:: Projeto de Extensão Coordenado pelos professores e jornalistas
:: Erico Abreu (MTb 354-AL) e Francisco de Freitas





De:
Por:
Clique para fazer a busca!
MENU
 

Universidade Federal de Alagoas - UFAL
 

06/06/2008
Opinião
O Múmia

Crônica: João Paulo da Silva

Por João Paulo da Silva

Há anos faço a barba e o cabelo com o Múmia. Não gosto de ficar trocando de barbeiro. Já me acostumei com ele. Sempre caladão, sério, com aquele olhar bovino, inofensivo. Deve ser por isso que o chamam de Múmia. Nunca descobri o seu verdadeiro nome. Também acho que nunca tive muito interesse. Ninguém o chamava pelo nome real. Todo mundo o conhecia mesmo era por Múmia.

A gente se entendia bem. Eu chegava no salão e ia logo dizendo:

– O de sempre, ô Múmia.

As pessoas até tentavam puxar conversa com ele, mas era uma dureza fazê-lo falar. O máximo que podia sair daquela boca, escondida atrás de um bigodão, era um grunhido ou qualquer coisa que o valha. Às vezes um ruído de aprovação ou desaprovação, dependendo do assunto. Na maioria das ocasiões, o Múmia se comunicava mesmo era por meio gestos e meneios de cabeça. Mas todos sabiam que ele não era mudo.

A reviravolta veio há algum tempo, quando ele resolveu se manifestar.

Vou contar do começo. Assim como milhões de trabalhadores, o Múmia também votou no Lula. Esperava grandes mudanças, sonhava com uma vida melhor, saúde, educação, emprego, um salário digno. Achava mesmo que tudo seria diferente. Quando o Lula chegou à presidência, dava pra ver a esperança na cara do Múmia.

– Ô Múmia! E esse governo, hein?! Será que agora vai?

Com um sorriso que não cabia no rosto, ele balançou a cabeça com firmeza e soltou um ruído parecido com um “oh, se vai!”. Alguns meses depois, já tinha gente provocando o Múmia.

– Olha aí! Tá vendo só?! Ainda não mudou foi nada! O Lula nem mexe no salário. Fica só falando nesse negócio de Alca. Sei não... Boa coisa não é.

O Múmia ficava ouvindo, sempre calado. De vez em quando encolhia os ombros e fazia cara de “calma aí, pessoal. Deixa o homem trabalhar”.

A verdade é que o tempo passava e as mudanças não vinham. Não veio reforma agrária, nem saúde, nem emprego. O que se via mesmo era rico ficando mais rico e pobre ficando mais pobre. Mesmo com uma pontinha de decepção, o Múmia se mantinha firme. Afinal, era um dos “nossos” que estava lá.

- E agora, ô Múmia? Mais de um ano de governo e nada! Tão matando sem-terra e a política econômica ainda é mesma dos tempos do Fernando Henrique. – diziam no salão.

E o Múmia sempre na dele. Mas já não tinha aquele sorriso do começo. Sabia que tinha alguma coisa errada.

Aí veio a história do mensalão.

– Eu não falei?! Não disse?! É tudo igual, Múmia. Todos eles roubam o povo. A gente aqui, dando um duro danado e esses caras do PT batendo a nossa carteira. E o Lula dizendo que não sabe de nada. Tu acredita nisso?!

O Múmia era só decepção. Parecia não saber o que dizer. E mesmo que soubesse não diria. O PT e o Lula eram iguais aos outros. Disso talvez ele soubesse.

Quase quatro anos depois, já perto das eleições, o Múmia não tinha sentido nem mesmo o cheiro das mudanças. Só algumas migalhas.

– Vai votar no Lula de novo, Múmia? – perguntaram no salão.

Meio receoso, hesitante e sem jeito, o Múmia fez uma cara onde se podia ler “mas ele veio do povo”. Assim como milhões de trabalhadores, o Múmia também votou de novo no Lula. Mas as caras e suspiros que ele deixava escapar demonstravam que aquela antiga esperança já não existia mais. O que havia era uma vontade de não perder as migalhas concedidas. A economia estava crescendo. Pouquinho, mas estava. No rosto do Múmia, via-se a expressão de “deixa como tá pra ver como é que fica”.

O segundo mandato começou como uma reprise do primeiro. Só com uma diferença: o que o Lula não conseguiu fazer de ruim com os trabalhadores no primeiro governo começou a fazer no início do segundo. E isso o Múmia sentia na pele e via pela TV.

No salão diziam:

– Ele agora vai mexer na nossa aposentadoria, não quer que ninguém faça greve, anda dizendo que usineiro é herói. Sei não, Múmia. Tá ficando pior.

O Múmia agora só balançava a cabeça em sinal de desaprovação. No rosto, a expressão de “na década de 80 não era assim”.

Este ano começou ruim para o Múmia e milhões de trabalhadores. Começou mais caro. A cesta básica disparou. E o feijão? Este nem se fala. Assim como tantos outros milhões, o Múmia ia ter de apertar o cinto.

Foi aí que tudo aconteceu.

Eu tinha ido cortar o cabelo e fazer a barba. O Múmia estava passando a navalha no meu pescoço quando a TV deu a notícia. “Novo mínimo de Lula é de R$ 415”.

O Múmia arregalou os olhos e, com a navalha ainda no meu pescoço, disse:

– Isso é uma palhaçada! Um absurdo! O que que eu vou fazer com R$35 de aumento?! Isso não dá nem pra cobrir o aumento do ônibus!

– Calma aí, Múmia. Espera um pouco. Olha essa navalha. – falei.

– Calma uma ova, seu João! – deu um salto pra trás e começou a sacudir a navalha no ar. – Eu esperei vinte anos da minha vida por um governo do povo. Votei muitas vezes no Lula e confiei no PT. E agora?! O que foi que eu ganhei?! Nada! Nesse governo, os ricos lucram fortunas! E os pobres pagam a conta, seu João. Esperei vinte anos por emprego, reforma agrária, educação, saúde, salário digno. Eu e milhões de trabalhadores!

Depois do desabafo, o Múmia sumiu do salão. Não voltou mais pro trabalho. E levou a navalha. Na barbearia até já tem outro no lugar dele. Está um clima diferente, todo mundo apreensivo, cheio de expectativas, como se algo estivesse prestes a acontecer. Todos achavam que ele ficaria sempre assim. Mudo. Mas até mesmo os mais calados uma hora acabam botando a boca no mundo.

Clique nas fotos para ampliá-las.

Clique para ampliar