Paulo Bruscky é mais do que um experimentalista e um artista de vanguarda: ele é incansável e inesgotável. Em sua última exposição Work in Progress e Objetos Inúteis, que ocorreu nos meses de março e abril na Pinacoteca da Universidade Federal de Alagoas, o artista pernambucano fez uma retrospectiva de sua produção ao longo de mais de três décadas de carreira.
Artista multimídia, Bruscky prioriza desde a década de 1970 a arte conceitual e experimental, fazendo pesquisas múltiplas que envolvem o espaço e o ambiente e intervenções e materiais diversos, como happenings, carimbos, copy art, áudio-arte.
Bruscky foi escolhido pelos críticos de arte brasileiros como um dos cem melhores artistas do Brasil na meia década 1970/1975 e já obteve vários prêmios internacionais, entre os quais o de Artes Visuais da Foundation Guggenhein de Nova York, EUA; Sala Especial na 26ª Bienal Internacional de São Paulo de 2004; Artista Convidado para exposição no Florean Museum, Romênia, em 2005; Panorama da Arte Brasileira, MAM SP.
Em passagem por Maceió, Bruscky revela numa entrevista descontraída à AUN sua relação com a arte conceitual, com a crítica de arte e com o processo de criação. Fala ainda sobre o seu eterno estado de arte e sobre o período da ditadura.
AUN - Você tenta dessacralizar a arte, acabar com a idéia de que a arte deve ser intelectualizada. No entanto, você usa a arte conceitual para isso, que não é uma arte ainda muito aceita pelo público mediano. Não parece ser uma tarefa muito difícil fazer uma arte do cotidiano e para o cotidiano utilizando uma das artes consideradas mais intelectuais da contemporaneidade?
Paulo Bruscky - Eu não penso se a arte que estou fazendo é cult ou não, se o que eu faço é arte do cotidiano ou arte intelectual, o que o público e a crítica vão dizer do meu trabalho. O que me dá na telha eu faço. Faço por prazer, porque não sei viver sem estar em eterno estado de arte. Já me perguntaram se eu faço análise (risos). Eu nunca fiz análise porque não me interessa ficar normal (risos). Todo mundo já é normal demais para eu também ser mais um normal.
AUN - Sua obra tem uma relação muito forte com o lugar em que você vai expor...
Bruscky - Eu só faço uma exposição vendo o espaço do lugar onde vou expor, pois adeqüo minha arte a ele. O artista tem que entender de palco, profundidade, perspectiva para saber criar uma relação harmônica entre a arte que vai expor e o ambiente que está a recebendo. Eu aprendi muito isso pensando a respeito da cidade, da forma como uma cidade é constituída aos poucos. Vou incorporando coisas da cidade em minha obra, inclusive muitos objetos que as pessoas levam do lixo.
AUN - O Monumento à Inutilidade foi uma obra elaborada para mostrar a acuidade de se pensar na utilidade da arte?
Bruscky - Não, eu não gosto dessa discussão sobre pra quê serve a arte, não gosto dessas teorias que andam fazendo por aí. O Monumento à Inutilidade é uma obra que eu fiz pensando na intervenção urbana. Eu me inspirei em um poema meu dos anos 70, “Entre o paralelo do trilho e a distância do avião”. Em cada cidade que a obra passa, ela vai ganhando elementos novos, pois as pessoas trazem objetos que elas consideram inúteis e se tornam co-autoras da obra.
AUN - Filmes de Artista e Intervenções Urbanas é uma das suas obras que mais evidenciam sua concepção de arte?
Bruscky - Sim, claramente. São filmes que eu produzi nos anos 70 e 80, muitos deles apenas com imagens, sem som. Eu pensei recentemente em alterar alguns dos filmes e colocar música, mas depois eu pensei o quanto isso seria uma traição com a obra que eu fiz naquele exato momento de minha vida. Eu não edito meus filmes porque minhas idéias eu não edito. O pensamento nunca se repete. Eu quero minha obra crua, da mesma forma como foi pensada naquele momento em que eu a concebi.
AUN - Como é o seu processo de criação?
Bruscky - Eu uso muitos os sentidos e gosto da interatividade. Estou sempre com um bloquinho e caneta, anotando tudo o que eu acho importante. Eu também gosto muito do acaso. O nome da exposição Work in Progress e Objetos Inúteis foi um grande acaso, pois me inspirei numa placa que eu vi em Londres, cuja fotografia eu fiz e também coloquei na exposição. Eu me lembro que quando eu morava no Recife eu pegava um trem no sábado ou no domingo e passava o dia todo trabalhando dentro desse trem. Eu não me importava em qual estação eu iria parar, só queria seguir, estar parado em movimento, entende?
AUN - Você é muito citado pela crítica como “o herdeiro de Duchamp”. Isso te incomoda?
Bruscky - As pessoas analisam e escrevem por analogia. Não acho ruim que digam que eu sou o herdeiro de Duchamp, só tomo muito cuidado para não seguir o mesmo caminho dos meus antecessores. Quero fazer o meu próprio caminho, criar aquilo que parecia impossível, pois repetir o que já foi feito não me interessa. Meu trabalho tem muita ironia. Tinha algum artista, do qual o nome agora não me recordo, que dizia: “devemos nos preocupar com as pessoas sérias, pois já é um predicado para se tornarem tiranas”.
AUN - “O mais importante é o saber ver e não o fazer”. Essa frase, que é uma das mais emblemáticas da exposição Work in Progress e Objetos Inúteis, é mais uma provocação ou apresenta o que você pensa sobre a relação do artista com a arte?
Bruscky - Eu acredito que a arte só existe porque não somos todos educados suficientemente para entender a beleza do mundo. Talvez seja até uma utopia minha, mas eu gosto de acreditar que não deveria existir o artista, pois a arte já existe; o artista serve apenas para materializar a arte. A arte existe para mostrar, evidenciar algo que deveríamos enxergar sem precisar dessa lente de aumento. A arte serve para refletir, para questionar. É aquela coisa: me tocou ou não me tocou, gostei ou não gostei, só isso.
AUN - Muitas de suas obras têm uma relação direta com a medicina e com a biologia...
Bruscky - Eu cheguei a cursar medicina, mas depois abandonei para fazer jornalismo. Nunca exerci nenhuma dessas profissões, pois fui funcionário público minha vida toda. Eu trouxe muitos elementos da medicina e da biologia para minhas obras, talvez por isso que considerem minha arte muito racional, como a obra “EGG e Arte”, em que eu uso eletroencefalogramas para compor imagens. Cada emoção está associada a um ritmo diferente do pensamento e uma região distinta do cérebro. O que eu tento é captar esses momentos, trazer para a discussão o reflexo condicionado das coisas.
AUN - A fugacidade da obra de arte é um dos valores que você mais presa em suas criações...
Bruscky - Uma das minhas obras daqui a algum tempo eu já tenho planejada: tocar fogo no que restou de minhas obras de instalação e performance. Eu quero fazer uma obra de arte efêmera, mostrando que aqueles valores de perenidade já não existem mais na arte contemporânea. Se a vida é efêmera, porque a arte não pode ser?
AUN - Você acredita que a arte tem uma essência?
Bruscky - Não existe uma prática sem uma teoria internalizada. A essência da arte, pra mim, é a necessidade de fazer uma obra, e não a teoria, pois a teoria é conseqüência da necessidade de criar. Mas não acredite muito no que eu estou lhe dizendo agora, daqui a um minuto eu posso mudar tudo isso que eu penso (risos).
AUN - O período da ditadura é marcante na sua história. Como isso interferiu e interfere na sua arte?
Bruscky - Eu defendo a liberdade de expressão acima de tudo. Eu sofri muito na ditadura, não porque eu fazia parte de algum partido político, eu sempre me permiti ser livre demais para ficar preso a um partido. Eu fui preso três vezes, em 68, 73 e 76, porque nunca deixei de fazer uma obra por qualquer motivo que fosse. Eu fazia tudo o que vinha na minha cabeça. Foi nessa época que criei o Manifesto Nadaísta, dizendo abertamente para os “deduradores” que eu nunca deixaria de fazer uma obra de arte porque eles poderiam me matar.
AUN - Por que a maior parte das obras compostas por sua geração está no exterior?
Bruscky - A produção da contemporaneidade brasileira está toda no exterior. Minhas obras mesmo, são mais conhecidas lá fora do que aqui. O que falta no Brasil é educação, grande parte do nosso público não tem repertório para entender o tipo de arte que fazemos. Um grande exemplo são as pinturas do Hélio Oiticica. Hoje, quase todas estão em Londres, Nova Iorque, Paris. As pessoas aqui no Brasil são “adestradas”, falo isso sem receio, vêem subversão em tudo. A falta de educação não está apenas nas classes mais baixas, mas em todas as classes. A maior parte das pessoas é analfabeta estrutural: os desfavorecidos porque nem escola freqüentaram; a classe média porque tem outras preocupações, já que não quer perder sua pequena fatia no bolo; e os ricos porque acham que dinheiro pode comprar tudo, até cultura.
AUN - Como é a relação do artista com o museu no Brasil e no exterior? Existe uma grande diferença?
Bruscky - Tem uma grande diferença na relação do artista com o museu em que suas obras já estão ou ficarão. No Brasil, toda a manutenção é responsabilidade do museu. No exterior, é o próprio artista que mantém sua obra, o que eu acho bem mais interessante, pois você não se desvincula daquilo que produz, não diz “toma, que agora isso é seu”. Você tem que cuidar pra sempre daquilo que produziu, como se fosse um filho mesmo.
AUN - Por que você acha a crítica de arte infrutífera?
Bruscky - A crítica de arte é como um táxi: leva o artista para onde ele quiser, só depende do preço que ele está disposto a pagar. Por isso eu não gosto e nem ligo para esses críticos. É por isso que eu cansei das bienais, acho uma tremenda chatice. Nós, artistas, é que sabemos o que fazemos, e pronto! A crítica de arte é uma grande mentira e tem artista que mente junto com o crítico porque acredita mais no que ele diz do que na própria arte que faz. Os historiadores também são outros grandes mentirosos, sempre contam a história a partir de quem dá mais.
AUN - Você já disse certa vez que é um artista em eterno estado de arte, sempre apaixonado...
Bruscky - Quer saber mesmo? O amor é que move a essência de tudo. Eu posso deixar de conviver com as pessoas que fizeram parte de minha vida, mas eu nunca vou deixar de amar a quem eu já amei. É isso o que me move.