e suas
cidades ao plano secundário. Embora existam trabalhos empenhados na ampliação deste
objeto, como, por exemplo, as dissertações de Aline Alves Presot (2004)8 e Júlio Régis da
Costa (2015)9, que se propuseram a analisar/mapear as marchas transcorridas em vários
7

Com base, sobretudo, nas proposições de Carlos Fico (2014) e Daniel Araão (2000), este trabalho empregará o
conceito de golpe civil-militar para caracterizar o conjunto de articulações entre a sociedade cível e as Forças
Armadas, que culminou com a deposição de um regime legitimamente instituído. Ver: FICO, Carlos. O golpe
de 64: momentos decisivos. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2014 e REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar,
esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
8
Ver: PRESOT, Aline Alves. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 64. Dissertação
(Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2004.
9
Ver: DA COSTA, Júlio Régis. Os jornais em marcha e a Marcha da Vitória nos jornais: a imprensa e o
golpe civil-militar no Ceará (1961-1964). Dissertação (Mestrado em História). Centro de Humanidades,
Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2015.

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centros urbanos e prospectar estas manifestações no Estado do Ceará, respectivamente, estes
estudos se constituem como embrionários e há um grande espaço expressivo de possibilidades
a ser explorado.
Com base na dinâmica e complexidade desses eventos, a presente dissertação objetiva
investigar a realização das Marchas com Deus pela Liberdade em Sergipe, identificando seus
organizadores, percursos, participantes e as reações causadas na cultura política dos
municípios. A posteriori, em linhas gerais, o manuscrito visa compreender a contribuição da
Igreja Católica local na conformação do anticomunismo, evidenciando os meios através dos
quais a entidade religiosa atingiu tal intento, bem como analisar o papel desempenhado pelas
mulheres sergipanas e demais atores sociais nos esforços para a elaboração das marchas e
suas contribuições visando à propagação do discurso anticomunista, suscitando a formulação
de uma hipótese.
Nos anos 60, conforme foi possível constatar, núcleos femininos orientados por um
viés aversivo ao comunismo – financiados pelo complexo IPES/IBAD - constituíram-se nas
principais capitais do país (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte), empenharam-se na
promoção de marchas em conformidade com a Igreja Católica e ampliaram sua estruturação
para outras regiões, induzindo o presente estudo a sugerir que houve uma articulação entre
aquelas associações fundadas na região sudeste e determinados ―grupos‖ femininos
sergipanos, os quais obtiveram destaque na planificação/execução de algumas manifestações
cívico-eclesiásticas no recorte espacial delimitado por esta pesquisa.
O interesse em me debruçar sobre o tema surgiu durante a graduação em Museologia,
cursada na Universidade Federal de Sergipe (UFS), quando participei de um projeto integrado
ao Programa Institucional de Bolsas à Iniciação Científica (PIBIC) intitulado ―Marchas da
Família com Deus pela Liberdade: conservadorismo social, cultura política e musealização‖,
desenvolvido sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Janaína Cardoso de Mello. Como a Museologia
integra a grande área Ciências Sociais Aplicadas, segundo os critérios definidos pelo
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), portanto, a principal proposta desta atividade era
realizar um trabalho de pesquisa histórica, analisando as cidades nas quais as marchas
transcorreram, uma vez que a Museologia dialoga permanentemente com a História,
objetivando construir um produto final no qual aquelas informações fossem compartilhadas
inteligivelmente com o público, exercendo, desse modo, a integração entre corpus social e
universidade pública, atribuição elementar desta instituição.

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Confeccionado o produto final, materializado por um site e cartilhas complementares
para que professores dos ensinos básico/secundário trabalhem um conteúdo demasiado
pertinente em sala, surgiu um desejo permanente em ampliar as possibilidades de
interpretação para depreender os rearranjos presentes na estrutura política, social e cultural
sergipana em 1964. Embora a literatura historiográfica local disponibilize relevante parcela de
contribuição para uma ampla análise sobre os fenômenos infligidos as esferas já mencionadas
(política, social e cultural), não há quaisquer trabalhos que se proponham a investigar,
especificamente, o opus operatum das marchas e sua representação como um momento de
ruptura para a instauração duma nova ordem caracterizada por violações, arbitrariedades e
silenciamentos. Portanto, o presente estudo se empenha em contribuir para a melhor
compreensão deste período em Sergipe, desvelando as raízes do conservadorismo local e
privilegiando o recorte temporal que remonta a 1964.
Como a pesquisa adentra, fatalmente, o universo multidimensional sobre certas
abordagens epistemológicas da Nova História (sua variante cultural) e visões que elucidam o
golpe civil-militar instaurado no decurso de 1964, embora algumas bases argumentativas
sejam ostensivamente contrapostas, julga-se imprescindível discuti-las para delimitar os
caminhos trilhados pela pesquisa.
Logrado o rompimento com a Escola Metódica Positivista em 1929, tendo em vista a
fundação dos Annales, sob a batuta de Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Fevbre (1878-1956),
a História assimilou um novo conjunto de métodos, teorias e abordagens que, em grande
medida, impulsionou sua institucionalização e estabeleceu novos domínios. Uma das
determinações mais significativas previstas pelo novo repertório, portanto, esteve associada à
aproximação da própria História com algumas variantes das Ciências Humanas, em especial
as Ciências Sociais.
Este princípio da interdisciplinaridade empregado pelas tendências annalistas, não
obstante suas diversificadas reformulações, foi evidenciado pelo historiador francês Jacques
Revel (1998) em um ensaio publicado no livro Passados Recompostos, organizado por Jean
Boutier e Dominique Julia10, cuja discussão retratou os embates e reciprocidades entre
História e Ciências Sociais durante a passagem dos séculos XIX e XX. Através destes
diálogos instáveis, em linhas gerais, constatou-se uma importante ampliação interpretativa dos
objetos analisados pelos historiadores. Nesse contexto, por exemplo, as possibilidades

10

REVEL, Jacques. História e Ciências Sociais: uma confrontação instável. (Org.) BOUTIER, Jean; JULIA,
Dominique. In: Passados Recompostos: campos e canteiros da História. Trad. Marcella Mortara e Anamaria
Skinner. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1998. Cap. 2, p. 79-91.

18

analíticas constituídas pela interlocução daqueles componentes com a História, sobretudo
Antropologia e Sociologia, produto da ―compartimentação‖ conferida as Ciências Sociais,
abriram o precedente apropriado para o surgimento da Nova História Cultural.
O advento desta corrente, somado as suas significativas contribuições para o
rompimento com a já mencionada Escola Metódica Positivista e o modelo interpretativo
estruturalista, tornando, também, o campo historiográfico mais amplo, ocasionou a instituição
de debtaes sobre suas principais características. Para Peter Burke (2008)11, a redescoberta da
História Cultural e seu ingresso no âmbito acadêmico, em princípios dos anos 70, constatou
uma redefinição nas discussões teóricas correspondentes aos estudos históricos.
A partir deste momento de ruptura, então, os esforços de investigação, que antes eram
articulados sob a rubrica de análises econômicas e políticas, aproximaram-se de contribuições
voltadas para a cultura política e econômica, determinando a ascensão desta reformulada
modalidade historiográfica de abordagem, embora Francisco José Calazans Falcon (2002)
refute parcialmente tal qualificação.

Não é uma disciplina. O Cultural constitui um campo multi e
interdisciplinar. Não se pensa aqui na supressão de disciplinas
especializadas, mas, sim, na necessidade de pensar suas variadas
articulações, suas interpretações, inclusive [...] Tampouco poderia ser
(apenas) um outro tipo de abordagem, como o são a abordagem econômica,
a política, a intelectual, etc. Nestes casos, o historiador recorta e destaca da
totalidade histórica um determinado tipo ou conjunto de objetos
reconhecidos como econômicos, políticos, sociais, etc. Seria possível adotar
o mesmo procedimento quanto ao cultural? Há quem afirme que sim, a partir
da possibilidade de se elencarem os objetos culturais, inclusive porque
existem historiadores para os quais o cultural consiste apenas no que resta
depois que se demarcam/excluem as regiões ou esferas correspondentes ao
econômico, ao político, ao social, etc. Mas, se se tiver presente o fato de que
o cultural inclui todo o fazer humano, como delimitá-lo?12

Problematizações a parte, em grande medida, foi por intermédio destas reflexões que
abriu-se o precedente propício para nos enveredarmos por esferas analíticas ligadas a cultura
letrada, diversificadas formas de manifestações sociais e as representações, consolidando a
ampla capacidade da História Cultural em interpretar fenômenos polissêmicos. Neste
diversificado repertório atribuído a corrente historiográfica ―redescoberta‖ academicamente,
portanto, também destaca-se o conceito de cultura política, pressuposto teórico que
possibilitará uma depreensão mais lúdica sobre as orientações político-ideológicas do corpus
11

Ver: BURKE, Peter. O que é história cultural?. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FALCON, Francisco José Calazans. História e Historia Cultural: uma nova visão sobre a sociedade e a
cultura. Rio de Janeiro: Campus, 2002. p. 78.
12

19

social sergipano nos anos 60, reflexo da significativa atmosfera de radicalização instaurada no
país.
Embora não pertençam a corrente culturalista propriamente dita, os cientistas políticos
Gabriel Almond e Sidney Verba13 empenharam-se em analisar a conformação conceitual do
termo cultura política, evidenciando, sobretudo, suas tendências e variantes. Para os autores,
influenciados pela delimitação teórica de cultura sob a ótica da Sociologia e Psicologia, o
esboço destas análises foi articulado, a princípio, por estudiosos como Max Weber e Nicolau
Maquiavel, entretanto, ambos renunciaram a formulação duma definição pragmática para o
complexo conceito. Nas obras desenvolvidas pelos já mencionados estadunidenses e demais
pesquisadores, tal qual apropriadamente destaca Lúcio Remuzat Rennó (1998), o objetivo das
discussões encontrava-se pautado em enfatizar ―a importância de valores, sentimentos,
crenças e conhecimentos na explicação do comportamento político‖14.
Ainda conforme o esforço analítico do pesquisador brasileiro, que promoveu uma
interpretação bastante didática sobre a definição de cultura política formulada por Almond e
Verba15, ela se constitui como:
o conjunto de orientações subjetivas de determinada população. Inclui
conhecimentos, crenças, sentimentos e compromissos com valores políticos
e com a realidade política. O seu conteúdo é resultado da socialização na
infância, da educação, da exposição aos meios de comunicação, de
experiências adultas com o governo, com a sociedade e com o desempenho
econômico do país. Para este autor, portanto, a relação entre cultura política
e estrutura e desempenho governamental é muito complexa16.

Neste sentido, não obstante as constantes mutações sofridas pelo conceito de cultura
política a partir dos anos 60, quando se esboçou como categoria analítica, Rennó (1998)
afirma que esta definição é responsável por modelar, com base em Almond e Verba, ―o
contexto da ação política e prover (grifo nosso) o ambiente para a mudança ou continuação de
um certo regime político‖17, embora tal afirmação tenha se submetido a algumas
contraposições. Qualificada de ―determinismo cultural‖, esta delimitação conceitual
construída pelos estadunidenses, apesar dos revisionismos, tornou-se receptiva na comunidade
13

Ver: ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney. The Civic Culture: Political atitudes and
democracy in five nations. Princeton: Princeton University Press, 1963.
14
RENNÓ, L. R. Teoria da Cultura Politica: Vícios e Virtudes. BIB. Revista Brasileira de Informação
Bibliográfica em Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 45, n.º, p. 71-93, 1998. p. 71.
15
Ver também: ALMOND, Gabriel. A Discipline Divided: Schools and Sects in Political Science. Nova York:
1990; ―The Intelectual History of the Civic Culture‖. In: ALMOND G. e Verba S. (eds.), The Civic Culture
Revisited. Boston: Little, Brown and Company: 1980.
16
RENNÓ, op. cit. p. 71.
17
Ibid., p. 75.

20

acadêmica, empenhada em aprimorar os instrumentos metodológicos que analisavam culturas
políticas distintas18. Contudo, o aspecto central destes estudos permaneceu vinculado a
examinar como normas e valores inscritos em culturas políticas condicionam os atos políticos
propriamente ditos, tornando imprescindível evidenciar que:

mesmo após essa reformulação metodológica e conceitual, a maior parte dos
estudos sobre cultura política realizados por cientistas políticos continuou
utilizando uma concepção limitada do político, ou seja, abordando somente
aquilo que se relaciona diretamente com o Estado, restringindo, assim, as
pesquisas à análise do funcionamento das instituições estatais e à
interpretação da maneira como os cidadãos reagem perante elas19.

Com base neste excerto, portanto, o autor ainda afirma que se constituía como
fundamental avaliar o modo pelo qual as disputas de poder eram circunscritas na sociedade
civil, ―abordando a dinâmica dos movimentos sociais e instituições que não possuem vínculo
direto com o Estado‖20. Enquanto os anos 80 marcaram a apropriação e o aprimoramento do
conceito de cultura política pelos historiadores franceses René Rémond, Serge Berstein e
Jean-François Sirinelli21, criando, desse modo, a História Política Renovada, em terras
brasileiras, a rigor, constatou-se uma relevante contribuição desta corrente que exerceu
influência sobre pesquisadores como Ângela de Castro Gomes22 e Jorge Ferreira23, embora
Rodrigo Patto Sá Motta assinale que um esboço de teorização sobre cultura política era
discutido numa revista veiculada no transcorrer do Estado Novo24.
Para além de Gomes (2005) e Ferreira (2005), que se debruçaram sobre a definição
daquele conceito sob o prisma do trabalhismo, é apropriado evidenciar as contribuições
disponibilizadas pelo já referido historiador Motta (2014). Deste modo, segundo o autor, a
cultura política consiste numa rede de representações, tradições e valores compartilhados ―que

18

Ibid.
RIBEIRO, David. A relação dialética entre cultura política e estrutura política a partir de uma perspectiva
gramsciana. In: Anais do XXIX Simpósio Nacional de História. Anpuh: Brasília, 2017. pp. 05-06.
20
Ibid., p. 06.
21
Para Ribeiro (2017, p. 06), os autores, em especial Bernstein Sirinelli, ―procuravam explicar como um
conjunto de representações compartilhado por um grupo amplo de pessoas e adquiridos por um indivíduo
durante sua existência, ou seja, uma cultura política, influenciam suas escolhas e comportamento político, além
de abordarem a forma como as normas e os valores determinam a representação que uma sociedade faz de si
mesma, do seu passado, do seu futuro‖.
22
Ver: GOMES, Ângela de Castro. História, Historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In:
SOIHET, Rachel , M. Fernanda Baptista Bicalho e M. de Fátima Sila Gouvêa. Culturas Políticas. Ensaios de
história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: MAUAD, 2005.
23
Ver: FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
24
Para saber mais, ver: MOTTA, R. S. P. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In: Culturas políticas na História. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.
19

21

expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece
inspiração para projetos políticos direcionados para o futuro‖25.
Posto isto, ao imbricar as representações conceituais discutidas nos parágrafos
anteriores para analisar a ―gênese‖ da cultura política sergipana – isto é, desde a República
Velha (1889-1930), período compreendido como determinante na compreensão deste
processo - e suas facetas nos anos 60, esta pesquisa apresenta um aporte teórico bem
delimitado para depreender como as forças conservadoras se estabeleceram, dialogaram com
os sistemas políticos e conferiram legitimidade ao golpe civil-militar através das marchas.
Sendo assim, retomando as reflexões sobre os historiadores que desbravaram a
redefinida e dinâmica História Cultural, é imprescindível enfatizar a atuação de Roger
Chartier26, um catedrático culturalista que idealizou os conceitos de apropriação e
representação, absorvendo as contribuições teóricas advindas da Psicologia Social e,
sobretudo, do pensamento bourdieudiano. Segundo o autor, para quem o objeto da HC
consiste em ―identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social
é construída, pensada, dada a ler‖27, esta referência analítica provém de uma dupla definição
do termo cultura, isto é:

Enquanto práticas e gestos que configuram e justificam uma apreensão
estética, um princípio de classificação e demarcação intelectual do mundo,;
enquanto ―práticas comuns‖, sem qualidades, que exprimem a maneira pela
qual uma comunidade produz sentido, vive e pensa sua relação com o
28
mundo .

Para este trabalho, por razões óbvias, empregaremos a tendência da ―prática comum‖,
responsável por estabelecer a relação entre apropriação e representação ao reproduzir novos
sentidos e significados, pois ―são variáveis segundo as disposições dos grupos ou
classes sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos grupos que as
forjam‖29.
Conforme assinalado anteriormente, desde 2004, por ocasião do quarentenário
correspondente ao golpe, o campo historiográfico testemunhou um recrudescimento editorial
entusiasmante sobre este significativo evento, evidenciando as filiações teóricas, o prisma

25

Ibid., p. 21.
Ver: CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.
27
Ibid., p. 16.
28
CARVALHO, 2005, p. 149 apud CHARTIER, 1990, p. 16. In: CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O
Conceito de representações coletivas segundo Chartier. Revista Diálogos: DHI/PPH/UEM, v. 9, nº. 1, p. 143165, 2005.
29
CHARTIER, op. cit., p. 17.
26

22

analítico dos autores e o contexto das compreensões. Entretanto, julga-se oportuno afirmar
que trabalhos de fôlego foram construídos ao longo das três últimas décadas que precederam
tal efeméride, constituindo um universo interpretativo polidimensional sobre o golpe de 64.
Entre tendências compreendidas como revisionistas e outras que encontraram complementares
sustentações nas possibilidades interpretativas pós-200430, o campo de análise conta com 4
perspectivas sistematicamente empregadas no âmbito acadêmico.
A primeira corrente interpretativa que se esboçou, seguindo uma lógica de tempo
longo, segundo a ―tradição braudeliana‖31, intitulou-se estrutural e funcional. Esta vertente
constata que os problemas incrustados nas dimensões política, econômica e social em longo
tempo desencadearam a ―inevitabilidade‖ do golpe civil-militar. Tal tendência emergiu no
decurso dos anos 70 e foi constituída por intelectuais filiados a diferentes universidades do
eixo Rio-São Paulo e ―a alguns centros de pesquisa, como o CEBRAP e o CEDEC, criados
para absorver pesquisadores afastados da docência universitária pelo regime militar‖32.
Dentre os autores orientados pela possibilidade de interpretação em pauta, portanto,
destacam-se Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Maria da Conceição Tavares e
Francisco de Oliveira33. É pertinente salientar, também, que este primeiro conjunto de
especialistas era composto, fundamentalmente, por sociólogos e cientistas políticos, já que os
eventos do tempo presente não integravam o repertorio analítico dos historiadores durante
aquele período.

30

O historiador Carlos Fico (2014), por exemplo, opera como um complementador do viés interpretativo
―conspiracionista‖, que associa o advento da ruptura institucional aos esforços empreendidos por agrupamentos
empresariais e anticomunistas. O autor, entretanto, compreende que esta conspiração propriamente dita não foi
responsável pela deposição de João Goulart. Fico, em linhas gerais, distingue o modus operandi das campanhas
de desestabilização e conspiração, afirmando que não houve uma ―continuidade natural‖ em suas atividades,
conforme assinalam alguns historiadores, complementando que a fusão entre a campanha de desestabilização
conduzida pelos grupos citados e a articulação da conspiração militar, portanto, foi responsável pela instauração
do golpe.
31
Para Peter Burke (1997), em seu livro intitulado A Escola dos Annales (1929-1989), Fernand Braudel (19021985), grande expoente da segunda geração dos Annales, empenhou-se em dividir o tempo histórico em
variantes geográficas, sociais e individuais, dimensionando, portanto, sua longa duração. Ver: BURKE, Peter. A
Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1997.
32
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O governo João Goulart e o golpe de 64: memória, história e
historiografia. Revista Tempo, vol. 14, nº. 28, pp. 125-145. Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2010. p.
129.
33
As principais contribuições desses autores, seguindo a ordem constatada na frase, são: CARDOSO, Fernando
Henrique. Associated-dependent development: theoretical and practical implications. In: Alfred Stepan (Ed.),
Authoritarian Brazil. New Haven: Yale University Press, 1973; IANNI, Octávio. O colapso do populismo no
Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971 e TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de
importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

23

Houve, ainda em fins dos anos 70, mais especificamente no ano de 1978, um
movimento coordenado pelo historiador François Bédarida34, representado pelo Instituto de
História do Tempo Presente (IHTP), que se propôs a incluir tais fenômenos contemporâneos
como objeto da História para, em grande medida, compreender a maneira pela qual o presente
é construído no tempo. No Brasil, o historiador José Roberto Amaral Lapa, segundo Carlos
Fico (2004)35, ―previu, ainda em 1976, que o predomínio dos estudos sobre a fase colonial
seria suplantado pelas pesquisas do período republicano‖36. O autor conclui que:
Ele falava em uma espécie de "conspiração anti-contemporânea", pois, até
aquela época, catedráticos passadistas induziam – ou quase impunham – o
estudo dos fatos históricos mais remotos, enobrecidos pela pátina do tempo.
Num primeiro momento (anos 80), avultaram os estudos sobre a Primeira
República, destacando temas como o surgimento do movimento operário.
Hoje em dia, é notável a quantidade de pesquisas sobre questões
recentíssimas da história do Brasil, o que deve ter sido estimulado pelo
interesse que a "melancólica trajetória nacional" contemporânea – como
dizia o também saudoso Francisco Iglésias – suscita37.

Não obstante o distanciamento temporal dos historiadores brasileiros, em princípios
dos anos 80, uma vez que a IHTP encontrava-se em processo de amadurecimento,
testemunhou-se o estabelecimento da corrente interpretativa conspiratória, segundo a qual a
transgressão da ordem política decorreu de uma conspiração articulada pelos setores
anticomunistas das Forças Armadas, agrupamentos empresariais, grandes latifundiários,
agrupamentos conservadores da Igreja Católica e dirigentes políticos antirreformistas. Os
―catedráticos‖ deste viés interpretativo são os cientistas políticos René Dreifuss, Moniz
Bandeira e Heloísa Starling38.
Já entre 1981 e 1997, em linhas gerais, as ressignificações acerca do golpe
constituíram uma tendência na qual a ruptura decorreu de uma ação preventiva das Forças
Armadas e setores da sociedade civil. Autores como Caio Navarro de Toledo, Florestan
Fernandes e Lucília de Almeida Delgado39, dentre os quais somente a última possui formação
34

Ver: DOSSÉ, François. Bulletin de I‘IHTP. In: Revista Tempo e Argumento: vol. 4, nº. 1. Florianópolis,
2012.
35
Ver: FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. In: Revista Brasileira de
História, vol. 24, nº. 47. São Paulo, 2004.
36
Ibid., p. 02.
37
Ibid.
38
As principais contribuições desses autores, seguindo a ordem constatada na frase, são: DREIFUSS, René
Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981; BANDEIRA, Moniz. O Governo João Goulart
e as lutas sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 e STARLING, Heloísa. Os senhores
das gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964. Petrópolis: Vozes, 1986.
39
As principais contribuições desses autores, seguindo a ordem constatada na frase, são: TOLEDO, Caio
Navarro. O governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 1982; FERNANDES, Florestan. O Brasil

24

em História, compreenderam o golpe como uma medida de prevenção empregada pelos
setores militares, ostensivamente articulados com determinados estratos da sociedade civil e
impulsionados pela Doutrina de Segurança Nacional, para obstruir as ―aspirações
comunizantes‖ incrustadas na estrutura governamental, segundo depreensão dos atores direta
e indiretamente envolvidos naquele processo de ruptura.
A última tendência que obteve considerável aceitação e desenvolveu bem
fundamentados estudos, também no decurso dos anos 80, 90 e 2000, denominou-se ação
política conjuntural, segundo a qual ―sua principal característica reside na sobrevalorização
dos aspectos políticos da conjuntura pré-64 e na adesão à interpretação histórica do tempo
curto, quase contextual‖40. Isto é, conforme as proposições construídas por autores como
Jorge Ferreira, Argelina Figueiredo e Wanderley Guilherme dos Santos 41, tal corrente
interpretativa adquiriu dimensão renovada, pois parte de um pressuposto no qual a ausência
do compromisso conjuntural entre setores de esquerda e

grupos conservadores se

caracterizou como um fator sine qua non para a instauração do golpe, sugerindo aplicar, desse
modo, ―variáveis políticas aos esquemas estruturalistas de base econômica‖42 para uma
compreensão mais ampla deste complexo processo.
Portanto, assentando-se sobre o viés analítico formulado por Santos (1986), é
pertinente concluir que o golpe civil-militar não decorreu, única e exclusivamente, pela
preponderância de fatores externos ou ação coletiva desempenhada por determinados grupos
que defendiam a sublevação de um projeto político. Segundo o autor, em linhas gerais, foi
instaurada uma crise de governabilidade que desencadeou a:

[...] paralisia decisória, que contaminou o parlamento e o poder executivo;
fragmentação de recursos de poder; radicalização ideológica; inconstância
nas coalizões formadas no Congresso Nacional; instabilidade governamental
(rotatividade na direção de ministérios e agências estatais) e dispersão
partidária43.

em compasso de espera. São Paulo: HUCITEC, 1981 e DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB: do
getulismo ao reformismo (1945-1964). São Paulo: Marco Zero, 1989.
40
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O governo João Goulart e o golpe de 64: memória, história e
historiografia. Revista Tempo, vol. 14, nº. 28, pp. 125-145. Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2010. p.
137.
41
As principais contribuições desses autores, seguindo a ordem constatada na frase, são: FERREIRA, Jorge. A
estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh,
vol. 24, nº. 47, jan./jun. 2004; FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou Reformas? Alternativas democráticas à
crise política – 1961-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 e SANTOS, Wanderley Guilherme. Sessenta e
quatro: anatomia da crise. Rio de Janeiro: Vértice, 1986.
42
DELGADO, 2010 apud SANTOS, 1986. p. 139.
43
Ibid.

25

É com base nestas reflexões, levando-se em consideração, ainda, a unificação de
elementos como a campanha articulada entre EUA e instituições nacionais para desestabilizar
o governo Goulart, seguida da conspiração militar, que a presente dissertação se propõe a
compreender o golpe civil-militar de 1964. Para tanto, as contribuições do já citado
historiador Carlos Fico serão determinantes para os esforços analíticos empregados neste
manuscrito, já que, sob um viés bastante perspicaz, o autor diferencia as campanhas de
desestabilização e conspiração, delimitando o papel desempenhado pelos atores militares,
políticos, empresários, eclesiásticos e civis para a ruptura institucional daquele atribulado ano.
Autores como Daniel Araão Reis Filho, Élio Gaspari, Demian Bezerra, Moniz Bandeira,
dentre outros já mencionados, também foram utilizados nas análises dialógicas deste
manuscrito.
Para a construção deste estudo, a rigor, optou-se pelo emprego de duas etapas
metodológicas julgadas apropriadas para o seu pleno desenvolvimento: pesquisa documental e
coleta de relatos orais. As fontes jornalísticas, sistematicamente analisadas aqui, foram
encontradas nas hemerotecas do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE),
Arquivo Público de Sergipe (APES), Biblioteca Pública Epifânio Dória e Arquivo da
Arquidiocese sediada em Aracaju.
Historicamente, a utilização do jornal enquanto instrumento de investigação esteve
relegada ao plano secundário até meados do século XX. Entretanto, com o advento da
terceira geração dos Annales, cuja principal característica foi à sublevação da perspectiva
interdisciplinar, constatou-se uma significativa reformulação conceitual no que diz respeito ao
uso daquele elemento sob a rubrica de fonte e objeto. Partindo desses pressupostos, o meio
pelo qual as informações contidas nos jornais são operacionalizadas nesta pesquisa, a rigor,
guarda relação com a técnica voltada para a análise qualitativa de conteúdo, tendo em vista
sua proposta de atuar como um importante instrumento metodológico instruído a identificar,
sistematizar e descrever o conteúdo produzido pelos periódicos sobre o contexto social,
político e ideológico no qual Sergipe encontrava-se inserido.
Para Laurance Bardin (2011)44, cujas proposições foram interpretadas no artigo
Análise de Conteúdo: considerações gerais, relações com a pergunta de pesquisa,
possibilidades e limitações do método45, ampliando, portanto, a sucinta definição retratada
anteriormente, a pesquisa qualitativa consiste em ―incorporar a questão do significado e da
44

Ver: BARDIN, Laurance. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
CALIXTO, Pedro; CAVALCANTE, Ricardo Bezerra; PINHEIRO, Marta Macedo Kerr. Análise de
Conteúdo: considerações gerais, relações com a pergunta de pesquisa, possibilidades e limitações do método.
Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v. 24, n. 1, p. 13-18, jan./abr. 2014.
45

26

intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo essas
últimas tomadas tanto no seu advento quanto nas suas transformações, como construções
humanas significativas‖46. Dentro desta orientação, o referido método propõe-se, ainda, a
descrever o conteúdo presente tanto na oralidade quanto em textos, tornando-se aplicável aos
estudos relacionados à História e suas relações com as representações, crenças, valores e
percepções, imbricação que é resultado das interpretações formuladas pelo ser humano.
Nas instituições públicas de salvaguarda documental vinculadas aos âmbitos
municipal e estadual, as inflexões do objeto induziram-me a analisar jornais sergipanos como
o Gazeta de Sergipe, Folha Popular, Correio de Aracaju, A Cruzada, Sergipe Jornal, A
Defesa, A voz de Lagarto, O Sim Sim e A Semana, que, partindo de orientações divergentes,
construíram narrativas que ilustraram a radicalização ideológica incrustada nos anos 60. Neste
sentido, portanto, ampliaram-se as possibilidades de interpretação correspondentes ao aspecto
conjuntural daquele período, permitindo, também, a emissão de novas luzes sobre a
participação das esferas civil, eclesiástica e política na legitimação do golpe civil-militar e
seus esforços para a planificação das Marchas da Família com Deus pela Liberdade.
Posto isto, a partir da entrevista semiestruturada, cujos fragmentos foram introduzidos
em três capítulos, buscou-se extrair informações restritas ao intenso combate pelas memórias,
evidenciando suas relações com as narrativas presentes nas fontes documentais e
contemplando a subjetividade de alguns indivíduos que testemunharam um período marcado
pela preponderância da arbitrariedade.
A dissertação é composta por quatro capítulos. O primeiro, intitulado O desmonte da
experiência populista: reflexões sobre a crise institucional e o surgimento das mobilizações
populares (1960-1964), constituído de três seções e seis subseções, empenha-se em retratar, a
princípio, os desdobramentos do establishment sócio-político brasileiro sob a presidência de
Jânio Quadros que culminaram com a crise institucional instaurada no transcorrer daquele
período, priorizando a já retratada escala analítica de tempo curto e evidenciando o
recrudescimento/fortalecimento das mobilizações populares, a partir do momento no qual
João Goulart ascendeu ao poder.
Posteriormente, após o ex-ministro varguista assumir a presidência através dos
esforços empreendidos pela ―Campanha da Legalidade‖ e resistir às limitações que lhe foram
impostas pelo regime parlamentarista entre 1961 (setembro) e 1963 (janeiro), esta etapa
inaugural do trabalho demonstra o início da radicalização ideológica presente no corpus social

46

Ibid., p. 14.

27

em âmbito nacional e local, impulsionada pela descomunal crise econômica infligida ao país
e, sobretudo, pela ingerência de Goulart em empregar uma política de conciliação como
estratégia para contornar os graves problemas que desestruturaram nossa conjuntura.
A partir de reflexões presentes em algumas bibliografias e informações veiculadas
pelos jornais nacionais/locais, busca-se enfatizar, ainda, a articulação do complexo
IPES/IBAD com alguns setores conservadores das esferas civil, eclesiástica e política, além
de suas conexões governo estadunidense, modus operandi compreendido como determinante
para o engajamento ideológico dos atores envolvidos naquele processo (1962-1963). Por fim,
ao analisar as dinâmicas daquela conjuntura que se esboçou em 1963, estas discussões se
antecipam em esclarecer a inflexão de Goulart para o espectro esquerdista e como sua decisão
contribuiu para a instauração do golpe civil-militar.
O segundo capítulo, denominado Sob a rubrica do anticomunismo católico:
consolidação do “pacto sacrário-coturno” mediante as Marchas da Família Com Deus pela
Liberdade, é composto por quatro seções. Com a polarização ideológica adquirindo
amplitudes que se estendiam por todas as estruturas institucionais e sociais, conforme foi
possível constatar, a Igreja não estava isenta destes fragorosos embates. Julgando apropriado
compreender as origens desta correlação de forças para obter um maior entendimento sobre os
motivos pelos quais eclesiásticos conservadores, bem como associações femininas,
planificaram as primeiras marchas no país, este primeiro momento se empenha em contribuir
com tais esforços de reflexão. Para tanto, em linhas gerais, foi imprescindível construir uma
narrativa na qual abordou-se a ascensão da chamada ―esquerda católica‖ a partir das primeiras
atividades conciliares, demonstrando a insatisfação de uma ala compreendida como
conservadora e que avaliava sob ostensiva suspeição a aplicação do progressismo como nova
diretriz do catolicismo.
Em seguida, para efeito de análise, o exercício analítico constatou as ressonâncias
daquela dicotomia nas bases do catolicismo sergipano, evidenciando as trajetórias de dois
atores cujas atuações se confundem com as dinâmicas da prática religiosa local: Dom Luciano
Cabral Duarte e Dom José Vicente Távora. Com base em suas predileções ideológicas, já que
o primeiro era qualificado de conservador, enquanto o segundo fora rotulado de progressista,
este capítulo descreveu, ainda, utilizando alguns depoimentos e empregando o conceito de
representação, como o imaginário anticomunista construído em âmbito nacional/local
cooperou para a prática de arbitrariedades contra civis, dirigentes políticos e religiosos
identificados com o projeto reformista e impulsionou a planificação/execução das Marchas da
Família com Deus pela Liberdade.

28

No terceiro capítulo, cujo título é Entre terços e quepes: conservadorismo social,
cultura política e as Marchas da Família com Deus pela Liberdade em Aracaju, as propostas
discursivas ancoram-se na análise sobre a conformação da cultura política sergipana, elegendo
Aracaju47 como grande referencial para esta disseminação ―comportamental‖. Através duma
reflexão retrospectiva acerca dos eventos políticos e culturais responsáveis por contribuir para
a afirmação de um conservadorismo que preponderou sobre forças ideológicas opostas, esta
etapa se propõe a investigar como os agrupamentos antirreformistas planificaram e
executaram as primeiras Marchas da Família com Deus pela Liberdade registradas no estado.
Para tanto, sob a devida depuração conceitual, evidencia-se a articulação entre
católicos conservadores, grupos femininos e outros atores na estruturação daquelas
manifestações cívico-eclesiásticas, descrevendo, a partir de fontes orais e impressas, seus
percursos, participantes e outros aspectos simbólicos presentes nos atos em regozijo pela
ruptura institucional.
Já o último capítulo, intitulado A região metropolitana e o interior também
marcharam: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade em 7 cidades sergipanas, tal
qual elucidativamente antecipam seu título e subtítulo, consiste em descrever tais
mobilizações nas cidades de Barra dos Coqueiros, Laranjeiras, Simão Dias, Propriá,
Aquidabã, Cedro de São João e Japoatã, utilizando relatos orais e fontes impressas para
reconstituir estes eventos, enfatizando, também, seus partícipes, circunscrições e
organizadores.

47

Esta pesquisa considera Aracaju como o grande centro irradiador da cultura política sergipana, pois
concentrou a maior carga das atividades políticas, culturais e intelectuais desenvolvidas no estado, não obstante a
atuação de cidades como São Cristóvão, Laranjeiras e Maruim.

29

2. O DESMONTE DA EXPERIÊNCIA POPULISTA: reflexões sobre a crise
institucional e o surgimento das mobilizações populares (1960-1964)

Não recordo aquela noite, mas de manhã já havia umas poucas malas
arrumadas, carros e motoristas à espera na porta e uma agitação fora do
comum, quase correria, para sairmos direto para o aeroporto48.

O fragmento textual acima, extraído do compêndio Jango e eu, cuja autoria é de João
Vicente Goulart (2015), filho de João Belchior Marques Goulart, sintetiza liricamente os
eventos decorridos no dia 31/03/1964. Após a eclosão da ofensiva militar, comandada pelo
general Olímpio Mourão Filho, consolidava-se, sob o signo de golpe civil-militar, uma
articulação conjuntural, desestabilizadora e conspiratória iniciada em 1961, ano no qual o
presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo de presidente.
Partindo de tais premissas e compreendendo ser fundamental analisar a gestão
―janista‖ para incorrer por um maior entendimento sobre o golpe de 1964, seus momentos
decisivos e desdobramentos, o presente capítulo versará, a priori, sobre os complexos eventos
que culminaram com o afastamento de Jânio Quadros, decretando, naquela oportunidade, o
desencadear de uma crise sucessória que mobilizou todo o país. A posteriori, sob a devida
depuração do segundo momento, esta etapa inaugural investiga a era João Goulart e o esboço
das articulações golpistas que, posteriormente, suprimiram o limiar de uma breve experiência
democrática no Brasil. Evidenciou-se, ainda, a ostensiva atuação das mobilizações populares
que irromperam neste período fortemente caracterizado pela radicalização ideológica e
infligiram, desse modo, uma súbita reação das forças conservadoras.
Para tanto, as fontes utilizadas enquanto instrumentos de auxílio para a compreensão
dessas dinâmicas, a rigor, remetem aos periódicos sergipanos veiculados em 1961-1964, entre
os quais grifo Gazeta de Sergipe, Correio de Aracaju, A Cruzada, A Voz de Lagarto e Sergipe
Jornal. Estes testemunhos documentais descrevem, sob a rubrica de distintas orientações
político-ideológicas, o processamento dos mesmos eventos e inferem juízos conforme suas
conivências.

48

GOULART, João Vicente. Jango e eu: memórias de um exílio sem volta. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 2016. p. 19.

30

2.1. A súbita era Jânio Quadros: do pleito de 1960 ao discurso de posse

O pleito presidencial transcorrido em 1960 representou uma instigante disputa que
dividiu, de modo significativo, o eleitorado brasileiro. Naquela conjuntura inserida no
contexto da era Juscelino Kubistchek, em grande medida, três candidatos se esboçavam como
principais concorrentes ao cargo eletivo, a saber: Jânio Quadros, Adhemar de Barros e
Henrique Teixeira Lott. Este general, membro da coalizão composta, grosso modo, pelo
Partido Social Democrático (PSD) e Partido e Trabalhista Brasileiro (PTB), notabilizou-se por
capitanear, em 1955, uma ação preventiva para impedir a ascensão dos conspiradores
udenistas ao Poder Executivo Federal, assegurando que a aliança constituída por Kubitschek e
João Goulart fosse empossada em janeiro de 1956. Tal evento ficou historicamente conhecido
como ―Movimento de 11 de Novembro‖.
Embora sua perspicácia - qualificada por Skidmore (1988) de ―legalidade‖ ao referirse a ação contra golpista articulada pelo oficial - representasse uma força combativa ao esteio
de conspiração direitista, Lott era compreendido pelo agrupamento PSD/PTB/PST/PSB/PRT,
que o nomeara a investidura do cargo, como ―um candidato fraco, sem experiência política e
sem nenhum ‗charme‘ pessoal‖49.
Já Adhemar de Barros, após exercer atribuições de interventor federal em São Paulo e
prefeito da capital desta unidade federativa no quadriênio 1957-1961, licenciou-se do cargo
Executivo Municipal para pleitear o posto de presidente, representando o PSP e prometendo
assentar-se sobre as coalizões partidárias hegemônicas cuja liderança era constituída pelas
siglas UDN/PSD/PTB. Articulando sua investidura sob o slogan intitulado ―candidatura de
protesto‖, Barros integraria o triunvirato que protagonizaria as últimas eleições presidenciais
diretas desde o processo de redemocratização.
Apropriando-se do mesmo viés propagandístico de seu concorrente, Jânio da Silva
Quadros (PTN/UDN/PR/PL/PDC), que também ocupou os postos de prefeito e governador de
São Paulo, vencendo o próprio Barros durante as eleições estaduais de 1954, levantou
questionamentos quanto ao seu perfil vocacional para a administração pública: seria ele um
outsider, ou herdeiro da tradição populista?
Com base em sua atuação enquanto chefe do executivo até 1959, no âmbito das
esferas municipal e estadual, demonstrou sinuosas aproximações com o populismo,
carregando consigo certa rotulação que fora atribuída pela classe trabalhadora, segundo a qual
49

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 2ª Edição. São Paulo: Paz e terra, 1988. p. 234.

31

seria a personificação do líder responsável por empreender uma extensão dos benefícios
econômicos aos estratos sociais de baixa renda.
No entanto, para Francisco Weffort (1978)50, em um artigo no qual analisa as raízes
sociais do populismo em São Paulo entre as décadas de 50 e 60, o conteúdo discursivo
empregado por Quadros não lhe inseria neste conceito comumente utilizado para caracterizar
as figuras carismáticas que emergiam e fincavam raízes na cultura política da América Latina
durante tal período. Ainda segundo a análise deste autor, o ―varredor da corrupção‖51
direcionava sua oratória, sob a rubrica de apelo, para o eleitorado das classes média e médiabaixa, as quais costumavam descrevê-lo como um dirigente honesto e eficiente.
Embora a prática de qualificar seu verdadeiro perfil seja um exercício analítico digno
de estudos específicos, estava evidente que o candidato apoiado pela UDN era um dirigente
empenhado em romper o contraste ideológico da política nacional daquela conjuntura. Foi
neste entreato de constantes incertezas, portanto, que Quadros emergiu como um dos favoritos
ao pleito presidencial daquele ano52.
Tamanha predileção do eleitorado foi ratificada com a divulgação dos votos, após a
apuração integral das urnas. Ao acumular 48,27% dos sufrágios válidos, Quadros abriu uma
margem de dezesseis pontos percentuais em relação ao Marechal Lott, que deteve 32,94% de
votos53. Para o cargo de vice-presidente, João Goulart, membro da coalizão liderada pelas
siglas PSD e PTB, arrematou a acirrada disputa ao cooptar 36,1% dos sufrágios, abrindo três
pontos de diferença para Milton Campos, membro do agrupamento liderado por Quadros.
Processadas as eleições do dia 03/10/1960, o país preparava-se para a posse de Jânio
Quadros e João Goulart, a 31 de janeiro de 1961. Nesse ínterim, o presidente eleito radicou-se
provisoriamente na Europa, despistando quaisquer indicativos acerca da sua agenda de
compromissos e prováveis programas sancionados no futuro governo. Para Felipe Pereira
Loureiro (2009)54, autor de um dos poucos artigos que se debruçam sobre a complexa relação
entre Quadros e Congresso Nacional, o anúncio deste repentino afastamento se deu para fins
de descanso e realização de tratamentos médicos.
50

Ver: WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978.
51
Termo empregado pelo staff de Jânio Quadros para designar o seu intento de desarticular os efeitos corruptores
praticados pela classe política.
52
Para além do pleito presidencial, as eleições para vice-presidente transcorreram simultaneamente, tendo como
candidatos o ex-ministro João Goulart, vice do Marechal Lott; Milton Campos, vice de Jânio Quadros; e
Fernando Ferrari, vice de Ademar Barros.
53
Para saber mais sobre os resultados das eleições processadas em 1960, ver:
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/Campanha1960/A_campanha_presidencial_de_1960.
54
Ver: LOUREIRO, Felipe. Varrendo a corrupção: considerações sobre a relação entre Jânio Quadros e o
Congresso Nacional. In: Revista brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 57, 2009.

32

Seus correligionários, contudo, não se furtaram em criticá-lo copiosamente, pois a
ausência de Quadros representaria uma contenção dos esforços com vistas a planejar ataques
contra alguns decretos econômicos do então presidente Juscelino Kubistchek - que perpassava
pelos últimos momentos do mandato - e os efeitos agravantes ocasionados por tais medidas55.
Quando, enfim, retornou ao Brasil para participar da cerimônia de posse, no dia
31/01/1961, Jânio Quadros antecipou-se em nomear os aliados que ocupariam as pastas
ministeriais. Estes cargos, conforme previa-se desde o fim da corrida eleitoral, foram
designados a um grupo composto por elementos da UDN e lideranças de agremiações
partidárias menos expressivas. Dentre as pastas compreendidas como elementares para
assegurar a plena governabilidade da gestão, segundo Maria Victória Benevides (1981)56,
constavam o Ministério da Fazenda, Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Guerra
e Ministério da Justiça.
Para exercer tais funções, Quadros nomeou Clementino Mariani, líder udenista na
Bahia e ex-presidente do Banco do Brasil entre 1954-1955, como Ministro da Fazenda;
Afonso Arinos de Melo Franco, líder da UDN em Minas Gerais e contumaz antigetulista, para
o Ministério das Relações Exteriores; Odílio Denys, marechal do Exército e antigo ministro
de Kubistchek, que permanecera à frente do Ministério da Guerra; e Oscar Pedroso Horta,
perspicaz advogado, designado a comandar o Ministério da Justiça.
Não obstante, conforme atesta Loureiro (2009), os correligionários que integravam os
quadros de agremiações como PSD e PTB, integrantes duma força oposicionista formal
responsável por iniciar tratativas conciliatórias inexitosas, foram relegados, por razões óbvias,
ao plano secundário no que diz respeito à concessão de altos cargos, exceto pelo pessedista
Clóvis Pestana, a quem Quadros atribuiu o cargo de Ministro dos Transportes.
Ainda de acordo com o autor, a estrutura partidária constituída no Legislativo, como
consequência das eleições processadas em 1958, era desfavorável. Portanto, tendo em vista o
alvorecer de um cenário adverso, alguns líderes do PSD articularam estratégias que
convergissem para um desfecho conciliatório entre a bancada oposicionista, majoritariamente
composta por PSD/PTB/PSP, e os aliados do governo. Contudo, houve considerável
resistência das alas progressistas de pessedistas e petebistas, inviabilizando a formalização de
quaisquer acordos. Diante deste cenário, o historiador conclui que ―a proposta acabou também
não obtendo êxito. Além das resistências de setores da UDN a ela, houve outro fator
55

Segundo Skidmore (1988), afastamento de Quadros incorria pelo típico estilo político que adotara desde então.
O objetivo do futuro presidente era, na verdade, constituir uma aura teatral à posse do cargo.
56
Para saber mais sobre as articulações entre Jânio Quadros e UDN, ver: BENEVIDES, Maria Victória. A UDN
e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro. Rio de Janeiro, 1981.

33

determinante para esse insucesso: a falta de interesse demonstrada pelos janistas em levar tal
acordo político a cabo‖57.
Para além destas demonstrações apriorísticas de ―isolacionismo‖, embora seus
oposicionistas assentissem que seria inviável sustentar o cargo renunciando ao
estabelecimento de novos acordos entre Executivo e fração majoritária do Congresso, o
descaso apresentado por Quadros em relação à nova configuração da instituição, bem como
com a gestão JK, tornou-se mais clarividente quando proferiu seus discursos. No tradicional
pronunciamento de posse, a rigor, teceu contumazes críticas ao que compreendeu como
―ineficiência governamental e crise financeira‖, evidenciando a acentuação de problemas
associados à inflação e as dívidas externas.
A edição do periódico O Estado de São Paulo, contumaz defensor do golpe que se
instauraria três anos depois, transcreveu, na íntegra, o discurso no qual Quadros afirmou que o
panorama financeiro do país era ―terrível‖, haja vista que a dívida externa estava avaliada em
dois bilhões de dólares, ratificando, posteriormente, seu empenho em ―moralizar‖ a
administração pública.
E a situação é tanto mais séria quando se sabe que somente durante o meu
governo deverei saldar compromissos em moeda estrangeira no total de
cerca de dois bilhões de dólares. E só no corrente exercício de 600 milhões
de dólares. Importa assinalar que, além de compromissos pontuais, existem
operações efetuadas pela Carteira de Câmbio a título de antecipação da
Receita, num montante que sobe a 90 milhões de dólares58.

Em mais uma investida contra o antecessor, assinalou que seu quinquênio foi
caracterizado

pelo

nepotismo

e

favoritismo

administrativo,

complementando

tal

posicionamento ao condenar JK pelo voluptuoso déficit federal projetado para o primeiro ano
de mandato. À noite, no programa radiofônico Hora do Brasil59, endossou suas ressalvas à
política econômica aplicada pela gestão predecessora, causando grande insatisfação entre às
lideranças parlamentares oposicionistas que participaram ativamente de algumas realizações
capitaneadas por Kubistchek.

57

LOUREIRO, Felipe. Varrendo a corrupção: considerações sobre a relação entre Jânio Quadros e o Congresso
Nacional. In: Revista brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 57, 2009. pp. 189-190.
58
Ibid., p. 191.
59
Em 1935, o programa foi criado por Armando Campos, amigo pessoal de Getúlio Vargas, com o intuito de
ampliar a popularidade desta liderança política. Até 1937, portanto, a atração era conhecida como ―Programa
Nacional‖, mas entre 1938 e meados da década de 70, em grande medida, atribuiu-se a nomenclatura ―Hora do
Brasil.‖ Fonte: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materia/422859-EM-1935-SURGIU-A-HORADO-BRASIL,-MAIS-CONHECIDA-COMO-A-VOZ-DO-BRASIL.html. Acessado em 09/01/2018.

34

Deputados pessedistas como José Maria Alkmin e Martins Rodrigues, dos estados de
Minas Gerais e Ceará, respectivamente, contra-atacaram publicamente a retórica janista. Para
Alkmin, por exemplo, o teor daquele discurso adquiriu contornos de uma conduta ameaçativa,
no entanto, tal ação não obteria o ímpeto necessário para causar maiores intimidações à
atuação dos parlamentares.
Apesar de lideranças como o deputado Nicolau Tuma, correligionário da UDN-SP,
defenderem a conduta irredutível e sediciosa de Jânio Quadros, a opinião pública se
empenhava em compreender tamanha ―austeridade‖ como algo atípico, já que nada do gênero
transcorrera nos governos precedentes. Somente uma semana após sua posse, em linhas
gerais, o presidente anunciou oficialmente os nomes que representariam a liderança do
governo no Poder Legislativo: tratava-se da dupla udenista composta por Pedro Aleixo e
Seixas Dória, então deputado federal e futuro governador de Sergipe.
Todavia, durante a concessão duma entrevista coletiva meses após o anúncio oficial, o
presidente afirmou que não estava convicto de que Aleixo era, por definição, a liderança do
Executivo no Congresso, demonstrando total desinteresse na construção de porta-vozes
inseridos no seio do Legislativo e conferindo deslegitimidade a sua eventual liderança na
casa. Não obstante, mesmo cedendo parcialmente às investidas da coalizão que sustentou sua
candidatura, o chefe do Executivo desperdiçara uma fundamental oportunidade de garantir a
governabilidade e as ressonâncias das escolhas descritas acima, em nome de uma
―insubordinação‖ tão vociferada durante as campanhas, comprometeriam sua longevidade no
poder.

35

2.2. Sob a fleuma da ingovernabilidade: problemas econômicos, renúncia e a crise sucessória

2.2.1. O plano econômico

Ao permanecer irredutível na sua conduta de não constituir alianças parlamentares,
Jânio Quadros surpreenderia novamente os legisladores, intensificando, portanto, um
complexo quadro litigioso. Entretanto, antes de narrar às circunstâncias pelas quais a relação
entre Executivo e Legislativo se deteriorou progressivamente, sendo, inclusive, um elemento
chave para compreender a renúncia, julga-se apropriado enfatizar outro aspecto responsável
por desgastar a convivência do presidente com a classe parlamentar: o plano econômico.
Portanto, é com base em uma premissa formulada por Roger Chartier (2002)60,
segundo a qual o entendimento de uma realidade perpassa pela análise das dimensões
econômicas, políticas, sociais e culturais, que as próximas discussões se fundamentam.
Também partindo destes pressupostos, a Nova História Política, que emergiu nos anos 70,
impulsionada pelas críticas formuladas por marxistas e annalistas a estrutura constituída pela
história política tradicional, possibilitou articular a análise política propriamente dita com
aspectos cujas estruturas se pautam em discussões pluridisciplinares, conforme propõe René
Rémond (1996)61.
Enquanto empenhava-se em adotar uma política externa austera por intermédio da PEI
e endossava ferozes críticas às medidas econômicas conduzidas por JK, Quadros anunciara
um ortodoxo e inflexível programa anti-inflacionário, ―prometendo reduzir o déficit
governamental ao realizar novos investimentos no setor exportador, a fim de ajudar a superar
a insuficiência crônica das exportações brasileiras‖62. Ainda conforme esta análise, as
propostas da reforma, em tese, constituiriam-se como relevantes no sentido de lograr a
aprovação do Fundo Monetário Internacional (FMI), abrindo o precedente ideal para a
renegociação das dívidas.
Desta forma, o sucessor de JK esboçava uma das ações prioritárias daquela gestão para além do minucioso combate a corrupção através da moralização administrativa – voltada
ao estabelecimento de decretos financeiros restritivos que seriam posteriormente responsáveis
pela recondução do país a um novo modelo desenvolvimentista. Não obstante tamanhas
60

Ver: Chartier, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2002.
61
Ver: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Trad. de Dora Rocha. RJ, Ed. UFRJ – Editora FGV,
1996.
62
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 2ª Edição. São Paulo: Paz e terra, 1988. p. 240.

36

medidas de estabilização se caracterizarem como antipopulares, sobretudo pela necessidade
de restrição creditícia e congelamento salarial, tal decisão, embora arriscada, seria exequível
naquele momento, dada a credibilidade atribuída a Quadros no início do mandato.
Entre os meses de maio e junho, o novo governo obteve um empréstimo avaliado em
mais de dois bilhões de dólares, adquirindo, também, trezentos milhões destinados a outros
financiamentos. Tais concessões, portanto, foram acumuladas graças ao programa de
estabilização implementado por Quadros, cujo objetivo consistia em recuperar a confiança do
seu principal credor: os Estados Unidos. O fato de exercer a opção de reinvestimento no
Brasil após tratativas frustradas com JK representou certa tranquilidade aos estadunidenses,
que compreendiam as ações do presidente em exercício como imprescindíveis para
proporcionar o equilíbrio necessário entre as dívidas externas e o novo programa de
desenvolvimento.
Entretanto, as primeiras demonstrações de insatisfação àquelas intervenções foram
desferidas pela classe empresarial, consumidores e trabalhadores em geral. Apesar de, a
priori, estes agrupamentos consentirem com a aplicação das medidas de estabilização e antiinflação, ambas consideraram que o arroxo deliberadamente imposto era injustificável. Não
obstante, o chefe do Executivo se debruçou sobre algumas contestações apontadas para a
emergente política econômica na qual inseriu o país. Durante os primeiros meses de gestão,
contudo, seus ministros se empenharam em demovê-lo daquelas considerações, admitindo que
as antipopulares políticas julgavam-se apropriadas naquele momento de reestruturação.
Como grave consequência de empreender um inflexível programa anti-inflacionário
responsável por dobrar, por exemplo, o preço da gasolina, Quadros diminuiu comedidamente
a ortodoxia daquelas medidas de estabilização e se aproximou, entre março e abril, dos
considerados intelectuais desenvolvimentistas. Em meados de agosto, então, convocou a
primeira equipe técnica para supervisionar o planejamento proposto para a economia desde o
início do mandato, formulando, desse modo, a Comissão Nacional de Planejamento
(COPLAN). Neste sentido, com vistas a substituir o famoso Programa de Metas, cuja origem
se deu por intermédio do Conselho Nacional do Desenvolvimento idealizado por JK, Quadros
preparava o Primeiro Plano Quinquenal63.

63

Para maiores informações sobre os desdobramentos da política econômica janista, ver: ABREU, M. P.
Inflação, estagnação e ruptura: 1961-1964. In: ______. (Org.). A ordem do progresso. Cem anos de política
econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Campus, 1990.

37

Conforme assinalaram Mário Magalhães Carvalho Mesquita (1992)64 e Sérgio Marley
Modesto Monteiro (1999)65, que se enveredaram minuciosamente sobre a política econômica
janista, é correto depreender que os desdobramentos de algumas ações voltadas para o setor
representaram, apesar da efemeridade conferida a sua gestão, um importante ponto de ruptura
com o modelo desenvolvimentista empregado desde o período pós-2ª Guerra. Entretanto,
ainda de acordo com o consenso dos autores, as mudanças demonstravam enfraquecimento
devido, sobretudo, a indecisão de Quadros em estabelecer uma diretriz sólida para sua agenda
aplicada a economia.
No dia 22/08/1961, por exemplo, conforme notícia veiculada pelo periódico Sergipe
Jornal, cuja orientação era situacionista, o presidente ―cogitava não reexaminar o que está
certo e seguirá os rumos que traçou, pois são os que atendem aos interesses da nação‖66,
evidenciando, dessa forma, as flagrantes inconsistências assinaladas pelos autores no
parágrafo anterior. Ora, afinal de contas, o presidente era adepto do modelo voltado para a
estabilização, ou flertava com o programa desenvolvimentista?
Em linhas gerais, portanto, é possível concluir que, ao longo do primeiro semestre,
Quadros conduziu uma política econômica voltada para a supressão dos índices de
instabilidade financeira interna e externa, umas das principais reminiscências do governo JK,
com base em intervenções austeras de combate a inflação. Por conseguinte, no período que
compreendeu o último terço de sua magistratura, tornou-se receptivo as propostas
desenvolvimentistas, visando contornar as graves consequências obtidas pela falta de
planejamento.
Embora a aplicação de tais políticas tenha ocasionado reajuste nos preços de produtos
como pão e gasolina, causando insatisfação, principalmente, entre os empresários, essas
dinâmicas permaneciam dispersas do público e demonstravam maior transparência para a
classe política, pois eram noutros setores do governo janista que as contestações e
incompatibilidades se assentavam.

64

Ver: MESQUITA, Mário Magalhães Carvalho. 1961 a 1964: a política econômica sob Quadros e Goulart.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Economia do Setor Público. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1992.
65
Ver: MONTEIRO, S. M. M. Política econômica e credibilidade: uma análise dos governos Jânio Quadros e
João Goulart. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1999.
66
Cf. Sergipe Jornal. 22/08/1961, p. 01.

38

2.2.2. A renúncia

Em pleno segundo dia de mandato, Quadros sancionou a abertura de uma sindicância
presidida pelos ministros militares, na qual empenhou-se em investigar supostas
irregularidades presentes nos órgãos vinculados a gestão JK. Como tal apuração era
constitucionalmente legal, não haveria, a princípio, nenhuma arbitrariedade naquela decisão.
Os congressistas, contudo, sequer foram consultados sobre a imputação e alegaram
que Quadros poderia recorrer a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no sentido de
conduzir as investigações. Para além deste agravante, o fato daquele processo permanecer sob
a batuta dos ministros militares ocasionou uma atmosfera potencialmente atribulada,
obrigando os investigados a convocarem extraordinariamente o Congresso em princípios de
fevereiro.
Ao abdicarem do recesso parlamentar, os congressistas exerceram a plena atividade de
suas funções durante quinze dias e aprovaram, posteriormente, a instauração de CPI‘s
concomitantes àquelas do Poder Executivo, medida que causou imediata reação em Quadros,
iniciando ―um sistemático processo de deslegitimação do Congresso Nacional feito pelo
Executivo perante a opinião pública‖67.
Ainda impulsionado pelo objetivo de capitular a legitimidade do Congresso, o
presidente utilizou os ecos de seu primeiro pronunciamento como instrumento combativo às
ofensivas da casa legislativa, alegando que o povo deveria incorrer, não obstante a falta de
representatividade constatada no parlamento, por uma auto-representação quando o Poder
Executivo fosse mal sucedido em suas tratativas perante a instituição bicameral. Ao endossar
tamanho argumento, Quadros induziu os congressistas a intensificarem determinadas medidas
de defesa contra as ações praticadas pelo primeiro mandatário da nação, até então
denominadas ―autoritarismo presidencial‖.
As semanas que sucederam tais episódios, transcorridos entre fevereiro e março,
acentuaram ainda mais a convalescente relação de Quadros com o Congresso. Este desgaste
contínuo, conforme assinalado anteriormente, emergiu graças a algumas medidas nas quais o
Executivo viabilizaria diretamente as tratativas com os âmbitos municipal e estadual,
diminuindo significativamente a esfera de competência dos congressistas enquanto
intermediadores das negociações entre gabinete presidencial e requisições regionais. Ao
serem notificados sobre a ―inconstitucional‖ decisão, os deputados pessedistas não se
67

LOUREIRO, Felipe. Varrendo a corrupção: considerações sobre a relação entre Jânio Quadros e o Congresso
Nacional. In: Revista brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 57, 2009. p. 192.

39

furtaram em contra-atacar o presidente e consolidaram, dessa maneira, uma correlação de
forças cujo objetivo era empenhar-se na deslegitimação jurídica, agora, do Executivo.
Com as eleições internas no Senado, através das quais se decidiu a ocupação dos
principais postos daquela casa, o bloco oposicionista constituído por PSD-PTB saiu vitorioso.
Derrotados, os udenistas tentaram, sem sucesso, ocupar a Primeira Secretaria, mas não houve
acordo com o bloco vencedor. Como forma de protesto, os legisladores da sigla liderada por
Carlos Lacerda renunciaram aos cargos secundários da casa e atribuíram o revés à ―teoria da
independência e harmonia‖ gerenciada por Quadros, segundo a qual os três poderes
incorreriam por certa autonomia de atuação, embora Loureiro (2009) compreenda o emprego
desta medida como uma justificativa para reafirmar a negligência do presidente em relação ao
Congresso.
Em maio de 1961, não obstante a complexidade das dinâmicas que se configuraram no
Legislativo, veio à tona mais um imbróglio envolvendo Quadros e os membros daquela
instituição: a ―crise da carta‖. Para Mário Victor (1965)68, tal qual apropriadamente já
mencionado nesta subseção, este evento se caracterizou como um impasse no qual os
relatórios conclusivos das sindicâncias instauradas por Jânio Quadros apontaram João Goulart
como um dos envolvidos em supostas irregularidades praticadas no Serviço de Apoio a
Previdência Social e Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários.
Apesar das acusações, não foram registradas evidências responsáveis por incriminar o
vice-presidente, que endereçou uma carta a Quadros e requisitou a imediata remoção do seu
nome daquele escândalo. Mesmo recorrendo à via diplomática para contornar a grave
acusação, Goulart foi surpreendido com a devolução do documento, demonstrando a
intransigência do presidente em meio aquela crise institucional.
Naquele período, Jango acumulava as funções de vice-presidente da República e
presidente do Congresso Nacional, motivo pelo qual o grupo parlamentar oposicionista se
encontrava em permanente estado de incredulidade, sendo induzido a compreender
definitivamente que tal postura adotada pelo mandatário máximo visava minar a credibilidade
da casa legislativa ante a opinião pública, uma vez que o líder da instituição havia sido
incriminado de atividades ilícitas não atestadas devida e claramente.
Já em princípios de junho, isto é, dois meses antes da intrépida renúncia, outro
desgastante capítulo da instável relação entre mandatário do Executivo e Legislativo era
constituído, tendo como epicentro o Estado de Pernambuco. De acordo com Ana Maria César
68

Ver: VICTOR, M. Cinco anos que abalaram o Brasil: de Jânio Quadros ao Marechal Castelo Branco. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

40

(2009)69, a greve de estudantes deflagrada pelos discentes da Faculdade de Direito, em Recife,
que se estendeu até a Universidade Rural, representou a ―aspiração libertária‖ do povo
pernambucano e o prelúdio das manifestações ocorridas em maio de 1968, na França, quando
estudantes universitários do país arregimentaram-se nas ruas, reivindicando, em grande
medida, a reformulação das estruturas sociais, com ênfase na luta pelos direitos civis das
minorias e reestruturação da universidade enquanto espaço privilegiado para a construção e
disseminação do conhecimento70.
Se, por um lado, a manifestação discente transcorrida em junho de 1961 conjurou o
espírito obstinado dos pernambucanos, deliberando o início de uma fase estudantil
caracterizada pelo desenvolvimento em seu repertório de ações, não é apropriado, por outro,
aplicar tal premissa a estrutura do governo janista. Quando Soriano Neto, reitor da UFPE,
anunciou que Célia de La Serna, mãe do revolucionário cubano Ernesto Guevara, estava
expressamente proibida de proferir uma palestra conferencial nas dependências daquela
instituição, houve grande consternação dos alunos, que, em ato de protesto a tamanha
arbitrariedade, organizaram uma mobilização grevista.
A força reativa do corpo discente, considerando as garantias constitucionais previstas
pelo Estado Democrático de Direito, caracterizava-se como uma intervenção legal. No
entanto, em outra demonstração de natureza moralizante, não obstante a proibição do uso de
biquíni em praias e outras medidas peculiares, o presidente emitiu ordens expressas para que
unidades do IV Exército ―assegurassem a ordem‖, transgredindo a autonomia concedida ao
município/estado e agravando o quadro de crise institucional no país71.
Enquanto Quadros realocava provisoriamente a sede do Governo Federal para São
Paulo e endossava seu apoio a autodeterminação cubana, no dia 12/06/1961, levantando a
suspeita de que um golpe se articulava72, eram veiculadas informações segundo as quais o
comando de greve intensificara a manifestação, evidenciando que ―piquetes estavam sendo
organizados para impedir a entrada na Faculdade dos alunos que tentarem furar a greve para

69

Para mais informações sobre o evento, ver: CÉSAR, Ana Maria. A faculdade sitiada. Recife: CEPE, 2009.
Para mais informações sobre o Movimento de Maio de 1968, ver: LEFEVBRE, Henri. A irrupção: a revolta
dos jovens na sociedade industrial: causas e efeitos. São Paulo: Editora Documentos, 1968.
71
De acordo com a matéria veiculada pelo periódico Correio de Aracaju, a questão do Recife também emitiu
ressonâncias em Sergipe, haja vista que um estudante carioca, possivelmente motivado por tal ato, foi levado sob
custódia pelo 28º Batalhão de Caçadores, pois invadiu a sede da União dos Ferroviários. Os dirigentes sindicais
desta e de outras categorias afirmaram que ―a greve dos estudantes em Pernambuco é um episódio local‖ e
finalizaram o pronunciamento oficial enaltecendo a postura do Governador Luís Garcia ―por manter em Sergipe
um clima de paz e liberdade democrática‖ (Correio de Aracaju, 13/06/1961).
72
Os líderes da situação, contudo, afirmaram veementemente que as intervenções janistas se caracterizavam
como ações de rotina, não representando, portanto, uma atmosfera construída para a instauração de um golpe,
conforme vociferava o bloco oposicionista.
70

41

fazer as provas parciais‖73. Para além do exposto, líderes sindicais e parlamentares municipais
de viés esquerdista foram ―previamente‖ detidos, mesmo não mantendo nenhuma ligação com
a greve, criando, a partir deste episódio, um esboço da repressiva conjuntura que se
estabeleceria com o golpe de 1964.
Não obstante, conforme a tônica impressa pelo periclitante período, o complexo jogo
de pressões e contrapressões entre Executivo-Legislativo foi novamente intensificado e, no
sentido de contornar tamanho impasse, o Congresso encaminhou alguns representantes sob a
instrução de iniciar negociações com o triunvirato que protagonizara manifestação:
estudantes, reitor e IV Exército.
Solucionada a questão da manifestação estudantil em Recife, há quem conclua, assim
como o historiador Loureiro (2009), que o motivo pelo qual Quadros emitiu ordens expressas
para o estabelecimento das ações militares na capital pernambucana estava associado ao seu
empenho em desestabilizar as instituições democráticas, incluindo, desta vez, até o Executivo.

O episódio da greve dos estudantes de Recife pode ser interpretado como um
ataque qualitativamente distinto por parte de Jânio. Até então, como se
tentou mostrar, a ofensiva janista estava sendo dirigida especialmente contra
o Congresso Nacional; naquele momento, porém, parece que a própria
instituição do Poder Executivo é que estava sendo atacada [...] se realmente
foi Jânio quem ordenou todas as movimentações armamentistas no Nordeste
— e, até então, não parece haver indício que apontasse o contrário disso —,
é possível inferir que o próprio presidente estruturou um verdadeiro teatro de
operações a fim de mostrar à sociedade que ele estaria sendo impedido de
governar74.

Igualmente a Toledo (1982), o qual depreendeu as manobras praticadas por Quadros
como atos representativos de uma ―trama golpista‖ emergente, constata-se que o autor citado
no parágrafo anterior converge em uma perspectiva analítica na qual o próprio presidente
estava empenhado na articulação de um ―autogolpe‖ para, em seguida, ser reconduzido ao
gabinete com plenos poderes. Mesmo diante deste período marcado por instabilidades, as
lideranças de Jânio no Congresso lhe conferiam importante suporte para inferir o equilíbrio
necessário com vistas a sustentar o governo. Tal cenário, entretanto, estaria receptivo a
algumas reviravoltas em seus últimos meses de gestão.
Após os polêmicos episódios decorridos nos meses de maio e junho - vide a
denominada ―crise da carta‖ e o manifesto estudantil em Pernambuco -, o imprevisível
73

Cf. Gazeta de Sergipe. 15/06/1961, p. 06.
LOUREIRO, Felipe. Varrendo a corrupção: considerações sobre a relação entre Jânio Quadros e o Congresso
Nacional. In: Revista brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 57, 2009. pp. 199-200.
74

42

presidente da República reformulou sua agenda, iniciando, a partir de julho, uma postura
voltada para tratativas conciliatórias com o parlamento. Entre a flexibilização das sindicâncias
instauradas no início de 1961 e uma aproximação com o vice-presidente por intermédio do
Ministro da Justiça, Quadros esteve engajado em estreitar as negociações com a bancada
oposicionista, demonstrando profundo interesse em aprovar medidas que articulariam as
engrenagens para o tão vociferado desenvolvimento do país.
Enquanto as dinâmicas entre Executivo e Legislativo, em escala gradativa,
inflexionavam-se, finalmente, para uma atmosfera caracterizada pela sincronia, a PEI se
estruturava. Como desdobramento de tal consolidação, embora a imprensa nacional estivesse
empenhada em reforçar uma eventual aliança firmada entre Quadros e John F. Kennedy no
início do ano, o governo logrou êxito nas relações comerciais com países do leste europeu e
recepcionou uma comitiva soviética no Brasil75. Tais eventos, por definição, impactaram
significativamente a relação de Jânio com uma ala dos parlamentares situacionistas, membros
da ―Banda de Música‖, que compreenderam a aproximação do país com nações do bloco
socialista como uma advertência para a ―ameaça comunista‖.
Sob a batuta de Carlos Lacerda, que criticou copiosamente a medida presidencial
perante a opinião pública, as lideranças udenistas do governo no Congresso – apesar do grupo
interino ―Bossa Nova‖ analisar a situação favoravelmente ao presidente - dissolveram o apoio
concedido a Quadros enquanto ―ato de protesto‖ devido, sobretudo, a forma pela qual era
conduzida a política externa76. Com a concessão de uma condecoração ao argentino Ernesto
Guevara, ministro castrista, no dia 19/08/1961, a aura anticomunista concitada por Lacerda
adquiriu maiores proporções, representando, em grande medida, o prenúncio da sua condição
como presidente demissionário.
De acordo com Hélio Jaguaribe (1992)77, o aparato militar em torno do qual Quadros
se estruturava já havia concedido apoio à causa lacerdista, induzindo-nos a compreender que
o presidente foi desposto, em ―instância militar‖, especificamente com os desdobramentos

75

Para Carla Darlem Reis (2015), os veículos de imprensa responsáveis pelo discurso de aproximação entre os
mandatários foram O Globo e O Estado de São Paulo, que desempenhariam, anos mais tarde, um papel de
destaque na legitimação do golpe civil-militar. Ver: REIS, Carla Darlem Silva dos. Gazeta de Sergipe X Rádio
Liberdade: censura, imprensa E disputas políticas (1964-1970). 2014. Dissertação (Mestrado) – Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2014.
76
Foi, inclusive, no entreato destas voluptuosas dissensões, de acordo com René Armand Dreifuss (1981), que
os blocos interpartidários FPN (Frente Popular Nacional) e ADP (Ação Democrática Parlamentar) emergiram
como os principais termômetros das casas legislativas, exercendo uma correlação de forças determinante para a
construção do golpe civil-militar de 1964, embora o autor tenha empregado o conceito de golpe empresarialmilitar para caracterizar a estrutura funcional daquela articulação desestabilizadora e conspiratória.
77
Ver: JAGUARIBE, Hélio. Sociedade, Estado e partidos na atualidade brasileira. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.

43

daquele episódio. A 25 de agosto, o Congresso, majoritariamente articulado pelos
parlamentares da coalizão PSD-PTB, julgou procedente a carta-renúncia encaminhada por
Quadros, ocasionando a ―inexistência de reações populares ou do ‗dispositivo militar‘,
responsáveis [grifo nosso] por frustrar totalmente as expectativas do presidente que veria
malograda sua suposta estratégia de renúncia, como golpe ou como contragolpe‖78.
Como consequência da renúncia, uma vez que o vice-presidente João Goulart estava
em missão diplomática na China, reforçando uma premissa segundo a qual sua viagem para
este país era parte integrante de uma articulação golpista janista, conforme destaca Amir
Labaki (1986)79, o deputado Ranieri Mazilli, presidente da Câmara de Deputados, assumiu
interinamente o cargo e as discussões sobre o direito constitucional de Jango assumir o poder
adquirem grandes dimensões em nossa conjuntura. Tem-se início, portanto, a crise sucessória
e o estabelecimento duma atmosfera composta por conspirações e tentativas de golpe.
2.2.3. A crise de sucessão, o esboço das articulações golpistas e a ―solução alternativa‖

Com a iminente vacância no cargo de presidente, o artigo nº. 79 da Constituição
implementada em 1946 previa a imediata nomeação do vice, primeira opção da linha
sucessória. Entretanto, embora tal medida estivesse disposta clarividentemente, o que houve
foi à ampliação de acirrados debates sobre o impedimento ou nomeação de Jango para o
posto. Este impasse se estenderia por dez dias, evidenciando ―importantes características da
relação entre sociedade e o sistema político, assim como em relação ao equilíbrio das forças
políticas‖80.
À noite do dia 25/08/1961, após leitura da carta-renúncia nas dependências do
Congresso, a composição provisória do Poder Executivo encontrava-se, para além das
competências ―simbólicas‖ atribuídas a Mazilli, sob a batuta efetiva dos ministros militares,
que invocaram imediatamente o Estado de Sítio. O instrumento endossado pelos oficiais
visava, em linhas gerais, repelir mobilizações públicas pró-Jânio, entretanto, mesmo com toda
a popularidade que lhe era peculiar no início do mandato, não houve registro de maiores
agitações81.
78

BENEVIDES, Maria Victória. A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro. Rio de Janeiro,
1981. p. 83.
79
Ver: LABAKI, Amir. 1961: a crise da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo: Brasiliense, 1986.
80
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 2ª Edição. São Paulo: Paz e terra, 1988. p. 252.
81
Conforme assinala Skidmore (1988), as manifestações populares no decorrer dos três dias pós-renúncia se
processaram timidamente. No dia 26 de agosto, por exemplo, dirigentes sindicais do operariado se empenharam
na publicação de um manifesto, sugerindo que Jânio retornasse ao poder e prometendo impedir a atuação dos

44

Nesse ínterim, o interino endereçou um comunicado ao Congresso no qual a Junta
Militar demonstrou grande insatisfação com o regresso do vice João Goulart. Tamanha
aversão à notícia foi evidenciada quando cogitou-se a possibilidade de prender Jango caso
este insistisse em desembarcar no país, representando, desse modo, mais uma tentativa de
materializar uma ruptura institucional.
Enquanto o periódico Gazeta de Sergipe anunciava o motivo pelo qual Quadros
renunciou ao mandato, assinalando que ―a sua política exterior estava causando
intranquilidade‖82, conforme o depoimento dos ministros militares, o período correspondente
a 26/08 e 04/09 foi caracterizado, ainda, pela dissensão entre a oficialidade conivente ao
impedimento de Jango e aqueles favoráveis a ―Campanha da Legalidade‖. Esta, operada sob a
liderança de Leonel Brizola, emergiu como instrumento incondicional de apoio a posse do
vice-presidente e arregimentou adeptos por todo o país, marcando o início das contumazes
mobilizações populares que se articulariam durante a era João Goulart.
O governador gaúcho constatou que necessitava do suporte concedido pelos
agrupamentos militar e político, porém, para tanto, a construção de um canal comunicativo
seria imprescindível para o fortalecimento da resistência, já que o decreto emergencial
assinado pela Junta censurou todos os meios de comunicação. Em plena manhã do dia 27/08,
portanto, o III Exército ocupou as emissoras radiofônicas do estado, obrigando Brizola a
movimentar um contingente da Guarda Civil que, sob ordens expressas do líder trabalhista,
invadiu as instalações da Rádio Guaíba e transferiu a aparelhagem de transmissão para a sede
do governo estadual.
Do Palácio Piratini, Brizola mobilizou cerca de 150 emissoras radiofônicas que
constituíam a chamada ―Rede da Legalidade‖, transmitindo pronunciamentos e concitando os
populares a se articularem contra a ―resolução arbitrária‖83 imposta pelo triunvirato das
Forças Armadas. Atendendo a convocação brizolista, além de populares e entidades sindicais,
―altos oficiais do Exército, organizações militares sediadas nos estados do Pará, Minas Gerais,
Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás, Guanabara e, até mesmo em Brasília, almirantes
associavam-se ao movimento‖84.

―golpistas‖. As outras ocorreram em Recife, quando estudantes, de maneira bastante dispersa, solicitaram que o
Congresso rejeitasse sua renúncia.
82
Cf. Gazeta de Sergipe. 26/08/1961, p. 01.
83
Fragmento extraído do pronunciamento de Leonel Brizola via emissoras que compunham a ―Cadeia da
Legalidade‖. Ver: AMARAL, Roberto; BONAVIDES, Paulo. Textos políticos da História do Brasil. Vol. 7.
Terceira República, 2ª parte (1956-1964).
84
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1982.
p. 18.

45

Como força reativa a arrojada ação do governador gaúcho, ainda no dia 27/08, a Junta
Militar ―ordenou ao comandante do III Exército que fosse ao Palácio do Piratini e depusesse o
governador‖85. Não obstante, caso Brizola articulasse qualquer contraofensiva a ação
empreendida pelos militares, uma frota da Marinha seria encaminhada ao Rio Grande do Sul,
induzindo-o a ordenar o bloqueio de Porto Alegre.
Empenhado em oferecer resistência até o último ato para assegurar a posse do
correligionário João Goulart, Brizola designou o ―serviço de inteligência‖ do Piratini a
interceptar as redes de comunicação entre os ministros militares e o III Exército, regimento
que destacava sob o comando do general José Machado Lopes. No entanto, mesmo
previamente informado sobre as pretensões da Junta, o governador fora notificado pelo
próprio comandante sobre o encontro, tendo, então, a convicção de que a motivação da visita
seria impulsionada por sua eventual deposição.
Atônito com a ameaça de destituição, o líder petebista se dirigiu as adaptadas
instalações da Rádio Guaíba na sede do Poder Estadual, reiterando que não se submeteria as
imposições da Junta composta pelos ministros militares e, posteriormente, tranquilizou a
população, profundamente temerosa pela iminente guerra civil86. Ao recepcionar o gal. Lopes
enquanto finalizava seu pronunciamento, aproximadamente 100 mil pessoas, arregimentadas
nas imediações do Piratini, aguardavam o desfecho das negociações entre Brizola e o
comandante do III Exército.
Para a surpresa do governador, o gal. Lopes, contrariando as orientações de seus
superiores, antecipou-se em comunicá-lo sobre a dissensão entre III Exército e Junta Militar,
declarando, desse modo, apoio a ―Rede da Legalidade‖ e selando o compromisso de defender
os princípios constitucionais que, entre outras resoluções, previam a posse de João Goulart.
Com efeito, os ministros militares se empenharam na articulação de uma medida na qual os
Exércitos I e II, cuja jurisdição era distribuída por unidades federativas das regiões
sudeste/centro-oeste, constituiriam uma aliança que combateria a imponente estrutura
funcional e logística do III Exército. No entanto, tal unificação não representava a
arregimentação de forças necessárias para a capitulação da unidade comandada pelo gal.
Lopes.
De acordo com Ferreira e Gomes (2014), a conjuntura do país ―era cada vez mais
tensa. Contudo, com essa nova configuração de forças, o Congresso Nacional ficou mais
85

FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime
democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2014. p. 24.
86
Para ler, na íntegra, os discursos de Leonel Brizola, ver: FELIZARDO, Joaquim. A legalidade: o último
levante gaúcho. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 1988.

46

fortalecido para enfrentar os ministros militares, como já vinha fazendo‖87. Nesse ínterim,
enquanto alguns veículos de imprensa rechaçavam o retorno de Goulart, segundo apontou a
manchete do jornal Correio de Aracaju88, que noticiava um pronunciamento de Mazilli, o
vice-presidente esboçava regressar ao país em meio a um efervescente cenário composto por
tentativas de golpe. Para tanto, antecipou-se em manter contato com seus aliados no sentido
de monitorar as dinâmicas daquele quadro caótico.
Entre solicitações de repatriação imediata e pedidos para protelar seu retorno, sob a
alegação de evitar uma guerra civil, Goulart optou pela segunda alternativa: voltar ao Brasil
através de longo itinerário, adotando uma tônica mais moderada89. A ação planificada pela
maioria das lideranças janguistas, portanto, consistia em obter o tempo necessário para
dialogar com a Junta Militar e construir uma alternativa política pacífica a fim de contornar o
instransponível impasse. Com o positivo desfecho das negociações entre congressistas e
militares, abria-se o precedente para a instauração do parlamentarismo, medida interpretada
como viável para suprimir a crise institucional.
No dia 02/09, os congressistas realizaram a votação da proposta já aprovada na
Câmara e julgaram-na procedente, com 233 votos favoráveis e 55 contrários. Caracterizado
como ―solução de compromisso‖ por Toledo (1982), o sistema parlamentarista foi instituído
ineditamente na complexa trajetória republicana brasileira, embora uma proposta similar
tenha tramitado secundariamente na Câmara entre 1945-194690.

87

FERREIRA; GOMES, op. cit., p. 26.
O título da manchete era ―Jango não deve regressar: Segurança Nacional‖. Cf. Correio de Aracaju.
29/08/1961, p. 01.
89
De acordo com Ferreira e Gomes (2014), a escala de Jango incluiu Paris, Nova Iorque, Cidade do Panamá,
Lima, Buenos Aires, Montevidéu e, finalmente, Porto Alegre.
90
Para José Alberto Soares Cruz (2016), a emenda que previa a instauração do parlamentarismo no Brasil
remonta aos anos de 1945-1946, quando o deputado Raul Pilla propôs a votação na Câmara de Deputados. Ver:
CRUZ, J. A. S. Formas e sistemas de governo: um estudo dos editoriais do jornal A Razão (1961-1963). In:
Revista Eletrônica Discente História.com, v. 33, p. 88-100, 2016.
88

47

2.3. Entre a ―solução‖ parlamentarista e o presidencialismo: desdobramentos da era Goulart

2.3.1. Sob a batuta do sistema parlamentarista

A minha investidura, embora sob a égide de um novo sistema,
consagra respeitoso acatamento à ordem constitucional. Subo ao poder
ungido pela vontade popular, que me elegeu duas vezes vicepresidente da República, e que, agora, em impressionante
manifestação de respeito pela legalidade e pela defesa das liberdades
públicas uniu-se, através de todas as suas forças, para impedir que a
sua decisão soberana fosse desrespeitada91.

Antes da posse, contudo, após veicularem imprecisas informações segundo as quais o
avião que levaria Goulart de Porto Alegre até à Guanabara seria abatido por caças da
Aeronáutica em uma ação coordenada sob o codinome ―Operação Mosquito‖92, o Chefe de
Estado dimensionou, na prática, a gravidade da crise institucional e adiou sua viagem para o
dia 05 de setembro, agora, com destino a Brasília.
Mesmo diante da relutância inicial em assumir o cargo sob restritas condições,
sobretudo mediante a desaprovação do cunhado e correligionário Brizola, João Goulart
escolheu a data de uma importante efeméride – 07 de setembro de 1961 - para a cerimônia
que oficializaria sua posse, não obstante as ações golpistas articuladas pelos militares desde a
renúncia do seu antecessor. Com base na resolução do novo sistema, caberia ao dirigente
empossado nomear um conselho composto por ministros, delegando-os a conduzir as rédeas
da administração federal.
Se as disposições transitórias da emenda que implementou o regime parlamentar
suprimiam os plenos poderes de Goulart, existia, em contrapartida, uma cláusula na qual era
prevista a realização de um plebiscito nove meses antes das eleições, definindo a permanência
daquele sistema em vigor ou o retorno do presidencialismo. Empenhado em desarticular o

91

FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 21.
Para Maria Cecília D‘Araújo e Celso Castro (1997), que coletaram depoimentos de Ernesto Geisel, o objetivo
da ―Operação Mosquito‖ era abater o avião no qual João Goulart se encontrava, impedindo, portanto, sua posse.
Fracassados neste primeiro intento, os conspiradores, tendo em vista a mudança na escala do voo presidencial,
anteciparam-se no isolamento da pista de pouso ao aglutinarem tonéis naquele perímetro. O gal. Geisel, ainda de
acordo com os autores, ordenou a retirada dos obstáculos, pois o oficialato, apesar de vertiginosa resistência,
deliberara a posse de Goulart. Para saber mais informações sobre a ―Operação Mosquito‖, ver: CASTRO, Celso;
D‘Araújo, Maria Celina. Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.
92

48

golpe político que lhe foi desferido93, Jango conviveu sob a batuta do parlamentarismo entre
1961 (setembro) e 1963 (janeiro), lutando intensamente para restituir os poderes presidenciais.
Vigorando pela primeira vez desde o limiar do sistema republicano, em 1889, a ordem
parlamentarista demonstrou fragilidades que impulsionariam a antecipação do plebiscito,
principalmente pelo desencadeamento de crises inflacionárias e problemas relacionados à
inconsistência dos gabinetes ministeriais nomeados pelo Chefe de Estado. Com a
desestruturação econômica que se instaurou desde o fim da era JK, por exemplo, conforme
destacou Dênis de Moraes (1989)94, a inflação atingiria incríveis 52% em 1962, registrando
uma taxa até então inédita para os padrões do período.
Quanto a ignóbil questão dos gabinetes ministeriais, em grande medida, constata-se
que três trocas foram processadas durante a breve experiência parlamentarista.

O primeiro gabinete foi chefiado por Tancredo Neves, então deputado
federal pelo PSD, que teve de renunciar em junho de 1962 para conseguir
reeleger-se deputado federal. Goulart indicou um petebista, San Tiago
Dantas, mas as bancadas da UDN e PSD se opuseram. Os operários
ameaçaram entrar em greve, mas ele teve seu nome recusado. Jango, então,
indicou o senador pessedista, Auro Moura de Andrade, e os operários
ficaram ainda mais irritados e ameaçaram uma greve geral95.

Após demonstrações públicas de insatisfação devido à indicação do congressista
coligado ao PSD, Goulart designou o deputado Brochado da Rocha, parlamentar que agradou
a classe trabalhadora, para assumir o cargo em dezembro de 1961. Com os desdobramentos de
tamanho imbróglio, portanto, julga-se apropriado evidenciar que Jango incorreu, desde o
início, por um governo conciliatório ou ―trapézio‖ no qual administrava a coexistência de
forças opostas, ―mantendo-as em contraste permanente para equilibrar-se sobre elas‖96.
Tamanha postura se esboçou de modo mais evidente, em linhas gerais, após a restauração do
presidencialismo, conforme será assinalado ao longo das próximas subseções.
Neste sentido, ao passo que selava compromissos com as reivindicações da esquerda,
Jango invocava meios de apaziguar as agitações e temores dos grupos conservadores,
assegurando-lhes, dentre outras demandas, o acesso às vias institucionais de decisão política.
93

Segundo Toledo (1982), a implantação do regime parlamentarista se constituiu como um ―golpe político‖, pois
a Constituição de 1946 vedava a realização de reformas constitucionais em conjunturas ―insurrecionais‖.
94
Ver: MORAES, Dênis de. A esquerda e o Golpe de 64: vinte e cinco anos depois, as forças populares
repensam seus mitos, sonhos e ilusões. . 2ª ed. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989 p. 140
95
FICO, op. cit., p. 22.
96
PRESOT, Aline Alves. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 64. Dissertação
(Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2004. p. 47.

49

Não obstante os esforços empreendidos no sentido de equilibrar tais forças, Fico (2014) atesta
que ―as idas e vindas davam a impressão de que o sistema parlamentarista era inviável‖97.
Tão obsoleto e ineficaz que, decorridos nove meses a frente do comando ministerial,
da Rocha renunciou ao cargo, pois o Congresso vetou o projeto que previa a antecipação do
plebiscito para janeiro de 1963, contrariando, desse modo, as orientações dos militares, os
quais consideraram a instauração do novo regime como principal nutridor da crise no país.
Contudo, cedendo as pressões exercidas pelas centrais sindicais, os parlamentares
protocolaram a aprovação da votação para o dia 06/01/1963.
Em 01/01/1963, isto é, cinco dias antes do plebiscito, o Chefe de Estado decretou um
aumento do salário mínimo estimado em 75%. Com a medida de dimensão simbólica, Jango
consolidou a preponderância de um cenário que lhe era favorável, tendo em vista o amplo
apoio das classes trabalhadoras, computou 80% dos votos favoráveis ao retorno do regime
que emergiu com a redemocratização de 1945 e assegurou ―a aprovação [grifo nosso] da
emenda apresentada pelo Sr. Argemiro Figueiredo, que revoga o Ato Adicional e determina o
retorno imediato do sistema presidencialista‖98. No entanto, já em fins de 1961, forças se
arregimentavam para constituir um período caracterizado por vertiginosas polarizações.

2.3.2. Ação dos núcleos de desestabilização

O triunfo governista, materializado pela restauração do sistema presidencialista,
representou o alvorecer de uma conjuntura associada ao enfraquecimento nas políticas
conciliatórias empregadas por João Goulart, resultando, imediatamente, numa coexistência de
forças antagônicas. Neste sentido, pode-se afirmar que ―as inúmeras crises transcorridas [grifo
nosso] no governo Goulart, independentemente de qualquer julgamento partidário,
significaram, acima de tudo, a emergência popular a todos os níveis, em ameaça à ordem
estabelecida‖99.
Para compreender tamanha irrupção popular, em grande medida, torna-se
imprescindível evidenciar a articulação dos denominados ―núcleos de desestabilização‖, os
quais se constituem como elementos fundamentais para um melhor entendimento sobre a
dinamização social que caracterizou o governo Jango. Tais esforços, compreendidos

97

FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 23.
Cf. A Cruzada. 19/01/1963. p. 01.
99
BENEVIDES, Maria Victória. A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro. Rio de Janeiro,
1981. p. 87.
98

50

equivocadamente como uma ―continuidade quase natural‖100 entre a própria desestabilização
e as atividades conspiratórias, apresentam distinções que serão analisadas no capítulo
posterior.
Durante a década de 60, os países latino-americanos permaneceram sob a repressiva
batuta dos regimes ditatoriais instaurados no contexto da Guerra Fria. Não obstante, a
reorganização dos setores militares, alinhada ao estabelecimento de ações bilaterais que
visavam fortalecer a Lei de Segurança Nacional enquanto instrumento constitucional
―preventivo‖, caracterizaram-se como políticas intervencionistas financiadas pelos Estados
Unidos, integrando, desse modo, um ostensivo programa de combate ao avanço do
comunismo no continente, intensificado após a vitória dos revolucionários cubanos.
No Brasil, entre 1961 e princípios de 1964, tal atmosfera apresentou fortes
ressonâncias em diversos setores da sociedade brasileira, que se empenhou em reproduzir
discursos polarizadores entoados na arena política, transferindo-os para o âmbito social. Um
desses canais militantes, ou ―grupos de ação política‖, conforme assinala René Armand
Dreifuss (1981), foi o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES).
Precedido pelo coirmão Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD),
organização de empresários criada em 1959 e responsável por repassar os recursos financeiros
advindos dos EUA durante as eleições gerais de 1962, o IPES foi fundado em novembro de
1961 e representou uma força reativa do empresariado ―ao que foi percebido como a
tendência esquerdista da vida política‖101, segundo as avaliações de seus idealizadores102,
tendo em vista a construção de um modelo econômico baseado no nacional-reformismo,
embora este projeto fosse anunciado de modo mais enérgico em meados de 1963. Tal
propósito, no entanto, foi deliberadamente transfigurado para adquirir uma amplitude de
caráter popular, viabilizando, desse modo, sua infiltração em movimentos políticos, sociais e
religiosos antijanguistas. Para tanto, os signatários se empenharam em recrutar militares
vinculados a Escola Superior de Guerra (ESG), organizações femininas, dirigentes políticos
conservadores e autoridades clericais, além da força colaborativa concedida pelo IBAD,
constituindo, portanto, o complexo IPES/IBAD, caracterizado por Demian Bezerra de Melo
(2009) como ―o verdadeiro partido político da burguesia‖103.
100

FICO, op. cit., p. 31.
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 162.
102
Entre os principais nomes, em grande medida, podemos evidenciar os esforços dos empresários Paulo Ayres
Filho, Gilbert Huber Júnior, Antônio Galloti, Glycon de Paiva e José Garrido Torres.
103
MELO, Demian Bezerra de. O plebiscito de 1963: inflexão de forças na crise orgânica dos anos sessenta.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pos-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Rio de
Janeiro, 2009. p. 55.
101

51

Sob o pretexto de atuar enquanto ―uma agremiação apartidária com objetivos
essencialmente educacionais e cívicos‖104, conforme atesta o regimento de fundação analisado
por Dreifuss, o IPES consistia, na verdade, em uma bem articulada instituição que realizava
campanhas político-ideológicas por intermédio das extensas atividades propagandísticas,
evidenciando, sobretudo, o iminente ―perigo comunista‖ em associação à figura de Goulart
para evitar suas manobras continuístas. Estes esforços, qualificados de desestabilização e
intensificados a partir de 1962, apresentavam como principal diretriz o enfraquecimento do
presidente, não obstante as eleições gerais daquele ano, para projetar e consolidar, em meio ao
inexistente pleito presidencial de 1965, uma liderança responsável por atender aos interesses
dos setores empresariais, já que, de acordo com a análise do grupo, ―a direção do país não
poderia mais ser deixada somente nas mãos dos políticos‖105.
Sendo assim, ao empregar um sofisticado programa de estruturação e ampliar sua
infiltração nas principais capitais do país, este agrupamento intensificou os repertórios
propagandísticos, já sob a liderança de Golbery de Couto Silva, utilizando táticas como
distribuição de folhetos, livros, transmissão de programas audiovisuais, exibição de filmes e
financiamentos. Em Sergipe, por exemplo, o jornal Gazeta de Sergipe publicou uma matéria
―denunciativa‖, afirmando que ―o leandrismo ibadiano escalou um grupo de senhoras para a
aquisição de títulos eleitorais por compra‖106.
Contudo, os esforços do complexo IPES/IBAD, embora somente o nome deste último
tenha sido mencionado, não atenderam as projeções de Leandro Maciel, candidato que seria
derrotado por Seixas Dória, dissidente udenista, no pleito realizado dia 07/10/1962.
Impulsionados pelo sentimento anticomunista alinhado ao desejo de reformular o Estado com
base em suas orientações político-econômicas, os ipesianos/ibadianos receberam repasses
financeiros, segundo apontamento do historiador Moraes (1989), de 300 empresas nacionais e
estadunidenses para operacionalizar as atividades que lhes foram designadas.
Todos os materiais produzidos eram distribuídos em ampla escala, alcançando fábricas
e instituições estudantis, consolidando, então, sua infiltração em âmbito popular para acentuar
a campanha de desestabilização empregada contra o domínio populista em exercício. Além de
se antecipar numa minuciosa articulação com movimentos conservadores, como a Campanha
da Mulher pela Democracia (CAMDE), uma das associações femininas responsáveis pela
104

DREIFUSS, op. cit., p. 163.
Ibid.
106
Cf. Gazeta de Sergipe. 04/10/1962. p. 02. O conteúdo da matéria se referiu ao candidato a governador
Leandro Maciel, que liderou uma coalizão intitulada Aliança Nacional Trabalhista (ANT), ―envolvendo a UDN,
o PTB, o PST, parte do PSP e a dissidência do PSD‖ (DANTAS, 2004, p. 138).
105

52

organização das marchas e que desempenhou papel determinante para a acentuação da
propaganda antigoverno, o denominado ―partido político da burguesia‖ atuou conjuntamente,
também, com o bloco interpartidário Ação Democrática Parlamentar (ADP), contumaz
opositor da política nacional-reformista do governo no Congresso, através de financiamentos
para as campanhas daqueles legisladores em 1962, conforme mencionado no início desta
discussão.
Apesar deste maciço repasse financeiro concedido pelo complexo IPES/IBAD ao
bloco ADP - avaliado em cinco milhões de dólares - projetar-se como fundamental para que a
maioria dos candidatos desta coalizão ―liberal-conservadora‖ ocupasse uma significativa
fração dos postos legislativos e executivos estaduais, os resultados do pleito não
corresponderam às expectativas do órgão, pois os representantes da esquerda apresentaram
bom índice de aceitação, compondo, a partir dali, a segunda maior bancada das casas
legislativas107.
Neste sentido, vale ressaltar que no Estado da Guanabara, reduto do udenista Carlos
Lacerda, o petebista Leonel Brizola obteve a maior votação já computada para um deputado
federal naquele período. No que diz respeito aos governos estaduais, embora as siglas PSDUDN tenham logrado êxito na maioria das unidades federativas, os dados levantados por
Dreifuss apontam que ocorreram derrotas estratégicas, como em Pernambuco, Rio Grande do
Sul, Rio de Janeiro e Sergipe108. Esta avaliação nos leva a concluir, em linhas gerais, que o
poder propagandístico do Instituto foi superestimado pelo modelo interpretativo apresentado
por Dreifuss, não sendo, portanto, um fator determinante para a deposição do presidente, uma
vez que ―qualquer mensagem precisa fazer sentido para um grupo social para encontrar
ressonância‖109.
Quanto à ação das demais alianças antijanguistas, como a Sociedade Brasileira de
Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), Liga Feminina Anticomunista (LFA), Liga
da Mulher pela Democracia (LIMDE) e União Cívica Feminina (UCF), principalmente entre
1962 e 1963, pode-se concluir que o complexo IPES/IBAD cooperou, significativamente,
para a sua ampliação em uma campanha cujo objetivo era arregimentar esforços no sentido de
enfraquecer o governo, utilizando como principal mecanismo a construção/propagação do
anticomunismo. Isto posto, a atuação dessas organizações em escala nacional, possivelmente,
107

FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2014. p. 81.
108
Conforme já assinalado, embora integrasse os quadros da UDN, Seixas Dória era líder de uma dissidência
que, posteriormente, alinhou-se a plataforma reformista proposta pelo governo Goulart.
109
FERREIRA; GOMES, op. cit., p. 47.

53

contribuiu para que elas desempenhassem relevante papel na planificação de manifestações
antirreformistas no Estado de Sergipe, especialmente as Marchas da Família com Deus pela
Liberdade.
Com a instauração de uma CPI empenhada em investigar a articulação entre a tríade
composta por IPES/IBAD/Empresas estrangeiras e seus esforços para o financiamento das
campanhas eleitorais de 1962, que representou a extinção do Instituto Brasileiro de Ação
Democrática em dezembro de 1963, o IPES foi absolvido, desenvolveu estratégico papel
colaborativo na construção do golpe civil-militar e fora desativado em 1973. Nesse ínterim,
enquanto uma significativa parcela da classe média arregimentava-se sob a influência dos
núcleos liderados pelo IPES até as vésperas do golpe, as classes populares empunhavam a
bandeira pelas reformas, consideradas por Jacob Gorender (1987)110 como a força motriz para
o desenvolvimento das dinamizações sociais.

2.3.3. Irrupção dos movimentos populares e a inflexão para o espectro esquerdista

A

atmosfera

caracterizada

pela

intensificação

das

mobilizações,

portanto,

materializou-se em dezembro de 1962, quando o convalescente governo anunciou a
implementação do Plano Trienal. Este projeto econômico elaborado por Celso Furtado e San
Tiago Dantas, ministros do Planejamento e Fazenda, respectivamente, representou um
desdobramento do ―governo trapézio‖ instaurado por Goulart, conforme assinalado na
subseção anterior, já que:

No ministério encontravam-se políticos conservadores do PSD, petebistas
―fisiológicos‖ e ―ideológicos‖ e militares ―duros‖. Por outro lado, na sua
formulação teórica, o plano julgava poder harmonizar e satisfazer interesses
contraditórios – de patrões e empregados, de proprietários e trabalhadores
assalariados111.

Em linhas gerais, o novo programa visava combater as altíssimas taxas inflacionárias
para, por conseguinte, reconduzir o país aos mesmos índices de crescimento registrados
durante os anos 50112. Os resultados do plano estratégico, entretanto, mostraram-se
110

Ver: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.
São Paulo: Ática, 1987.
111
TOLEDO, Caio Navarro de. (Org.). 1964: visões críticas do golpe – Democracia e reformas no populismo. In:
Democracia populista golpeada. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. p. 34.
112
Para alcançar o objetivo previsto pela medida, o governo tentou incorrer por ações como limitação de
créditos, congelamento dos salários e cortes nas subvenções públicas.

54

catastróficos, pois a inflação não foi mantida sob controle e as taxas de crescimento se
apresentaram deficitárias. Enquanto o plano demonstrava clarividentes indícios de
ineficiência, já em meados de fevereiro, isto é, trinta dias após o súbito retorno ao
presidencialismo, representações sindicais, bem como agrupamentos orientados por um viés
nacionalista, articulavam às primeiras manifestações de repúdio às medidas empregadas pelos
ministros.
Não obstante, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) emitiu uma nota na qual
classificou tal programa econômico de ―reacionário‖, tendo em vista que ―as consequências
da política de eliminação de subsídios ao trigo e ao petróleo começaram a ter efeitos sobre os
aviltados orçamentos das classes populares‖113. Ao denunciar o flagrante descaso com o erário
dos setores subalternos, além do próprio CGT, entidades como o Pacto de Unidade e Ação
(PUA), Frente Nacional Parlamentar (FPN) e União Nacional dos Estudantes (UNE), sob a
liderança da Frente de Mobilização Popular (FMP), arregimentaram forças no sentido de
combater o plano idealizado pelo governo. Pressionadas pelos trabalhadores, as classes
empresariais, antes satisfeitas com a proposta do plano, também dirigiram copiosas críticas ao
Executivo.
Desta forma, em meio às manifestações grevistas promovidas pela classe trabalhadora,
alinhadas a insatisfação do empresariado e grupos conservadores que alardeavam o
estabelecimento de ―aspirações comunizantes‖ no país, não obstante seu empenho em
desestabilizar a gestão Goulart, o presidente esmorecia gradativamente o edifício
governamental. Ao término do primeiro semestre, dada à profundidade da crise institucional,
posteriormente dilatada em decorrência do episódio no qual solicitou ao Congresso a
decretação de Estado de Sítio114, o presidente intensificou o discurso pelas chamadas
―Reformas de Base‖, um pacote de intervenções que reestruturaria os setores agrário,
previdenciário, educacional, fiscal e eleitoral, inflexionando-se, comedidamente, para a
agenda dos movimentos populares.
Entretanto, os anos 60, tendo em vista as polarizadoras dinâmicas da conjuntura sóciopolítica brasileira, foram marcados por suas dimensões inéditas e característica singulares,
sendo responsáveis por protagonizar uma ampla correlação de forças em nome de agendas e
projetos políticos conflitantes. Neste sentido, quando o Congresso se antecipou em impugnar
113

TOLEDO (1997), op. cit., pp. 34-35.
Em outubro de 1963, com o governo em progressivo isolamento, Goulart solicitou ao Congresso a obtenção
de plenos poderes para ―impedir a grave comoção intestina com caráter de guerra civil‖ (TOLEDO, 1997, p.
37). Os motivos pelos quais o presidente requereu tal intervenção foram a indisciplina identificada nas PM‘s
estaduais, constantes manifestações grevistas que reivindicavam reajustes salariais e existência de governadores
que conspiravam contra a nação, segundo a avaliação de Jango.
114

55

a reforma agrária ainda em fins daquele primeiro semestre de 1963, atendendo, portanto, aos
interesses de latifundiários e setores conservadores da Igreja Católica, por exemplo, o bloco
multifacetado da esquerda, representado, nesta ocasião, por nacionalistas e reformistas,
exerceu volumosa pressão sobre os congressistas e organizou, amparado pelas entidades
representativas camponesas, várias passeatas exigindo a instauração da reforma.
Se Goulart já perdera a base que lhe concedia sustentação no Congresso por anunciar o
pacote de reformas, ele testemunharia um amplo distanciamento dos setores esquerdistas
justamente por postergar a instauração de medidas nacional-reformistas unilaterais, isto é,
intervenções cuja anuência parlamentar não se julgava necessária115. Para além deste quadro
instável, a relação de Jango com os movimentos populares atingiu um nível mais crítico entre
Julho e setembro de 1963, haja vista que ―o governo entrava em choque com os setores da
esquerda nacionalista, pois afastava colaboradores ideologicamente progressistas, combatia os
setores não-pelegos do movimento sindical e condenava iniciativas políticas de esquerda‖116,
acentuando, portanto, o ceticismo dos dois espectros perante as ações do Executivo.
Foi a partir de setembro, também, que a imprensa nacional reorientou seu
posicionamento perante Goulart. Tradicionalmente criticado por periódicos cosmopolitas
como O Estado de São Paulo e Tribuna de Imprensa (RJ), o governo janguista, surpreendido
por um evento insurrecional denominado ―Rebelião dos Sargentos‖117, ampliou o
descontentamento dos meios de comunicação impressos que, outrora, respaldaram a
restauração do presidencialismo e o emprego do Plano Trienal, por exemplo. Para Alzira
Alves de Abreu (2006), a ruptura causada pela sublevação dos oficiais representou a
intensificação no processo de desqualificação do governo e o surgimento, em larga escala, de
matérias advertindo os leitores sobre o estabelecimento do comunismo e a ―cubanização do
país‖118.
Em Sergipe, unidade federativa governada por João Seixas Dória, grande entusiasta
das reformas, tal tendência se tornou receptiva, levando-se em consideração um caso

115

Entre essas medidas, a rigor, estavam ―a regulamentação da lei das remessas de lucros, a nacionalização das
concessionárias de serviços públicos, o monopólio das exportações de café pelo IBC e a ampliação do
monopólio estatal sobre o petróleo‖ (TOLEDO, 1997, p. 36).
116
Ibid.
117
A sublevação conhecida como ―Rebelião dos Sargentos‖ ocorreu em 12 de setembro de 1963, sendo
organizada por cabos, sargentos e suboficiais insatisfeitos com a decisão do Supremo Tribunal Federal em
reafirmar a inelegibilidade destas patentes para órgãos do Poder Legislativo. Esta mobilização foi fortalecida
durante o mandato de João Goulart (1961-1964), pois os graduados participaram diretamente da campanha que
assegurava a nomeação de Jango para assumir o posto presidencial e esperavam o mínimo de suporte do
Executivo, que reprimiu os manifestantes com as tropas do Exército. Para saber mais, ver
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/A_revolta_dos_sargentos.
118
ABREU, Alzira Alves. Imprensa Brasileira – 1930/1990. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1991. p. 57.

56

específico. O periódico A Voz de Lagarto, órgão oficial da prefeitura municipal, era um dos
mais populares do interior sergipano e configurava-se notadamente com uma ferramenta
combativa aos governos estadual e federal. No entanto, até setembro de 1963, destoando um
mês em relação a mudança discursiva empregada pelos impressos das grandes capitais
nacionais, o jornal prescindia de terminologias associadas ao anticomunismo para avaliar
criticamente os desdobramentos daquela conjuntura. Nesse ínterim, contraditoriamente, o seu
perfil editorial publicou uma extensa matéria sobre a visita do governador ao município,
afirmando que ―com a presença do Governador Seixas Dória, vivemos momentos festivos,
com a inauguração de novas e grandes obras de melhoramento‖119.
A partir de outubro, entretanto, o conteúdo das matérias tonou-se mais agressivo,
sobretudo para o Governo Federal, uma vez que verbetes de pregação anticomunista
dimensionavam a inflexão de uma avaliação conjuntural moderada para um discurso ríspido, à
moda dos grandes jornais nacionais. Quando o padre português chamado Alípio Freitas
proferiu um discurso em defesa da reforma agrária, dia 20 de setembro, na Estação
Rodoviária de Aracaju, reunindo aproximadamente 600 pessoas, segundo a publicação, houve
indignação do periódico, que prontamente atribuiu-lhe a pecha de ―sacerdote do diabo‖, em
alusão a sua ―pregação revolucionária‖120.
Entre acusações de idealizar massacres em propriedades rurais pernambucanas e
encontrar-se sob proteção do presidente Goulart, qualificado pelo conteúdo jornalístico como
―bagunceiro-mor‖, o A Voz de Lagarto finalizou a matéria exclamando que ―os homens que
pregam Igualdade, Reforma Agrária e Democracia (sic.) são seus maiores inimigos‖121. Ora,
se o governador Seixas Dória era um contumaz entusiasta das reformas, ao contrário do
próprio jornal, por que o dirigente foi recepcionado com tantas honrarias semanas antes? Tal
posicionamento do periódico lagartense, conforme assinalou Alzira Alves de Abreu (2006),
ilustra o emprego da agressividade discursiva como um desdobramento da sublevação
deflagrada pelos sargentos, acentuando, portanto, a insatisfação com a administração federal e
seus aliados.
Com o ―governo de conciliação‖ enfraquecido e caminhando progressivamente para o
isolamento, sobretudo após a mencionada decisão sancionada pelos congressistas no sentido
de vetar o decreto que previa a suspensão temporária de direitos, garantias e liberdades
individuais em outubro de 1963, solicitada sob a alegação de desarticular o que considerou

119

Cf. A Voz de Lagarto. 08/09/1963. p. 01.
Cf. A Voz de Lagarto. 20/10/1963. p. 01.
121
Ibid.
120

57

como guerra civil122, Goulart, caracterizado por Fico (2014) como ―um homem de fracas
convicções, tendendo à moderação e ao diálogo‖123, foi novamente contra-atacado pelos
setores sociais que defendiam projetos opostos.
Nesse sentido, a construção do imaginário que projetava a instauração de um golpe
partiria tanto das direitas quanto das esquerdas: para estes, por exemplo, o Estado de Sítio era
―uma tentativa clara de se reprimirem os movimentos populares (fechamento do CGT, das
ligas, da UNE, além da prisão de políticos nacionalistas e populares)‖124; já os setores
direitistas, por sua vez, estavam temerosos pela eventual conjuração de um golpe similar
àquele instaurado por Vargas em 1937, pois Goulart estava amparado pelo ―dispositivo
militar‖125. Ora, em um período tão singular como a década de 60, ilações dessa natureza só
ilustram a típica radicalização daquele contexto, que não isenta esquerdistas e direitistas de
convenientes hipérboles.
Existe, ainda, uma terceira interpretação para tal dinâmica, conforme assinala o
jornalista Elio Gaspari (2002), segundo a qual ―o golpe de Jango viria amparado no
‗dispositivo militar‘ e nas bases sindicais, que cairiam sobre o Congresso, obrigando-o a
aprovar um pacote de reformas e a mudança das regras do jogo da sucessão presidencial‖126,
reforçando uma tese na qual Goulart se empenharia na deposição dos governadores Carlos
Lacerda (GB) e Ademar de Barros (SP), pois a intransigência destes dirigentes perante o
governo federal era considerada ―intolerável‖. A unificação destes elementos para formular
uma terceira via de compreensão, contudo, foi refutada por Demian Bezerra de Melo (2014),
que alegou não encontrar ―nenhum tipo de evidência confiável‖127 para conferir profundidade
em tal proposição. Com todos os setores sociais arregimentando forças e exercendo forte
pressão sobre o Executivo Federal, a situação requeria de Goulart um posicionamento brusco
e irredutível, contrariando as adjetivações dos analistas que interpretaram a sua postura como
―conciliadora‖ desde o período no qual assumiu o posto presidencial.
A necessidade de adotar tal comportamento se julgou apropriada, portanto, quando o
presidente sofreu dois acachapantes reveses, representados, a rigor, pela negativa de
congressistas e oficiais paraquedistas em efetuarem a prisão do governador Carlos Lacerda,
122

As circunstâncias pelas quais o presidente chegou a tal conclusão foram especificadas na nota de número 114.
FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 43.
124
TOLEDO, Caio Navarro de. (Org.). 1964: visões críticas do golpe – Democracia e reformas no populismo. In:
Democracia populista golpeada. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. p. 37.
125
Idealizado pelo gal. Argemiro de Assis Brasil, o ―dispositivo militar‖ consistia em uma manobra na qual João
Goulart asseguraria, de forma inédita, a lealdade do oficialato.
126
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 51.
127
MELO, Demian Bezerra de (Org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo.
Rio de Janeiro: Consequência, 2014. p. 166.
123

58

após o dirigente da Guanabara desqualificá-lo em um jornal estadunidense, e, posteriormente,
pelo veto de parlamentares ao pedido para decretar Estado de Sítio, conforme já assinalado.
Fortemente ligado ao movimento sindicalista desde a década de 50, quando fora nomeado por
Vargas Ministro do Trabalho, Goulart, já no entreato de 1963 e 1964, hasteou a bandeira das
reformas e inflexionou-se para uma orientação esquerdista, iniciando a contagem regressiva
que culminaria com a instauração do golpe civil-militar, pois ―o CGT, as Ligas Camponesas e
outras organizações de massa, por mais débeis que fossem, eram como espectros que tiravam
o sono da das forças patronais [grifo nosso]. E, de uma forma ou de outra, Goulart se
identificava com aquele movimento que parte das Forças Armadas queria reprimir‖128.

3. SOB A RUBRICA DO ANTICOMUNISMO CATÓLICO: A CONSOLIDAÇÃO DO
“PACTO SACRÁRIO-COTURNO” MEDIANTE AS MARCHAS DA FAMÍLIA COM
DEUS PELA LIBERDADE E SUAS RESSONÂNCIAS EM SERGIPE

Com base nas reflexões construídas sobre os eventos que dinamizaram a conjuntura
social, política e econômica brasileira entre 1960-1964, empregando como método analítico o
viés interpretativo conjuntural e sua contemplação ao tempo curto, o presente capítulo
consiste em retratar as confluências que culminaram com o golpe civil-militar e os impactos
no establishment sergipano, evidenciando, incialmente, a cisão na estrutura ideológica da
Igreja em âmbito nacional/local e seus esforços para a construção de um imaginário
anticomunista, a partir da interlocução com o conceito de representação.
Em um segundo momento, para efeito de compreensão, há um empenho em descrever
a realização daquele que ficou historiograficamente como o ―Comício da Central‖, realizado
em 13/03/1964, bem como a força reativa direcionada ao ato favorável as reformas: a Marcha
da Família com Deus pela Liberdade. Executada dia 19/03/1964, isto é, seis dias após o
comício pró-governo, esta contramanifestação foi planificada por setores conservadores da
sociedade civil, agrupamentos eclesiásticos e dirigentes políticos impulsionados pela
preconização do ―perigo comunista‖.
Partindo destes pressupostos, portanto, o capítulo se propõe a narrar, também, o modus
operandi aplicado pelos militares para a plena efetivação do golpe, enfatizando, em grande

128

BANDEIRA, Moniz. O Governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978. p. 121.

59

medida, a ―Marcha da vitória‖ transcorrida no Rio de Janeiro e os efeitos destas articulações
na reconfiguração do status quo sergipano, abordando as arbitrariedades praticadas contra
civis e políticos identificados com o projeto reformista. Para tanto, no sentido de ampliar as
possibilidades de depreensão daqueles eventos em escala local, optou-se por utilizar os
depoimentos concedidos por uma intelectual que testemunhou a repressiva ascensão dos
militares ao poder.

3.1. O catolicismo: apontamentos historiográficos sobre a dicotomização ideológica da Igreja
e seus ecos na estrutura clerical sergipana

Entre os meses de março e abril de 1964, sob o influxo de uma conjuntura cerceadora
que se instaurava progressivamente no país, a ala conservadora da Igreja Católica,
impulsionada pela propagação do então nomeado ―perigo comunista‖, iniciou uma ampla
campanha antijanguista, utilizando programas radiofônicos e periódicos que circulavam
diariamente nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.
Em um artigo publicado no livro intitulado História Cultural: experiências de
pesquisa129, por exemplo, organizado pela professora Sandra Pesavento, a historiadora Carla
Rodeghero retrata a construção do imaginário anticomunista no Brasil entre as décadas de 40
e 60, elucidando como os EUA participaram ativamente deste processo. Noutra produção130, a
autora atesta que no interior desta construção imagética católica, por definição, há uma
constante associação entre a figura do diabo - a quem, por razões óbvias, os códigos religiosos
combatem ostensivamente - e o próprio comunismo, pois esta vertente política, ideológica e
social representava, segundo tal avaliação, o caminho para ―suprimir‖ o progresso da
civilização cristã-ocidental. Estes estudos, portanto, antecipam-se em dimensionar,
pragmaticamente, os embates inculcados nas polarizadas bases ideológicas do catolicismo
brasileiro.
Posto isto, conforme afirmação de Presot (2004), a atuação do setor conservador desta
instituição religiosa em momentos efervescentes na política nacional não representava, de
fato, uma dimensão inédita, haja vista que tal agrupamento já demonstrou historicamente,
conforme assinala a autora, sinuosas aproximações com as forças patronais. Com base em
129

Ver: RODEGHERO, Carla Simone. Contribuições ao estudo do anticomunismo sob o prisma da recepção.
In: PESAVENTO, Sandra (org.). A História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2003.
130
Ver: ________________________. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e Igreja Católica no Rio
Grande do Sul (1945-1964). 2 Ed. – Passo Fundo: UPF, 2003.

60

uma premissa na qual Aline Coutrot (1996)131 depreende que a Igreja, enquanto entidade
milenar, sempre esteve empenhada em institucionalizar a moral individual e coletiva sob a
alegação de transformar a submissão dos fiéis num dever, não é inapropriado considerar que
estas diretrizes foram deliberadamente conjuradas para justificar e legitimar a ação política
praticada pelos eclesiásticos conservadores em 1964. No entreato que corresponde o fim dos
anos 1950 e princípios de 1960, contudo, uma fração da estrutura clerical se inflexionou para
tendências de orientação reformista, polarizando a configuração política da instituição e
constituindo, desse modo, a chamada ―esquerda católica‖.
Este momento de ruptura, que se processou graças às contribuições do Papa João
XXIII em 1962, evidenciando uma importante redefinição no opus operatum da Igreja,
apresentou fortes ressonâncias no Brasil e intensificou a atuação de entidades como o
Movimento de Educação de Base (MEB), Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Ação
Popular (AP), que promoveram uma aproximação entre Igreja e laicato.
De acordo com Dênis de Moraes (1989), a mais emblemática medida para corporificar
o envolvimento da Igreja com movimentos sócio-políticos foi o Concílio do Vaticano II132, no
qual, dentre outras deliberações, os membros de 200 prelados decretaram a emancipação da
instituição religiosa em relação aos poderes instituídos. Paulo César Gomes (2014)133
acrescenta,

ainda,

que

algumas

importantes

reformas

também

propiciaram

a

―institucionalização‖ de ações inflexionadas ao progressismo, como as encíclicas Mater et
Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), cuja autoria foi atribuída, também, ao pontífice
italiano. Entretanto, ao analisar a receptividade da base clerical conservadora do país no que
diz respeito às novas medidas, é possível constatar uma contumaz preocupação do grupo que,
conforme análise de Rodrigo Patto Sá Motta (2002)134, considerou o crescimento do
reformismo como parte de um ―plano soviético‖ para desestabilizar as bases do catolicismo.
No sentido de compreender tamanha aversão a corrente progressista, portanto,
entende-se como pertinente promover interlocuções com o conceito de representação,

131

Ver: COUTROT, Aline. Religião e política. In: RÉMOND, René (org.). Por Uma História Política. Rio de
Janeiro: UFRJ, FGV, 1996.
132
O Concílio do Vaticano II, conforme prescrição do Direito Canônico, consistiu em uma reunião ecumênica da
Igreja Católica convocada no dia 25/12/1961 pelo Papa João XXIII, através da bula Humanae Salutis. O
Concílio fora realizado durante quatro sessões e se estendeu até 1965, quando a Igreja estava sob o papado de
Paulo VI. Para saber mais, ver: COSTA, Lourenço (org.). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II
(1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997. (Coleção Documentos da Igreja).
133
Ver: GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da
espionagem. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
134
Ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o "perigo vermelho": o anticomunismo no Brasil
(1917-1964). São Paulo: Perspectiva; FAPESP, 2002.

61

pressuposto ressignificado e formulado por Roger Chartier (1990)135. Como um dos objetivos
deste trabalho é, também, tornar inteligível a conformação anticomunismo católico,
fortalecido com a ascensão do progressismo e utilizado enquanto válvula propulsora para a
rigorosa planificação e execução das marchas em Sergipe, é apropriado incorrer por este
conceito-chave da História Cultural (HC).
Não obstante, para o autor francês, que absorveu as contribuições bourdieudianas e
orientações alinhadas a Psicologia Social, ressignificando, em grande medida, suas reflexões,
o objeto de estudo delegado a NHC está relacionado ao exercício de identificar os meios pelos
quais uma realidade é construída, pensada e dada a ler em diferentes espaços e
circunstâncias136. Neste esteio de reinterpretações, a rigor, as representações propostas por
Chartier consistem em um conjunto de ―de variáveis segundo as disposições dos grupos ou
classes sociais; aspiram à universalidade, mas sempre são determinadas pelos grupos que as
forjam‖137.
Partindo destes apontamentos conceituais, a construção do imaginário anticomunista
sob a ótica dos conservadores, fruto da operacionalização desta definição à Chartier, estava
pautada, também, em admoestações associadas ―ao fim da família, a permissividade sexual e
moral, a desagregação de todos os valores cristãos e ocidentais e, com isso, o fim da própria
instituição católica‖138, ajustando todo um campo interpretativo às conveniências daqueles
eclesiásticos sintonizados com o conservadorismo religioso. Esta agressividade discursiva
demonstrava, desde já, o esboço da relação colaboracionista entre a instituição - ou parte dela
- com o regime autoritário, explicitando o prenúncio da ostensiva campanha anticomunista
propagada pela ala conservadora.
Em Sergipe, a configuração de matizes ideológicos opostos que permeavam o país se
refletia, também, nos alicerces do catolicismo praticado neste pequeno estado. Não obstante,
um grupo hierárquico estava ligado ao monsenhor Luciano Cabral Duarte, simpatizante e
colaborador da nova ordem que estava em vias de consolidação139, enquanto o outro
agrupamento manteve-se instruído sob a égide do Arcebispo D. José Vicente Távora,

135

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
Ibid., p. 16.
137
Ibid., p. 17.
138
PRESOT, Aline Alves. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 64. Dissertação
(Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2004. p. 41.
139
Ibarê Dantas (2014) ainda salienta que, além de Duarte, a coalizão incluía D. José Brandão de Castro, bispo
de Propriá, cidade que abrigava uma das principais Dioceses de Sergipe . Em 1973, o eclesiástico se converteria
em um obstinado defensor dos direitos de trabalhadores rurais e índios. Ver: DANTAS, Ibarê. A tutela militar
em Sergipe (1964-1984). São Cristóvão-SE: EDUFS, 2014. p. 30.
136

62

eclesiástico progressista e obstinado intermediador da aproximação dos leigos com a Igreja.
Antes de conferir prosseguimento aos debates sobre as dicotomias ideológicas incrustadas na
estrutura eclesiástica sergipana, contudo, julgo pertinente analisar a trajetória destas duas
referências do campo religioso local a partir de 1960140, evidenciando pragmaticamente suas
trajetórias até 1964, pois não é objetivo deste trabalho construir relatos biográficos factuais
destes personagens141.
Para Eduardo Augusto Silva (2017), ―de todos os (grifo nosso) personagens da
História Contemporânea da Igreja Católica em Sergipe, sem sombra de dúvidas, Dom
Luciano Cabral Duarte está entre os (grifo nosso) mais controversos‖142. Compreendido como
portador de bom trânsito em sua esfera profissional ao estabelecer estreitas conexões entre
religião, educação e cultura em Sergipe, Cabral Duarte ampliou seu prestígio para o âmbito
nacional, pois, conforme assinala o autor, tamanho reconhecimento se constituiu ―por sua boa
redação e percepção dos acontecimentos descritos em suas crônicas sobre a Europa‖143,
quando publicou o livro intitulado Europa e Europeus em 1961, despertando a atenção da
revista nacional O Cruzeiro, cujo corpo editorial endereçou-lhe um convite para elaborar
crônicas sobre o Concílio de 1962, evento no qual exerceu a atribuição de correspondente
daquele periódico.
Durante sua experiência como jornalista, o monsenhor, nomeado Bispo Auxiliar em
1966, antecipou-se em descrever os desdobramentos mais notáveis daquele evento e,
incorrendo pelo subjetivismo que lhe era peculiar, com base na análise de Silva (2017),
dedicava uma significativa propriedade da página veiculada pela revista que o contratou, em
grande medida, para discutir sobre algumas questões evidenciadas nas sessões conciliares.
Entre entrevistas e relatos que versavam sobre a participação dos bispos brasileiros naquele
Concílio – Dom Hélder Câmara foi um dos principais -, a comunidade sergipana era
periodicamente atualizada acerca dos eventos conciliares sob o prisma de Cabral Duarte, que
se transformaria em um estratégico cooperador da ordem autoritária instituída no país em

140

A opção por narrar a trajetória desses dois personagens a partir de 1960 se julga pertinente, pois foi este ano
que marcou a criação da Arquidiocese de Aracaju, intensificando, portanto, a participação da Igreja nas
atividades desenvolvidas com o tecido social local.
141
Para informações mais detalhadas sobre a trajetória destes dois atores, ver: SANTANA, Glêyse Santos. A
guinada da Igreja Progressista em Sergipe: o bispado de Dom José Vicente Távora (1958-1970). Dissertação
(Mestrado). Centro de Educação e Ciências Humanas – Núcleo de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2011; SILVA, Eduardo Augusto Santos. José Luciano Cabral
Duarte e as ressonâncias do Concílio do Vaticano II em Sergipe (1962-1971). Dissertação (Mestrado). Centro
de Educação e Ciências Humanas - Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Sergipe. São Cristóvão, 2017.
142
. SILVA, op. cit., p. 29.
143
Ibid., p. 44.

63

1964. Não obstante, em meio a um ostensivo cenário de irrupção político-ideológica entre
1962 e 1963, conforme apontamentos da antropóloga Joana Morato (2013)144, Cabral Duarte
já demonstrava sua filiação ao viés conservador quando:

[...] criou um conjunto de medidas para controlar a JUC, como, por
exemplo, a proibição do envolvimento de membros em questões políticas,
com discussões voltadas para a ―ação católica‖ e não para a ―ação social‖,
pois esta seria a função do Estado e não da Igreja145.

Em contrapartida, a trajetória de Dom José Vicente Távora, o ―bispo dos operários‖,
segundo a adjetivação do padre Isaías Nascimento (2008)146, confunde-se com o período no
qual Sergipe testemunhou sua tentativa de empregar as orientações conciliares propostas pelo
relevante encontro ecumênico realizado em 1962, bem como seu empenho em instituir a
politização dos leigos para que estes auxiliassem os padres durante o processo de
evangelização. Este fragmento textual, no entanto, não pretende triunfalizar às ações
individuais deste personagem histórico em detrimento do modus operandi atribuído a Cabral
Duarte, que, independentemente de sua cumplicidade com o regime militar, contribuiu
significativamente para o desenvolvimento da intelectualidade sergipana, pois ao regressar a
Aracaju, tendo em vista sua incursão por terras europeias para fins acadêmicos, o religioso:

[...] reocupa seus antigos encargos como professor e diretor da Faculdade de
Filosofia (FAFI), diretor do jornal A Cruzada, capelão da tradicional Igreja
de São Salvador, assistente eclesiástico da JUC e Liga Universitária Católica
(LUC), diretor do Apostolado Radiofônico de Sergipe, que se constituiu no
147
embrião da Rádio Cultura .

Neste sentido, constitui-se de fundamental relevância evidenciar, agora, os esforços
empreendidos por D. Távora para estreitar o vínculo da Igreja com as causas sociais,
pautando-se nas determinações do Concílio, visando demonstrar o esboço daquelas dissensões
ideológicas constatadas em 1964 e fortalecidas com o advento da ruptura institucional.

144

Ver: MORATO, Joana. Homens da Igreja: A Participação de Leigos Católicos na Política Partidária em
Aracaju. (Mestrado em Antropologia), Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Antropologia da Universidade
Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2013.
145
Ibid., p. 61.
146
Ver: NASCIMENTO, Isaías. Dom Távora, o bispo dos operários: um homem além de seu tempo. São
Paulo: Paulinas, 2009.
147
SANTANA, Glêyse Santos. A guinada da Igreja Progressista em Sergipe: o bispado de Dom José Vicente
Távora (1958-1970). Dissertação (Mestrado). Centro de Educação e Ciências Humanas – Núcleo de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2011. p. 80.

64

Em 30/04/1960, com a antiga Diocese aracajuana elevada ao estatuto de Sede
Metropolitana, baseando-se nas diretrizes da Bula Ecclesiarium Omnium, Gleyse Santana
(2011) afirma que ―o Papa João XXIII criou, em Sergipe, duas circunscrições eclesiásticas
que organizacionalmente pertenciam a Província Eclesiástica de Aracaju e ao Conselho
Episcopal Regional Nordeste II do Conselho Nacional de Bispos do Brasil (CNBB)‖148.
Ainda conforme a análise da autora, o mesmo documento, para além de sagrar Dom José
Távora como arcebispo, criou as Dioceses de Propriá e Estância149, que permaneceram sob a
batuta dos bispos D. José Brandão de Castro e D. José Bezerra Moutinho, respectivamente.
Participando das sessões conciliares enquanto correspondente da revista O Cruzeiro,
tal como Cabral Duarte, o arcebispo manteve tênues interlocuções com o bispo Dom Hélder
Câmara ao longo do evento, ―sendo que, na maioria das vezes, D. Távora inspirava, com seus
pensamentos, os projetos de D. Hélder‖150. Esta afirmação, portanto, encontra relevante
sustentação quando levamos em consideração o campo de aplicação prática desenvolvido pelo
eclesiástico. Obstinado idealizador de projetos sociais, canalizou suas atenções para o
campesinato local, expandiu o número de paróquias e implantou em cada uma delas a política
de Ação Católica (AC) para promover o desenvolvimento das comunidades.
Em 1961, antes de sua viagem ao Vaticano, empenhou-se na implantação do
Movimento de Educação de Base (MEB) - que contava com as colaborações de movimentos
leigos como JOC e JUC -, no qual promovia atividades para educar e alfabetizar a população
rural, ―valorizando a defesa da cultura popular e formando uma visão crítica do contexto
social do homem do campo‖151. Em 1962, no âmbito do mais importante ano conciliar,
articulou a criação do projeto intitulado Promoção do Homem do Campo de Sergipe
(PRHOCASE), através do qual concedia terras férteis a lavradores sem-terra para promover a
agricultura de subsistência. Para além destas inciativas, D. Távora também:

[...] trouxe para Sergipe a Comissão de Organização da Triticultura Nacional
e Armazenamento Geral (COTRINAG), com finalidade de criar celeiros de
estocagem de grãos, beneficiando os municípios de Itabaiana, Nossa Senhora
148

SANTANA, op. cit., p. 78.
A Diocese de Propriá exerceu/exerce jurisdição sobre os municípios de Aquidabã, Amparo do São Francisco,
Brejo Grande, Canhoba, Canindé do São Francisco, Cedro de São João, Gararu, Graccho Cardoso, Ilha das
Flores, Itabi, Japaratuba, Japoatã, Malhada dos Bois, Monte Alegre, Muribeca, Neópolis, Nossa Senhora da
Glória e Nossa Senhora de Lourdes. Já a Diocese de Estância, por sua vez, arregimentava os municípios de
Arauá, Boquim, Cristinápolis, Indiaroba, Itabaianinha, Lagarto, Pedrinhas, Poço Verde, Riachão do Dantas,
Salgado, Santa Luzia do Itanhy, Simão Dias, Tobias Barreto, Tomar do Geru e Umbaúba.
150
Ibid.
151
MORATO, Joana. A herança de uma luta: as ações da Igreja Católica brasileira durante a Ditadura Militar
(1964-1985). In: Anais do IV Congresso Sergipano de História & IV Encontro Estadual de História da
Anpuh – O cinquentenário do golpe. Aracaju, vol. 4, 2014. p. 20.
149

65

da Glória e Propriá. Este projeto foi realizado através de parcerias com o
Banco do Brasil, Arquidiocese de Aracaju e as dioceses de Propriá e
Estância152.

No entanto, em 1964, ao compreender o emergente regime autoritário como uma
manobra arbitrária e intransigente, D. Távora recebeu ameaças de prisão, isolando-se no
Palácio Episcopal enquanto ação preventiva para evitar ―depoimentos irritantes‖, conforme
atesta Dantas (2014). Segundo o autor, ainda, o arcebispo ―escapou de maiores hostilidades
por interferência do general Juarez Távora, seu parente‖153.
Se, por um lado, a ala progressista da Igreja estava empenhada na construção de uma
rede voltada para o desenvolvimento de ações sociais, seja em âmbito internacional, nacional
ou estadual, os integrantes da diretriz conservadora organizavam, dentre tantas outras medidas
combativas a João Goulart, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, demonstrando
veementemente a relação de colaboracionismo entre os perpetradores do golpe civil-militar e
parte da Igreja Católica, numa clarividente consolidação do ―pacto sacrário-coturno‖.

3.2. Entre o Comício da Central e as Marchas com Deus pela Liberdade em São Paulo: a
polarização do catolicismo e o fortalecimento da ação conspiratória que depôs João Goulart

Decorridas as campanhas de desestabilização empenhadas em enfraquecer o governo
Goulart e, sobretudo, obstruir suas aspirações continuístas, deu-se início a escalada
conspiratória que culminou com o impedimento do presidente, marcando mais um momento
significativo de ruptura institucional no país. De acordo com Fico (2014), alguns analistas
compreendem que as atividades voltadas à conspiração representaram um desdobramento
natural das articulações de desestabilização, desenvolvidas sob a batuta do complexo
IPES/IBAD e retratadas no capítulo anterior.
No entanto, ainda conforme proposição do autor, é possível distinguir ambos os
esforços. Ao contrário da desestabilização, movimento caracterizado pela organização e
sofisticação que prescindiu do maciço envolvimento militar, a conspiração responsável por
alijar Goulart ―foi difusa e resultou em ação militar que se desencadeou sem o conhecimento
dos principais chefes militares‖154, acentuando-se, portanto, a partir de 1963. Ela contou, por
razões óbvias, com a participação civil, porém, como requereu o emprego da força para sua
152

MORATO, op. cit., p. 21.
DANTAS, Ibarê. A tutela militar em Sergipe (1964-1984). São Cristóvão-SE: EDUFS, 2014. p. 40.
154
FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 31.
153

66

plena efetivação, a participação dos atores militares foi decisiva. Não obstante, enquanto a
oficialidade esboçava uma tentativa de alijar Goulart, o dinâmico clima de politização
transcendeu as estruturas institucionais e intensificou seus ecos nas ruas.
Como aderira definitivamente a uma orientação pautada pela agenda esquerdista,
rompendo com a política conciliatória que norteou seu governo, Goulart projetou a realização
de vários comícios pelo país enquanto alternativa de ação para arregimentar apoio popular e,
através desta base social, implementar o programa reformista. O primeiro e único evento
executado no sentido de endossar tal intento foi o Comício da Central, transcorrido em 13 de
março daquele atribulado 1964.
Em plena sexta-feira, utilizando o mesmo palco no qual Getúlio Vargas anunciou a
instauração do Estado Novo, as forças legalistas do Exército asseguraram a organização do
comício, realizado na Praça da República (ao lado da Central do Brasil), centro do Rio de
Janeiro, a fim de unir as bases pró-governo que se caracterizaram por protagonizar fragorosos
embates – o fato que melhor ilustrou tamanha dissensão foi, em grande medida, o rompimento
entre João Goulart e seu cunhado Leonel Brizola. Mobilizando ―200 mil pessoas no maior
comício da história política do país‖155, a manifestação prevista para as dezessete e trinta já
pavimentava o caminho para discursos e apelos que se estenderiam pelas próximas oito horas.
Entre os quinze oradores que se apresentaram no comício, embora alguns jornais
quantifiquem dez, vale destacar, para além do radical discurso brizolista, os pronunciamentos
dos governadores Miguel Arraes (PE) e Seixas Dória (SE). O periódico Gazeta de Sergipe, já
citado em algumas discussões deste manuscrito e até então orientado por um viés reformista,
destacou a intervenção do dirigente sergipano, cuja participação não obteve tanto destaque
nos noticiários dos periódicos cosmopolitas que realizaram a cobertura do evento.
Segundo o impresso, conhecido por construir ―um esquema para eleger Seixas Dória‖
nas eleições gerais de 1962, conforme assinala Carla Darlem (2015), o governador ―afirmou
que, logo ao chegar em Aracaju, assinará um decreto desapropriando as terras marginais das
rodovias estaduais, nos mesmos moldes do decreto da SUPRA‖156. Este posicionamento, dois
dias após o comício pelas reformas, causaria grande insatisfação aos latifundiários de Lagarto.
Conforme matéria veiculada pelo jornal Folha Popular, cujo viés também se inflexionava
para o nacional-reformismo, os proprietários de terra daquela cidade ―organizaram um
precipitado encontro de latifundiários uma reunião do conhecido ‗Partido do Boi‘‖157.

155

Cf. Gazeta de Sergipe. 14/03/1964. p. 01.
Ibid., p. 02.
157
Cf. Folha Popular. 21/03/1964. p. 01.
156

67

Na ocasião, o perfil editorial afirmou que os debates foram caracterizados, sobretudo, por
pregações reacionárias e complementou que, mesmo com todos os esforços empreendidos
pelas forças patronais lagartenses, ―o regime de latifúndios envelheceu e ninguém poderá
evitar sua morte‖158. Os eventos subsequentes, entretanto, não corresponderam aos
prognósticos do jornal e aquela reunião acirraria os ânimos para que deposição de Dória fosse
instituída semanas depois.
Embora os oradores tenham sido recepcionados com entusiasmo pelo público presente,
o discurso mais aguardado daquela noite estava sob a batuta de João Goulart. Ao contrário do
correligionário Brizola, cuja ríspida oratória atacou sumariamente o Congresso, Jango
incorreu por um tom moderado e evidenciou os problemas acumulados com os congressistas,
que inviabilizavam a instauração de uma reforma constitucional.
Não obstante, o presidente aproveitou aquele momento oportuno para anunciar ―a
assinatura da desapropriação das áreas rurais com mais de cem hectares localizadas nas
margens das rodovias e ferrovias‖159 e condenou o uso da religião na máquina de propaganda
anticomunista, causando, desse modo, grande consternação nos setores conservadores da
sociedade civil. Como resposta, cada família da zona sul carioca acendeu uma vela para
iniciar uma escalada contra a ―subversão‖ constatada no pronunciamento presidencial,
conforme a avaliação da época.
E o discurso foi além: para a surpresa da maioria, que o ovacionara pelo cumprimento
dos decretos previstos pela Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), Goulart
determinou a encampação das refinarias particulares, representando o momento de maior
efusividade daquela noite. Era o pretexto para a direita golpista articular a conspiração contra
o presidente.
Extenuado, Goulart desceu do palanque com a convicção de que aquele comício superou
todas as suas expectativas, pois a energia do público o contagiou significativamente. Os
conspiradores, entretanto, depreenderam aquela manifestação como uma manobra
desesperada do presidente para implementar as reformas sob quaisquer circunstâncias.
Tamanha suspeita se concretizou quando o chefe do Executivo enviou uma carta ao
Congresso, na qual exigiu maiores poderes para governar e endossou o discurso do inflamado
Brizola, que conclamou o estabelecimento de uma Assembleia Constituinte.

158

Ibid.
PRESOT, Aline Alves. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 64. Dissertação
(Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2004. p. 56.
159

68

Como força reativa a ousada postura empregada por Goulart, o intransigente Congresso
rechaçou qualquer possibilidade de reaproximação e ignorou os desígnios presidenciais. No
entanto, a reação mais surpreendente, antes da conspiração capitaneada pelos militares se
concretizar, emergiu dos agrupamentos civis, empresariais e eclesiásticos. Para Marcos
Napolitano (2014), a partir do momento no qual o comício do dia 13 adquiriu uma conotação
positiva, a faceta reacionária se esboçava como uma força ―popular‖ de oposição ao programa
reformista do governo.

a direita tampouco ficaria em casa, amedrontada. Era preciso responder à
mobilização reformista com uma mobilização de rua maior ainda, que
fizesse com que donas de casa, empresários, lideranças conservadoras civis e
religiosas, jovens da burguesia e pequena saíssem às ruas para protestar
contra o governo160.

Nesse contexto, os dias que precederam a mobilização das direitas foram marcados pelo
desgaste ideológico de Goulart. Tradicionalmente orientados por um viés conservador, os
jornais cosmopolitas contribuíram vertiginosamente para a intensificação de uma aura
antijanguista. O Estado de São Paulo, por exemplo, dedicou uma página de seu impresso para
retratar as imagens dos comícios realizados por Hitler, Mussolini, Perón e Fidel Castro,
inferindo um esforço de associação com o evento organizado pelas forças de esquerda e
intitulando-o de ―Comício totalitário‖.
Insatisfeito com os ataques que lhe foram desferidos, Goulart se antecipou em rebater as
depreciações, evidenciando, entre outras afirmações, que o rosário, elemento religioso
convertido em símbolo do anticomunismo, não deveria ser conclamado contra o povo e suas
aspirações. Como desdobramento de tamanha escalada, Moniz Bandeira assinala que:
Sob o impacto do apelo religioso e da propaganda anticomunista, ativada
pela imprensa reacionária, considerável parcela da classe média, que a
inflação castigava, derivou para a direita, para engrossar a luta anti-governo.
O equilíbrio das forças se rompeu, o centro, como em todos os momentos de
crise, sumiu e o governo balançou161.

No dia 19 de março, em São Paulo, isto é, seis dias após o comício pró-governo
realizado em terras cariocas, os agrupamentos antirreformistas se emprenharam na
organização da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Deliberadamente escolhida para
160

NAPOLITANO, Marcos. A História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p. 47.
BANDEIRA, Moniz. O Governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978. p. 166.
161

69

transcorrer no dia de São José, padroeiro de instituições como família e Igreja, a manifestação
contou com a presença de 500 mil pessoas, conforme aponta a matéria veiculada pelo jornal O
Estado de São Paulo. As suas origens no Brasil, contudo, remetem aos princípios de 1960.
Precedidas pela Cruzada do Rosário em Família, mobilização cívico-eclesiástica
idealizada pelo padre irlandês Patrick Peyton, ―a estrela do anticomunismo católico‖162, as
marchas que irromperiam pelo país em 1964 gestaram seu embrião a partir de 1962/1963,
quando o religioso europeu organizou a manifestação de ―Desagravo ao Rosário‖ em capitais
como Rio de Janeiro e Belo Horizonte163. Empregando o lema ―A família que reza unida,
permanece unida‖, Peyton promoveu sua pregação anticomunista sobrepujando o rosário
enquanto ferramenta combativa ao tão alardeado ―perigo comunista‖, induzindo João Goulart
a dirigir contumazes críticas aos simpatizantes dos discursos proferidos pelo padre.
No Rio de Janeiro, em dezembro de 1963, durante a realização da segunda cruzada
naquela cidade, conforme afirma Presot (2004), as estimativas do comitê organizador
apontam que um milhão e quinhentas mil pessoas compareceram a pregação em ―Desagravo
ao Rosário‖. Contudo, independentemente da veracidade desses dados estatísticos, é oportuno
afirmar que as bases para a planificação das marchas estavam lançadas a partir daqueles
eventos. A autora, ainda, complementa que:

As diferentes versões acerca da arquitetura das Marchas da Família com
Deus pela Liberdade convergem ao delegar a irmã Ana Lourdes (Lucília
Batista Pereira, neta de Rui Barbosa) e ideia do Movimento de Desgravo ao
Rosário [...] Tal iniciativa foi compartilhada com o deputado Cunha Bueno,
que indignado com o discurso proferido por Goulart na Central do Brasil em
13 de março, procurou a irmã, e recebida a sugestão, partiu naquela mesma
noite para os preparativos da Marcha Paulista164.

Impulsionados pela aversão ao comunismo, portanto, os organizadores da marcha
paulista, manifestação que adquiriu tal nomenclatura por expressar o conceito de agregar
participantes circunscritos às demais doutrinas judaico-cristãs e afro-brasileiras, embora os
evangélicos tenham se empenhado na organização de mobilizações similares165,
estabeleceram o dia 19/03/1964, por motivos já mencionados, como momento apropriado para
―reagir‖ ao comício pelas reformas, consolidando uma relação de condescendência entre
162

NAPOLITANO, op. cit., p. 49.
Antes de chegar ao Brasil, a manifestação incursionou por cidades como Londres, Sydney e Washington.
164
PRESOT, op. cit., pp. 57-58.
165
As ―marchas‖ evangélicas intitulavam-se Cruzada Cristo Esperança Nossa, uma campanha protestante
organizada por religiosos presbiterianos. Para coletar mais informações sobre o tema, ver SANTOS, Ermerson
Porto. 1964 em Sergipe: golpe civil-militar, protestantismo e a Cruzada Cristo Esperança Nossa. 2017. 156 f.
Dissertação (Pós-Graduação em História) - Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2017.
163

70

parcelas da sociedade civil/eclesiástica e as forças militares golpistas. Com a expectativa de
superar o número de participantes presentes em plena mobilização pró-Jango, a marcha
ocorrida em São Paulo concentrou-se, inicialmente, na Praça da República e se estendeu até a
rua Barão de Itapetininga, perpassando pela Praça Ramos de Azevedo, Viaduto do Chá, Praça
do Patriarca, rua Direita e convergiu para a simbólica Praça da Sé, às 18h166.
E os prognósticos do ―comitê organizador‖ se concretizaram. De acordo com o periódico
Folha de São Paulo, que também atuava como plataforma midiática antirreformista e
reacionária, a capital paulista parou ―e foi a praça pública – porque a praça é do povo – numa
mobilização que envolveu meio milhão de homens, mulheres e jovens, também de outros
estados: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade‖167.
Em meio ao surpreendente quantitativo de participantes, algumas senhoras, carregando
consigo o rosário, oravam pelo impedimento do presidente, bem como pelo iminente
afastamento das suas ―aspirações comunizantes‖, dimensionando o quão polarizado era o
imaginário político pré-golpe. As faixas carregadas por muitos presentes, também, ilustravam
a grave atmosfera de radicalização. Algumas delas, em linhas gerais, expunham dísticos como
―Abaixo os entreguistas vermelhos!‖, ―Reformas pelo povo – não pelo Kremlin!‖ e ―Renúncia
ou impeachment!‖168.
Recepcionados com lenços e bandeiras, os oradores proferiram seus discursos nas
imediações da Igreja localizada na Sé. Entre eles, ainda segundo a matéria veiculada pelo
jornal Folha de São Paulo, estavam os senadores Auro Moura de Andrade e padre Benedito
Mário Calasans; os deputados Plínio Salgado, ex-líder da Ação Integralista Brasileira (AIB), e
Conceição da Costa Neves; além dos governadores Carlos Lacerda e Adhemar de Barros.
Em Sergipe, especialmente no interior, a marcha paulista repercutiu de forma
antagônica. O periódico A Defesa, sediado em Propriá e operacionalizado sob a batuta do
bispo D. José Brandão de Castro, zeloso colaboracionista do golpe civil-militar, veiculou as
primeiras demonstrações de apoio àquelas marchas transcorridas em março na edição
publicada dia 15 de abril, já que era distribuído quinzenalmente/mensalmente. Corroborando
com a premissa construída por Moniz Bandeira (1978), para quem o apelo religioso presente
na propaganda anticomunista preconizada pela Igreja contribuiu significativamente para a
legitimação da ruptura institucional, o jornal propriaense defendeu a realização daquelas
manifestações cívico-eclesiásticas ao externar que:

166

Cf. Folha de São Paulo. 20/03/1964. p. 08.
Ibid.
168
Ibid., p. 09.
167

71

a Pátria livre do credo vermelho e da sua prole macabra: terror,
despersonalização, crimes, roubos, escravidão, desespero, morte. Não
queremos muros da vergonha, nem ―paredon‖. Queremos direito, justiça,
paz, respeito às leis, amor fraterno, trabalho, reformas aos clarões do
Evangelho, assistência social, Institutos de Previdência funcionando
perfeitamente bem [...] E, graças a Deus, são estes propósitos que animam os
nossos patrícios, responsáveis pela gloriosa revolução. Não haverá clima
para futuras atividades comunistas, se assim for consolidada a vitória deste
Estado Novíssimo. Continue a proteger-nos, Virgem Mãe Aparecida. E...
para frente, Brasil marcha, com Deus pela liberdade dos filhos de Deus169.

Já o jornal Folha Trabalhista, fundado em Estância e cujo perfil editorial operava sob a
batuta do petebista Francisco Macedo170, em sua edição veiculada dia 29/03/1964, reproduziu
uma nota publicada pela Ação Católica Brasileira (ACB), organização composta por leigos
alinhados aos ideais reformistas propagados pelo Papa João XXIII, na qual evidenciou ―o
profundo constrangimento ante a exploração da fé e do sentimento religioso do povo
brasileiro e a utilização política da religião, criando um clima de divisão na Igreja a partir de
diferenças existentes no plano temporal‖171.
O ―manifesto‖, segundo aponta a matéria, complementou que ―estas atitudes são
contrárias ao espírito de unidade vivido pelos cristãos neste tempo da Igreja em Concílio‖172,
acirrando, portanto, as dissensões em um período tão singular na história do país. Neste
interregno, outro periódico estanciano intitulado O Sim Sim, órgão da União Redentora da
Juventude de Estância (URJE), cuja equipe redatora era liderada pelo polêmico padre Silveira,
destacava-se por sua postura ambígua, tornando um exercício bastante paradoxal determinar
qual seria, de fato, sua orientação.
Em janeiro, antes das marchas transcorrerem em âmbito nacional e estadual, por
exemplo, o jornal veiculado irregularmente publicou um texto assinado por Silveira, no qual o
religioso posicionou-se favoravelmente a instauração das reformas estruturais propostas por
Goulart, acrescendo as seguintes proposições:

Lutar pela politização e conscientização do povo. Lutar pelas reformas de
estrutura, e para que elas se processem em um clima bem cristão, e tragam
uma superação progressiva dos males sociais. Lutar pela educação de base,
169

Cf. A Defesa. 15/04/1964. p. 01.
Segundo o CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, Francisco Macedo de Araújo foi ―um proprietário agrícola,
comerciante de madeiras e jornalista‖. Exerceu os cargos de deputado estadual e federal pelo PTB entre 1947 e
1966,
ano
no
qual
veio
a
óbito
em
pelo
exercício
do
mandato.
Ver:
http://www.fgv.br/Cpdoc/Acervo/dicionarios/verbete-biografico/francisco-de-araujo-macedo
171
Cf. Folha Trabalhista. 29/03/1964. p. 01.
172
Ibid.
170

72

pelas escolas radiofônicas, pelo sindicalismo rural e pela educação de grupo
ou comunidade, para que nossa arcaica e humilhante estrutura agrária seja
superada, nossos campos se transformem por um movimento consciente
partido de base (sic.) e nossos rurícolas se libertem [...]173.

Já na quarta página da mesma edição, a equipe redatora transcreveu um artigo
assinado pelo Frei Carlos Josaphat, um teólogo dominicano brasileiro engajado em
movimentos sociais e co-fundador do impresso Brasil Urgente, que qualificaria,
posteriormente, a marcha paulista de ―desfile café-society‖. Escrito sob o título de ―Mão
Limpas‖, o texto do religioso mineiro analisava uma peça escrita por Jean Paul Sartre,
denominada ―A Engrenagem‖, cujo enredo se baseava nos desdobramentos de revoluções
deflagradas em países subdesenvolvidos. Inscrevendo o conteúdo daquela obra no contexto
latino-americano, Josaphat e Sartre, analista e autor, respectivamente, pareciam antever o
establishment que seria instaurado no Brasil a partir de abril, quando assinalaram que ―no
decorrer das cenas, a revolução apodrece, decai do plano econômico-social, devora seus
líderes autênticos, tornando-se um episódio militar‖174.
Considerando que o movimento golpista foi qualificado de ―Revolução‖ pelos seus
artífices e apoiadores, tendo, posteriormente, os principais líderes civis depostos ou
submetidos ao exílio, as passagens de Sartre, elegantemente interpretadas sob o crivo do
religioso brasileiro, assemelham-se àquelas quadras de versos escritas por Nostradamus, nas
quais o médico francês parecia profetizar alguns eventos político-militares significativos.
Contudo, o principal objetivo daquela reflexão era conclamar alguns idealistas
pejorativamente denominados ―intelectuais de mãos limpas‖, pois, ao imbricar o princípio
cristão de fraternidade com o idealismo pragmático daquele grupo privilegiado, Josaphat
concluiu que a postura mais condigna naquele combativo momento seria ―mãos limpas e
calejadas [...] Participação real nas reivindicações dos oprimidos – tudo isso sem a
contaminação do ódio, do ressentimento, sem o contágio das atitudes negativas e
fraticidas‖175.
À medida que os rearranjos político-ideológicos se inflexionavam para a sublevação
dos conspiradores militares, o jornal estanciano demonstrava sua faceta reacionária,
surpreendendo, inclusive, este autor que vos escreve. É sabido que o padre Almeida,
responsável pela transcrição, elaboração e avaliação d‘alguns artigos, manteve uma bem
articulada postura crítico-reflexiva contra a ação capitaneada por certos núcleos reacionários,
173

Cf. O Sim Sim. (s/d) Janeiro de 1964. p. 01.
Ibid., p. 04.
175
Ibid.
174

73

conforme foi possível constatar naquela citação anterior. Ora, se Goulart e suas propostas
reformistas convergiam com todas aquelas pregações estabelecidas pelo religioso, o que
explica tamanha ruptura? As edições correspondentes aos meses de março e abril, em certa
medida, podem contribuir para a ampliação desse horizonte interpretativo.
Em conformidade com uma rigorosa propaganda anticomunista sob a liderança da
hierarquia católica conservadora, o órgão da URJE, agora destoando discursivamente em
relação ao conterrâneo Folha Trabalhista, veiculou depreciativas análises acerca da gestão
Goulart e consolidou, desse modo, a inquietante ambiguidade que permearia seu perfil
editorial, afirmando que:

No dia 25 de agosto de 1961, a nação foi surpreendida com a renúncia de
Jânio Quadros. Então, de lá para cá, 1º de abril de 1964, o Brasil viveu horas
mortas em busca de sua liberdade, porém esta liberdade chegou com a
vitória espetacular e miraculosa, sem derramamento de sague brasileiro, com
a Revolução Democrática de um Brasil Cristão176.

Esta flagrante inconsistência ideológica contribuiu, em certa medida, para acentuar
uma correlação de tendências nas engrenagens da própria Igreja sergipana, dividida em dois
grupos diametralmente opostos que galvanizavam ideários de distintos matizes, conforme foi
possível examinar. Neste hiato caracterizado pela dissensão das forças religiosas, contudo, as
atividades conspiratórias para apear João Goulart do poder adquiriam maior amplitude.

176

Cf. O Sim Sim. (s/d) Março/Abril de 1964. p. 02.

74

3.3. O longo 31 de março: desdobramentos do movimento civil-militar que culminou com o
golpe de 1964177

Enquanto progressistas, conservadores, reformistas e antirreformistas acentuavam o
quadro de tensões, as marchas irrompiam pela região sul/sudeste desde o dia 19 de março178 e
as esquerdas ignoravam o ímpeto destas manifestações179, a conspiração para destituir Goulart
se materializava com base em suas precipitadas decisões.
A etapa ―inaugural‖ deste levante, articulado já no dia 20 de março, foi uma nota
reservada emitida pelo general Castello Branco, que ocupava o posto de Chefe do Estado
Maior, uma função biograficamente destacada e operacionalmente inócua, conforme assinala
Gaspari (2004), na qual o oficial ―deixava claro o ultimato ao governo e a senha para o golpe,
embora seu autor ainda hesitasse em assumi-lo de forma proativa‖180.
Segundo Fico (2014), suplementando a análise de Napolitano (2014), os três últimos atos
do presidente acentuaram os esforços empreendidos pelos conspiradores para alijá-lo do
poder. O primeiro deles, em grande medida, foi o retratado episódio da carta encaminhada ao
Congresso, dia 15 de março, quando Goulart exigiu plenos poderes para empregar as
reformas, ultrajando, segundo avaliação do autor, a esfera de competência delegada àquela
instituição política. Posteriormente, no dia 25 daquele mês, ―completar-se-iam dois anos de
criação da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais (AMFNB), entidade que não
contava com o reconhecimento da Marinha‖181. Para Daniel Araão (2005), tal efeméride
significava que ―o barril de pólvora e a mecha estavam lá, à espera de um fósforo aceso [...] E
quem acendeu foi a AMFNB‖182.
Para além de operarem ―clandestinamente‖, os marinheiros e fuzileiros definiram que o
local da ―rebelião‖ seria uma instalação responsável por abrigar o Sindicato dos Metalúrgicos
do Rio de Janeiro, provocando, por razões óbvias, reação imediata no Ministério da Marinha,
177

As seções 3.3 e 3.4 deste capítulo foram adaptadas em um artigo publicado na Revista Em Perspectiva
[Online]. 2018, v. 4, n. 1, da Universidade Federal do Ceará.
178
Conforme levantamento de Presot (2004), até o dia 31 de março, enquanto o golpe se consolidava, as marchas
transcorreram em sete municípios paulistas e em um município paranaense, a saber: Araraquara (SP - 21/03),
Assis (SP - 21/03), Bandeirantes (PR – 24/03), Santos (SP – 25/03), Itapetininga (SP -28/03), Atibaia (SP –
29/03), Ipauçu (SP – 29/03) e Tatuí (SP – 29/03).
179
De acordo com Ferreira e Gomes (2014), poucas organizações de esquerda se preocuparam, efetivamente,
com as Marchas da Família. Uma das únicas exceções, portanto, foi Dona Neusa Brizola, esposa do líder
nacionalista Leonel Brizola, que convocou uma reunião entre a Liga Feminina da Guanabara e o Movimento
Sindicalista Feminino, visando organizar outro ato articulado por mulheres como resposta às Marchas. No
entanto, o projeto não se concretizou.
180
NAPOLITANO, Marcos. A História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p. 47.
181
FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 50.
182
REIS, Daniel Araão. Ditadura Militar, esquerdas e sociedade. São Paulo: Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p.
31.

75

que proibiu a realização da comemoração. Mesmo com a emissão de ordens expressas para
coibir a ação, aproximadamente três mil membros daquela entidade representativa
compareceram ao local, conforme apontamento do jornal Gazeta de Sergipe183. Sob a
liderança de José Anselmo dos Santos, popularmente conhecido por ―cabo‖ Anselmo, que
posteriormente se transformaria em agente duplo184, os resilientes manifestantes
reivindicavam melhores condições de trabalho, reconhecimento da associação e modificações
nos códigos disciplinares da Marinha.
Em represália, no sentido de autuar e prender os artífices do ato, o ministro Sílvio Mota
autorizou o deslocamento de fuzileiros até o local da manifestação, ―com o apoio de treze
tanques, para invadir a sede do sindicato‖185. Para a surpresa do chefe daquela pasta, o contraalmirante Cândido Aragão, seu comandante, e uma fração de fuzileiros, a rigor, somaram-se
aos três mil manifestantes como gesto de adesão, enquanto os demais comandados retornaram
ao quartel. A reação de Goulart, já definido por alguns historiadores como homem de fracas
convicções, foi marcada pela ambiguidade.
Com efeito, ele decidiu enviar soldados para prender os amotinados e, por conseguinte,
processou uma substituição no comando do ministério ao nomear o almirante Paulo Mário da
Cunha Rodrigues, cuja orientação depreendida como ―esquerdista‖ causava aversão à alta
cúpula da corporação. O recém-nomeado, por sua vez, realocou Aragão no contra almirantado
e os marinheiros/fuzileiros consentiram em ser conduzidos até a detenção provisória, uma vez
que se tornaram receptivos as negociações realizadas com Amauri Silva, ministro do
Trabalho.
Os insurgentes foram liberados à tarde, ratificando as ações de natureza ambígua
conduzidas pelo presidente, e saíram em ―vigília‖ pelas ruas da cidade com destino ao
Ministério da Marinha. Lá, não obstante a afronta pela qual estavam incorrendo, encontraram
o contra-almirante Aragão e carregaram-no nos ombros. Ao cometerem uma grave violação
contra os princípios do comando hierárquico, os anistiados causaram revolta aos demais
membros do Almirantado.

183

Cf. Gazeta de Sergipe. 29-31/03/1964. p. 01.
Conforme os apontamentos de Ferreira e Gomes (2014), o cabo Anselmo se tornou um dos protagonistas
daquela crise porque, meses depois, ampliou as alianças com o governo militar e delatou a polícia política vários
companheiros de profissão, posteriormente torturados e mortos pelas forças de repressão. Tal fato, portanto,
levanta uma tese segundo a qual Anselmo já era um agente infiltrado e patrocinado pela CIA no transcorrer da
rebelião e seu objetivo era, fundamentalmente, criar uma crise na Marinha de Guerra para abalar as estruturas do
convalescente governo Jango.
185
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2014. p. 247.
184

76

Segundo Marcos Napolitano (2014), ―o episódio convenceu os últimos oficiais
hesitantes das Forças Armadas que o próprio governo patrocinava a sublevação dos quartéis e
a quebra de hierarquia militar‖186, enquanto os membros do agrupamento legalista foram
relegados ao isolamento. Decorrida a crise dos marinheiros e fuzileiros navais, o presidente,
que se deslocou até Brasília para descansar durante o final de semana, retornou à cidade
maravilhosa no dia 29 de março, pois encontrava-se em regozijo pelo desfecho das negociatas
com os manifestantes.
No dia seguinte,

precipitadamente,

Goulart

assegurou sua

participação nas

comemorações de quarenta anos da Associação dos Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar,
caracterizando, desse modo, sua derradeira decisão inoportuna. Realizada no auditório do
Automóvel Club, a solenidade dos associados se empenharia, também, em homenagear
Goulart. Levando-se em consideração o estabelecimento de uma atmosfera marcada pela
estabilidade política, segundo Ferreira e Gomes (2014), a presença do presidente não seria
inapropriada, tendo em vista que o fato de homenagear autoridades políticas no âmbito dessas
oportunidades era comum. Entretanto, o país atravessava uma grave crise político-militar e
Jango, afinal, não era uma simples figura política.
Antes do fatídico comparecimento ao local das comemorações, Goulart foi advertido por
Tancredo Neves, seu ministro, a não pronunciar-se naquela oportunidade. Testemunhando
forte resistência do presidente, prenunciou a instauração de uma guerra civil. As guerrilhas
não emergiram, mas o fato de Jango se dirigir diretamente aos subalternos, violando todas as
determinações do comando hierárquico, portanto, decretou o seu fim.
Ao passo que os conspiradores internos se deparavam com ações golpistas bastante
fortuitas, o embaixador Lincoln Gordon e Vernon Walters, adido militar estadunidense,
coordenavam os esforços da Operação Brother Sam, ação de invasão ao território brasileiro
que seria executada caso as forças governistas resistissem à ofensiva conduzida pelos
insurgentes187. Na verdade, com as contribuições da pesquisadora Phylis Parker (1979), que
descobriu os documentos da mobilização estadunidense nos arquivos do presidente Lyndon
Johnson, recém-nomeado para o cargo após a morte de Kennedy, foi possível constatar que a
operação representava o desdobramento de um ―plano de contingência‖, encontrando-se
dividido em atividades políticas e militares.

186

NAPOLITANO, op. cit., p. 48.
Para saber mais sobre a Operação Brother Sam, ver: PARKER, Phylis R. Brazil and the quiet intervention,
1964. Austin: University of Texas Press, 1979.
187

77

A primeira etapa, em grande medida, consistia na formação de um governo paralelo, sob
a liderança de Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, como mecanismo constitucional
para afastar Goulart do poder. Este ―Estado beligerante‖ seria imediatamente reconhecido
pelo governo estadunidense. A segunda, por sua vez, previa a ação militar dos EUA em um
cenário no qual fossem constatadas as intervenções de Cuba e URSS. O governador mineiro,
autoproclamado líder do movimento civil para destituir o presidente, executou as
determinações evidenciadas no plano e autorizou o gal. Olímpio Mourão Filho a marchar com
suas tropas até a Guanabara no dia 31 de março.

Da cidade mineira de Juiz de Fora, o comandante da 4ª Região Militar,
general Olímpio Mourão Filho, com o apoio do General Luís Carlos Guedes,
comandante do IV Regimento Divisionário, sediado em Belo Horizonte,
liderava um comboio militar, formado por recrutas, que marchava para a
Guanabara188.

No entanto, Castello Branco, considerado o grande líder de uma ala conspiratória
caracterizada pela organização, demonstrou sua indignação afirmando que a ação se
constituiu de forma precipitada, pois não existia articulação entre o movimento golpista da
Guanabara, sob a liderança de Castello, e os conspiradores mineiros, capitaneados por
Mourão e Magalhães Pinto.
Com efeito, o também gal. Costa e Silva repudiou aquela autorização e, em mais uma
tentativa difusa de deflagrar o golpe, criou o ―Comando Supremo da Revolução‖. Como
Goulart possuía a convicção de que uma estratégia pautada na ―força pela força‖, isto é, uma
ação responsável por obstruir o avanço da onda golpista através de uma reação proporcional,
abriria margem para a instauração de uma guerra civil, conforme foi possível avaliar, a única
alternativa encontrada por ele se reduziu a conciliação, modus operandi que permeou seu
governo até fins de 1963.
Em plena noite daquele trágico 31 de março, segundo Napolitano (2014), Jango ouviu
as propostas do gal. Amaury Kruel, ―que deixou claro para o presidente: ele apoiaria o
governo se Jango afastasse dele os ‗comunistas‘, o que equivaleria a reprimir os movimentos
sociais e se afastar dos sindicatos, sobretudo o CGT‖189. Ao recusar os termos e condições
impostos pelo oficial, Goulart perdia progressivamente o controle da situação.
Antes do diálogo com Kruel, notícias advindas das três principais cidades do país – Rio
de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo - evidenciavam que seus respectivos governadores
188
189

FERREIRA; GOMES, op. cit., p. 257.
NAPOLITANO, op. cit., 53.

78

empregaram medidas repressivas por intermédio das polícias civil e militar, sob o leviano
pretexto de ―manter a ordem‖, criando um cenário marcado pelas ações de violência. Com o
alto comando do II e IV Exércitos aderindo rapidamente ao movimento golpista, agora se
articulando organizadamente sob a liderança de Castello Branco, as tropas de Mourão
incursionavam para a Guanabara e as forças militares legalistas190, desnorteadas, esperavam
ordens expressas que jamais foram emitidas pelo presidente. Enquanto o golpe civil-militar se
consolidava, o Estado de Sergipe, cujo governador era declaradamente reformista, absorvia as
ressonâncias desta ruptura institucional.
3.4. ―Pelotão, sentido!‖: João Goulart sitiado, a ―Marcha da vitória‖ e os impactos da ação
golpista em Sergipe

No dia 31 de março, período no qual o movimento golpista estava iniciando seu
processo de implementação, informações imprecisas irromperam pelos canais midiáticos
centrais e marginais de Aracaju, constituindo um status quo de profundas indefinições.
Enquanto as forças legalistas do governo, em linhas gerais, empenhavam irrelevantes esforços
para resistir a uma medida intervencionista, os cooperadores da ―Revolução‖, terminologia
empregada pelos conspiradores para caracterizar a capitulação das ―aspirações comunizantes‖
que se esboçavam no governo Goulart, conforme avaliação da época, impulsionados pela
propaganda anticomunista propagada naquela conjuntura, encontravam-se em regozijo pela
iminente ação unilateral das Forças Armadas.
Nesse ínterim, com a ampliação da ―rebelião militar‖ no decurso do dia 1º de abril,
Goulart se dirigiu até o Rio Grande do Sul, estado simbolicamente estratégico que representou
o berço da resistência civil durante a crise sucessória transcorrida em 1961, para empreender
vãos esforços no sentido de estabelecer acordos e, no limite, contornar o irreversível impasse.
Ainda no dia 1º de abril, em plena capital sergipana, dezenas de estabelecimentos
comerciais permaneceram desativados, levando os civis até a Praça Fausto Cardoso, epicentro
das agitações políticas do estado. O jornal Gazeta de Sergipe, gradativamente modificando o
perfil editorial e ideológico de seu conteúdo, já que encontrava-se sob a tutela dos militares,
evidenciou que ―a capital sergipana, no dia de ontem, começou a viver momentos de tensão,

190

No entreato de 31 de março e 1º de abril, João Goulart contava com o apoio do I e II Exércitos, já que
unidades como a Força Aérea Brasileira (FAB) e Marinha foram paralisadas pelos fuzileiros e sargentos.

79

com o povo, notadamente estudantes e trabalhadores, nas praças e ruas, procurando saber as
notícias‖191.
Diante de uma maciça movimentação popular, o deputado federal Euvaldo Diniz,
legislador udenista que votou favoravelmente a instituição do parlamentarismo, assegurando,
desse modo, a posse de João Goulart em 1961, externou sua indignação às manobras golpistas
articuladas contra o regime populista, porém, imediatamente, foi detido e permaneceu sob
custódia do 28º Batalhão de Caçadores192.
Quando retornou a Sergipe, o governador João Seixas Dória, um dos contumazes
oradores do comício pelas reformas, pronunciou-se ao povo sergipano, também em 1º de
abril, como uma tentativa de reafirmar seu pleno e incondicional apoio às Reformas de Base.
Utilizando a cabine da Rádio Difusora, atualmente conhecida como Rádio Aperipê, o
dirigente sergipano evidenciou, também, o empenho do estado para a manutenção das
instituições democráticas e preservação dos mandatos que se transformaram em alvo de
cassação.
O posicionamento de Seixas Dória, entretanto, mobilizou os militares circunscreventes
em Aracaju que, sob ordens expressas, deslocaram-se até a sede do governo estadual e
detiveram-no, segundo a publicação do periódico intitulado A Semana, que representava uma
força oposicionista ao governo estadual.
Na noite de quarta-feira da semana passada, forças do 28º B/C, em Aracaju,
efetuaram a prisão de Seixas, investindo no governo o vice Celso Carvalho.
O Sr. Seixas Dória foi conduzido para Salvador, onde permanece preso e
incomunicável no quartel do 19º B/C193.

A sua intermitente destituição foi decretada, segundo Ibarê Dantas (2014), sob a
alegação de desenvolver práticas como ―instrumento de forças extremistas atentando contra a
segurança e tranquilidade do país e do Estado‖194, dimensionado o quão repressiva e
impessoal seria a emergente ordem. Desse modo, o vice-governador Celso Carvalho assumiu

191

Cf. Gazeta de Sergipe. 02/04/1964. p. 02.
O 28º Batalhão de Caçadores foi criado no ano de 1838, em Desterro, Santa Catarina. Oriundo do 1º Batalhão
de Caçadores, o destacamento fora sediado em cidades como Rio de Janeiro e Cuiabá. Em 09/03/1917, no
entanto, foi transferido para Aracaju sob a nomenclatura de 41º Batalhão de Caçadores, sendo-lhe atribuída a
atual denominação somente em fins de 1921. Vale ressaltar, ainda, que o Batalhão esteve presente em conflitos
como a Guerra do Paraguai (1864-1870) e a Revolução Constitucionalista de 1932. Para saber mais sobre o 28º
BC, ver: MAYNARD, Andreza Santos Cruz. A caserna em polvorosa: a revolta de 1924 em Sergipe.
Dissertação (Mestrado em História), UFPE, Recife, 2008.
193
Cf. A Semana. 11/04/1964, p. 02.
194
DANTAS, Ibarê. A Tutela Militar em Sergipe. São Cristóvão-SE: EDUFS, 2014. p. 30.
192

80

o posto Executivo por intermédio da Resolução nº 4, documento que assegurava sua posse sob
a tutela do novo modelo político que se consolidava com o movimento golpista.
Em 02 de abril, enquanto uma atmosfera repleta de arbitrariedades preponderava em
Sergipe, às lideranças conservadoras do Congresso declararam vacância da presidência,
jocosamente ignorando o fato de que Goulart encontrava-se em seu estado natal. Com o cargo
displicentemente anunciado como vago, Ranieri Mazzili, presidente da Câmara, assumiu o
Poder Executivo Federal interinamente. Naquela mesma tarde, tendo em vista a
materialização do golpe e o exílio de Goulart, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade
transcorria no Rio de Janeiro.

Eram pouco mais de quatro horas da tarde de dois de abril de 1964 e, nas
ruas do Rio, a multidão multiplicava-se com grande velocidade. No seu
auge, chegaria, segundo algumas estimativas, ao surpreendente número de
um milhão de pessoas, que se colocaram em praça pública a expressar o seu
apoio ao golpe militar que então se desencadeava. Da Candelária partia a
"Marcha da Família com Deus pela Liberdade"195.

Planificada antes daquele fatídico dia 1º de abril, a marcha carioca foi transfigurada em
uma espécie de ―desfile da vitória‖, pois, àquela altura, o golpe civil-militar estava em vias de
consolidação e os organizadores encontraram o momento oportuno para celebrar a capitulação
do ―perigo comunista‖. A manifestação, portanto, iniciou com a apresentação do Regimento
que integrava a Cavalaria da Polícia Militar e sua circunscrição foi delimitada entre a Praça
Pio X, perpassando pelas avenidas Rio Branco e Almirante Barroso, estendendo-se até a
Esplanada do Castelo, segundo apontamentos do periódico Correio da Manhã196.
Este veículo de comunicação, inclusive, dedicou uma significativa propriedade da
primeira página no sentido de retratar os desdobramentos daquela marcha. Entre a menção de
elementos religiosos para acentuar a pregação anticomunista e o emprego de terminologias
que enalteciam a intervenção das Forças Armadas, o perfil editorial do jornal destacou a
presença de figuras como o ex-presidente Eurico Gaspar Dutra, gal. Olímpio Mourão Filho,
padre Patrick Peyton e outros eclesiásticos que contribuíram para o desgaste ideológico das
forças governistas, como o padre Caio Alvim de Castro, ―que organizou o movimento

195

PRESOT, Aline Alves. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 64. Dissertação
(Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2004. p. 15.
196
Cf. Correio da Manhã. 03/04/1964. p. 01.

81

anticomunista de Belo Horizonte contra Brizola‖197. Todos foram convidados pela CAMDE,
organizadora majoritária do evento.
Conforme já aclarado, a atribuição do termo ―marcha‖ para designar a estrutura
funcional da manifestação cívico-eclesiástica está inscrita no conceito de universalização
deste cortejo, pois o objetivo da organização era, fundamentalmente, agregar adeptos de
doutrinas judaico-cristãs e afro-brasileiras. Neste sentido, quando o primeiro contingente de
participantes convergiu pelas dependências da Praça Rio Branco, localizada na avenida
homônima, o gal. Milton O‘Reilly de Souza se pronunciou em nome das associações espíritas,
utilizando, novamente, o credo religioso como instrumento de propaganda ideológica.
Ele afirmou que ―Jesus está com nossos corações. Uma sinfonia de almas e corações
firmados no mesmo ideal provou, mais uma vez, a grandeza do Brasil. Agradeçamos ao Pai
pela graça obtida, mas marchemos até o fim pela total libertação do País‖198. Ainda de acordo
com o jornal, uma senhora, que representava os umbandistas e cujo nome não foi
mencionado, discursou no palanque para ―confirmar [grifo nosso] a participação da mulher
umbandista no repúdio ao totalitarismo‖199, demonstrando a efetiva e cirúrgica participação
das organizações femininas para a destituição do presidente Goulart.
Posteriormente, Mário Leite Júnior e o reverendo Dumitro Michaelsen, representantes
dos evangélicos e católicos ortodoxos, respectivamente, proferiram suas saudações às forças
golpistas presentes naquela ocasião. Conferindo prosseguimento aos pronunciamentos de
lideranças religiosas, a carta do Grã-Rabino Henrique Lemle, ou Heinrich Lemle, cidadão
teuto-brasileiro que esteve internado no campo de Buchenwald em 1939200, foi lida e, dentre
outras ponderações, assinalou que ―os brasileiros israelitas deveriam estar na Sinagoga,
comemorando a sua Páscoa, mas ali estavam para agradecer a Deus, que, mais uma vez,
protegeu o país nesta hora grave‖201.
Para encerrar as explanações desta natureza, pe. Caio Alvim de Castro e monsenhor
Bessa, representando o cardeal-arcebispo do Rio, congratularam os participantes e rezaram a
―Ave, Maria!‖ às 18h, segundo a matéria do jornal. Com a finalização dos discursos
proferidos pelos religiosos, a líder da CAMDE, Amélia Bastos, e o gal. Olympio Mourão
Filho também se manifestaram e infligiram um ponto final a marcha carioca.

197

Cf. Correio da Manhã. 03/04/1964. p. 01
Ibid.
199
Ibid.
200
Para saber mais, ver: LEMLE, Alfred. Henrique Lemle: o homem que gostava da gente. Universidade do
Texas: Imago, 1998.
201
Cf. Correio da Manhã. 03/04/1964. p. 01.
198

82

Em Sergipe, no dia 02 de abril, assim como no Rio, local no qual as milícias
paramilitares de Lacerda reprimiam seus opositores, foram registradas várias detenções pelo
movimento intervencionista às forças de oposição, a quem os militares atribuíram à pecha de
―subversivos‖, conforme destaca Dantas (2014). O autor, embora não mencione a composição
de polícias políticas no estado, destaca as violações praticadas pelos agentes de segurança e
militares que destacavam no 28º BC.

A partir do dia 02 de abril, intensificaram-se as prisões de lideranças
sindicais, estudantes, professores, funcionários públicos, jornalistas,
operários e trabalhadores rurais através de diligências sem ordem judicial
[...] Ser levado para a colina do bairro 18 do Forte, onde estava situado o
quarte do 28º BC, tornou-se uma ameaça atemorizadora para todos os
participantes da mobilização política do Estado populista202.

À medida que organizações e grupos políticos de oposição orientados por uma
conotação nacional-reformista eram sistematicamente silenciados, a imprensa, não obstante a
preservação de alguns veículos, foi mantida sob controle da censura. É apropriado destacar,
portanto, que operavam em Aracaju ―quatro rádios (Difusora, Liberdade, Jornal e Cultura),
um jornal diário (Gazeta de Sergipe), um jornal semanal (Folha Popular), do PCB, um
periódico da UDN (Correio de Aracaju), que circulava de forma esporádica e o Diário
Oficial‖203.
Em depoimento concedido ao autor que vos escreve, Aglaé D‘Ávila Fontes204, atual
presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), realizou uma sucinta e
objetiva análise sobre as ressonâncias das arbitrariedades nos veículos de comunicação da
capital sergipana, em especial a Rádio Cultura. Partindo destes pressupostos, a entrevistada
afirmou que:

[...] a sociedade aracajuana tomou partidos muito fortes naquela época. Eu
me casei em 64, portanto, era noiva quando se instalou o golpe militar. O
meu noivo, na ocasião, era diretor da Rádio Cultura e a emissora foi foco de
algumas atividades porque ela desenvolvia um trabalho de alfabetização à
distância, utilizando o método Paulo Freire. Por isso, muitos colaboradores
tiveram sua liberdade cerceada e foram presos205.
202

DANTAS, Ibarê. A Tutela Militar em Sergipe. São Cristóvão-SE: EDUFS, 2014. p. 35.
Ibid., p. 38.
204
Aglaé D‘Ávila Fontes é professora aposentada da Universidade Federal de Sergipe, escritora, folclorista e
historiadora. Integra, ainda, a Academia Sergipana de Letras e exerce, atualmente, o cargo de presidente do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
205
Entrevista concedida ao autor dia 09/04/2018, na cidade de Aracaju.
203

83

As atividades de alfabetização retratadas pela depoente, para efeito de análise,
permaneciam vinculadas ao Programa Nacional de Alfabetização (PNA – Paulo Freire)206.
Conforme D‘Ávila, o método pedagógico empregado pela campanha se caracterizava como
inovador, pois a transmissão de todas as diretrizes previstas na cartilha daquele programa
variava de acordo com o universo cultural no qual os aprendizes encontravam-se inseridos.
Para ela, ―se eu iria alfabetizar uma comunidade de pescadores, por exemplo, a linguagem era
outra, mais fácil, pois é mais apropriado trabalhar com os elementos culturais daquele
universo‖207.
Segundo a depoente, ainda, para além da detenção daqueles colaboradores208, o diretor
da emissora, Clodoaldo Alencar Filho, também foi detido pelos militares e encaminhado às
celas do 28º BC, onde suas dependências ―ficaram abarrotadas [grifo nosso] de cidadãos de
várias origens sem culpa formada‖209. Entretanto, as imputações criminais contra Alencar
Filho se processaram, conforme apontamento da entrevistada, porque a vítima da
arbitrariedade, utilizando os microfones da Rádio Cultura, posicionou-se favoravelmente a
posse do presidente João Goulart em 1961, gerando, portanto, copiosas perplexidades, pois o
diretor sequer era vinculado a agremiações partidárias de esquerda e movimentos sindicais,
principais alvos da escalada repressiva praticada pela nova ordem em Sergipe.
Com as emissoras radiofônicas mantidas sob o domínio das forças militares, iniciando,
portanto, um sistema de vigilância governamental ―onipresente‖ para a imprensa, outro
veículo de comunicação estava prestes a se submeter ao arbítrio da emergente estrutura de
poder: os jornais. Enquanto a redação do semanário Folha Popular era fechada, um pequeno
contingente militar ocupou a sede do jornal Gazeta de Sergipe, cuja circulação se processava
diariamente, determinando que somente este e o Diário Oficial fossem distribuídos
206

O Plano Nacional de Alfabetização (PNA) foi instituído por intermédio do Decreto nº. 53.465, no dia 21 de
janeiro de 1964. Conforme as diretrizes do decreto que implementou o programa, a Comissão do Programa
Nacional de Alfabetização foi designada a articular uma cooperação entre agremiações estudantis, órgãos de
difusão, associações esportivas, sociedades de bairros, dentre outros, para desenvolver as atividades que visavam
a erradicação do analfabetismo. De acordo com um levantamento realizado pelo CPDOC, o programa visava
construir 60.870 círculos de cultura para alfabetizar 1.834.200 adultos. Em Sergipe, a fase de implementação se
estendeu
até
a
formação
dos
mencionados
círculos.
Para
saber
mais,
ver
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/programa-nacional-de-alfabetizacao-pna.
207
Entrevista concedida ao autor dia 09/04/2018, na cidade de Aracaju.
208
De acordo com Dantas (2014), que analisou os inquéritos atribuídos ao 28º BC, os implicados pelas práticas
de ―politização, conscientização, agitação, subversão, corrupção e malversão de dinheiros públicos no CNA –
Paulo Freire‖ foram Paulo Pacheco, Renato Chagas, Ary Silva Lisboa, Arly Silva Lisboa, Eleonora Pereira,
Jackson de Sá, Jackson de Lima, Jugurta Barreto, José Maria Nascimento, Luiz Eduardo Costa, entre outros.
Vale salientar, entretanto, que este documento, conforme assinala o autor, deve ser interpretado com cautela,
pois alguns cidadãos listados nos inquéritos jamais foram detidos. In: DANTAS, Ibarê. A Tutela Militar em
Sergipe. São Cristóvão-SE: EDUFS, 2014.
209
Ibid., p 35.

84

regularmente, pois, segundo os militares, ―não havia outro órgão diário para divulgar os atos
da ‗Revolução‘ com certa abrangência, uma vez que o alcance do Diário Oficial era bastante
limitado‖210.
Sob a tutela da censura prévia, o perfil editorial do Gazeta, empregando os protocolos
prescritos pelos militares, encaminhava os textos ao 28º BC no sentido de serem revisados.
Contudo, conforme depoimento concedido a Dantas (2014), o capitão Raul, responsável pela
transferência dos conteúdos jornalísticos para o Batalhão, encontrava-se constantemente sob
efeito de álcool, gerando uma miríade de reclamações. No afã de contornar a incômoda
situação, portanto, a censura foi realocada para as dependências do próprio jornal.
Quanto aos dirigentes políticos identificados com o projeto reformista, para além de
Seixas Dória, o desfecho não foi diferente daquele infligido ao ex-governador. O artigo
publicado pela professora Célia Costa Cardoso (2011), em grande medida, desenvolve uma
bem fundamentada análise sobre a cassação dos parlamentares sergipanos, utilizando como
fonte documental primária os processos impetrados contra alguns membros da classe política
estadual.

Com a deposição do Presidente da República e de Seixas Dória das chefias
dos Poderes Executivos nacional e estadual, deputados estaduais como
Cleto Sampaio Maia (PRT), Viana de Assis (PR), José Nivaldo dos Santos
(PR) e Baltazar José dos Santos (PSD) também foram atingidos por uma
onda de perseguições políticas, tendo os mandatos cassados em 14 de maio
de 1964, conforme resumo da Ata da Assembleia Legislativa do Estado de
Sergipe211.

De acordo com a autora, entre abril e maio de 1964, os deputados mencionados acima
foram sistematicamente perseguidos pelo regime autoritário sob a alegação de estruturar e
executar atividades qualificadas como ―subversivas‖, ―variando apenas no grau de intensidade
das práticas políticas dos acusados e na caracterização (grifo nosso) de ‗comunista‘‖212. Entre
ofícios emitidos por generais, requisitando ao presidente da Assembleia Legislativa de
Sergipe a sumária cassação dos mandatos eletivos, relatórios sistematizados por membros do
aparato repressivo que apresentavam uma descrição relacionada a trajetória política dos
impetrados e as próprias atas confeccionadas após as sessões, a nova composição institucional
intensificava suas arbitrariedades por intermédio de uma rede repressiva/investigativa que
homologava todos estes documentos: os Inquéritos Policiais Militares (IPMs).
210

Ibid., p. 39.
CARDOSO, Célia Costa. 1964 em Sergipe: política e repressão. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História. Anpuh: São Paulo, 2011. p. 10.
212
Ibid., p. 11.
211

85

O caso que ilustra de modo mais elucidativo tal opus operatum controverso, portanto,
encontra-se inscrito no processo contra o deputado Antônio Fernandes Viana de Assis, do
Partido Republicano (PR). Segundo Cardoso (2011), os inquéritos encaminhados às terras
sergipanas provinham da VI Região Militar, subordinada ao IV Exército e localizada na
Bahia, cuja circunscrição era delimitada entre Alagoas e Sergipe.
Utilizando a prerrogativa de ―fundamentar-se no cumprimento de determinações
políticas nacionais regidas por uma nova lei de combate a ‗subversão‘‖213, a instituição militar
decretou a suspensão dos direitos políticos de vários parlamentares, que alegaram, dentre
outros argumentos, descumprimento do Regimento Interno da Assembleia e supressão das
possibilidades de formalizar defesa. Não obstante a grave dimensão destas violações, os
investigados questionaram, também, sob qual pretexto dois parlamentares integraram a esfera
de indiciados, uma vez que jamais foram citados em um processo criminal.
Um destes dirigentes era o próprio Viana de Assis, julgado diretamente pelo 28º BC, que
respondia diretamente a VI Região Militar. Conforme o documento analisado por Darlem
Reis (2015), ratificando os esforços analíticos de Cardoso, o deputado estadual foi submetido
à cassação, pois, entre outras acusações, ―era (grifo nosso) favorável a legalização do Partido
Comunista [...] Numa demonstração evidente de sua ideologia taxou a ‗Marcha da Família
com Deus pela Liberdade‘ de subversiva‖214.
Em meio a uma atmosfera caracterizada pelo ímpeto perverso dos delatores, pelas
transgressões dos militares ao Estado Democrático de Direito, com a instauração do Ato
Institucional Nº. 1 em 09/04/1964215, e uma rede colaboracionista capitaneada sob os
auspícios duma corrente da Igreja, Sergipe legitimava a consolidação do movimento golpista.
Tamanha demonstração de apreço a intervenção militar, portanto, manifestou-se com a

213

Ibid., p. 12.
Fragmento extraído de um documento analisado por Carla Darlem Reis (2015). Mandado de Segurança
impetrado contra Antônio Fernandes Viana de Assis. Arquivo Judiciário de Sergipe. Fundo: Aracaju/1ª Esc;
Caixa 06.
215
De acordo com o CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, a Junta Militar composta pelo gal. Artur da Costa e
Silva, Francisco de Assis Correia de Mello (Tenente-Brigadeiro) e Augusto Hamann Rademaker Grunewald
(vice-almirante) instaurou o AI-1, que ―era precedido de um preâmbulo onde se afirmava que ‗a revolução‘
investida no exercício do Poder Constituinte, não procuraria legitimar-se através do Congresso, mas, ao
contrário, o Congresso é que receberia através daquele ato sua legitimação. Além de conceder ao comando
revolucionário as prerrogativas de cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos pelo prazo de dez
anos e deliberar sobre a demissão, a disponibilidade ou a aposentadoria dos que tivessem ‗atentado‘ contra a
segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública‘, o AI-1 determinava em seu
artigo 2º que dentro de dois dias seriam realizadas eleições indiretas para a presidência e vice-presidência da
República. O mandato presidencial se estenderia até 31 de janeiro de 1966, data em que expiraria a vigência do
próprio ato‖. Para saber mais, ver http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/atosinstitucionais. Acessado em 15 de junho de 2018.
214

86

realização das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, transcorridas entre abril e maio
de 1964.

4. ENTRE TERÇOS E QUEPES: cultura política, conservadorismo social e as Marchas
da Família com Deus pela Liberdade em Aracaju (1964)

Com a atmosfera de radicalização ideológica adquirindo amplitudes incontornáveis,
tendo em vista as reações ao Comício da Central, realizado no dia 13 de março, agrupamentos
civis, empresariais, políticos e eclesiásticos articularam uma contramanifestação denominada
Marchas da Família com Deus pela Liberdade, seis dias após a mobilização pró-governista,
arregimentando milhares de pessoas que foram às ruas reivindicar uma intervenção
―moralizadora‖ para alijar o presidente Goulart do poder. A partir daquele momento de
efervescência, portanto, estas manifestações cívico-eclesiásticas irromperam pelas demais
regiões do país, alcançando Sergipe entre abril e maio de 1964.
Partindo destas premissas, o presente capítulo aborda a realização das marchas
aracajuanas, evidenciando, em um primeiro momento, a conformação da cultura política
sergipana para, posteriormente, compreender os motivos pelos quais determinados setores
sociais se apropriaram daquelas narrativas e conferiram legitimidade a ruptura institucional
através destas manifestações cívico-eclesiásticas. Ademais, as discussões descrevem seus
percursos, organizadores, participantes e principais características operacionais.

87

4.1. Aracaju: centro irradiador da cultura política sergipana? Breves apontamentos sobre a
conformação de uma tradição conservadora
A censura à imprensa é total, os militares, sem mandado judicial, invadem
residências, repartições e empresas à procura de ―comunistas‖. Os veículos de
informação exaltam as Forças Armadas, que ―salvaram o país do comunismo‖,
a Igreja Católica mobiliza, especialmente, a classe média em procissões tão
golpistas quanto patrioteiras. ―A Marcha da Família com Deus pela Liberdade‖,
movimento articulado pela Igreja, dá cobertura ao golpe de 31/03/1964, aplaude
as prisões em nome dele216.

A citação retratada nesta seção dimensiona, não obstante a narrativa construída no
capítulo anterior e em expressões tão lúcidas quanto o combate pela preservação das
instituições democráticas, o clímax que se instaurou em Aracaju após a sublevação do golpe
civil-militar. Estas palavras carregam consigo, ainda, para além do admirável domínio sobre
tal recorte analítico, o âmago de quem testemunhou as violações impostas por um regime
agressivamente transgressor e assistiu, com indescritível perplexidade, a materialização de um
projeto pautado numa cultura política enraizada no autoritarismo pragmático e sua tradição
conservadora. Igualmente eivadas de lirismo e sentimentalismo, também, são as colocações
de João Seixas Dória, governador deposto que permanecera detido em Fernando de Noronha,
para quem:

[...] devo proclamar que desconheço os motivos reais que me fazem
permanecer prêso (sic). A justiça, um dia, há de aclarar o problema. Aceito
todos os sofrimentos como uma provação de Deus. Sofro-os com resignação
e dignidade. Jamais um oficial surpreendeu lágrimas nos meus olhos ou
divisou sinais de abatimento em minhas feições. A tranquilidade de
consciência é que me sustenta nesta hora de angústia e de tormento e tem me
dado fôrça (sic) para resistir com humildade, mas sem covardia217.

Nesse ínterim, enquanto o ex-mandatário estadual cumpria sua arbitrária sentença,
Aracaju inaugurava o estabelecimento da ruptura institucional em terras sergipanas.
Entretanto, esta capital, elevada a tal categoria em 1855218, acentuou sua participação nas
esferas política, cultural e econômica a partir da República Velha (1889-1930), tornando,
desse modo, imprescindível inseri-la neste contexto composto por grandes transformações
para desvelar as raízes do autoritarismo/conservadorismo tão presente na sociedade sergipana.
Para Fantinel (2011), ao basear-se numa reflexão da intelectual Teresa Sales (1994), em um
216

FIGUEIREDO, Ariosvaldo. História Política de Sergipe (1962/1975). Aracaju: Livraria Regina, s/d. p. 88.
DÓRIA, João Seixas. Eu, réu sem crime. Rio de Janeiro: Editora Equador, s/d. p. 61.
218
Ver: DANTAS, Ibarê. História de Sergipe República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.
217

88

trabalho no qual analisa as raízes da cultura política brasileira utilizando os domínios da
Ciência Política e Antropologia sob o prisma do culturalismo, esta ―tradição‖ decorre das:
relações de mando e subserviência – expressão política da desigualdade
social brasileira – sobreviveu ao domínio privado das fazendas e engenhos
coloniais, à abolição da escravatura, expressou-se no compromisso
coronelista e chegou até a atualidade, em situações que frequentemente não
envolvem conflito de fato, mas conciliação. A cidadania concedida, gênese
da construção da cidadania brasileira, está vinculada, contraditoriamente, à
não-cidadania do homem livre e pobre, dependente dos favores do senhor –
este detentor do monopólio privado do mando, e a quem era possibilitado o
usufruto dos direitos elementares de cidadania civil. Tal elemento, que
poderia ter sido rompido com a abolição da escravatura, permaneceu através
dos mecanismos de patronagem e clientelismo, que marcaram toda a
Primeira República219.

Por questões de filiação historiográfica, portanto, a presente seção prioriza, com
ênfase em especificidades e sem pretensões totalizantes, a descrição dos aspectos políticoculturais, evidenciando, desse modo, as contribuições destas esferas para a conformação duma
cultura política em Sergipe - apesar de não prescindir totalmente do componente econômico
que, historicamente, constituiu-se como um complementar instrumento para depreender as
dinâmicas sociais, conforme constatei no primeiro capítulo.
Naquele período, segundo levantamento realizado pelo Censo nos idos de 1890220, sua
delimitação territorial era composta por 16.336 mil habitantes, uma margem considerada
irrisória para os padrões das demais capitais republicanas. Sob o ponto de vista políticoadministrativo, a cidade ―ganhava atenção através das decisões de suas autoridades e da
importância decorrente do funcionamento das repartições públicas‖221. Já no âmbito
econômico, não obstante o fato de supervisionar a operação de 200 navios que ancoravam
anualmente em seu porto, movimentando passageiros e, sobretudo, produtos para o
abastecimento do comércio222, Aracaju testemunhou a ampliação das atividades industriais ao
instalar uma fábrica têxtil chamada Sergipe Industrial, expandindo, desse modo, a concessão
de empregos na cidade.
Se vertentes como política-administrativa e economia apresentavam indicadores
favoráveis, embora aquém do parâmetro ideal, o âmbito cultural se inflexionava, a princípio,

219

FANTINEL, Letícia Dias. Algumas questões para se pensar cultura política no Brasil. In: Rev. psicol.
polít. Vol. 11 no. 21. São Paulo: jun. 2011. p. 07.
220
Anuário Estatístico do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação IBGE, 1967. pp. 36-37.
221
DANTAS, op. cit., p. 18.
222
Ibid.

89

para avaliações bem mais modestas. Segundo os levantamentos de Clodomir Silva (1920)223 e
Laudelino Freire (1902)224, a capital contava com 01 teatro e havia uma periódica circulação
de 06 jornais. Aracaju sediava, ainda, ―uma biblioteca pública com acervo rico, mas carente
de atenção, e possuía a maior estrutura educacional do Estado, composta de 22 cadeiras de
ensino, 14 do primeiro grau e 06 do segundo grau‖225.
Nos idos de 1906, contudo, um significativo evento deflagrado em Aracaju marcaria a
história política do estado, intensificando, então, os embates ideológicos locais dentro da
ordem republicana. Estas dissensões que permeavam a cultura política sergipana remontam,
em certa medida, ao período no qual o irmão monsenhor Olympio Campos226, Guilherme de
Souza Campos, presidiu Sergipe após indicação de Josino Menezes (1902-1905),
evidenciando a grande influência exercida pelo Olympismo na máquina pública e
potencializando o descontentamento dos setores opositores.
Segundo Dantas (2004), ―quando a chapa oposicionista, representada por Coelho e
Campos para o Senado e Fausto Cardoso para a Câmara dos Deputados, facultada por um
dispositivo da recente lei eleitoral, foi vitoriosa em inícios de 1906, o movimento contra os
governistas cresceu enormemente‖227. Com o retorno do citado Fausto Cardoso a Sergipe,
após se radicar na capital federal durante doze anos, nascia o Partido Progressista,
arregimentando membros empenhados na desarticulação do domínio oligárquico liderado por
Olympio Campos. No dia 10/08/1906, a composição do Executivo estadual foi deposta e os
sublevados se anteciparam na construção de um governo transitório, fruto dum evento
insurrecional denominado Revolta de Fausto Cardoso228. Enquanto este líder ampliava sua
223

Ver: SILVA, Clodomir Souza e. Álbum de Sergipe (1829-1920). Aracaju: Estado de Sergipe, 1920.
Ver: FREIRE, Laudelino de Oliveira. Quadro Chorográfico de Sergipe. Paris: H. Garnier, 2ª Edição, 1902.
225
Ibid., p. 35.
226
Segundo o Dicionário histórico-biográfico da Primeira República (1889-1930), da Fundação Getúlio Vargas,
Olímpio de Campos Souza ―nasceu no engenho Periquito, no município de Itabaianinha (SE), em 25 de junho de
1853, filho do coronel José Vicente de Sousa e de Porfíria Maria de Sousa Campos. Iniciou os estudos primários
na cidade natal, prosseguindo-os em Estância (SE) e recebendo aulas particulares de latim em Lagarto (SE).
Seguiu para a cidade de Recife, onde pretendia cursar os preparatórios e bacharelar-se em ciências jurídicas e
sociais. Faltando apenas as classes de filosofia e retórica para concluir os estudos que o levariam à Faculdade de
Direito, mudou de intenção ao ver despertada sua vocação eclesiástica. Matriculou-se no Seminário de Salvador
e aí estudou ciências eclesiásticas entre 1870 e 1873. Findo o curso, não pôde ser ordenado, por não ter
completado a idade canônica. Somente em setembro de 1877 o arcebispo dom Joaquim Gonçalves de Azevedo
conferiu-lhe a sagração sacerdotal‖. Foi, ainda, deputado geral (1886-1889), deputado federal (1894-1899),
presidente de Sergipe (1889-1902) e senador (1902-1906). Após a desarticulação da revolta capitaneada por
Fausto Cardoso, que culminou com a morte deste adversário político, Olympio Campos foi apunhalado por
familiares
do
falecido
parlamentar
no
Rio
de
Janeiro.
Ver:
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeirarepublica.pdf. Acessado em: 12/10/2018.
227
DANTAS, op. cit., p. 32.
228
Para maiores informações sobre a Revolta, além desta contribuição de Ibarê Dantas, ver: SOUZA, Teresinha
Oliva de. Impasses do Federalismo Brasileiro - Sergipe e a Revolta de Fausto Cardoso. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, UFS, 1985.
224

90

popularidade, os irmãos Campos notificavam o governo federal sobre a deposição. Sendo
assim:
A Câmara dos Deputados passou a discutir o assunto num momento em que
já havia um precedente recente com a deposição e a morte do governante do
Estado de Mato Grosso. O presidente da República, não obstante ser
considerado amigo do líder revoltoso de Sergipe, autorizou a intervenção
federal e a Câmara dos Deputados aprovou-a229.

Em uma tentativa de contornar o quadro de tensões, haja vista que as tropas federais
já se estabeleciam em Aracaju, Cardoso empreendeu esforços para convencer o comandante
sobre a legalidade daquela revolta. Como não obteve sucesso, o dirigente e determinados
correligionários se deslocaram até a sede governamental no sentido de endossar o protesto e
foram alvejados com disparos, resultando em ―pelos menos três atingidos, dois dos quais
fatalmente, inclusive Fausto Cardoso‖230. Ao passo que a arena ideológica encerrava, por ora,
suas articulações e transformações na conformação de uma cultura política propriamente dita,
o bojo cultural pulsava e cooperava para esta fabricação.
Foi somente em 1912, ano marcado pela fundação do Instituto Histórico e
Geográfico de Sergipe (IHGSE)231, sediado na própria capital, que a pequena unidade
federativa ingressaria no hall cultural da ordem republicana, determinando, por intermédio
dos esforços promovidos por seus assíduos frequentadores e sócios, as primeiras bases
intelectuais para a construção de uma cultura política local. Segundo o historiador Samuel
Albuquerque, por exemplo, este evento representou ―o processo de emancipação cultural de
Sergipe, pois o IHGSE foi o lócus original dos debates sobre a Sergipanidade‖232.
Enquanto os intelectuais sergipanos - sejam eles radicados em Aracaju ou noutras
cidades interioranas relativamente bem engajadas na produção do conhecimento233demonstravam certo alinhamento com uma cultura política nacional ―possuidora duma (grifo
nosso) leitura comum de passado e de um projeto comum de futuro‖234 durante aquele

229

DANTAS, op. cit., p. 33.
SOUZA, op. cit., p. 225.
231
Para saber mais sobre a trajetória da instituição, ver: FREITAS, Itamar. A Casa de Sergipe. São Cristóvão:
Editora UFS/Fundação Oviedo Teixeira, 2003.
232
ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. Emancipação Cultural de Sergipe. Jornal da Cidade.
Caderno B. Aracaju: 8 de julho de 2012, p. 07.
233
As demais povoações elevadas à categoria de cidade e que apresentavam certa representatividade neste
quesito eram Laranjeiras, São Cristóvão, Maruim, Estância, Itabaiana, Lagarto, Capela e Propriá.
234
SANTOS, Magno Francisco de Jesus. A Casa de Sergipe e a invenção da historiografia sergipana. In: Anais
XXVII Simpósio Nacional de História da Anpuh – Conhecimento histórico e diálogo social. Natal: 2013. p.
05.
230

91

período, corroborando com as reflexões de Rodrigo Patto Sá Motta (2014)235, a ordem liberaloligárquica solidificava seu primeiro quadro significativo de tensões em âmbito nacional. Nos
idos de 1922, o chamado Movimento Tenentista já gestava seu embrião no Rio de Janeiro e
encontrou, dois anos depois, entusiasmada receptividade no Estado de Sergipe, sobretudo em
sua capital.
A partir do momento no qual os sublevados ocuparam São Paulo em 05/07/1924, o
Poder Executivo Federal, sob a presidência de Artur Bernardes, solicitou o deslocamento de
tropas sergipanas para desarticular a ação dos insurgentes. Entretanto, para a surpresa do
presidente estadual, Maurício Graccho Cardoso, ―militares do Amazonas, Mato Grosso e
Sergipe se rebelaram em solidariedade àquele levante‖236. Inevitavelmente, conforme
assinalado anteriormente, Aracaju representou a primeira zona de impacto daquela
demonstração arrojada de insurgência.
Conforme a literatura que versou sobre as ressonâncias do movimento em Sergipe237,
Augusto Maynard Gomes e 03 oficiais, sob a cobertura dum número controvertido de
soldados, deslocaram-se desde o 28º BC no dia 13/07/1924 até as imediações do centro
administrativo e deflagraram um ataque direcionado ao Quartel/Palácio governamental. O
saldo da operação resultou, dentre outros desdobramentos, na morte de dois guardas, prisão
do presidente estadual e formação de uma Junta Governativa. Logrado o triunfo parcial, os
rebelados ―lançaram proclamação ao povo sergipano e dominaram o Estado (sic) por 21
dias‖238.
Decorridas as três semanas nas quais a Junta composta pelos militares governou
Sergipe, tropas advindas de Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba, operacionalizadas sob o
comando do gal. Marçal Nonato de Faria, incursionaram para Sergipe e desarticularam o
movimento insurgente, realocando, por conseguinte, o presidente estadual ao Poder
Executivo. Enquanto os movimentos instaurados no Mato Grosso e Amazonas eram
igualmente suprimidos, um agrupamento militar paulista convergia para o Rio Grande do Sul,
criando, a partir daquela coalizão, um levante político-militar historiograficamente conhecido
como Coluna Prestes (1925-1927).

235

Ver novamente: MOTTA, R. S. P. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In: Culturas políticas na História. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.
236
DANTAS, op. cit., p. 42.
237
Ver: DANTAS, Ibarê. O Tenentismo em Sergipe: da Revolta de 1924 à Revolução de 1930. Petrópolis:
Vozes, 1974.
238
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p.
43.

92

Nesse ínterim, mais especificamente em 1926, as tropas lideradas por Luís Carlos
Prestes marcharam sobre o interior da Bahia, local no qual os rebeldes sergipanos cumpriam
pena. Aproveitando-se, possivelmente, da dispersão infligida ao contingente que destacava
naquela região interiorana, o agrupamento liderado por Maynard Gomes surpreendeu os
soldados em vigília e rearticulou a revolta.
Quando regressaram a Aracaju, após uma bem sucedida fuga, entraram em
confronto com as forças legalistas, culminando com a morte de 11 soldados e decretando,
portanto, a derrota do grupo revoltoso. Posteriormente, ―em consequência dessa revolta, um
mês depois, cerca de 100 envolvidos, inclusive suas lideranças, foram desterrados para Ilha de
Trindade, onde viveram em condições difíceis até início de dezembro de 1926, quando foram
levados para o Rio de Janeiro‖239.
Não obstante as dinâmicas ações que impulsionavam a esfera político-ideológica da
capital no transcorrer daquelas três primeiras décadas, o âmbito cultural se ampliava e
contribuía significativamente para o desenvolvimento da pequena unidade federativa. Se nos
municípios interioranos eram criados centros culturais como os famosos Gabinetes de Leitura
(Maruim, Riachuelo e Tobias Barreto), Casa do Livro (Capela), entre outros dispostos nos
principais centros urbanos sergipanos, Aracaju testemunhou um boom direcionado a cultura
após o advento do IHGSE.
Segundo o levantamento de Cristiane Souza (1998)240, a capital dispunha de
instituições como a Liga Sergipense contra o Analfabetismo (1916), o Centro Pedagógico
Sergipano (1918), Sociedade Ensaios Literários e Horas Literárias Sylvio Romero, Tobias
Barreto, Fausto Cardoso e Gumercindo Bessa (1929). Contudo, conforme já assinalado, a
Casa de Sergipe (IHGSE), mesmo com o relevante papel desempenhado pelos centros
grafados anteriormente, ―tornou-se o principal núcleo cultivador da memória, das tradições e
da identidade dos sergipanos‖241.
Inicialmente inscrito no contexto da República Velha - designação atribuída
posteriormente por determinados ideólogos para caracterizar um recorte temporal permeado
pela desestruturação política, violência, exacerbação dos efeitos corruptores nos processos
eleitorais e incompetência cultural -, o epicentro da intelectualidade sergipana idealizado pelo
intelectual Florentino Telles de Menezes se antecipou em construir, assim como as demais
entidades congêneres distribuídas pelo país, paradigmas positivos associados à Primeira
239

Ibid.
SOUZA, Cristiane Vitório de. A “República das Letras” em Sergipe (1889-1930). (Monografia)
Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão: UFS, 1998. pp. 33/35.
241
DANTAS (2004), op. cit., p. 61.
240

93

República, reforçando uma premissa de Ângela Castro Gomes e Martha Abreu, segundo a
qual:

diversos agentes sociais, como intelectuais, professores, maestros, músicos
populares e o variado público dos teatros e festas populares, formado por
setores médios e trabalhadores, experimentaram, em meio a muitos conflitos,
a construção da nação – e também da nação republicana – em termos
culturais242.

Em linhas gerais, pode-se concluir que o domínio liberal-oligárquico contribuiu
modestamente para o progresso político de Sergipe, especialmente da sua capital, embora
houvesse uma estrutura administrativa bem organizada. No entanto, com base na literatura
historiográfica empenhada em compreender as dinâmicas de tal período, as principais
povoações experimentaram um processo de modernização. Aracaju, por exemplo, conforme
já mencionado, foi beneficiada com o estabelecimento de indústrias têxteis e a reestruturação
dos serviços urbanos.
Mesmo com o índice de analfabetismo apresentando uma tímida tendência
decrescente entre 1890 e 1920243, anos nos quais foram levantados tais dados estatísticos,
registrou-se a adoção de alguns esforços governamentais e sociais visando à diminuição
destes números, porém, com base naquela constatação inicial, o avanço se constituiu como
modesto. Soma-se a este quadro agravante, ainda, a inexistência de uma política cultural
prevista pela plataforma governamental local, exceto em ocasiões nas quais recorria irrisória e
irregularmente ao mecenato, financiando artistas, estudantes (ambos, em sua maioria, de
Aracaju e Laranjeiras) e suas publicações. Apesar do estado prescindir deste suporte:

As iniciativas individuais multiplicavam-se, animando o ambiente, revelando
talentos e obras marcantes. Embora vários intelectuais e/ou artistas tenham
emigrado e ganhado projeção nacional, os que ficaram, enfrentando as
limitações do meio, tornaram-se os principais responsáveis pela construção
do patrimônio em Sergipe244.

242

GOMES, Ângela de Castro; ABREU, Martha. A nova ―Velha‖ República: um pouco de história e
historiografia. In: Revista Tempo. Vol. 13, nº 26. Rio de Janeiro: 2009. p. 13.
243
Segundo o levantamento realizado em 1890, a população de analfabetos em todo o estado era de 89%. Ver:
Anuário Estatístico do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação IBGE, 1967. Já em 1920, a margem era de 83%. Ver:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv6478.pdf. Como Aracaju representava o principal centro
urbano da unidade federativa, pressupõe-se que esta cidade concentrava a maior porcentagem de analfabetos de
Sergipe.
244
DANTAS (2004), op. cit., p. 75.

94

Vale ressaltar que o recorte temporal aqui analisado, também, foi caracterizado pelo
surgimento de um movimento sócio-político denominado coronelismo245, grande responsável
por se empenhar na construção de uma cultura política imbricada no autoritarismo
pragmático. Esta tendência, inclusive, encontraria solo fértil a partir das décadas seguintes,
sobretudo após a ampliação do integralismo e sua estruturação em Sergipe.

4.2. Dos anos 30 à ordem populista (1930-1964): faces e contrafaces da cultura política
aracajuana-sergipana

Com base numa premissa segundo a qual o conceito de cultura política, após seus
sistemáticos aprimoramentos, representa ―uma identidade coletiva e fornece leituras comuns
do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados para o
futuro‖246, julga-se apropriado aplicá-lo nesta seção para depreender, agora sob a aura dos
períodos pré-estadonovista, estadonovista e populista, as dinâmicas que possibilitaram o
constructo do ―comportamento político‖ em Sergipe.
Em pleno dia 03/10/1930, quando os tenentes arregimentaram-se em Recife e Porto
Alegre, contando, inclusive, com significativo colaboracionismo civil, o movimento
conhecido historicamente como ―Revolução de 30‖ irrompeu pelos demais estados da
Federação, materializando a primeira ruptura infligida ao regime republicano e inaugurando
outro período marcado por significativas transformações. As primeiras ressonâncias deste
levante articulado sob a liderança de Getúlio Vargas, no entanto, estenderam-se até Aracaju
em 16/10/1930, quando aviões sobrevoaram a capital e distribuíram panfletos que advertiam a
população sobre o deslocamento das forças insurgentes para o Rio de Janeiro.
Com a iminente vitória das ―forças revolucionárias‖, enquanto o presidente estadual
escapava de maiores hostilidades, o tenente-médico Eronides de Carvalho era empossado
como chefe provisório do Poder Executivo. O segundo e mais contundente impacto sofrido
por Aracaju transcorreu entre os dias 18 e 19 de outubro daquele efervescente 1930, quando
as tropas atravessaram o Rio São Francisco e incursionaram para a cidade, transfigurando a
maior urbe sergipana em um centro operacional das forças insurgentes na porção norte do
país.
245

Para saber mais sobre o coronelismo em Sergipe, ver: DANTAS, Ibarê. Coronelismo e Dominação. Aracaju:
Diplomata/UFS, 1987.
246
MOTTA, R. S. P. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia. In:
Culturas políticas na História. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014. p. 21. p. 21.

95

Se no âmbito político-partidário Sergipe esteve sob os governos de Augusto Maynard
Gomes (1930-1935) e Eronides de Carvalho (1935-1937), a arena ideológica se radicalizava
progressivamente neste ínterim, especialmente em Aracaju, demonstrando, portanto, traços
significativos

de

nossa

cultura

política

que

se

inflexionavam

para

tendências

polidimensionais. Segundo apontamentos de Ademir da Costa Santos (2003)247, em dezembro
de 1933, ano marcado pela ascensão de Hitler ao poder, ideólogos integralistas como Gustavo
Barroso, Mário Brasil e Miguel Reale ministraram palestras nas instalações da Associação
Sergipana de Imprensa e Associação dos Empregados do Comércio, tornando tal ideário
bastante receptivo ao setor intelectual aracajuano.
Aqueles encontros capitaneados pelos expoentes do movimento em âmbito nacional,
portanto, contribuíram para a criação de uma célula integralista sergipana, cuja sede estava
localizada em Aracaju, através da qual figuras proeminentes que integravam o ―primeiro
escalão‖ intelectual local, tais como José Calazans, Agnaldo Celestino e Omer Mont‘ Alegre,
estavam engajadas e contavam com o apoio, sobretudo, de alguns setores agregados a Igreja
Católica248, atraídos pela diretriz integralista ―Deus, Pátria e Família‖, que fundamentou a
execução das marchas em 1964.
Conforme assinala Santos (2008), durante o período no qual a ideologia integralista
encontrava-se ascendente em Sergipe, Seixas Dória, aquele que seria nomeado secretário
municipal de Aracaju nos anos 40 e, posteriormente, eleito mandatário estadual no pleito de
1962, era um membro ativo daquela agremiação, porém sua atuação obteve maior relevância
em terras baianas, quando o jovem ativista estudava em Salvador. Para Luiz Antônio Pinto
Cruz (2012)249, outro estudioso que se enveredou pela conformação de movimentos políticosideológicos em Sergipe, já no transcorrer dos anos 30:

[...] as ideias fascistas eram amplamente debatidas em círculos intelectuais
dos quatro cantos do país. Em Aracaju, não foi diferente, pois nessa época
muito se falava a respeito de Adolf Hitler, Benito Mussolini e Plínio
Salgado. Aprendia-se sobre fascismo e nazismo nas faculdades de Salvador e
de Recife com bastante naturalidade, pois seus postulados científicos foram

247

Ver: SANTOS, Ademir da Costa. O Integralismo em Sergipe: as propostas e a propagação do ideário (19331938). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe.
São Cristóvão, 2003.
248
Ver: _______________________. A Ação Integralista Brasileira em Sergipe (II). Jornal da Cidade.
Aracaju, p. B-6 - B-6, 21 nov. 2008.
249
Ver: CRUZ, Luiz Antônio Pinto. A guerra já chegou entre nós: o cotidiano de Aracaju durante a guerra
submarina (1942-1945). Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal da Bahia. Salvador, 2012.

96

amplamente debatidos, especialmente nos cursos de medicina e de direito,
sem a áurea de crime de guerra dos anos de 1940250.

Este passado integralista, talvez, elucide o motivo pelo qual Dória tenha integrado os
quadros da União Democrática Nacional (UDN), uma das mais conservadoras e ambíguas
agremiações partidárias do domínio populista (1945-1964), embora o dirigente estivesse
vinculado a uma dissidência que apoiou, inclusive, o projeto nacional-reformista de Goulart,
conforme mencionado anteriormente. E quanto ao envolvimento d‘alguns setores da Igreja
Católica na legitimação de um projeto político-ideológico assentado nas diretrizes ―Deus,
Pátria e Família‖ nos anos 30, responsável por povoar o imaginário daqueles participantes das
marchas três décadas depois? Bem, tamanha orientação e conexão se materializariam em
1964, quando a ala conservadora da instituição religiosa se empenhou em silenciar sua
corrente progressista e legitimou, através das marchas e com o sangue da democracia no seu
altar, uma ruptura institucional que culminaria com o golpe civil-militar.
Em 1934, quando o movimento irrompia pelo interior, os seus signatários criaram um
periódico denominado O Sigma, nomenclatura que retratava a insígnia caraterística daquele
grupo, para ampliar significativamente a propagação de seus ideários. Em franca oposição ao
núcleo que se fortalecia na capital, para além da Liga Antifascista, sobre a qual as
informações se constituem como bastante fortuitas, ―outra agremiação organizada neste tempo
foi a dos trabalhadores urbanos, denominada de Aliança Proletária de Sergipe (APS), criada
em março de 1934, com programa, em certa medida, inspirado no ideário socialista‖251. Assim
como o primeiro grupo, não há nenhuma informação mais precisa sobre a APS, excetuando os
embates com o núcleo integralista252 que foram intensificados a partir de 1935.
Enquanto esses confrontos municiavam a dicotomia da nossa cultura política nos planos
nacional e local até 1937, o bojo cultural ingressou em um período de estagnação. Com a
instauração do Estado Novo (1937-145), seguida da extinção daqueles núcleos integralistas,
inaugurando à primeira experiência autoritária infligida a ordem republicana, os movimentos
culturais, que antes gozavam de certa autonomia, submeteram-se ao crivo do Governo
Central.
Entre 1938 e 1942, não obstante a instalação do Departamento de Imprensa e
Propaganda Estadual (DIPE), um desdobramento do Departamento de Imprensa e Propaganda
250

Ibid., p. 128.
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p.
84.
252
SANTOS, Ademir da Costa. A Ação Integralista Brasileira em Sergipe (II). Jornal da Cidade. Aracaju, p.
B-6 - B-6, 21 nov. 2008. B-6.
251

97

(DIP), criado pelos ideólogos que militavam dentro daquela orientação estadonovista para
submeter ao seu arbítrio o conteúdo veiculado pelas plataformas midiáticas, Aracaju
testemunhou o surgimento de sofisticadas edificações aplicadas a instituições como IHGSE,
Biblioteca Pública, entre outras. Se em São Cristóvão, capital provinciana até 1855, a
interventoria de Eronides Carvalho (1937-1941) sancionava uma política patrimonial que
elevava àquela cidade ao status de monumento histórico, a principal cidade sergipana,
seguindo o influxo daquela nova tendência cultural, assistia, também, ao florescimento do
Centro Cultural de Sergipe, cuja duração se estendeu por dois anos.
Mesmo contando com a participação de José Calazans, um grande entusiasta do
integralismo em Sergipe noutrora, o Centro renunciou ao repertório ideológico e optou por
priorizar pautas relacionadas, em grande medida, à literatura e filosofia. Embora não tenha
contribuído diretamente para a constituição duma cultura política filiada a quaisquer pólos
ideológicos, a exemplo do esforço empreendido pelo IHGSE e sua revista para esses fins, os
membros deste agrupamento253 se empenharam em estabelecer um período marcado por
contemplar grandes trabalhos nas Ciências Humanas e áreas congêneres.
Não obstante o estabelecimento deste recorte caracterizado pelo advento de um novo
movimento intelectual que prescindia das questões ligadas a ideologia, Aracaju absorveu,
entre os dias 15/08/1942 e 16/08/1942, as agressões da 2ª Guerra Mundial. Os
desdobramentos deste conflito, que dantes transcorria em solo europeu, africano e asiático,
atingiram a costa litorânea aracajuana graças aos torpedeamentos deflagrados pelo submarino
alemão U-507, naufragando navios mercantes que transitavam naquele perímetro254. Nesse
ínterim, a cultura política sergipana, sobretudo na capital, reingressava nos embates
ideológicos em conformidade com as tendências importadas daquele período belicoso.
Segundo Cruz (2012), corroborando com as assertivas formuladas por Dantas (2004) e
Santos (2008), existiam adeptos de movimentos ligados ao ideário democrata, comunista,
fascista/integralista, anarquista e varguista. As sucessivas vitórias alemãs até 1942, contudo,
despertaram a atenção de simpatizantes nazistas, sejam eles teutônicos radicados ou até
mesmo autóctones, tanto em Aracaju quanto n‘algumas cidades interioranas, acirrando os
debates que transcendiam as dimensões intelectuais e conduzindo, mais uma vez, a cultura
política local para as raias do autoritarismo. Conforme assinala Cruz (2012):

253

Soma-se a José Calazans, ainda, intelectuais como Orlando Dantas, Felte Bezerra, Mário Cabral, Epifânio
Dórea, dentre outros.
254

CRUZ, op. cit., p. 126.

98

Este último grupo (simpatizantes do nazismo), embora pequeno e mal
interpretado pela sociedade da época, foi dividido pela polícia sergipana em
dois subgrupos: os sergipanos simpatizantes da Alemanha Nazista e os
alemães adeptos do NSDAP – Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães. Nazistas em Aracaju? Sergipano compactuando com ideias arianas
não seria um ―paradoxo étnico‖?255

Quanto ao primeiro subgrupo retratado pelo autor, em certa medida, constatou-se que
ele era composto por comerciantes aracajuanos256. Com a crise de 1929 e o consequente
colapso da economia global, as atividades econômicas aracajuanas sofreram déficits
significativos que se estenderam até os primeiros anos da década posterior. Entre 1934 e
1939, período no qual a Alemanha transgrediu as sanções previstas pelo Tratado de Versalhes
e impulsionou seu desenvolvimento econômico, o Brasil intensificou as relações com os
germânicos e fora responsável, segundo aponta Cruz (2012), por 30% das importações
operadas pelo 3º Reich. Como as transações contribuíram, sobretudo, para o restabelecimento
das atividades fluviais-marítimas, criando, desse modo, uma certa aversão aos estadunidenses
– responsabilizados pela recessão financeira que impactou a economia mundial -, o comércio
aracajuano foi automaticamente beneficiado e constituiu-se um estreito vínculo entre alguns
sergipanos e a Alemanha Nazista, cuja conexão era nutrida por motivações comerciais257.
Já o segundo subgrupo, integrado por alemães simpatizantes do Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), esteve representado por um número
controvertido de investigados, dentre os quais destacamos Rodolfo Von Doehn e Herbert
Merby. Enquanto o primeiro inquirido afirmou que ―não era contrário ao regime nazista‖258,
o último despertou uma atenção ainda mais abrangente. Radicado em Aracaju, Merby
permaneceu sob ostensiva investigação da polícia local pelas atividades que desempenhava.
O teutônico, que residia nas proximidades duma praia, consertava pianos e apresentava
excelente traquejo com máquinas, foi interpretado como principal suspeito daquelas
diligências, pois o local no qual fixara residência era estratégico para enviar eventuais
informações aos agressores da Kriegsmarine, força naval alemã que coordenou os

255

CRUZ, Luiz Antônio Pinto. A guerra já chegou entre nós: o cotidiano de Aracaju durante a guerra
submarina (1942-1945). Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal da Bahia. Salvador, 2012. p. 128.
256
―Os nomes arrolados foram: Jaime Aragão, Manoel Ferreira de Santana, Raimundo Leituga, Valter Loeser,
Amando Almeida Leão, Antônio Dutra de Almeida, Francisco Pereira de Almeida, Felismino Pereira de
Almeida, José Vieira de Menezes. Eles ganharam a alcunha de ―amigos‖, ―simpatizantes‖ ou ―devotos‖ de Adolf
Hitler‖ (CRUZ, 2012, p. 126).
257
Ibid., p. 130.
258
Ibid., p. 137.

99

torpedeamentos no litoral aracajuano. Cruz (2012), no entanto, com base em um levantamento
documental criterioso, concluiu que:

[...] criaram representações exageradas de Herbert Merby. Eram construções
tendenciosas, pois serviam mais para manipular resultados do que esclarecer
a investigação de espionagem. Inversamente do que apurou o inquérito, o
prático José Martins Ribeiro Nunes (Zé Peixe) afirmou que Herbert Merby
foi apenas mais vítima da desconfiança popular e da ira gerada pelos
torpedeamentos, pois não ficou nada comprovado contra ele. Afinal, quantas
imagens de Herbert Merby foram construídas em uma Aracaju amedrontada?
Inúmeras, pois o imaginário social fez o aracajuano ver o invisível ou a
entender o desconhecido com as representações que ele criou ou se
apropriou em sua leitura dos conflitos259.

O término da 2ª Guerra Mundial, em 1945, para além de representar a capitulação das
forças eixistas, encontra-se associado à desarticulação daquele regime historiograficamente
conhecido como Estado Novo, iniciando, portanto, mais um período de grandes
transformações ocasionadas pelo domínio populista (1945-1964), ordem que se instaurou no
cone sul entre as décadas de 40, 50 e 60. Com o estabelecimento duma cultura política
voltada para a afirmação de líderes carismáticos em regimes democráticos e/ou autocráticos,
outro componente dinamizaria os esforços ideológicos naquela porção do continente
americano: a Guerra Fria.
Se no transcorrer dos anos 30 e 40 o país testemunhou uma configuração ideológica
estruturada em variadas tendências, a partir de 1946, com feito, as bases da ordem populista
absorviam a polarização advinda da conjuntura internacional. Em Aracaju, centro urbano
responsável por irradiar um esboço de cultura política para as demais regiões do estado,
tamanha dualidade foi consolidada durante as eleições processadas entre 1946-1947.
Contando com o apoio d‘alguns setores da Igreja Católica - instituição já empenhada num
acentuado esforço combativo ao comunismo e que se antecipou em demonstrar o periclitante
contexto de radicalização característico dos anos 60 -, a coalizão conservadora composta pelas
legendas PSD-PR elegeu o engenheiro José Rolemberg Leite (1947-1951) para o cargo de
governador.
Enquanto o mandatário estadual instaurava uma rigorosa política de responsabilidade
fiscal, priorizando a ampliação de unidades escolares na zona rural, sua gestão se notabilizou,
também, por reprimir sistematicamente ―os movimentos populares, sobretudo o movimento
259

CRUZ, op. cit., p. 137.

100

comunista‖260. Em Aracaju, setores sociais orientados pelo viés marxista, principalmente a
categoria proletária, fortaleciam-se graças às atividades desenvolvidas pelo PCB em âmbito
nacional e tamanho entusiasmo se estendeu por cidades como São Cristóvão, Propriá e
Estância, reiterando aquela premissa na qual Aracaju exerceu importante influência para
conformação de uma cultura política no estado.
O alinhamento do presidente Eurico Gaspar Dutra com a política externa estadunidense
na segunda metade de 1946, contudo, submeteu o opus operatum da sigla ao arbítrio do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que ―terminou cancelando seu registro em 07/05/47‖261. E.
G. Dutra, que, inclusive, participaria da marcha carioca 17 anos depois, empreendeu uma ação
persecutória contra os militantes do PCB, causando impacto imediato na capital sergipana.
Com base naquela rigorosa orientação, Rolemberg Leite inaugurou sua escalada repressiva
contra os ativistas daquela sigla posta na clandestinidade.

[...] o governo da coalizão PSD/PR proibiu em Aracaju, inclusive, um
comício pacífico. Quando os comunistas combativos tentaram realizá-lo, o
esquadrão de Cavalaria investiu contra a massa no sentido de dispersá-la e
um tiro atingiu um militante comunista, Anísio Dário, que logo faleceu,
enquanto vários de seus correligionários eram presos. Os numerosos filhos
perdiam o pai, os comunistas ganhavam um mártir e o governo ficaria
marcado pela intolerância, apesar das tentativas de culpar terceiros pela
tragédia262.

Ao passo que as arbitrariedades eram sistematicamente praticadas pelo mandatário
estadual, não obstante o fato daquela agremiação encontrar-se na ilegalidade, os seus
militantes empregavam uma estratégia bastante usual naquele período de impedimento,
infiltrando-se em siglas que partilhavam d‘algumas pautas ideológicas. Em Sergipe, com
maior confluência na capital, os ativistas vinculados ao PCB migravam para partidos como
PTB, expressão máxima do movimento trabalhista nacional, UDN263 e PSB, ―que defendia o
socialismo com liberdade‖264 e permanecia sob a batuta do socialista Orlando Dantas,
contumaz defensor do nacional-reformismo proposto por João Goulart nos anos 60.
Se a primeira composição do Executivo estadual pós-redemocratização era ocupada
por setores alinhados a um projeto político conservador, sua sucessão, embora engajada na
260

DANTAS, Ibarê. História de Sergipe República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p.
123.
261
Ibid.
262
Ibid., p. 124.
263
Ao contrário de estados como Rio de Janeiro, Alagoas e Paraíba, o diretório da UDN em Sergipe não aderiu a
orientação anticomunista.
264
DANTAS, op. cit. pp. 124-125.

101

mesma coalizão (PSD-PR), imprimiu uma orientação lastreada em estruturas industrializantes
e nacionalistas, seguindo as tendências do varguismo265. Entretanto, mesmo com a ascensão
de uma nova faceta populista capitaneada por Getúlio Vargas, representando outra variação na
dinâmica cultura política brasileira, a aura anticomunista daquele período conduziu alguns
dirigentes a empreenderem novas perseguições aos adversários, preservando, ainda, certas
reminiscências da gestão anterior.
Na capital estadual, o governador Arnaldo Rolemberg Garcez (1951-1955), após a
vitória lograda pelos setores nacionalistas do Clube Militar-RJ, deliberou o emprego de
escaladas repressivas contra forças oposicionistas, fossem elas inflexionadas para o
comunismo ou não. Entre acusações e interrogatórios caracterizados pela proeminência de
agressões, os militares se anteciparam em prender oficiais e civis, com destaque para
dirigentes do PCB.
Como força reativa a tamanha atmosfera de combatividade na esteira ideológica,
intelectuais fundaram, em Aracaju, entre 1953-1954, o Centro de Ação Democrática. Sob o
pretexto de criar uma ferramenta dialógica que aproximasse siglas partidárias adversárias,
visando à diminuição dos crimes cometidos por motivações políticas, este movimento
empreendia seus esforços com base em um ideário nacionalista.
No entanto, as informações sobre a ação destes militantes são muito escassas,
impedindo-nos de desbravar este relevante componente da cultura política sergipana que
poderia emitir novas luzes acerca deste embate entre ―conservadores/autoritários versus
democratas‖, embora tal maniqueísmo seja combatido por Figueiredo (s/a), o qual afirma que
―esta divisão é produto de alquimia inquisitorial e reacionária‖266.
Nesse ínterim, os agrupamentos mais inclinados ao conservadorismo foram, em certa
medida, mesmo com a tentativa de instaurar um golpe após o suicídio do presidente,
combatidos pela estruturação daquela experiência democrática, abrindo precedente para a
ascensão de forças políticas mais suscetíveis ao populismo e atribuindo novas inflexões a uma
cultura política eminentemente conservadora. Entre 1955 e 1962, Sergipe esteve sob a
liderança da UDN, cujos governadores foram Leandro Maynard Maciel e Luiz Garcia267,
respectivamente. Se na esfera nacional esta agremiação atuou com base em uma orientação

265

Getúlio Vargas retornou ao poder, sob o signo da democracia representativa, após vencer as eleições
presidenciais de 1950, sendo qualificado pela historiografia, a partir daquele mandato, como um dirigente
populista.
266
FIGUEIREDO, Ariosvaldo. História Política de Sergipe (1962/1975). Aracaju: Livraria Regina, s/d. p. 54.
267
Em meados de 1962, Luiz Garcia transmitiu o exercício do cargo para o vice-governador, já que pleitearia
uma cadeira no senado nas eleições gerais daquele ano.

102

considerada liberal-clássica e antipopulista, em âmbito local, a rigor, uma boa parte de seus
correligionários exercia certa autonomia em relação à agenda do diretório nacional.
Nos anos 50, conforme já registrado em nota de rodapé, a seccional sergipana optou
por não empregar uma escalada persecutória aos comunistas, que, reconhecendo a
flexibilidade daqueles líderes, até concedeu sustentação as investidas eleitorais da UDN268.
Enquanto os rearranjos político-ideológicos acentuavam o quadro de tensões, as disparidades
econômicas entre nordeste/sudeste foram ampliadas - sendo, posteriormente, combatidas pelo
governo JK - e a seara cultural ingressava em um período bastante promissor.
Neste hiato de 11 anos (1951-1962), ao passo que setores da sociedade civil
contemplados com o suporte financeiro advindo do governo estadual inauguravam as
Faculdades de Direito (1951), Filosofia (1951), Serviço Social (1954) e Ciências Médicas
(1961), fundava-se o Museu Histórico de São Cristóvão, instituição museal responsável por
aglutinar um representativo acervo da cultura material sergipana269. Embora esta instituição,
com base em sua missão institucional, não tenha colaborado para a fabricação de uma cultura
política propriamente dita, as unidades de ensino superior, especialmente os egressos das
Faculdades de Direito e Filosofia, desempenhariam papel relevante nos embates transcorridos
na gestão Seixas Dória (1963-1964).
Composta por uma coalizão que abrigava, inclusive, dissidentes udenistas sob a
liderança de Dória, a Aliança Social Democrática (ASD) conduziu o até então deputado
federal para o Executivo estadual. Após oito anos de domínio udenista, exercitando
significativa alternância com sua sigla rival (PSD) desde a redemocratização, a agremiação
conservadora demonstrou incapacidade de desenvolver um projeto dentro daquela orientação
populista que se esboçava como preponderante em nossa cultura política, ―transmitindo‖,
portanto, a condução deste projeto para o governador eleito.
Último mandatário estadual da ordem populista, cujos últimos momentos enquanto
dirigente foram descritos no capítulo anterior, Dória acentuou a polarização da conjuntura
política local, sobretudo em Aracaju, ao aproximar-se de movimentos sociais. Diferentemente
de alguns antecessores que empregavam, em certa medida, uma política conciliatória para se
equilibrar sobre forças antagônicas e, desse modo, assegurar a governabilidade, o chefe do
Executivo imprimiu uma faceta alinhada às ações conduzidas por João Goulart. Contudo, em
268

DANTAS, Ibarê. História de Sergipe República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p.
170.
269
Para saber mais sobre a composição dos espaços museais em Sergipe, ver: REIS, Raphael Vladmir Costa. Sob
a lupa de Mnemosine: apontamentos para a identificação e mapeamento dos museus em Sergipe. Monografia
apresentada ao Departamento de Museologia da Universidade Federal de Sergipe. Laranjeiras, 2016.

103

uma sociedade caracterizada pela tradição conservadora e autoritarismo pragmático, que se
constituiu como reprodução fidedigna do âmbito nacional, tamanho projeto encontraria
significativas adversidades.
À medida que o contexto de radicalização se intensificava, seja nos centros urbanos,
seja em perímetros rurais, todos mobilizados graças ao decreto que previa desapropriação de
terras às margens das rodovias, alguns setores da sociedade sergipana iniciavam uma ampla
campanha contra a dupla Goulart/Dória e seu projeto reformista. A cidade de Aracaju, tal
como em todos os momentos marcados pela convulsão ideológica, não ficaria à margem desse
momento político-social efervescente, tornando-se uma das primeiras urbes sergipanas a
organizar as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e demonstrando, mais uma vez, o
conservadorismo/autoritarismo responsável por estruturar a cultura política local e que
permaneceu velado durante décadas.

4.3. Coturnos, sacrários e o anticomunismo: reflexões sobre a primeira Marcha da Família
com Deus pela Liberdade em Aracaju

Já era tarde do dia 14/04/1964, uma terça-feira, quando os participantes da marcha
aracajuana se arregimentavam na Praça Fausto Cardoso270, especificamente defronte a
Assembleia Legislativa. Carregando terços, bíblias e alguns cartazes – as informações sobre a
presença deste elemento são controvertidas -, uma parcela daquela população, influenciada
pelo discurso anticomunista propagado por católicos conservadores e estratos sociais médios,
empenhava-se em inaugurar as relações de cumplicidade com um regime controverso,
autoritário e impessoal.
Neste sentido, os eventos transcorridos entre janeiro e março de 1964 em Sergipe,
sobretudo na capital, constituem-se como essenciais para compreender o modo pelo qual a
primeira marcha aracajuana ocorreu e quais foram, de fato, as reais motivações que
impulsionaram sua planificação, execução e ampla adesão. Enquanto o clímax de
radicalização irrompia pelo corpus social nacional, constituindo um aspecto bastante peculiar
do governo Goulart, Aracaju absorvia as ressonâncias de outra experiência complexa infligida
a nossa trajetória republicana. Se os agrupamentos nacional-reformistas constituídos neste
centro urbano, com base em suas eternas dissidências, prescindiam de organização, os setores

270

Nomenclatura atribuída em homenagem póstuma a Fausto Cardoso, destacado político sergipano cuja atuação
foi analisada na seção 3.1.

104

conservadores mais influentes da sociedade aracajuana, ignorando suas divergências, já
permaneciam em trabalho de mobilização.
Ainda que pese a atuação daquele grupo político autodenominado ―Partido do Boi‖,
já mencionado anteriormente e que abrigava um significativo número de latifundiários,
herdeiros da tradição coronelista, a capital manteve-se, direta ou indiretamente, sob o influxo
das ações desempenhadas pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Embora
existam informações fortuitas sobre a participação deste órgão de desestabilização em
Sergipe, não obstante o caso do candidato a governador Leandro Maciel, o
historiador/jornalista Figueiredo (s/a) assinala que D. José Vicente Távora, em gesto
confessional e após muita relutância, revelou-se bastante preocupado com às ameaças
representadas pelas forças conservadoras ao projeto nacional-reformista, colocando ―o jornal
‗A Cruzada‘ e a Rádio Cultura, de propriedade da Igreja Católica, a serviço do IBAD, sigla
sinistra da reação, da direita, do Golpe (sic)‖271.
Outra figura que obteve destaque entre os setores antigovernistas foi Lourival
Baptista, deputado federal (1959-1967) e mandatário estadual (1967-1970) por ocasião de um
pleito indireto. Líder udenista em Sergipe ao lado do correligionário Leandro Maciel, ele
esteve vinculado a Ação Democrática Parlamentar (ADP), grupo suprapartidário que recebeu
recursos financeiros provindos do próprio IBAD, pressupondo que o legislador sergipano
estaria incluído na lista de beneficiários por atividade associativa. Mesmo revelando-se um
parlamentar astuto, Baptista costumava exercitar uma retórica agressiva em ocasiões nas quais
versava sobre o momento político do país, tornando-se um estratégico agitador daquelas
forças que legitimariam o golpe civil-militar. Num discurso proferido na Câmara dos
Deputados, em fins de 1963, o parlamentar sergipano já esboçava o establishment que se
constituiria no plano local até abril de 1964.

Nesta hora em que os ideólogos do credo vermelho mais se assanham e
recebem cobertura de certas faixas oficiais, no momento em que os
marxistas não mais tem (sic) cuidado em relação ao que dizem, ao que
pregam, bom será que não durmamos sobre a excelência do regime que
defendemos, pois as vantagens da democracia estão servindo de arma secreta
para seus inimigos, para os que desejam ideologia única plantada na terra de
Santa Cruz. Não há mais tempo para esperar. Eles se preparam, técnica e
inteligentemente, para novas safras. Mais patriotas ainda terão de tombar,
mais sangue terá de correr por esta terra, pois os inocentes úteis são muito
mais numerosos que no passado. Os conflitos se sucedem, a pregação

271

FIGUEIREDO, Ariosvaldo. História Política de Sergipe (1962/1975). Aracaju: Livraria Regina, s/d. p. 54.

105

psicológica é hoje feita pelas próprias áreas oficiais, num festim de greves
programadas272.

Com base nas duas últimas linhas deste excerto, embora seja impreciso afirmar se o
legislador estava aludindo a alguma mobilização em Sergipe, já que aquele período
correspondente a 1963-1964 foi caracterizado por inúmeras manifestações grevistas
deflagradas pela classe trabalhadora, uma delas seria determinante para que o governador
Seixas Dória obtivesse o apoio definitivo d‘algumas forças nacional-reformistas atuantes no
estado, obrigando os setores conservadores a acentuarem seu plano de ação.
Ao passo que os membros da Associação de Servidores Públicos Estaduais em
Sergipe (ASPES) e outros organismos sindicais se arregimentavam na Praça Fausto Cardoso,
em

Aracaju,

dia 15/02/1964, como

gesto

de adesão as

sensacionalissimamente defendidas pelo mandatário estadual

273

propostas

reformistas

, o prefeito de Propriá proferia

uma palestra no Seminário de Politização, reafirmando seu ideário nacionalista/populista e
complementando que estaria ―ao lado do governador até que o mesmo mantivesse a linha que
vem traçando na luta em prol dos camponeses‖274.
Entretanto, a presença de dois jornalistas estrangeiros no ato promovido em plena
capital, ao que tudo indica, acentuou às suspeitas daquela paranoia autodenominada
―conspiração comunista‖, exercitada regularmente pelos setores conservadores da sociedade
aracajuana. Seus nomes eram Mikhail Aliabiev e Leonid Ramanov, correspondentes da
Agência Tass, principal veículo de comunicação soviético. Quanto ao grau de engajamento
destes profissionais na mobilização pró-governador, as informações se revelaram demasiado
irrisórias, exceto por um trecho presente no livro do jornalista/historiador Ariosvaldo
Figueiredo, no qual ele afirma que ―desde o dia 14 estão em Aracaju. Eles conhecem a terra e
a gente sergipana, dia 15/02/1964, e testemunham, na Praça Fausto Cardoso, concentração
popular de apoio a Seixas Dória por suas posições a favor das Reformas de Base‖275.
Sendo assim, estas mobilizações representariam, por definição, a construção de um
canal comunicativo, teorizado como direto, entre forças nacional-reformistas e lideranças
políticas que atuavam dentro desta orientação. Em termos práticos, contudo, agravantes como
desorganização, somados a ausência de comprometimento com o projeto político proposto, e
um completo desapego a tradição democrática nutrido por alguns desses canais militantes,

272

Ibid. (Trecho de um discurso proferido por Lourival Baptista).
Cf. Gazeta de Sergipe. 16/02/1964. p. 01.
274
Cf. Gazeta de Sergipe. 18/02/1964. p. 01.
275
FIGUEIREDO, op. cit., 61.
273

106

fruto de uma cultura política eminentemente autoritária, municiaram as forças conservadoras
para que sua ordem político-institucional fosse sublevada entre março e abril daquele
radicalizado 1964.
Retomando a análise sobre o modus operandi empregado pelos conspiradores civis,
para além da contribuição concedida pelo Bispo Auxiliar D. Luciano Cabral Duarte, é
imprescindível evidenciar o protagonismo feminino neste processo. Reforçando uma premissa
segundo a qual ―a religiosidade das mulheres foi um dos elementos-chave para levá-las a
combater o governo e as reformas‖276, julga-se apropriado inserir, portanto, a atuação das
irmãs G.277, fundadoras de um tradicional colégio aracajuano e responsáveis pela planificação
das marchas transcorridas naquela cidade. Conhecidas por empregar ―métodos coercitivos‖,
segundo a descrição de um depoente278, as personagens confrontaram-se com uma
circunstância adversa durante as semanas que precederam o golpe civil-militar.
Em março, as representações estudantis deliberaram a deflagração de uma
manifestação grevista em razão do reajuste ―das anuidades escolares‖279. Enquanto o
governador Seixas Dória viajava, Sebastião Celso Carvalho, sobre quem já dediquei algumas
reflexões, foi designado para contornar aquele impasse, já que era o chefe do Executivo
Estadual em exercício. Conforme consta em seu pequeno, porém elegante e informativo livro,
uma adaptação do discurso proferido na Câmara de Vereadores em 1968, o dirigente
asseverou que:

De um lado, adolescentes em rebeldia. Do outro, diretores de colégios e pais
de alunos sob acentuada pressão nervosa. Alguns destes pais haviam, logo
cedinho, me procurado no meu apartamento, pedindo garantias. Fui para o
Palácio, convoquei o Secretário de Segurança e determinei que se desse toda
garantia aos colégios [...] Entrementes chega à minha presença o Primeiro
Delegado da capital, comunicando-me que a invasão do Colégio Salvador
estava iminente e cabia que eu ordenasse o contra ataque280.

Em resposta, transtornado com a intensificação daquele quadro, Carvalho convocou
uma rápida reunião e optou por decretar feriado, afirmando ―não haver vencedores nem
vencidos‖281. A decisão foi empregada, segundo ele, como medida preventiva para evitar

276

FIGUEIREDO, Ariosvaldo. História Política de Sergipe (1962/1975). Aracaju: Livraria Regina, s/d. p. 88.
Como não obtivemos autorização para assinalar o nome completo destas matriarcas, já que algumas delas se
encontram vivas, o presente estudo optou por utilizar abreviações.
278
Entrevista concedida pelo professor Luiz Fernando R. Soutelo, na cidade de Aracaju, em 30/08/2018.
279
Cf. Gazeta de Sergipe. 03/03/1964. p. 01.
280
CARVALHO, Sebastião Celso. O destino Acontece. Livraria Regina, Aracaju. s/d. pp. 08-09.
281
Ibid., p. 09.
277

107

confrontos entre policiais e estudantes, encaminhando, posteriormente, o comunicado a
direção do Colégio Salvador, cujas proprietárias eram as irmãs G..
À medida que as integrantes da Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE),
União Cívica Feminina (UCF) e demais entidades iniciavam os preparativos para a
planificação da marcha paulista, dia 19/03/1964, as matriarcas daquela tradicional unidade
educacional aracajuana testemunharam, à distância, algumas reações ao comício em apoio às
Reformas de Base, do qual Seixas Dória participou, conforme já assinalado. Como o dirigente
sergipano assegurou que cumpriria os decretos da SUPRA, desapropriando terras localizadas
às margens das rodovias estaduais, o legislador pessedista José Almeida Fontes, em tom
ameaçador, afirmou que ―a sobrinha do senhor Seixas Dória será esmagada com uma rajada
de metralhadora se tentar desapropriar qualquer propriedade‖282.
Embora se trate duma declaração inescrupulosa, estas posturas não representavam
uma dimensão singular em Sergipe, haja vista que a cultura política deste estado
preservava/preserva, também, algumas reminiscências do período coronelista e muitos
dirigentes atuantes nos anos 60 não se furtavam em exercitar tais práticas, pois eram egressos
daquela experiência. Não obstante a gravidade das acusações advindas daqueles reacionários
que constituíam a esfera política, o golpe civil-militar é deflagrado em 31/03/1964 e a capital,
assim como noutras experiências caracterizadas pela convulsão político-ideológica, absorveu
imediatamente as arbitrárias ressonâncias daquela ruptura institucional.
Ao contrário do colaboracionismo articulado pela classe política sergipana,
fundamentalmente composta por grandes latifundiários, às ações atribuídas aos líderes civis
da conspiração não obtiveram destaque nas produções historiográficas locais283. Sendo assim,
com o intuito de desbravar uma nova ótica analítica em nosso campo, esta seção se propõe a
evidenciar os esforços empreendidos pelas referidas irmãs.
Mesmo com a inconsistência transmitida pelas fontes, que impôs certas restrições no
preenchimento das lacunas emergidas ao longo desta pesquisa, é possível afirmar que
entidades como CAMDE (RJ), LIMDE (MG) e UCF (SP), integradas por mulheres
pertencentes à classe média e amparadas pelo apoio operacional das instituições
desestabilizadoras IPES/IBAD/Igreja Católica, ampliaram sua articulação para alguns estados,
auxiliando no desenvolvimento das marchas que contribuíam para legitimar o golpe civil-

282

FIGUEIREDO, op. cit., p. 67.
A única exceção, com base em um rigoroso levantamento bibliográfico, é a produção de Ariosvaldo
Figueiredo, que apontou alguns nomes em tom denunciativo.
283

108

militar, suscitando determinados questionamentos e uma hipótese segundo a qual as mulheres
sergipanas atuavam em conformidade com aquelas associações nacionais.
Eis, portanto, as minhas indagações: existiam, de fato, organizações femininas em
Sergipe? Caso esta resposta seja positiva, sob quais parâmetros tal diálogo se processou? Ao
analisar os desdobramentos da conjuntura nacional e local, Figueiredo (s/a), em vertiginosa
convergência com os interlocutores do segundo capítulo, evidencia o modus operandi
aplicado por este setor civil.

As mulheres, com medo do comunismo, repetem, nas praças e ruas, o padre
norte-americano Patrick Peyton: ‗A família que reza unida, permanece
unida‘ [...] A participação da mulher, especialmente da burguesia e da classe
média, é importante, decisiva para a arregimentação popular e a legitimação
do golpe (sic.) de 31/03/1964. A mulher atua em todo o País (sic.), está
articulada com o IPES, sigla golpista que destaca os deputados federais
Cunha Bueno, Hebert Levy, Arnaldo Cerdeira, Pedro Aleixo, Menezes
Cortez, Eurípedes Cardoso de Menezes e os sergipanos Lourival Baptista e
Arnaldo Rollemberg Garcez. Tem cobertura da Igreja Católica, a partir dos
Círculos Operários284.

Com base nesta afirmação ―denunciativa‖, não há, por ora, como descrever
minuciosamente o modo pelo qual esses esforços dialógicos foram construídos e se estas
personagens femininas operavam, oficialmente, sob a forma de grupos/entidades/núcleos,
especialmente em Aracaju. Enquanto aquela arregimentação popular era executada entre
março e abril nas principais regiões do país sob o título de ―Marcha da Família com Deus pela
Liberdade‖, as irmãs G., auxiliadas por Santos Mendonça285 e pelo Bispo Auxiliar D. Luciano
Cabral Duarte, planificavam a primeira marcha na capital.
Após a consolidação do golpe, culminando com as deposições de João Goulart e
Seixas Dória, a composição provisória do Executivo Federal instaurou o Ato Institucional
Número 1 em 09/04/1964, iniciando, desse modo, a institucionalização do regime militar.
Cinco dias depois, isto é, dia 14/04/1964, era realizada a Marcha da Família aracajuana, já
elevada ao estatuto de ―desfile da vitória‖. No entanto, sua nomenclatura oficial foi
preservada pelo ―comitê organizador‖ sergipano, o qual chamou a atenção por renunciar ao
auxílio de um instrumento estratégico.

284

FIGUEIREDO, op. cit., pp. 88-89.
Segundo Darlem Reis (2015), Santos Mendonça foi jornalista e ―um dos responsáveis por disseminar a
radiofusão em Sergipe‖ (DARLEM REIS, 2015, p. 84). Além disto, o profissional de imprensa ocupou os cargos
de vereador e deputado estadual. Em 1964, após a instauração do golpe-civil militar, teve seus direitos políticos
cassados.
285

109

Segundo sistemática apuração das fontes impressas, não houve uma convocação prévia
via jornal286 – um dos principais veículos daquele período - para a população em geral
aglutinar-se naquele ato, embora uma matéria publicada pelo Gazeta de Sergipe dia 15/04
tenha mencionado tal ação.

Grande massa de católicos atendeu, ontem, a convocação de setores
religiosos e realizaram uma significativa passeata pelas ruas desta capital,
integrando a chamada ―Marcha da Família com Deus pela Liberdade‖, em
287
regojiso (sic) pela Revolução de 30 de março último .

Deste modo, as lideranças religiosas e alguns setores da sociedade civil,
capitaneados, sobretudo, pelas irmãs G., instituíram os esforços para a denominada
―convocação‖. O corpo eclesiástico, ao que tudo indica, desempenhou esta atividade através
das missas celebradas, principalmente, na Igreja matriz; já os mentores civis, também
amparados pelo jornalista Santos Mendonça, gozaram de sua influência social e,
possivelmente, divulgaram a realização das marchas mediante um programa radiofônico
apresentado por este profissional de imprensa.
Em pleno dia da manifestação, transcorrida no dia 14/04/1964, Aracaju amanheceu
com a veiculação de notícias relacionadas às consequências ocasionadas pelas fortes chuvas
que castigavam o pequeno estado288, imprimindo uma percepção segundo a qual nenhum
evento de orientação político-ideológica seria executado naquela capital. No entanto, o status
quo fabricado pelo periódico não correspondia ao clima de mobilização política da cidade
naquele 14/04. Com base em um rigoroso levantamento de informações, visando reconstituir
os desdobramentos daquela manifestação, pressupõe-se que ela transcorreu entre às 15h e
18h, sendo composta por ―várias autoridades civis, eclesiásticas e figuras da alta sociedade
sergipana‖289, conforme a reportagem veiculada pelo Gazeta.
O próprio periódico, prescindindo de informações mais detalhadas para identificar
alguns nomes daqueles partícipes, dedicou uma relativamente grande propriedade da primeira
página para descrever os principais elementos agregados à estrutura funcional das marchas.
Neste sentido, um aspecto que despertou significativa atenção foi, a princípio, o público
participante. Assim como nas marchas transcorridas em Aracaju, as demais manifestações

286

Vale ressaltar que em várias cidades do país, a rigor, os jornais desempenharam um significativo papel na
divulgação daquelas marchas.
287
Cf. Gazeta de Sergipe. 15/04/1964. p. 01. Isto é, um dia após a marcha aracajuana.
288
Cf. Gazeta de Sergipe. 14/04/1964. p. 01.
289
Cf. Gazeta de Sergipe. 15/04/1964. p. 01

110

realizadas em algumas regiões do país foram prestigiadas por autoridades civis, setores
privilegiados da sociedade local e, sobretudo, religiosos.
Este perfil social, tradicionalmente arraigado em uma cultura política eminentemente
conservadora e assentado nas diretrizes do autoritarismo pragmático, especialmente no
Nordeste, é herdeiro daquela tradição coronelista já mencionada nesta seção e se empenhou
em degastar ideologicamente a estrutura nacional-reformista que se esboçava sob a liderança
de Goulart e seus aliados, reivindicando, mediante a promoção destas marchas, uma
―intervenção moralizadora‖ para desestruturar uma eventual influência exercida pelo
comunismo sobre o país, segundo a pauta ideológica dos organizadores e participantes.
Mas o objetivo deste público era, de fato, legitimar o golpe civil-militar, ou defender a
deposição do presidente em exercício para que outro dirigente, orientado pelo mesmo viés
político, social e econômico, assumisse o posto através de novas eleições? Analisando
retrospectivamente o desencadear dos eventos, por razões óbvias, ficou clarividente que a
complexa estrutura funcional das marchas operou com o intuito de conferir legitimidade à
ruptura institucional, principalmente porque os idealizadores das primeiras manifestações em
âmbito nacional, bem como alguns religiosos, não se furtaram em eufemizar as sucessivas
arbitrariedades praticadas pelos militares, mesmo após a progressiva institucionalização do
regime militar mediante a edição dos dois primeiros Atos290.
Por outro lado, ao inferir uma depreensão mais restrita sobre aquele status quo, sem
isentar aqueles personagens de tamanha responsabilidade pelo respaldo concedido aos
golpistas, seria incorreto deduzir que o intuito daquelas manifestações era, única e
exclusivamente, depor o presidente, assim como ocorreu com Dilma Rousseff entre 2015 e
2016? Como se trata duma questão demasiado complexa, a conclusão para tal questionamento
requer uma profundidade analítica maior e ela será construída ao longo deste exercício
destinado a analisar as marchas transcorridas em Sergipe.
Retomando as reflexões sobre os participantes da primeira marcha aracajuana, com
base em uma premissa segundo a qual o jornal Brasil Urgente caracterizou a precursora
manifestação paulista enquanto ―um desfile do café-society‖291, designação atribuída graças a
maciça presença da classe média, julga-se apropriado circunscrever a manifestação cívico-

290

Esta dissensão só ocorreria, em grande medida, após 1968, quando o gal. Costa e Silva instaurou o Ato
Institucional Número 5.
291
Tal qual apropriadamente mencionado na última seção do segundo capítulo, o termo foi empregado pelo Frei
Carlos Josaphat, editor do jornal Brasil Urgente, para caracterizar a predominante presença da classe média
naquelas manifestações.

111

eclesiástica realizada na capital sergipana naquele conceito, pois o referido estrato social
compôs a primeira fila da passeata.
Para além dos eclesiásticos que permaneciam sob a batuta de D. Luciano Cabral
Duarte, conforme constatado naquela matéria veiculada pelo Gazeta, embora nomes não
tenham sido mencionados, o ato foi ―regido‖, como já esperado, pelas irmãs G. e ―outras
figuras conhecidas da sociedade aracajuana‖292. Neste sentido, o segundo elemento que
requereu um maior esforço analítico foi o percurso, componente fundamental para decifrar as
tênues relações entre Igreja, classe média e conspiradores militares.
Visando compreender essa dinâmica sob a ótica da dimensão simbólica, em grande
medida, foi imprescindível promover uma interlocução com as proposições de Roger Chartier
(1990), para quem:
As
representações
não
são
discursos
neutros:
produzem
estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e
mesmo a legitimar escolhas. Ora, é certo que elas colocam-se no campo da
concorrência e da luta. Nas lutas de representações tenta-se impor a outro
ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo social: conflitos que são tão
importantes quanto as lutas econômicas; são tão decisivos quanto menos
293
imediatamente materiais .

Se alguns autores empenhados em reconstituir mais enfaticamente o modus operandi
destas marchas, a rigor, não as depreendem enquanto simples atos populares cuja motivação
foi à insatisfação da classe média/eclesiásticos conservadores, é possível avaliar que seu alto
nível de sofisticação tenha explicitado relevante colaboracionismo com a plataforma política
elaborada pelo núcleo militar conspirador, principalmente mediante a delimitação da
circunscrição (percurso), pois houve

uma conexão bastante significativa sustentada na

demarcação daquele itinerário, cuja análise será realizada adiante.
Arregimentando-se na simbólica Praça Fausto Cardoso, em frente à Assembleia
Legislativa, os participantes daquela manifestação, organizada sob a forma de cortejo,
deslocaram-se até a rua Pacatuba e convergiram para a avenida Barão de Maruim294,
reproduzindo cânticos e louvores. Após percorrerem quase um quilômetro, os partícipes
incursionaram pela rua Santa Luzia e concentraram-se nas instalações do Parque Teófilo
Dantas, localizado ao lado da Igreja Matriz 295.

292

Informação concedida pela depoente Aglaé D‘Ávila Fontes, em 09/04/2018.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. p. 17.
294
Cf. Gazeta de Sergipe. 15/04/1964. p. 01.
295
Ibid., p. 01.
293

112

Na oportunidade, falaram vários oradores, todos dissertando sobre os últimos
acontecimentos políticos do país, condenando a infiltração comunista no país
e erguendo louvor as forças revolucionárias vitoriosas. Ao final, foi
celebrada, ao ar livre, uma Missa em Ação de Graças pelo sucesso da
―revolução‖ (sic.) que foi assistida e cantada pelos participantes da ―marcha‖
(sic.)296.

Com base neste fragmento textual extraído do periódico, não se constitui tarefa
difícil dimensionar o clima hostil instaurado em plena capital entre março e abril de 1964,
que, por extensão, ampliaria-se por algumas cidades interioranas. Mesmo com o
estabelecimento deste reacionarismo, que se sublevou no âmbito da cultura política nacional
em contraposição aos anseios reformistas, as fontes apontam que não existiu nenhuma
tentativa de sabotar a marcha aracajuana, já que os grupos inflexionados pela orientação
janguista, para além de desarticulados, testemunharam a detenção dos seus principais líderes;
aqueles que permaneceram livres, por outro lado, encontravam-se sob ostensiva investigação
dos ainda em construção órgãos repressivos.
Com a finalização da primeira manifestação na capital, evocando uma premissa de
Chartier (1990) já mencionada nesta seção, segundo a qual ―as representações não são
discursos neutros: produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma
deferência, e mesmo a legitimar escolhas‖, concluo que o percurso cirurgicamente demarcado
entre um órgão oficial – neste caso, a Assembleia Legislativa – e a própria Igreja Matriz,
embora a missa tenha sido celebrada ao lado daquela instituição, antecipou-se em apresentar
fortes tendências a um colaboracionismo que se intensificou a partir do momento no qual
Castello Branco fora nomeado como presidente pelo Congresso.
Esta premissa permaneceu bastante evidente, também, ao longo das marchas
transcorridas na região sudeste, reforçando àquela premissa segundo a qual os organizadores
do ato aracajuano, sobretudo as irmãs G. e a faceta conservadora católica, articularam-se com
a CAMDE e demais organizações femininas mediante uma conexão não esclarecida pelas
fontes. Neste sentido, a marcha promovida sob o signo de ―Deus e da Família‖, empenhada
em demonstrar júbilo pela capitulação das forças reformistas, não se reduziu ao dia 14/04 e
seus organizadores, ainda extasiados com a convulsão político-ideológica daquele período,
empreendiam novos esforços para a organização de outra manifestação na capital.

296

Cf. Gazeta de Sergipe. 15/04/1964. p. 01.

113

4.4. Entre cânticos, louvores e pregações reacionárias: a segunda Marcha da Família com
Deus pela Liberdade em Aracaju

Você estudou sociologia e sabe que a Igreja é uma coisa importante. Então,
tem aquela comunidade que o que um padre disse... ninguém contesta.
Houve aquela inflamação de que as pessoas favoráveis a permanência de
Jango eram comunistas, quando, na verdade, muitas pessoas estavam
voltadas para o direito que você tem, de ir e vir, que é um direito
democrático [...] então, existiam muitos religiosos – tanto da Igreja Católica
quanto da Igreja Evangélica - que tinham pavor (de uma suposta influência
comunista na estrutura governamental) e que fizeram passeatas297.

Foram com estas expressões, conduzindo um misto de incredulidade e indignação,
que a depoente descreveu alguns momentos da segunda Marcha da Família com Deus pela
Liberdade em Aracaju, a qual ela testemunhou in loco, observando toda aquela
arregimentação desde a residência de sua sogra. A manifestação transcorreu doze dias após a
realização da primeira marcha e carregou consigo certas permanências e ressignificados,
sobretudo no que diz respeito ao público participante, ampliado graças à consolidação das
forças golpistas no poder.
Nesse ínterim, segundo levantamento de Presot (2004), dezesseis marchas
transcorreram por algumas capitais e cidades interioranas, dentre as quais destaco Brasília,
Florianópolis, Itu e Campos do Jordão. Embora tenha se dedicado a uma reconstituição de
algumas manifestações realizadas no país, evidenciando seus quadros multifacetados, a autora
não promoveu qualquer menção a execução destes atos em Sergipe, intensificando, portanto, a
singularidade desta pesquisa.
Deste modo, enquanto as manifestações cívico-eclesiásticas obtinham progressivos
percentuais de adeptos, o periódico A Defesa publicava em sua primeira página os onze
artigos do AI-1 e assinalava que ―o General Castelo Branco está estudando um esquema para
as reformas do país serem encaminhadas ao Congresso, com tôda (sic) a urgência. Este é
outro objetivo da revolução a ser alcançado no menor prazo, para não decepcionar a opinião
pública‖298.
Ainda impulsionados pela denominada ―intervenção moralizadora‖, alguns setores
da imprensa, assim como o referido jornal propriaense, ativa plataforma midiática dos
golpistas e atuante na região que compreende o Baixo São Francisco, professavam que aquela
nova ordem representaria uma fase de grandes realizações, publicando, inclusive, pequenos
297
298

Trecho da entrevista concedida por Aglaé D‘Ávila Fontes, na cidade de Aracaju, em 09/04/2018.
Cf. A Defesa. 15/04/1964. p. 01.

114

versos para celebrar a desarticulação de supostas tendências comunistas que exerciam
influência sobre o já capitulado governo Goulart. Eis o trecho do verso intitulado ―Fôrça das
Fôrças‖, veiculado na edição do dia 15/04/1964, um dia após a primeira marcha aracajuana,
cujo autor fora monsenhor Sant‘Ana:

Há muito que os sem-Deus lutando vêm,
Para o Brasil cristão comunizar.
Por último, a audácia esteve além de
quanto fôra (sic.) ilícito esperar.
Beirando o abismo, já rodava o trem que
tudo e todos lançaria (sic.) ao mar de ódio,
sangue e escravidão também, com férrea
ditadura e mal-estar.
Ó, maravilha de metamorfose!
O Gigante se livra dos grilhões, do tóxico
tomado em alta dose!
Encantando a tôdas (sic.) as nações,
volta aos princípios, próprios, desde o
berço.
Como FÔRÇA DAS FÔRÇAS, tendo o
terço299.
Se este jornal vinculado à circunscrição diocesana de Propriá ampliou o seu
colaboracionismo desde março, as alas nacional-reformistas que permaneciam ―instruídas‖
sob a batuta de D. José Vicente Távora reproduziam uma nota de repúdio àquelas
manifestações, utilizando o periódico estanciano Folha Trabalhista enquanto centro
irradiador daquele ideário, tal como assinalado no capítulo anterior. No entanto, mesmo com a
aplicação daquelas estratégias combativas aos conservadores e suas paranoias ideológicas, à
medida que a ordem autoritária se institucionalizava, o grau de ativismo deste agrupamento
arrefeceu e, gradativamente, o jornal demonstrou uma faceta de neutralidade, sobretudo pela
própria dissensão político-ideológica instaurada em Estância.
Com a atmosfera de ―normalidade‖ se restabelecendo gradativamente, especialmente em
Aracaju, a Secretaria de Educação organizou um desfile cívico para o dia 21/04/1964, cujo
objetivo consistia em celebrar o dia de Tiradentes. De acordo com uma matéria veiculada pelo

299

Ibid.

115

Gazeta, a efeméride se empenhou em comemorar, ainda, o terceiro aniversário da capital
Brasília, contando com a participação de ginásios e colégios aracajuanos300.
Concentrados na Praça Fausto Cardoso, prestigiados por Celso Carvalho e
Godofredo Diniz, prefeito de Aracaju, os discentes ―fizeram uma homenagem particular,
oferecendo às forças armadas, oferecendo (sic) as representações do Exército, Marinha e
Aeronáutica uma corbeille de flores‖301. Entretanto, antes da realização daquele tradicional
desfile, o intelectual Manoel Cabral de Machado, nomeado secretário de educação após a
deposição do ex-governador Seixas Dória, prontificou-se a retratar as articulações
empreendidas pelos inconfidentes, evidenciando, posteriormente, a atuação de Tiradentes e
sua contribuição para a deflagração do movimento. Não houve, segundo o conteúdo das
fontes, qualquer menção a conspiração militar que dissolveu o governo legalmente constituído
entre março e abril de 1964, prática sistematicamente empregada por colaboracionistas
durante os primeiros meses pós-golpe, sobretudo quando discursavam em público.
Chegado o dia 26, após praticamente duas semanas de planificação para o segundo
ato, entremeado pela ação cívica abordada nos parágrafos anteriores, os organizadores se
anteciparam em empregar, também, as mesmas diretrizes destinadas à primeira manifestação,
exceto por elementos como público e percurso. Se no transcorrer da marcha realizada dia
14/04 houve participação predominante dos aracajuanos, nesta segunda ocasião, conforme
aponta a matéria publicada via Gazeta de Sergipe302, delegações advindas de cidades
interioranas somaram-se aos cidadãos residentes na capital, liderados, mais uma vez, pela
―nata da sociedade local‖303, segundo qualificação atribuída pelo próprio periódico.
A denominada ―nata‖ social presente na segunda marcha incluía, possivelmente, o
governador Celso Carvalho e Godofredo Diniz, prefeito de Aracaju que se notabilizou,
sobretudo, por gerir atividades industriais naquela cidade. Para além destas autoridades, com
base em uma informação segundo a qual os professores daquele tradicional colégio
aracajuano participaram da manifestação304, pressupõe-se que as irmãs G., reeditando sua
performance no transcorrer da primeira manifestação, também integraram a primeira fila
daquele evento.

300

Cf. Gazeta de Sergipe. 23/04/1964. p. 01.
Ibid.
302
Cf. Gazeta de Sergipe. 28/04/1964. p. 01.
303
Ibid.
304
Informação concedida por Aglaé D‘Ávila Fontes, na cidade de Aracaju, em 09/04/2018.
301

116

Quanto à presença das mencionadas delegações, o periódico destacou, a priori, que
―todos os colégios da capital participaram do acontecimento‖305 e, em seguida, evidenciou o
desempenho dum grupo escolar proveniente de São Cristóvão, cidade que integrava/integra
uma composição microrregional denominada Grande Aracaju. Ainda de acordo com a notícia,
―a Banda da Cidade de São Cristóvão arrancou aplausos do público que se concentrou ao
longo das principais artérias da cidade‖306.
Destoando daquela matéria veiculada dia 15/04/1964, na qual a equipe redatora do
jornal assinalou o percurso circunscrito pelos participantes durante a primeira marcha (14/04),
as informações constatadas na edição distribuída em 28/04, isto é, dois dias após a segunda
manifestação, prescindiram de maiores detalhes sobre o itinerário que os organizadores
delimitaram, levando-me a deduzir que este elemento tão simbólico e envolto de conexões
implícitas fora reelaborado por seus mentores. Em entrevista concedida ao autor que vos
escreve, a já citada depoente Aglaé D‘Ávila Fontes confirmou tal hipótese, afirmando que, à
época, quando possuía 18 anos, avistou a marcha transcorrida em 26/04 nas instalações da
residência cuja proprietária era sua sogra, complementando que:

[...] da janela da casa de minha sogra, eu vi que eles desceram a rua Arauá.
0Por que vinham de onde? Da Igreja São José! [...] desciam ali, dobravam na
Avenida Barão de Maruim e vinham até o Parque Teófilo Dantas. Vi muita
gente de manto como se fosse um ato de fé307.

Fig. 01 – Participantes da segunda Marcha da Família em Aracaju.
Fonte: Gazeta de Sergipe, 28/04/1964.
305

Cf. Gazeta de Sergipe. 28/04/1964. p. 01 .
Ibid.
307
Trecho da entrevista concedida por Aglaé D‘Ávila Fontes, na cidade de Aracaju, em 09/04/2018.
306

117

Neste sentido, os participantes deste último ato cívico-eclesiástico aracajuano,
conforme relato proferido pela depoente, concentraram-se nas imediações da Igreja São José,
especificamente defronte a Praça Tobias Barreto308 - cujo nome fora-lhe atribuído em
homenagem póstuma ao obstinado intelectual sergipano que se tonou expoente da ―Escola do
Recife‖309 -, e percorreram alguns metros até convergirem para a rua Aruá. Quando
enfileiraram-se

neste perímetro, portanto, progrediram com destino ao Parque Teófilo

Dantas, vizinho a catedral,

local no qual a primeira marcha fora finalizada, onde um

significativo número de partícipes ―rezou pela libertação do país‖310, demonstrando, por
intermédio deste jogo semântico, a aversão nutrida pelo governo Goulart e sua faceta
reformista.
A partir desta nova delimitação na circunscrição, embora o ato não tenha iniciado num
órgão oficial vinculado ao estado naquela oportunidade, julga-se relevante evidenciar que a
Praça Tobias Barreto, sob o crivo simbólico, tal qual apropriadamente mencionado em
308

Segundo Fernando de Figueiredo Porto (2011), a atual Praça Tobias Barreto sofreu algumas modificações
nominais antes da última onomástica atribuída. Nesse ínterim, entre denominações como Conceição, Treze de
Maio e Pinheiro Machado - esta instituída em 1915 e que se estendeu até 1931 -, o logradouro recebeu ―aos 24
de outubro de 1920, dentro das comemorações do primeiro centenário de emancipação política de Sergipe, a
estátua de Tobias Barreto[...] Apesar da inauguração de 1920, o nome Pinheiro Machado permaneceu ainda por
onze anos, até a sanção do Ato Municipal nº. 24, de 08 de Julho de 1931, que lhe deu a denominação de Tobias
Barreto‖ (PORTO, 2011, pp. 173-1774). Para saber mais, ver: PORTO, Fernando de Figueiredo. Alguns nomes
do antigo Aracaju. Aracaju: Gráfica Editora J. Andrade Ltda., 2011.
309
Segundo o Dicionário histórico-biográfico da Primeira República (1889-1930), da Fundação Getúlio Vargas,
esta instituição se caracterizava como uma escola de pensamento que emergiu através da Faculdade de Direito
do Recife em 1870. Suas origens, contudo, remontam a 15/05/1828, quando ―foi inaugurada a Faculdade de
Direito no Mosteiro de São Bento, em Olinda. A nova escola, além de atender à estratégica localização
setentrional num país de tão larga extensão, deveria colocar sob controle e vigilância o radicalismo republicano
que desde 1817 grassava em Pernambuco e que, não poucas vezes, contestara em armas a ordem imperial
imposta pelo Rio de Janeiro. Na primeira fase de sua existência, a Faculdade de Direito em Olinda reproduziu a
estrutura da Escola de Coimbra, mantendo-se sob a forte influência da Igreja Católica. No entanto, após sua
transferência para o Recife, em 1854, passou por um conjunto de profundas reformas acadêmicas de tendências
laicas e republicanas, de indelével matiz positivista, levadas à frente por ‗intelectuais independentes‘. Foi no
quadro dessas mudanças que se separaram os currículos dos cursos de ‗ciências jurídicas‘ e de ‗ciências sociais‘,
das quais faziam parte, entre outras cadeiras, as ciências da administração, a economia política, a higiene pública
e a história dos tratados, segundo informa Lilia Schwarcz no livro O espetáculo das raças. Essas mudanças
propiciaram o desenvolvimento de formulações teóricas, fortemente marcadas pelo racionalismo científico, que
iriam combater a metafísica, a tradição supersticiosa e o clericalismo católico conservador. O ímpeto crítico e a
penetração desse ideário no debate teórico e político no Brasil seriam de tal ordem que, na década de 1870, já se
falava de uma ―Escola do Recife‖, cuja produção e influência de largo, no entanto, ultrapassavam os limites
regionais de Pernambuco. Entre os intelectuais empenhados em introduzir a razão científica nos estudos jurídicos
e o positivismo e o evolucionismo darwinista na produção do pensamento social estavam Tobias Barreto e Sílvio
Romero, que iriam formar a vanguarda do que veio a ser conhecida como ―Geração de 1870‖. Dela também
faziam parte Aníbal Falcão, Franklin Távora, Araripe Jr., Clóvis Beviláqua, Higino Cunha, Graça Aranha, Artur
Orlando e Martins Jr. Abolicionistas e republicanos, esses literatos e pensadores eram homens que tinham em
comum a origem social numa classe média urbana ascendente, distanciada do mundo agrário escravista e
marginalizada com relação à política imperial.‖ Ver: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeirarepublica/. Acessado em 20/02/2019.
310
Cf. Gazeta de Sergipe. 28/04/1964. p. 01 .

118

rodapé, representava o alvorecer duma fase caracterizada pela emancipação, que requeria,
entre outras ações, o rompimento com a tradição política ―dominante‖ e, através dessas novas
orientações, instaurar uma nova ordem. Sendo assim, com base nas reformulações contextuais
e ideológicas dos organizadores visando adequar status quo esboçado em 1964 aos seus
desígnios, o estabelecimento deste ponto de arregimentação sugere, em certa medida, que o
simbolismo impregnado no logradouro, alinhado a impositiva presença da unidade religiosa,
tenha contribuído para a legitimação de um ordenamento responsável por assegurar os
interesses setoriais das camadas sociais dominantes em Sergipe, repudiando, desse modo, a
atuação do findo modelo populista, que, segundo construção imagética daqueles atores, era
depreendido como ineficiente para o pleno desenvolvimento do país.
Como é possível constatar na figura 01, único registro fotográfico das marchas
encontrado nesta pesquisa, os editores do impresso diário enfatizaram o entusiasmo estudantil
durante aquela manifestação repleta de cartazes e amparada por veículos radiofônicos, os
famosos ―carros de som‖311. Se durante as marchas paulista e carioca uma parcela
significativa dos participantes entoou cânticos e louvores, este elemento preponderou no
transcurso da segunda marcha aracajuana, ainda segundo D‘Ávila, pois ―aquela manifestação
era compreendida como um ato de fé‖312.
Neste sentido, vale ressaltar que, não obstante também carregarem consigo a pecha de
―desfile café-society‖, as marchas aracajuanas apresentavam contornos muito semelhantes as
suas precursoras paulista e carioca, sobretudo em função daquela roupagem de ―devoção‖,
reforçando, portanto, uma premissa segundo a qual os idealizadores sergipanos – sobretudo
eclesiásticos conservadores e estratos sociais médios – atuaram em consonância com
movimentos femininos/religiosos daquele eixo, respaldados extraoficialmente pelos ―católicos
reacionários‖, que obtiveram destaque desde a planificação até o dia que correspondeu a
execução da Marcha da Família com Deus pela Liberdade naquelas capitais.
Mesmo não obtendo, por ora, as evidências documentais necessárias para conceder
uma sustentação mais ampla a esta hipótese, devemos enfatizar o nível de sofisticação
presente nas marchas em Aracaju e seu poder persuasivo sobre as camadas populares,
consideradas estratégicas massas de manobra para galvanizar e potencializar os desígnios das
forças patronais sergipanas. Sendo assim, é justamente este estatuto atribuído às primeiras
manifestações transcorridas em Sergipe, baseando-se em uma tentativa de reconstituir alguns
desdobramentos daqueles eventos, que existe uma considerável possibilidade de contínuas
311
312

Informação concedida pela depoente Aglaé D‘Ávila Fontes, em 09/04/2018.
Ibid.

119

articulações entre paulistas, cariocas e sergipanos, conforme avaliado anteriormente.
Caracterizadas por suas ressignificações, estas mobilizações cívico-eclesiásticas irromperiam
por mais sete urbes sergipanas, demonstrando um repúdio significativo às proposições
reformistas elaboradas pela dupla Goulart/Dória e saudando as forças golpistas que
instaurariam, com a devida anuência destes participantes, um regime ditatorial que se
estenderia por longevos 21 anos.

5. A REGIÃO METROPOLITANA E O INTERIOR TAMBÉM MARCHARAM:
apontamentos sobre as Marchas da Família com Deus pela Liberdade em 7 cidades
sergipanas

5.1. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade atravessou o Rio Sergipe: considerações
sobre a manifestação cívico-eclesiástica transcorrida em Barra dos Coqueiros

5.1.1. Breve histórico do município

Se a capital havia concluído o ciclo de marchas no dia 26/04/1964, sua Região
Metropolitana executaria a manifestação num município chamado Barra dos Coqueiros, ou
simplesmente ―Barra‖, localizado a 4 km de Aracaju. Erigido sobre a Ilha de Santa Luzia,
segundo apontamentos do IBGE, o centro urbano que hoje abriga 30 mil pessoas era
constantemente frequentado por traficantes normandos de pau-brasil durante o século XVI.
No entanto, com a capitulação das atividades piratas pelo Império Português, baseada na
anexação dos territórios intermediários entre Bahia e Pernambuco, aquela região teria sediado
brevemente, embora tais informações sejam controvertidas, o Governo da Capitania de
Sergipe-Del-Rey, composição administrativa fundada por Cristóvão de Barros em 1589.
No transcorrer dos séculos seguintes, a até então denominada Ilha dos Coqueiros
constituiu-se como um estratégico porto que desenvolvia atividades de importação e
exportação. Em 1854, contudo, conforme assinala o historiador Adaílton Andrade 313, o
presidente provinciano Ignácio Joaquim Barbosa recorreu a uma manobra na qual determinou
a transferência das Mesas de Renda daquele perímetro, cujo objetivo consistia em operar
despachos aduaneiros com vistas a fiscalizar portos pouco movimentados para a margem

313

ANDRADE, Adaílton. Barra dos Coqueiros: história política da ilha. Aracaju, 25 de maio de 2016.
Disponível em: https://fontesdahistoriadesergipe.blogspot.com/2016/05/barra-dos-coqueiros_25.htm. Acessado
em: 15/01/2019.

120

oposta do Rio Sergipe, que compreendia a povoação dum local chamado Santo Antônio de
Aracaju.
No ano seguinte, em 1855, quando Aracaju foi elevada a categoria de capital
provinciana, a pequena povoação incorporou-se ao centro urbano projetado por Sebastião
Pirro314. Após duas décadas sendo compreendida como um apêndice do vigenário centro
provinciano, a Ilha dos Coqueiros fora sublevada ao estatuto de freguesia, carregando consigo
tal atribuição – freguesia ou povoado - até 1953. Neste ano, com a instauração da Lei Estadual
Nº. 525-A, assinada em 25 de novembro, a Assembléia Legislativa criou 19 novos municípios
e a antiga povoação se reestruturou enquanto município.
Entretanto, segundo a análise de Andrade (2016), o histórico território ―demorou
ainda para se tornar efetivamente independente. Isso só aconteceu no final de 1954, quando
598 eleitores dos 1.105 inscritos votaram no primeiro prefeito da Barra dos Coqueiros e nos
cinco primeiros vereadores. No dia 31 de janeiro de 1955, Moisés Gomes Pereira toma posse
como prefeito‖315. Enquanto o recém-emancipado município consolidava sua nova condição,
fatores político-culturais provindos de Aracaju ainda reconfiguravam o status quo daquele
centro urbano. Tamanha influência exercida pela capital seria dimensionada, de fato, com a
realização da marcha naquele local.
5.1.2. A Marcha na ―Barra‖

Com o caminho pavimentado para a planificação e execução das marchas em
outras urbes, graças aos esforços empreendidos pelas forças conservadoras aracajuanas,
herdeiras duma cultura política assentada nas diretrizes de fenômenos como o coronelismo, a
manifestação cívico-eclesiástico tornou-se bastante receptiva em Barra dos Coqueiros, cujo
passado esteve historicamente vinculado a Aracaju, conforme constatado na subseção
anterior. Eleito em 1962, o prefeito Erasmo Santa Bárbara (1963-1966), amparado pela
coalizão PR/PSB316 e muito provavelmente articulando-se com lideranças religiosas locais,
definiu o dia 03/05/1964, um domingo, para incluir a Região Metropolitana de Aracaju no
cronograma das marchas que irromperiam pelo estado.

314

Sebastião Pirro foi o arquiteto responsável por projetar a cidade de Aracaju.
ANDRADE, Adaílton. Barra dos Coqueiros: história política da ilha. Aracaju, 25 de maio de 2016.
Disponível em: https://fontesdahistoriadesergipe.blogspot.com/2016/05/barra-dos-coqueiros_25.htm. Acessado
em: 15/01/2019.
316
Cf. Gazeta de Sergipe. 16/10/1962. p. 01.
315

121

No interregno entre as manifestações transcorridas na capital e o jovem município,
a imprensa aracajuana, que também veiculava circunstanciais notícias sobre a conjuntura
política barra-coqueirense, antecipava-se em construir um status quo que acentuava o fim
daquelas animosidades por motivações político-ideológicas, não obstante o prosseguimento
das arbitrárias prisões e perseguições perpetradas pelo recém-instaurado regime autoritário.
Todavia, nos centros urbanos interioranos, sobretudo durante a transição de abril
para maio, o movimento golpista conferiu exacerbada legitimidade aos oficiais que
destacavam em Sergipe. Segundo Ibarê Dantas (2014), responsável por desenvolver um
sistemático levantamento documental sobre as violações praticadas neste período, os militares
chegaram a coordenar operações prescindindo de ordens judiciais, haja vista que a nova
ordem arbitrava sobre a máquina judiciária, invadindo prefeituras e casas legislativas
municipais para sanear os quadros políticos locais sob o pretexto de ―combater a subversão‖.
Enquanto estas localidades submetiam-se ao ímpeto perverso de militares e delatores
civis, a Barra dos Coqueiros, alinhada aos desígnios daquela ascendente orientação, acordava
naquele primeiro domingo de maio, dia 03/05/1964, com uma notícia segundo a qual ―mais de
mil pessoas não podem deixar a capital mineira. Estão envolvidas em atos de subversão‖317,
dimensionando a gravidade destas ações persecutórias em todo o território nacional. No
entanto, uma das principais manchetes daquela edição jornalística estava empenhada em
divulgar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade que transcorreria não somente no
município banhado pelo Rio Sergipe, mas também noutra urbe localizada a poucos
quilômetros de Aracaju: Laranjeiras. Não obstante, por uma questão cronológica, tendo em
vista que a manifestação barra-coqueirense estava prevista para iniciar por volta das 16h,
julguei apropriado reconstituir a marcha deste município na presente subseção.
Ao contrário de Aracaju, cujas manifestações foram planificadas pelos
conservadores religiosos e estratos sociais médios, a elaboração da marcha transcorrida na
Barra, conforme consta no artigo publicado pelo Gazeta de Sergipe, permaneceu sob a batuta
do Poder Executivo Municipal. É evidente que, com base nos elementos religiosos que
compõem o ato propriamente dito, houve uma articulação em conformidade com as
autoridades religiosas locais, porém não há quaisquer menções a parcela de contribuição
disponibilizada pelo setor na construção do ato barra-coqueirense, uma vez que ―o Prefeito do
município, Sr. Erasmo Santa Bárbara, está ultimando os preparativos para a grande festa, que
deverá ter início por volta das dezesseis horas‖318.
317
318

Cf. Gazeta de Sergipe. 03/05/1964. p. 01.
Cf. Gazeta de Sergipe. 03/05/1964. p. 01.

122

Neste sentido, considerando o alinhamento estrutural das duas primeiras marchas
sergipanas transcorridas em Aracaju com suas precursoras ―sulistas‖, ainda que pese o fato de
coexistirem pequenas divergências, o elemento ―inovador‖ introduzido pelo ato na Barra dos
Coqueiros se constitui como a primeira evidência segundo a qual as características de tais
manifestações cívico-eclesiásticas variam conforme a cultura política presente em cada
localidade. Embora as trajetórias da capital e sua jovem região metropolitana se confundam,
sobretudo no que diz respeito à transmissão duma cultura/tradição política arraigada nos
costumes aristocráticos, acentuados desde a emancipação daquele centro urbano, é
imprescindível considerar o poder de ressignificação atribuído a estas marchas e os impactos
causados em sua população.
Se o periódico analisado apontou o Poder Executivo Municipal como organizador
majoritário da manifestação operacionalizada em júbilo à ascensão dos conspiradores
militares, ele pondera que, assim como noutras edições das marchas sergipanas e nacionais,
uma parcela da população, depreendida por Figueiredo (s/a) como ―ignorante e imbecil‖ 319,
compareceu na ocasião. Para o Gazeta, portanto, ―na tarde de hoje, a população da Ilha de
Santa Luiza (Barra dos Coqueiros) estará realizando uma homenagem especial as Fôrças
Armadas (sic), quando da realização da ‗Marcha da Família com Deus e pela Liberdade‘‖ 320.
Com a impossibilidade de identificar depoentes para elaborar uma reconstituição do
ato transcorrido no município, não obstante a realização d‘algumas incursões pelo local, a
nossa análise sobre este evento baseou-se na única fonte primária disponível: o jornal Gazeta
de Sergipe. Deste modo, então, a formulação de hipóteses se julga indispensável para
concluir, ou melhor, suscitar discussões que culminem com a construção doutras proposições.
Reiterando uma premissa na qual as circunscrições das marchas partem, em grande
medida, de repartições públicas e/ou monumentos vinculados ao Estado/estado, pressupomos
que seus participantes tenham se arregimentado em algum ginásio escolar ou nas imediações
da própria prefeitura, já que o Poder Executivo Municipal, conforme apontamento da fonte,
carregou consigo o estatuto de principal planificador daquele ato. A partir destes prováveis
pontos de concentração, portanto, o ato dirigiu-se até a Praça da Igreja Matriz, local no qual
os comitês organizadores da manifestação, geralmente, articulavam a celebração de uma
missa, constando de sermões e pregações anticomunistas.

319

FIGUEIREDO, Ariosvaldo. História Política de Sergipe (1962/1975). Aracaju: Livraria Regina, s/d. p. 89.

320

Cf. Gazeta de Sergipe. 03/05/1964. p. 01.

123

Uma vez que o exercício da especulação se julgou apropriado neste caso, não
podemos descartar outra possibilidade: a inversão dos pontos de concentração e
encerramento. Com base nas evidências apresentadas pelo jornal, seria incorreto afirmar que
os participantes da marcha barra-coqueirense assistiram à celebração de uma missa na Igreja
Matriz para, posteriormente, saírem em cortejo pela cidade até se concentrarem nas
imediações da prefeitura municipal?
Ainda que esta reconstituição circunscricional seja imprecisa, pautando-se em certo
silogismo e considerando à conexão entre os dois perímetros (Igreja Matriz e Prefeitura
Municipal, ou vice-versa), vale ressaltar o estabelecimento de um colaboracionismo irrestrito
imbricado simbolicamente nestas demarcações. Os partícipes daquela marcha, desde o
organizador até a população em geral, provavelmente, não pressagiaram que a conspiração
militar responsável por dissolver um governo legalmente constituído fosse capaz de instaurar
uma ditadura longeva, mas o respaldo concedido aos sublevados, com o ―constructo‖ das
próprias marchas e a destilação duma ameaça comunista inexistente, colocou-os na horda de
legítimos detratores do seu próprio país, abrindo um precedente para que várias
arbitrariedades fossem praticadas nos anos subsequentes. Enquanto as atividades da Marcha
da Família com Deus pela Liberdade em Barra dos Coqueiros eram encerradas, Laranjeiras
iniciava os preparativos para sediar mais uma manifestação no estado.

5.2. Do Rio Sergipe ao Rio Cotinguiba: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em
Laranjeiras

5.2.1. Breve histórico do município

Signatária dos movimentos abolicionista e republicano, Laranjeiras já se notabilizou
como um dos principais centros urbanos sergipanos, sobretudo no transcorrer do século XIX.
Este estatuto, no entanto, foi gradativa e violentamente construído a partir de 1530, quando
unidades militares lideradas por Cristóvão de Barros capitularam os indígenas que ocupavam
aquele perímetro. Após o extermínio, as forças invasoras se estabeleceram às margens do Rio
Cotinguiba, cujas terras estavam integradas a Freguesia de Socorro.
Uma vez radicados na faixa territorial que se transformaria num imponente centro
urbano, os novos habitantes viabilizaram a construção de um porto que, graças ao fato de
encontrar-se envolto a robustas laranjeiras, ficara conhecido como Porto das Laranjeiras,
localizado às margens do Rio Cotinguiba. Com o tráfego neste local adquirindo intensa

124

movimentação, as atividades comerciais se desenvolveram e refletiram diretamente na
construção das primeiras residências. A partir de 1637, entretanto, o território fora invadido
pelos holandeses, que interromperam sua incursão territorial na capitania de Sergipe em 1645
após uma campanha de expulsão.
Mesmo com a repressiva e efêmera ocupação holandesa, o porto permaneceu
preservado e se constituiu num importante trunfo para que o então povoado retomasse seu
desenvolvimento. Entre 1701 e 1731, tendo em vista a intervenção dos padres jesuítas, aquela
ocupação testemunhou o estabelecimento da arquitetura colonial, consolidando-se,
posteriormente, como uma das mais significativas já implementadas no território sergipano.
Em que pese a conformação de um aparato responsável pelo progresso econômico, o antigo
povoado foi elevado a categoria de vila independente somente em 1832, com base numa
resolução aprovada na Assembleia Geral da Província.
Consolidada como imponente centro cultural, político e econômico, a Vila de
Laranjeiras é promovida a Distrito de Paz em 1835. Seis anos depois, nos idos de 1841,
transformou-se em Sede de Comarca, sendo elevada a categoria de cidade em 1848, graças a
Lei Provincial Nº. 209, cultuando o equilíbrio entre a influência africana e portuguesa.

5.2.2. A Marcha em Laranjeiras

Já em estado de declínio nos 60, considerando a imponência do seu establishment em
outrora, o município de Laranjeiras não esteve alheio às manifestações cívico-eclesiásticas
que singularizaram aquele período. Além disto, algumas reminiscências econômicas dos
oitocentos estavam preservadas, tal como a produção açucareira em larga escala.
―Monopolizadas‖ pela influente família Franco, esta atividade se constituía enquanto principal
geradora de receitas daquele município, carregando consigo uma cultura trabalhista assentada
nas diretrizes do escravagismo e transgredindo um passado caracterizado pela militância
abolicionista.
Se este componente que transformou Laranjeiras no epicentro da luta contra a
escravidão era desconstruído pelas novas forças patronais que ali se estabeleciam, o ideário
republicano vociferado em clubes e periódicos que veiculavam na cidade também era
ressignificado com a introdução do anticomunismo. A conformação desta ―nova‖ cultura
política no município credenciou as abastadas famílias atuantes naquela região a exercitarem
uma retórica aversiva ao comunismo - erroneamente associado ao já destituído governo João
Goulart -, assemelhando-se ao status quo construído num centro urbano do interior mineiro.

125

Segundo Presot (2004), na cidade de Passos-MG, ―a organização da marcha esteve a
cargo do presidente e vice-presidente da Associação Rural do Sudoeste Mineiro, ao lado do
presidente da Cooperativa de Laticínios da cidade‖321. Conforme afirmação da autora, ainda, a
manifestação arregimentou ―várias cidades do sul de Minas Gerais‖322, constituindo uma
convergência, também, com a segunda marcha transcorrida em Aracaju, na qual várias
delegações interioranas compuseram o ato.
No entanto, como este exercício comparativo privilegia Passos-MG e Laranjeiras-SE,
o elemento preponderante para nossa análise, a princípio, encontra-se inscrito nos integrantes
do comitê organizador destacado no sudoeste mineiro, representado por três forças patronais
daquela região. Dentre todas as representações aversivas ao comunismo, em grande medida,
estava a supressão da propriedade privada, que adquiriu maior amplitude no imaginário destes
setores quando João Goulart anunciou a desapropriação de terras localizadas às margens das
rodovias federais.
Impulsionados pelo sentimento anticomunista propagado sistematicamente por
intermédio do clero conservador e alguns estratos sociais que operavam dentro desta
orientação, os mandatários que planificaram a marcha em Passos, temendo uma eventual
subtração latifundiária após o anúncio no Comício da Central, acentuaram a propaganda
anticomunista naquela composição regional – cuja principal geração de receitas estava
associada às atividades agropecuárias – e conclamaram as camadas populares para se
somarem a manifestação, advertindo-os sobre o ―perigo‖ a que estavam submetidas caso
Goulart cumprisse aqueles decretos anunciados no dia 13 de março. Em Laranjeiras, com base
nesta experiência do interior mineiro, não foi diferente. Entretanto, antes de prosseguir o
esforço analítico sobre a marcha transcorrida nesta cidade, julga-se necessária uma breve
reflexão bibliográfica.
Conforme assinalado na nota introdutória deste manuscrito, as literaturas que se
debruçam sobre o golpe civil-militar de 1964 não se empenharam em reconstituir mais
especificamente as manifestações cívico-eclesiásticas que conferiram legitimidade àquela
ruptura, embora existam clarividentes menções aos atos cívico-eclesiásticos. Quando
ampliamos nossa escala de observação e analisamos as produções bibliográficas sergipanas,
estas referências tornam-se menos evidentes, exceto pelas produções dos já citados Ibarê
Dantas e Ariosvaldo Figueiredo.
321

PRESOT, Aline Alves. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 64. Dissertação
(Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2004. p. 76.
322
Ibid.

126

O primeiro, portanto, em seu elegante e informativo livro A Tutela Militar em Sergipe
(1964-1984), dedica um parágrafo para elencar os centros urbanos nos quais as marchas
transcorreram323; já o segundo, utilizando-se duma narrativa rica em detalhes, dinâmica e
denunciativa no compêndio História Política de Sergipe, propôs-se a indicar, para além dos
municípios que sediaram aquelas manifestações, suas respectivas datas e apontar a referida
família Franco como principal organizadora da Marcha da Família com Deus pela Liberdade
em Laranjeiras. Ainda que pese a escassez de conteúdo acerca das marchas nestas e noutras
produções, elas se constituíram como fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa,
apontando fontes e bibliografias responsáveis por contribuir para a tentativa de desvelar a
preponderância do conservadorismo na sociedade sergipana, materializado sofisticadamente
por estes atos.
Retomando o foco analítico sobre a marcha laranjeirense após reflexões comparativas
e uma simples revisão bibliográfica, torna-se imprescindível evidenciar a contribuição da
Igreja local, a participação feminina, os esforços disponibilizados pela família Franco e as
relações entre tais setores para a planificação da manifestação realizada no dia 03/05/1964.
Em depoimento concedido ao autor, o pesquisador Evandro Bispo324 afirmou que a paróquia
de Laranjeiras, especificamente naquele período, encontrava-se ―sob a direção do vigário
Cônego Philadelfo Jônatas de Oliveira. E o padre Philadelfo, embora algumas pessoas o
tenham como bastante progressista em algumas áreas, outros o veem como conservador‖325,
levando-o a inferir que este personagem contribuiu para a plena realização da marcha.
Segundo os apontamentos do entrevistado, como a Diocese sergipana permanecia
dicotomizada entre progressistas e conservadores, tal qual apropriadamente assinalado
anteriormente, o estabelecimento desta ruptura, possivelmente, refletiu-se diretamente no
âmbito paroquial, mas Bispo se antecipou em ponderar que ―o padre Philadelfo tendesse mais
para um certo conservadorismo‖326. Qualificado como homem polido e portador de grande
bagagem intelectual, este relevante personagem da história laranjeirense publicou um livro
intitulado História de Laranjeiras Católica, no qual descreve os desdobramentos das
atividades católicas promovidas naquele município, induzindo o depoente Reginaldo
Andrade327 a apontar aquela produção bibliográfica como indicadora de algumas
323

Segundo o autor, as manifestações transcorreram em Aracaju, Barra dos Coqueiros, Laranjeiras e Itabaiana,
cidade cujas evidências documentais não apontaram nenhuma informação alusiva à realização das marchas.
324
Evandro Bispo é pesquisador e membro do Instituto Jackson de Figueiredo.
325
Trecho da entrevista concedida por Evandro Bispo, em 22/02/2019.
326
Ibid.
327
Reginaldo Andrade é Bacharel em Museologia pela Universidade Federal de Sergipe e servidor da Prefeitura
Municipal de Laranjeiras.

127

reminiscências sobre o ato cívico-eclesiástico transcorrido neste local, uma vez que os
arquivos da Igreja Matriz não acondicionavam nenhum documento alusivo aos anos 60328.
Bispo, no entanto, afirmou que o livro foi publicado em 1935, por ocasião do
centenário daquela paróquia, não contemplando, portanto, o recorte temporal delimitado pela
pesquisa. Quanto à participação feminina na marcha, este entrevistado foi taxativo ao afirmar
que as professoras Edith Vinhas329 e Regina de Oliveira330, já falecidas, participaram
diretamente daquela manifestação, pois, segundo seu depoimento, o motivo pelo qual ambas
as personagens efetivaram presença na mobilização estava associado ao aspecto religioso
propriamente dito, já que eram ―membros do Apostolado da Oração‖331. Vinhas, inclusive, em
conversa com o depoente décadas após o ato, apresentou um recorte de jornal no qual ―exibia
sua presença na marcha laranjeirense‖332. Em que pese o fato de não haver precisão sobre a
atuação destas mulheres na estruturação da marcha, a postura adotada por Vinhas e Oliveira
estabelece uma conexão significativa com aquelas organizações femininas em âmbito
nacional e seus esforços para a planificação/execução destas manifestações, impulsionadas,
sobretudo, pelo discurso anticomunista, reiterando uma hipótese segundo a qual houve
articulação entre tais figuras.
Já a família Franco, que demonstrava sinuoso envolvimento com as atividades
desenvolvidas pela Igreja local, conforme destacou Bispo, tradicionalmente no dia 19 de
março – data na qual foi realizada a primeira Marcha da Família e celebra-se São José,
padroeiro do povoado Pinheiro, local que hoje abriga a Usina São José do Pinheiro –
empenhava-se em promover eventos que mobilizavam aquela circunscrição rural de
Laranjeiras. Tal como em Passos-MG – vide o exercício comparativo realizado no início desta
subseção – não seria inapropriado afirmar que a força patronal usineira, orientada pela
representação anticomunista associada à supressão da propriedade privada, arregimentou um
número significativo de participantes, numa articulação em conformidade com a Igreja e o
―setor‖ feminino laranjeirense, para marchar sob a alegação de preservar ―a religião e o direito
à propriedade‖, discursos amplamente difundidos por agrupamentos antirreformistas.
Desta forma, o jornal Gazeta de Sergipe anunciou a realização da manifestação
cívico-eclesiástica local, assinalando que ―elementos da sociedade local estão preparando a
328

No dia da entrevista, o depoente me conduziu até o arquivo da paróquia local para localizar algum registro
daquele período.
329
Segundo Evandro Bispo, além de professora, Edith Vinhas era poetisa, membro da Associação Sergipana de
Imprensa e signatária doutras organizações.
330
Conforme informações concedidas pelo depoente, Regina de Oliveira foi responsável por ―acalmar‖ o grupo
de Lampião. Uma escola localizada no município de Pinhão, inclusive, foi erigida com seu nome.
331
Trecho da entrevista concedida por Evandro Bispo, em 22/02/2019.
332
Ibid.

128

‗Marcha com Deus‘, que terá lugar às dezenove horas de hoje. A Marcha de Laranjeiras
deverá estar presente, entre outras autoridades civis e militares, o governador Celso
Carvalho‖333. Com o cenário devidamente construído pelos organizadores já descritos,
embora não seja possível identificar o percurso demarcado, a manifestação transcorrida em
Laranjeiras não só celebrou a ruptura institucional, mas solidificou, sob o signo do
anticomunismo vulgar, a preponderância duma cultura política coronelista e latifundiária que
desestruturou um dos mais prósperos municípios sergipanos.

5.3. Terços, rosários e o anticomunismo na região centro-sul: a Marcha da Família com Deus
pela Liberdade em Simão Dias

5.3.1. Breve histórico do município

Historicamente conhecido como um efervescente epicentro político estadual, o
município de Simão Dias, assim como Aracaju, Barra dos Coqueiros e Laranjeiras,
transformara-se em palco para a ampla destilação do anticomunismo em 1964. Sua gênese
enquanto modelo de desenvolvimento e engajamento, contudo, remonta aos séculos
XVI/XVII. Segundo Marcelo Domingos de Souza (2002), ―o local onde está edificada a
cidade de Simão Dias foi, no passado, uma povoação de índios fugitivos das expedições
colonizadoras do Governador do Norte, Luís de Brito e Almeida. Esses índios se
estabeleceram nas matas às margens do Rio Caiçá‖334.
A privilegiada localização da povoação entre as matas fechadas daquela região, ainda
conforme Souza (2002), possibilitou o estabelecimento duma cultura de subsistência,
induzindo a atribuição de várias denominações ao perímetro, tais como Matas do Caiçá,
Matas do Coité e Matas de Simão Dias. Não obstante, durante a invasão holandesa,
responsável por incursionar virulentas ―expedições‖ pelas povoações interioranas que hoje
compreendem Sergipe, emitiram-se ordens para realocar o rebanho até às margens do Rio
Real, localizado no território que atualmente corresponde ao próspero município de
Paripiranga-BA.
Nesse ínterim, Braz Rabelo, influente latifundiário e atuante na capitania da Bahia,
cuja criação bovina se estendia a uma povoação futuramente chamada de Itabaiana, ignorou
333

Cf. Gazeta de Sergipe. 03/05/1964. p. 01.
SOUZA, Marcelo Domingos de. Simão Dias: a transição da Oligarquia ao Populismo (1940-1964).
(Monografia) Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe – Pólo de Educação à Distância.
Lagarto, 2002. p. 21.
334

129

tais determinações e deslocou sua criação para a vegetação cortada pelo Rio Caiçá. De acordo
com Souza (2002), ―desse episódio é que surgirá a figura histórica do vaqueiro Simão Dias,
responsável pela condução do gado e pelo surgimento das primeiras instalações que dariam
origem à cidade‖335. Tendo em vista o gradativo desenvolvimento daquela Vila, Simão Dias
foi elevada a categoria de cidade em 1890, com base na resolução do decreto assinado pelo
governador Felisbelo Freire.
Para instituir tal determinação, Freire utilizou, dentre outras fundamentações, o fato
de a antiga Vila deter ―uma grande população – 10.984 pessoas, um comércio próspero, uma
estrada de ferro que ligava a referida Vila a Aracaju, bem como, a existência de uma comarca
recém criada (sic)‖336, desmembrando, portanto, aquela localidade de Lagarto.

5.3.2. A Marcha em Simão Dias

Com a ampliação das marchas em território sergipano, o pequeno estado não só
demonstrava significativa integração à ordem autoritária, mas ratificava sua herança
coronelista, que, por associação às ressignificadas tendências ideológicas que se esboçavam
nos anos 60, consolidava o estabelecimento duma cultura política conservadora e
instransponível. No caso de Simão Dias, cuja trajetória se confunde com o domínio
oligárquico em Sergipe, este establishment, após súbita ascensão e derrocada da orientação
populista, encontrou a atmosfera propícia para sua plena (re) instauração.
Mesmo sob a administração Pedro Valadares (1959-1963), dirigente político que
flertava com as raias do populismo, guardando-se as devidas proporções, os ativistas políticos
da cidade localizada no centro-sul sergipano nunca dissimularam sua aversão a esta
orientação. Impulsionados por um sentimento antijanguista, sobretudo em 1964, alguns
intelectuais propagavam tal ideário num periódico denominado A Semana, sob a direção de
José Carvalho Déda337, jornalista e advogado provisionado.
Avô do ex-governador Marcelo Déda (2007-2011/2011-2013), Carvalho era
qualificado de versátil, segundo relatos coletados por Vânia Batista Souza (2016)338. No
campo político-ideológico, ao analisar uma publicação veiculada pelo periódico sob sua
supervisão em 1953, a autora constatou que o personagem classificou o posicionamento deste
335

Ibid., p. 21.
Ibid., pp. 22-23.
337
Para saber mais sobre as trajetórias de Carvalho Déda e do periódico A Semana, ver: BATISTA SOUZA,
Vania de. Carvalho Déda e o jornal "A Semana": visibilidade na educação (1946-1969). 2016. 112 f.
Dissertação (Pós-Graduação em Educação) - Universidade Federal de Sergipe: São Cristóvão, 2016.
338
Ibid., p. 41.
336

130

veículo como ―político-partidário militante‖339, induzindo-me a pressupor que este jornal
contribuiu para a conformação de uma cultura política avessa as agendas políticas portadoras
de forte apelo popular. E o intelectual não incorreu por quaisquer blefes. Dentro destes
princípios, ―Zeca Déda‖ transitou entre os quadros de agremiações como PSD e UDN,
demonstrando, desde já, uma faceta aversiva, porém combatida com a elegância que lhe era
peculiar, as plataformas políticas desalinhadas aos desígnios ideológicos por ele defendidos.
Em 1964, portanto, como já mencionado, o componente da militância encontrava-se
em estado efervescente. Desta forma, tais demonstrações de insatisfação com a ordem ali
estabelecida surgiram em 18/01/1964, quando o perfil editorial capitaneado por Carvalho
Déda se empenhava em satirizar e desqualificar a gestão do governador Seixas Dória, cujo
vice era Sebastião Celso de Carvalho, natural de Simão Dias e correligionário d‘outrora. Em
um quadro intitulado ―Política... em pequenas doses‖, publicado regularmente pela equipe
redatora, versava-se sobre os rearranjos da conjuntura política local, estadual, nacional e até
internacional. Neste sentido, a edição veiculada no dia 18 assinalou:
Num dia de calor e agitação da semana que ora finda, o Governador Seixas
Dória foi acometido de uma ligeira crise de ‗renuncivite‘. Mas não houve
nenhuma gravidade. A crise se desfez por si só, sem intervenções. Não
houve necessidade nem de ‗panos quentes‘. Aliás, o povo, na sua imensa
sabedoria, diz que ‗ quem incha sem doença, desincha sem remédio‘340.

Com base neste fragmento extraído do periódico semanal, conforme sua própria
denominação nos denuncia, é possível identificar, para além duma postura combativa, a
sagacidade para abordar temas dessa natureza sob o signo do humor, traço que também lhe
era característico, segundo assinalou o intelectual sergipano Luiz Antônio Barreto 341.
Enquanto Carvalho Déda abordava questões de interesse público ao seu estilo, associando-as
a conjuntura simãodiense, cumprindo aquela premissa de transformar o veículo em porta-voz
da cidade, os problemas que acometiam a política nacional e estadual se intensificavam na
mesma proporção dos seus ríspidos posicionamentos.
Em fevereiro, por exemplo, houve uma tentativa de desestabilizar a gestão Seixas
Dória mediante declarações segundo as quais a harmonia entre os poderes Legislativo e
Executivo estaria sob significativa ameaça, pois ―o governador tem perdido sistematicamente
os vetos do Legislativo e, por derradeiro, os projetos de leis acompanhados de substanciosas
339

Ibid., p. 53.
Cf. A Semana. 18/01/1964. p. 01.
341
BARRETO, Luíz Antônio. Carvalho Déda no batente do jornal. Infonet: Portal Serigy, a história de um
povo. Aracaju, 2008. < http://clientes.infonet.com.br/serigysite/ler.asp?id=345&titulo=Gente_Sergipana>
Acessado em 20/01/2019.
340

131

mensagens têm caído na cesta dos papéis imprestáveis‖342. Quanto ao âmbito federal, a equipe
redatora chefiada por Carvalho Déda demonstrava as primeiras ressalvas em relação ao
quadro ministerial elencado pelo presidente João Goulart. No próprio dia 08/02/1964, o jornal
emitiu a seguinte nota:

O diabo não é tão feio como o pintam. Este diabo se ajusta perfeitamente ao
caso do General Jair Dantas Ribeiro, Ministro da Guerra, de quem se
desconfiava possuir idéias golpistas em direção a extrema-esquerda. Agora
mesmo, de passagem por Aracaju, na sua viagem de inspeção às guarnições
do Norte e Nordeste, S. Excl. declarou que as forças armadas estão coezas
(sic) no sentido de não permitirem golpes de qualquer natureza. Declarou ser
favorável às reformas desde que estas não venham ferir o regime
democrático brasileiro, que sobreviverá. Como se vê, nem o diabo nem
Ministro são tão feios como os pintam...343

Ainda que pese o reconhecimento relacionado aos desígnios do chefe daquela
pasta, a nota não prescindiu de atribuir suposições acusativas ao ministro, afirmando que seu
objetivo era instaurar um golpe inflexionado para a extrema-esquerda, algo bastante
característico num período marcado pela polarização. No entanto, analisando o histórico de
militância que permeava o jornal, tal avaliação não representava algo inédito. Se houve uma
tentativa moderada de ―desqualificar‖ Jair Dantas Ribeiro na edição examinada, as críticas
mais contumazes a conjuntura nacional se esboçaram após o famoso Comício da Central.
No número veiculado dia 21/03/1964344, isto é, oito dias após o evento capitaneado
por Jango e suas forças reformistas, o conteúdo da manchete apresentou os dizeres ―O
Espantoso Comício da Supra – Luxo de Segurança Pessoal do Presidente – Desapropriação de
Terras e Encampação das Refinarias – Oradores Fogosos – Revolução Com Endereço Certo –
Outras Notícias‖345. Ao constatar o ímpeto militante adotado pelos colaboradores do veículo,
em certa medida, seria uma hipérbole afirmar que este periódico se articulava em
conformidade com os já analisados órgãos de desestabilização IPES/IBAD? Embora não
existam fontes documentais que atestem tal possibilidade, baseando-nos nesta postura
altamente combativa, há consideráveis possibilidades de existir um esforço dialógico entre
ambos. Enquanto a linha editorial evidenciava a performance dos oradores nas primeiras
manchetes, incluindo Seixas Dória, a quem aquele jornal combatia constantemente, as demais
342

Cf. A Semana. 08/02/1964. pp. 01-02.
Ibid.
344
Este periódico, inclusive, pelos menos no recorte temporal examinado, era impresso em uma lauda repleta de
manchetes e notícias, tornando dificultosa a tarefa de numerar a página. Portanto, toda numeração que varie entre
01 e 02 se torna válida.
345
Cf. A Semana. 21/03/1964. p. 01.
343

132

publicações daquele sábado, dia 21/03/1964, ampliavam a subjetividade do diretor Carvalho
Déda, conclamando que:
Os fazendeiros andam com ―pulga detraz (sic) da orelha‖ com esta história
de ―Supra‖. Nota-se mesmo certo pavor da parte dos detentores das terras.
Não há, porém, razão para o medo, nem para ―pulgas atrás da orelha‖.
Basta ler as entrelinhas do tão falado ―Decreto da Supra‖ para compreender
suas válvulas de escape. Nunca se viu lobo devorar lobo, por isso dizemos
que, enquanto a República estiver nas mãos dos donos das terras, outros
donos das terras não sofrerão no seu direito de propriedade. A ―Supra‖ tem
sabor eleitoreiro. É apenas um bom prato para a mesa da sucessão346

Esta declaração se constituiu como complemento a um questionamento direcionado
ao presidente João Goulart, proprietário d‘algumas terras no Rio Grande do Sul, e sua decisão
em desapropriar duas delas. Segundo o posicionamento do jornal, aquela medida representou
um ―gesto que poderia fazer cego desconfiar‖347. Não obstante divergências desta natureza, a
primeira grande demonstração de repúdio àquelas medidas reformistas propostas por Goulart
e Dória foi ilustrada após a deflagração do golpe civil-militar, ―inaugurando‖ as relações
condescendentes entre Simão Dias e a nova ordem que se esboçava com mais uma ruptura
institucional em nossa acidentada trajetória republicana.
Entre expressões que qualificavam a sublevação golpista de ―Revolução‖ e esforços
para elencar as ações empreendidas pelos conspiradores civil-militares em sua manchete,
como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Mourão Filho e Amaury Kruel, respectivamente, a
matéria publicada na coluna ―Política... em pequenas doses‖ reforçava o posicionamento da
linha editorial, ainda cultuando o tênue equilíbrio entre crítica mordaz e humor.

E agora? A nova ordem política estabelecida no país não tolera mais a
demagogia. As Forças Armadas e as forças civis da República repelem e não
permitem a demagogia barata que vinha solapando as nossas tradições
democráticas. Mas, porque muita gente por aí não sabe e não pode fazer
política sem demagogia, (sic) pergunta-se: e agora, Zé? Pela primeira vez, no
Brasil, passou-se um primeiro de abril sem mentira. Quando se pensava que
a deposição do Presidente Goulart era uma saborosa peça do tradicional
humorismo popular, eis que não era uma ―estória‖ de ―primeiro de abril‖,
pois mandaram mesmo o Jango por aí [...] O povo costuma dizer que
―passarinho que canta muito suja no ninho (sic)348.

346

Ibid.
Ibid.
348
Cf. A Semana. 04/04/1964. pp. 01-02.
347

133

Aos 09/05/1964, trinta e cinco dias após veiculação da informação acima, o periódico
se antecipou em divulgar a programação elaborada para a Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, que seria realizada concomitantemente as comemorações por ocasião do Dia das
Mães349, celebrado no dia 10/05/1964, materializando todo o repúdio incitado pelo periódico
desde o momento no qual as dicotomias ideológicas se acentuaram. Não há dúvidas de que a
escolha deste dia para a execução da manifestação cívico-eclesiástica carregou consigo uma
faceta permeada por dimensões simbólicas.
Ora, interpretando tal acontecimento sob este viés, a mãe representava, dentro do
universo ideológico nacional daquela conjuntura, ―todas‖ as mulheres que se emprenharam na
propagação do anticomunismo vulgar em conformidade com a Igreja Católica, organizando
reuniões e criando entidades como LIMDE, CAMDE, dentre outras responsáveis pela
planificação e execução das marchas que irromperam pelo país. No caso de Simão Dias, para
além da contribuição disponibilizada pelas forças católicas conservadoras, quem esteve à
frente de todo o processo organizacional foi uma organização denominada AJIS, cuja
nomenclatura não pôde ser identificada, mesmo após uma visita realizada ao município em
2016, quando desenvolvíamos o projeto PIBIC. Possivelmente, com base em suas iniciais,
tratava-se de um grupo composto pela juventude local que se articulava ao ―núcleo‖ feminino
simãodiense e obtinha destacada atuação em algumas atividades promovidas no município.
Desta forma, segundo o jornal semanal, após a conclusão dos últimos detalhes, as ações
previstas para o dia 10/05/1964 se dispunham desta maneira:

Valendo-se do transcorrer do ―Dia das Mães‖, a AJIS
tomou a iniciativa de juntar-se aos ginásios locais para
promover uma manifestação das mães simãodienses e
realizar a ―Marcha da Família com Deus pela
Liberdade‖. As festividades do dia estão assim
estruturadas:
8,30 h. Missa no Ginásio Carvalho Neto.
9,00 h. Sessão Literária em homenagem às mães.
No encerramento haverá de presente às mães pelos
filhos.
15,30 h. Reunião na Praça Barão de Santa Rosa, onde
autoridades, estabelecimentos de ensino e ginasial,
associações civis, religiosas e o povo em geral para o

349

Cf. A Semana. 09/05/1964. pp. 01-02.

134

início da ―Marcha da Família com Deus pela
Liberdade‖.
17,30 h. Encerramento da passeata, culminando com
uma concentração no Adro da Matriz350.

Tal circunscrição delimitada pelos organizadores da marcha simãodiense, em boa
medida, apresenta verossimilhanças com a primeira manifestação realizada na capital
sergipana, quando seus participantes partiram de um órgão estadual – naquele caso,
especificamente, a Assembleia Legislativa – percorreram alguns quilômetros e convergiram
para as imediações da Igreja Matriz, local no qual uma missa fora celebrada e alguns oradores
proferiram discursos. Na experiência transcorrida em Simão Dias, cuja extensão do percurso
fora relativamente similar, julga-se imprescindível destacar a conexão entre os perímetros de
partida e chegada, demonstrando, mais uma vez, o amplo colaboracionismo entre parte dos
setores civis e conspiradores militares, denunciado com a demarcação evidenciada na citação
acima. No que diz respeito ao encerramento previsto para às 17h30, mesmo com a atribuição
do termo ―concentração‖, acredita-se que aquela última consistia, na verdade, em outra missa,
pois a edição veiculada na semana seguinte levantou tal possibilidade.
Sendo assim, para efeito comparativo, a estrutura funcional empregada na marcha
aracajuana, analisada sob a ótica de representação idealizada por Roger Chartier, também
aplica-se ao ato cívico-eclesiástico simãodiense, reiterando, portanto, uma tese na qual
Aracaju operou como o grande epicentro da cultura política sergipana. Um dos únicos
aspectos divergentes entre ambas, para além de questiúnculas como o quantitativo de
participantes, encontra-se associado à divulgação dos eventos via jornal351.
Não obstante este exercício reflexivo, o periódico A Semana, em edição veiculada dia
16/05/1964, propôs-se, conforme esperado, a repercutir os desdobramentos da marcha
simãodiense transcorrida dia 10/05/1964, evidenciando que ―embora o comparecimento não

350

Ibid.
Conforme constatado na reflexão sobre o estabelecimento dessas experiências na capital estadual, não houve
um esforço de divulgação desempenhado pelos veículos impressos para anunciar a realização daquelas marchas,
que, provavelmente, estiveram sob responsabilidade das emissoras radiofônicas e eclesiásticos conservadores,
empenhados em desenvolver todo o trabalho propagandístico mediante a celebração de missas. Paradoxalmente,
os poucos periódicos veiculados na capital até maio, sobretudo o Gazeta de Sergipe, anteciparam-se em
prenunciar as manifestações transcorridas em Laranjeiras, Barra dos Coqueiros e Aquidabã, tornando dificultoso
o exercício de depreender o motivo pelo qual tais esforços propagandísticos não foram destinados àquelas
manifestações cívico-eclesiásticas aracajuanas.
351

135

fosse conforme era de ser esperar, ao nível de volume igual ao das passeatas cívico-religiosas
já realizadas entre nós, a Marcha foi, sobremodo, entuziástica (sic)‖352.
Com base neste apontamento jornalístico, apesar de haver um eficiente e sofisticado
trabalho para desqualificar o governo federal/estadual no município, seguido duma bem
detalhada programação por ocasião daquela marcha na qual os participantes celebrariam a
capitulação das ―aspirações comunizantes‖ equivocadamente atribuídas a Goulart, os
discursos emitidos pelo jornal não obtiveram a ressonância esperada, ainda que pese o fato de
Simão Dias ser caracterizada como uma cidade historicamente alinhada à orientação
conservadora. Talvez, embora tenha-se elaborado uma programação especial em homenagem
ao Dia das Mães, os populares não se sentiram atraídos pelo evento, priorizando as
comemorações em ambiente familiar.
Ademais, após demonstrar certa lamentação com o quantitativo de participantes
presentes na ocasião, a matéria conferiu prosseguimento a descrição da marcha, enfatizando
que ―vários cartazes aluzivos (sic) a luta ante-comunista (sic) conduzidos pelos manifestantes.
Ao encerramento no atrio (sic) da Matriz de Santana, falaram diversos oradores‖353,
corroborando com aquela premissa sugerida anteriormente, segundo a qual esta etapa também
se caracterizou como uma missa. Para encerrar, a equipe redatora, ampliando toda a faceta
anticomunista que lhe era peculiar após o golpe, complementou a narrativa ao afirmar que
―Desta forma, Simão Dias cumpriu o seu dever cívico-religioso, demonstrando sua ojeriza ao
comunismo materialista‖354.
Quanto aos participantes, para além das associações religiosas e congêneres, a edição
que se empenhou em divulgar aquela marcha retratou a presença das denominadas
―autoridades‖ sob uma aura evasiva. No entanto, dentre outras figuras destacadas, não é
inapropriado afirmar que o governador Celso Carvalho esteve presente. Cidadão simãodiense,
ex-prefeito e proprietário de terras naquele município, o dirigente era constantemente
enaltecido pelo jornal dirigido por Carvalho Déda, que quase sempre vinculava nome daquele
dirigente ao gentílico da cidade, tornando pública a satisfação em testemunhar um
―conterrâneo‖355 assumir o cargo majoritário estadual. Portanto, ao examinar todas estas
evidências, acrescendo o fato de que era Dia Das Mães, embora não seja possível afirmar que

352

Cf. A Semana. 16/05/1964. pp. 01-02.
Ibid.
354
Ibid.
355
José Carvalho Déda era de naturalidade ―baiana, nascido no antigo Patrocínio do Coité, em 02 de dezembro
de 1898, local chamado, posteriormente, de Paripiranga, cidade vizinha a Simão Dias/SE‖ (BATISTA SOUZA,
2016, p. 42). Estabeleceu-se neste município em 1913 e o adotou como terra natal.
353

136

sua progenitora estivesse viva naquele período, o comparecimento do político era bastante
provável.
Em linhas gerais, da capital ao centro-sul sergipano, entre permanências e
ressignificados, as Marchas da Família Com Deus pela Liberdade prosseguiam com suas
mensagens de legitimação ao estabelecimento da nova ordem, alcançando, desta vez, a região
correspondente ao Baixo São Francisco, especialmente cidades como Aquidabã356, Cedro de
São João, Japoatã e Propriá.

5.4. Propriá, Aquidabã, Cedro do São João e Japoatã: as Marchas da Família no Baixo São
Francisco

Decorridas as marchas nas regiões metropolitana e centro-sul, o Baixo São Francisco,
parcialmente alinhado as pregações anticomunistas formuladas pela Diocese de Propriá 357,
dirigida por Dom José Brandão de Castro, expressou seu colaboracionismo a ruptura
institucional e, levando-se em consideração uma ordem cronológica

baseada n‘algumas

evidências, contribuiu, possivelmente, para inaugurar e concluir o circuito daquelas
manifestações cívico-eclesiásticas estaduais. Como as informações coletadas sobre estes atos
na região em pauta se mostraram demasiado irrisórias (datas precisas e percursos), não
obstante a realização de entrevistas e visitas aos locais, a presente seção se empenha em
construir uma compilação destas marchas, já que elas transcorreram numa composição
regional que permanecia sob a circunscrição eclesiástica da Diocese estabelecida em Propriá.
Esta cidade, tal como Simão Dias, Aracaju e Laranjeiras, detém significativa tradição
política e demonstrou seu repertório de engajamento nos radicalizados anos 60. Suas origens,
contudo, remontam ao século XVII, quando se instalou uma missão jesuíta naquela região. A
povoação, elevada de Freguesia a Vila em 1802, já desempenhava significativo papel
econômico naquele período e transformou-se em cidade no dia 21/02/1866, exercendo
jurisdição sobre os territórios que atualmente compreendem as cidades de Aquidabã e Cedro
de São João, locais nos quais as marchas transcorreriam em 1964.

356

Como Aquidabã está localizada na divisa entre a Mesorregião Agreste e o Baixo São Francisco, o presente
estudo considera-a como parte integrante desta última delimitação regional, pois ela se encontrava/encontra sob a
jurisdição eclesiástica de Propriá.
357
Para rememorar o processo de criação, bem como a atuação política desta Diocese, retornar as seções 2.1- pp.
64-65 e 2.2 – pp. 71-72.

137

Interpretada como uma cidade progressista desde 1930, segundo o historiador José
Alberto Amorim358, Propriá absorveu os impactos da conjuntura pré-golpe ao testemunhar
uma ampla correlação de forças entre agrupamentos orientados por vieses ideológicos
opostos. Se a ―coalizão‖ conservadora permanecia sob a batuta do bispo Dom José Brandão
de Castro e era amparada pelo periódico A Defesa, as bases progressistas encontraram no
prefeito Geraldo Maia uma voz amplificadora para a defesa do programa nacional-reformista.
No entanto, os eventos registrados entre 31/03 e 01/04 de 1964 representaram a
capitulação desta cultura política fortemente alinhada aos desígnios do presidente deposto.
Segundo Isaías Nascimento (2017):

O prefeito de Propriá, Dr. Geraldo Maia, e seu irmão Cleto Maia, deputado
estadual, sabendo do golpe pela madrugada, conseguiram fugir e se refugiar
na casa da irmã Maria Lourdes Maia, em Aracaju, onde permaneceram por
60 dias, quando se entregaram aos militares359.

Neste entreato (31/03 – 01/04), Dom Brandão encontrava-se em Recife, contudo, numa
edição do jornal A Defesa veiculada dia 13/06/1964, ao incorrer por demonstrações explícitas
de agradecimento as ações perpetradas pelos militares golpistas, o religioso assinalou a
seguinte declaração:

Um suspiro de alívio atravessou o Brasil, de um ponto a outro, quando se
tornou que, em poucas horas, o poder tinha saído das mãos dos que estavam
para lançar-nos na órbita de Moscou e Pequim. A vitória foi comemorada em
todos os recantos do país. Na diocese de Propriá, a sede foi a primeira. Uma
grande marcha – a Marcha da Família com Deus, em ação de graças –
mobilizou grande massa popular. Achava-me ausente, em Recife, e de lá
mandei uma mensagem que foi lida pelo Cura da Catedral Pe. Paulo Lebeau.
Seguiram-se, depois, o Cedro, Aquidabã, Japoatã. Aliás, no próprio dia da
vitória, o povo se reuniu, à noite, no Santuário de Nossa Senhora do Rosário
de Fátima, para recitar o têrço (sic) em agradecimento pelo triunfo360.

Com base neste trecho, não foi possível identificar precisamente o dia no qual a
marcha propriaense transcorreu, ainda que pese o fato de coletar alguns relatos orais do padre
Isaías Nascimento, cujas obras foram referenciadas ao longo desta pesquisa. Para o pároco,
358

Ver: AMORIM, José Alberto. Golpe civil-militar de 1º de Abril de 1964 (Fragmentos). Portal de notícias
Propriá como realmente é. Propriá: 2014. < https://pt-br.facebook.com/PropriaComoRealmenteE/>. Acessado
em 15/03/2019.
359
NASCIMENTO, Isaías. Dom Brandão: um pastor com cheiro de ovelhas. Gráfica o Lutador: Belo
Horizonte, 2017. p. 78.
360
Cf. A Defesa. 13/06/1964. p. 01.

138

D. Brandão, responsável por endossar a execução daquelas manifestações, contraditoriamente
era egresso ―de uma congregação religiosa que fez voto pelos pobres. Ele era vicentino, de
uma vocação que está atenta aos mais fracos‖361. Neste sentido, Nascimento afirmou que o
personagem foi signatário do ―Pacto das Catacumbas‖, que determinava, dentre outras
orientações, ―renunciar toda a riqueza para se colocar a serviço dos pobres‖362.
Entretanto, ―ele só conheceu a dimensão mais politizadora, o evangelho libertador,
quando Dom Távora morreu‖363, ressalta o entrevistado, justificando a contradição constatada
inicialmente e que, por associação, também elucida o momento em que D. Brandão se tornou
um combativo opositor do regime autoritário alguns anos após o golpe.
Antes da conversão, Nascimento concluiu que, para além de saudar a realização das
marchas e as ações conduzidas pelos militares por meio daquele artigo, o bispo propriaense
era uma figura que costumava desfilar ao lado de oficiais em eventos cívicos, tornando-o,
segundo minhas conclusões, um personagem de difícil compreensão, embora existam
trabalhos que se proponham a desvelar os fragmentos biográficos desta figura religiosa
ludicamente, tal como o livro publicado por Nascimento.
Contradições e complexidades biográficas à parte, D. Brandão, mesmo distante, mas
contando com o suporte concedido pelo padre Lebeau, empreendeu esforços para organizar a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade local, cujos percursos e participantes não foram
identificados, e saudou as forças golpistas que apearam um governo legalmente constituído do
poder, inaugurando, portanto, o estabelecimento duma nova ordem que silenciou as forças
democráticas deste país.
Quanto ao período de realização das manifestações cívico-eclesiásticas no Baixo São
Francisco, uma vez que se tornou um exercício especulativo determinar a data, conforme
assinalado anteriormente, acredita-se, considerando uma eventual ordem cronológica
estabelecida pelo bispo naquela publicação, que as marchas de Propriá e Cedro transcorreram
em abril. Já em Aquidabã, único município desta circunscrição eclesiástica cujos fragmentos
da manifestação foram descritos em uma fonte documental, a marcha ocorreu no dia
17/05/1964, segundo o jornal Gazeta de Sergipe.

No próximo dia dezessete, às dezessete horas, a cidade de Aquidabã estará
promovendo a sua Marcha com Deus e pela Liberdade. Deverá estar

361

Entrevista concedida ao autor dia 25/03/2019, na cidade de Itabaiana.
Ibid.
363
Ibid.
362

139

presente o Governador Celso Carvalho, especialmente convidado pelo
Prefeito daquele município364.

Conforme atesta a matéria, o mandatário máximo deste município, assim como
Erasmo Santa Bárbara, prefeito da Barra dos Coqueiros, antecipou-se em planificar/executar a
manifestação aquidabãense em conformidade com a paróquia local sob a direção do Cônego
Fernando Graça Leite, demonstrando o contexto polarizador que também se estabeleceu no
Baixo São Francisco. Enquanto Aquidabã esboçava sua condescendência com o regime
militar, o prefeito Geraldo Maia (Propriá) ainda permanecia recluso na capital e Cedro do São
João testemunhava a cassação de seu líder, substituído pelo padre Manuel Guimarães, que
obteve, inclusive, ―a anuência do bispo‖365.
Em Japoatã, território elevado à categoria de cidade no dia 20/10/1926, após uma mal
sucedida tentativa de emancipação dezesseis anos antes, a marcha em regozijo ao golpe civilmilitar esteve, supostamente, sob a responsabilidade do padre Evêncio Guimarães, que,
segundo Nascimento (2017), causava preocupação a D. Brandão ―em função de sua
personalidade e comportamento moral‖366. Não obstante os desalinhamentos que permearam a
esfera pessoal, o autor afirma, ainda, que o religioso exerceu suas atribuições enquanto
vigário de Japoatã por longos 40 anos, sugerindo que Guimarães estivesse gerenciando as
atividades desenvolvidas naquela paróquia quando a manifestação cívico-eclesiástica
transcorrera, possivelmente em maio, sucedendo Aquidabã.
Diante desta conjuntura instaurada no Baixo São Francisco, não obstante a ação
desempenhada pelas lideranças reformistas/progressistas naquela composição regional,
testemunhou-se a sublevação de um projeto político elaborado energicamente desde 1961,
quando Jânio renunciou ao cargo presidencial, e que foi responsável diretamente por cooptar,
articular e executar esforços para desestabilizar um governo legalmente constituído, apeandoo do poder após incisivas atividades conspiratórias. Desse modo, com base em levantamentos
documentais, Sergipe concluía o ciclo das marchas e consolidava sua faceta conservadora.

364

Cf. Gazeta de Sergipe. 13/05/1964. p. 06.
NASCIMENTO, Isaías. Dom Brandão: um pastor com cheiro de ovelhas. Gráfica o Lutador: Belo
Horizonte , 2017. p. 80.
366
Ibid., p. 47.
365

140

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sob a ótica dos analistas, os anos 60 foram compreendidos como um período
caracterizado por suas complexidades e dimensões singulares, descrição que se expressou
significativamente em nossa conjuntura política, irrompendo, posteriormente, para as
estruturas sociais. De Jânio Quadros a João Goulart, últimos presidentes do domínio
populista, o Brasil testemunhou seu primeiro grande momento de mobilização popular
circunscrito em uma experiência democrática melhor concebida desde então.
Com a renúncia do presidente Quadros, em 1961, protocolada graças a sua inaptidão
para o exercício daquele cargo, conclusão que permaneceu bastante evidente nas discussões
presentes no primeiro capítulo, a atmosfera constituída em torno do impedimento ou posse de
Goulart adquiriu amplas proporções e culminou com a ―Campanha da Legalidade‖, um
manifesto capitaneado pelo líder trabalhista Leonel Brizola que reivindicou a posse do vicepresidente democraticamente eleito. Ao assumir o cargo sob restritas condições, tendo em
vista a instauração do regime parlamentarista, Jango empreendeu novos esforços para
restaurar as competências presidenciais, capitulando, desse modo, o parlamentarismo que
vigorava pela primeira vez no sistema republicano.
O estabelecimento de sua condição como mandatário máximo, no entanto, foi
responsável por representar a única vitória daquela ―nova‖ composição governamental.
Conforme analisado no segundo capítulo, entre 1961 e 1963, isto é, desde o parlamentarismo
até a restauração do presidencialismo, Goulart se antecipou em empregar uma ―política
conciliatória‖ na qual tentava galvanizar forças antagônicas para, então, equilibrar-se sobre
elas, enquadrando-se numa qualificação segundo a qual era considerado portador de fracas
convicções. Enquanto o presidente renunciava a alternativas efetivas para contornar aquele
instável quadro econômico, os estratos sociais inauguravam um período marcado por grandes
mobilizações na busca por projetos políticos que lhes eram convenientes.
Se as classes populares articulavam manifestações grevistas e hasteavam a bandeira
das reformas, os estratos médios endossavam uma campanha de desestabilização operada sob
a liderança do complexo IPES/IBAD. Fortemente orientado pelo anticomunismo, este
―partido político da burguesia‖ representava os interesses econômicos dos Estados Unidos no
país e deflagrou uma guerra ideológica contra Goulart, associando-o constantemente a
supostas ―aspirações comunizantes‖. Tamanho empenho foi materializado, sobretudo, nas
eleições gerais transcorridas em 1962, quando este núcleo (IBAD) repassava recursos
financeiros para legisladores que constituíam a base oposicionista ao governo. Ainda que pese

141

a não obtenção dos resultados projetados, levando alguns especialistas a considerarem que
suas ações foram superestimadas, o embrião para desestabilizar o governo gestava no ventre
da classe média.
A criação da CAMDE e suas sucursais, derivadas daquela relação entre IPES/IBAD
e estratos médios, possibilitou a ampliação do anticomunismo vulgar em praticamente todo o
país, alcançando o seu ápice entre 1963-1964, período no qual ambas intensificaram seu
repertório de ação. Ao passo que o governo Goulart persistia em incorrer pela conciliação,
causando insatisfação desde a classe trabalhadora até as camadas médias, estas associações
femininas organizavam palestras e exerciam pressão sobre o governo com base em
intervenções reativas.
Entretanto, a inflexão de Goulart para as bases reformistas, também em 1963-1964,
causaria impacto imediato naquelas forças antigovernistas. Aos 13/03/1964, em pleno
―Comício da Central‖, conforme evidenciado no segundo capítulo, o presidente anunciou a
desapropriação das terras localizadas às margens de rodovias federais e afirmou
energicamente a encampação das refinarias particulares instaladas no país, causando certo
furor ao público presente naquela ocasião e ampliando os temores dos setores oposicionistas.
Em represália, algumas senhoras da zona sul carioca acenderam uma vela para obstruir as
orientações presidenciais, levianamente qualificadas de ―comunizantes‖.
Mas esta demonstração de insatisfação se materializou significativamente no dia
19/03/1964, em São Paulo, quando aproximadamente 300 mil pessoas, segundo estimativas,
participaram daquela que ficou conhecida como Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Enquanto o conjunto de manifestações cívico-eclesiásticas era inaugurado na capital paulista,
Sergipe repercutia tal mobilização antagonicamente. Se o jornal Gazeta de Sergipe convergia
com a plataforma reformista, assim como parte do clero sergipano composto por
progressistas, alguns dirigentes políticos e representações sindicais, os setores conservadores
alinhados a imprensa antirreformista constituíam uma fortificada coalizão oposicionista,
acentuando a polarização político-ideológica em escala estadual.
Testemunhando a preponderância de uma cultura política orientada pelo
conservadorismo e autoritarismo pragmático, o pequeno estado atravessou, entre o comício
pró-reforma (13/03/1964) e a capitulação do governo legalmente constituído (31/03/1964 –
01/04/1964), um certo enfraquecimento das forças reformistas, não obstante a realização
d‘algumas manifestações em defesa daquela plataforma. Nesse ínterim, as marchas eram
ampliadas e expressavam não só a insatisfação com João Goulart e seu programa
governamental, mas, tal qual evidenciado no terceiro capítulo, empenhavam-se em conferir

142

legitimidade a um regime autoritário que se estendeu por duas décadas, pois sua estrutura
funcional, inserida em dimensões simbólicas, convergiu para estes fins.
Após as Marchas da Família paulista e carioca, que obtiveram maior destaque na
imprensa nacional, estas manifestações cívico-eclesiásticas alcançaram Aracaju no dia
14/04/1964, com o golpe já consolidado. Diferentemente daquele ato transcorrido no Rio,
executado em 02/04/1964 e denominado ―Marcha da vitória‖, a primeira mobilização
sergipana preservou a nomenclatura oficial e se apropriou, guardadas a devidas proporções,
de algumas características constatadas nas marchas realizadas em plena região sudeste.
Promovida pelo Bispo Auxiliar D. Luciano Cabral em conformidade com as irmãs G. e o
jornalista Santos Mendonça, a mobilização aracajuana carregou consigo uma contumaz faceta
simbólica desde seus participantes até o percurso estabelecido.
Delimitado entre a Assembleia Legislativa - órgão oficial do estado localizado na
Praça Fausto Cardoso - e a Igreja Matriz, perpassando pela rua Pacatuba, avenida Barão de
Maruim, rua Santa Luzia e culminando com uma missa celebrada no Parque Teófilo Dantas,
erigido ao lado daquela instituição religiosa, o ato cívico-eclesiástico demonstrou, com base
nesta circunscrição, a ampla coligação entre Forças Armadas e Igreja Católica, ambas
respaldadas por alguns setores civis.
A efetiva participação destes, em especial as irmãs G., representa mais um ponto de
convergência com os atos promovidos, principalmente, no eixo Rio-São Paulo, induzindo-me
a concluir que, possivelmente, aquelas mulheres aracajuanas também articularam esforços
com as associações femininas atuantes nas principais cidades do país, orientadas, sobretudo,
pelo anticomunismo que impulsionou a execução daquelas marchas. As evidências
documentais, entretanto, não apontaram quaisquer informações sobre a formação de grupos
femininos propriamente ditos na capital.
A segunda manifestação realizada em Aracaju, dia 26/04, não obstante a
modificação do percurso, antecipou-se em preservar a dimensão simbólica presente na marcha
transcorrida em 14/04. Testemunhada pela depoente Aglaé D‘Ávila Fontes, a mobilização
arregimentou os participantes nas imediações da Igreja São José, localizada defronte a Praça
Tobias Barreto. Esta nomenclatura do logradouro, atribuída em homenagem a um obstinado
intelectual sergipano, representou uma conexão que sugeriu o rompimento com a ordem
populista, externando o bem articulado colaboracionismo das forças conservadoras sergipanas
ao golpe civil-militar e evidenciando, através destas práticas simbólicas, o ceticismo em
relação ao programa nacional-reformista proposto por João Goulart e defendido pelo
govenador Seixas Dória, deposto sob a alegação de desenvolver ações ―subversivas‖.

143

Contando com a participação de delegações interioranas, a última marcha
aracajuana convergiu, tal qual sua primeira edição, para o Parque Teófilo Dantas, ao lado da
Igreja Matriz, onde alguns oradores destilaram o anticomunismo vulgar e defenderam a
ruptura institucional que instaurou um regime militar cuja duração se estendeu por duas
décadas. Nesta ocasião, segundo os relatos de D‘Ávila Fontes, a manifestação contou com a
participação dos professores que compunham os quadros do tradicional Colégio Salvador,
dirigido pelas irmãs G., pressupondo que estas, para além de organizarem o ato em
conformidade com a Igreja, também efetivaram presença naquela marcha transcorrida no dia
26/04.
Com a capital integrada aos desígnios impostos pela nova ordem, não tardou para
que a manifestação cívico-eclesiástica irrompesse por outros municípios. No dia 03/05,
conforme consta no jornal Gazeta de Sergipe, os municípios de Barra dos Coqueiros e
Laranjeiras promoveram suas marchas em regozijo ao golpe civil-militar. No primeiro local, o
prefeito Erasmo Santa Bárbara se empenhou, possivelmente numa articulação com a Igreja
local, na organização do ato programado para às 16h que incluiu a cidade na horda dos
detratores alinhados a instauração de um regime arbitrário e impessoal.
E aquele dia 03/05/1964 se constituiu como bastante simbólico para as forças
conservadoras, pois, além da Barra, Laranjeiras também realizaria sua edição da marcha.
Prevista para iniciar às 19h, a manifestação foi organizada, com base em levantamentos
documentais impressos e coleta de relatos orais, pela tradicional família Franco, Igreja local e
um ―setor‖ feminino laranjeirense, capitaneado por Edith Vinhas e Regina Oliveira,
professoras vinculadas a própria instituição religiosa e membros do ―Apostolado da Oração‖.
Conforme os relatos do depoente Evandro Bispo, o padre Filadelfo Jônatas de Oliveira,
qualificado pelo entrevistado como conservador, também colaborou com a estruturação da
manifestação, cuja motivação estava associada a uma eventual supressão da propriedade
privada após o anúncio das desapropriações, mobilizando as forças patronais e populares
daquele município a militarem contra o governo federal/estadual, já desposto àquela altura, e
saudarem a ação perpetrada pelos golpistas através da marcha.
Precisamente uma semanada depois, isto é, dia 10/05/1964, a manifestação cívicoeclesiástica se estendeu até a região centro-sul, sendo realizada em Simão Dias, município de
forte tradição política. Estrategicamente divulgada no periódico A Semana, a marcha
encontrou solo fértil para sua plena realização, pois o local demonstrava um conservadorismo
bastante significativo que era sustentado, em certa medida, pelo referido jornal mantido sob a
direção de José Carvalho Déda. Segundo as informações desta fonte, o ato fora organizado

144

por uma associação vinculada a Igreja local, cujos membros eram jovens articulados,
possivelmente, com um ―núcleo‖ feminino simãodiense.
Neste sentido, sua execução ocorreu no dia das mães, enfatizando um simbolismo
que elevou a figura feminina ao estatuto de ―protetora‖ dum país que enfrentava uma ―ameaça
comunista‖, expressão que habitava contumazmente o imaginário daquele período.
Concentrados no Ginásio Carvalho Neto, os participantes, representados por um número
modesto de pessoas, convergiram para a Praça Barão de Santa Rosa, local no qual a Igreja
Matriz está localizada. Neste perímetro, alguns oradores cujos nomes não foram mencionados
destilaram sua ojeriza ao destituído governo Goulart e saudaram as forças golpistas,
materializando um conservadorismo historicamente preponderante naquela cidade, conforme
já mencionado.
Na porção territorial que compreende o Baixo São Francisco, especialmente as
cidades de Propriá, Cedro do São João, Aquidabã e Japoatã, há informações controvertidas
sobre a data na qual as manifestações transcorreram, exceto em Aquidabã, cuja marcha
ocorreu em 17/05/1964, segundo informações disponíveis nas fontes documentais impressas.
A partir destas evidências, então, é provável que nos municípios de Propriá e Cedro,
separados por 14 km, as mobilizações tenham se processado em abril, pois o primeiro
município exerce jurisdição eclesiástica sobre a composição regional. Levando-se em
consideração, também, um trecho daquele artigo veiculado no dia 13/06/1964, segundo o qual
a sede diocesana inaugurou a cadeia de marchas nesta porção territorial, acredita-se que os
organizadores renunciaram aos intervalos prolongados, excetuando, tal qual apropriadamente
mencionado, os municípios de Aquidabã (17/05) e Japoatã, cuja manifestação,
provavelmente, também ocorrera em maio.
Diante disto, o posicionamento adotado pela Diocese de Propriá, embora sediada
num município qualificado como progressista, não representou surpresa, haja vista que o seu
bispo, Dom José Brandão de Castro, demonstrava profundo alinhamento com as forças
golpistas através de suas publicações no periódico A Defesa, órgão vinculado à própria
circunscrição eclesiástica. Entre depreciativas críticas ao governo Goulart e seu clamor por
uma intervenção moralizadora para obstruir o que caracterizava como ―aspirações
comunizantes‖, Brandão desempenhou um fundamental papel na legitimação do golpe civilmilitar naquela região.
As marchas sergipanas, portanto, representaram a materialização dum projeto
político-ideológico formulado cirurgicamente por agrupamentos conservadores. Deste modo,
a sua dimensão simbólica, completamente envolvida por complexidades, uma vez que tais

145

manifestações carregavam consigo ressignificados e certas permanências, elevou-as não só a
condição de elemento legitimador daquela ruptura institucional, mas demonstrou uma faceta
historicamente conservadora presente na sociedade sergipana, cujas ações foram
modestamente desveladas nesta produção.
Enquanto os militares se consolidavam no poder, as marchas diminuíram
gradativamente e despovoaram o imaginário coletivo, pois, à medida que o regime autoritário
ampliava suas políticas repressivas, houve uma dissensão gradual entre o triunvirato
composto pelas Forças Aramadas, Igreja Católica e representações femininas. Em Sergipe,
por exemplo, o próprio bispo de Propriá, anos após o golpe, tornou-se um contumaz opositor
da nova ordem que emergiu com a ruptura institucional. Tal cisão em escala nacional,
inclusive, foi fundamental para a redemocratização do país, alcançada graças às ações
desenvolvidas por atores que defendiam, verdadeiramente, os valores que são peculiares à
democracia.

146

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Entrevista concedida por Reginaldo Andrade Silva em 21/02/2019.
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Entrevista concedida pelo padre Isaías Nascimento em 25/03/2019.

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153

ANEXOS

Imagem 1: termo de consentimento assinado por Aglaé D‘Ávila Fontes.

154

(Posteriormente a esta entrevista, o último objetivo assinalado no documento foi transformado em um
projeto visando à seleção de doutorado. Neste sentido, o recorte temporal foi simplificado para 1964).

Imagem 2: termo de consentimento assinado por Luiz Fernando Soutelo.

155

Imagem 3: termo de consentimento assinado pelo padre Isaías.

156

Imagem 4: termo de consentimento assinado por Evandro Bispo.

157

Imagem 5: termo de consentimento assinado por Reginaldo Andrade.

158

Imagem 6: Jornal Gazeta de Sergipe, 03/05/1964.

159

Imagem 7: Jornal Gazeta de Sergipe, 15/04/1964.

160

Imagem 8: Jornal A Semana, 16/05/1964.

161

Imagem 9: Jornal O Sim Sim, Janeiro de 1964.

162

Imagem 10: Jornal A Defesa, 13/06/1964.

163

Imagem 11: Jornal Folha Trabalhista, 29/03/1964.