Em passagem por Maceió, especialmente para o lançamento do filme
A Casa de Alice na II Mostra Sesi Brasil, que está sendo promovida pelo Cine Sesi Cultural, o diretor e roteirista Chico Teixeira concedeu entrevista a
AUN, ocasião em que remontou todo o processo de criação, produção e finalização do longa. Formado pela Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas Cândido Mendes (RJ), Chico Teixeira vem trabalhando em cinema desde 1989, como documentarista.
A Casa de Alice é o seu primeiro filme ficcional, uma outra linguagem que ele diz estar aprendendo agora a explorar em toda sua intensidade e sensibilidade.
O filme já recebeu onze prêmios internacionais, dentre os quais o de melhor filme no 21º Festival Internacional de Fribourg e o prêmio especial do júri no 24º Festival Internacional de Miami. O longa ainda foi premiado no Festival de Cinema do Rio 2007 e na Mostra de São Paulo 2007 pela atuação de Carla Ribas protagonizando Alice.
Alice é uma manicure quarentona que mora no subúrbio de São Paulo. Ela divide a casa com o marido, o taxista Lindomar; com a mãe, dona Jacira; e com os três filhos, Lucas, Edinho e Junior. Com o casamento falido, Alice e seu marido vivem relacionamentos extraconjugais submersos na conformidade da rotina. O filme discute temas como a traição e coloca em cheque a forte crise que o modelo de família vem sofrendo nos dias atuais.
AUN – O nome “Alice” permeia o imaginário coletivo por causa do clássico Alice no País das Maravilhas. Você transforma essa imagem do pueril, do inocente ao construir uma Alice dessacralizada, comum, com tantos problemas quanto qualquer pessoa...
Chico Teixeira – Quando eu escrevi A casa de Alice, eu não racionalizei os elementos que eu estava colocando ali naquela trama. Foi um processo de construção muito interior, eu precisei mergulhar profundo dentro de mim para encontrar cada um daqueles personagens. Por isso, todas as simbologias, inclusive as que têm a ver com o nome Alice, surgem depois do processo da escrita, da minha entrega ao texto. Eu aprendi muito com os críticos de arte a atribuir significações a elementos que eu coloquei no meu enredo de forma tão visceral.
AUN – Uma das principais características do filme é a naturalidade. Você trata de assuntos polêmicos, como traição, construindo enlaces narrativos sem um tom de estranheza, sem que se pareçam com anormalidades aquelas situações que você está expondo. O filme é uma selvagem delicadeza...
CT – O filme é muito visceral. Até a câmera tem aquela coisa orgânica que eu quero passar pras pessoas que assistem ao meu filme. Eu dispensei tripé para que se gravasse no ombro mesmo, para que o espectador sentisse até a respiração de quem estava gravando, sentisse que ali tem vida pulsante. A câmera vivencia a família, entra naquela casa, participa daquele seio familiar. O filme é muito de alma.
AUN – Como se deu a construção da linguagem do filme? Você alcançou a “linguagem orgânica” que você pretendia?
CT – Eu cortei muitos diálogos. Me permiti mudar muita coisa no processo de gravação, deixei que os atores opinassem também. Eu queria muito corpo, percebi que a trama exigia muito corpo. Então me preocupei muito com o que eu chamei de “linguagem orgânica”, que é a posição corporal de cada uma das personagens em cada cena, procurei decupar bastante o jeito como eles iriam sentar, iriam dormir, tocavam um no outro. O espaço dos irmãos quando iam dormir, já que eles praticamente dormiam juntos, denunciava muito o que estava acontecendo naquele momento do filme. Ora os irmãos dormiam afastados, ora estavam mais próximos. O corpo fala muito e eu busquei a linguagem visual do cinema para mostrar isso.
AUN – O roteiro traz muitas simbologias e algumas das mais marcantes giram em torno da personagem Jacira, que é mãe da protagonista Alice...
CT – Sim... A primeira personagem que nasceu foi a senhora Jacira. Depois foi Alice que pediu para nascer. Com Alice, vieram todos os outros personagens centrais: os três filhos e o marido taxista. A Jacira talvez seja a personagem mais emblemática do filme, pois ela sempre está rodeada de signos importantíssimos. Ela é quem faz todo o serviço doméstico daquela família e por isso está sempre vendo todas as transgressões daquele seio familiar. Jacira omite, até para si mesma, tudo aquilo que sabe. A cegueira que ela vai ganhando ao longo dos anos representa muito isso: olhar e não querer enxergar a fundo todas as tensões que se mostram dia-a-dia. O rádio, única companhia dela; o café sempre frio e aguado; as roupas sujas que ela lava todos os dias, uma espécie de alusão ao “lavar as roupas sujas” que nunca acontece naquela casa.
AUN – A dona Jacira não é a protagonista da história, mas ela faz um papel onipresente na trama e é a única personagem que tem um final no filme. Você escolheu a matriarca como aquela que assiste aos poucos a dilaceração do modelo tradicional de família.
CT – Talvez seja mesmo a Jacira a única personagem que tenha um final convencional, aquele final, não diria “feliz”, mas um final com grandes possibilidades de ser mais aceito pelo público. Aliás, Jacira é a única personagem que tem um final no filme. Ela vai para um asilo e, se livrando de todas aquelas tensões familiares, ela se vê realizada no lugar onde antes abominava. Eu gosto de trabalhar a temática da velhice. Eu tenho muito medo de envelhecer, de ficar só.
AUN – O filme tem um ritmo de apreensão. As personagens estão sempre esperando por algo que ainda vai acontecer, sempre vivendo em função daquilo que virá. Foi por isso que você escolheu deixar o final em aberto?
CT – Não só as personagens, mas a gente também está sempre numa espera, sempre em busca do que está por vir. O filme todo é esse esperar para que as circunstâncias digam às personagens por onde elas devem ir. Escrever o começo e o final de uma trama é sempre muito difícil. O final em aberto dá margem à imaginação do espectador. Cada dia alguém pode assistir ao filme e imaginar uma coisa diferente. Depende do dia, do humor, das dificuldades que a pessoa está passando naquele exato momento em que assiste ao filme. Muitas pessoas se identificam com os dramas familiares, que inúmeras vezes estão escondidos na história de cada um de nós, mas que raramente conversamos com alguém. Vivemos muito na superfície das coisas.
– Você já viajou para muitos lugares, no Brasil e no exterior, e lidou com públicos muito distintos. Como é para você assistir a cada nova apresentação desse filme?
CT – Observar o público ao assistir algum trabalho meu me dá mais idéia para o que eu estou escrevendo no momento. Cada reação diante da tela me interessa muito, aliás, relações humanas me interessam muito porque eu gosto de falar do simples, do cotidiano, para que cada um se volte para a sua própria vida. É um processo mesmo de tirar das camadas mais profundas.
AUN – Como foi a produção do filme?
CT – Os atores não sabiam o que iria acontecer no outro dia. Eu trabalhei com eles para não lessem o roteiro inteiro. Cada dia de gravação eles iam sabendo mais uma parte do filme. Eu queria naturalidade, espontaneidade. Não queria que eles viessem com a lição de casa já feita, pelo contrário, que eles se entregassem de corpo e alma ao momento do personagem naquele dia de gravação. Eu deixei os atores também criarem os personagens, ficarem à vontade com o papel que estavam fazendo. A gente, que é diretor, se transforma num pai para eles e apenas tenta captar uma das muitas personalidades que eles têm. Os meninos mesmo [que interpretam os filhos da protagonista do filme] são aquilo que se vê na tela, se você sair para jantar com eles vai ser igualzinho.
AUN – Você já fez quatro documentários e A casa de Alice é o teu primeiro longa de ficção. Há muita diferença entre a linguagem do documentário e a linguagem ficcional?
CT – O roteiro do documentário é flexível, não engessado, é aquele roteiro em que o foco de nosso projeto pode mudar de repente, dependendo do que vamos encontrar pela frente. Já na ficção, tudo tem que ser muito bem planejado, não pode sair de suas mãos, embora eu nunca tenha conseguido ser tão rigoroso a ponto de não deixar que as circunstâncias também agissem no que eu havia escrito. Pra você ter idéia, eu só assisti às gravações dois meses depois que já tínhamos encerrado o processo de gravação. Eu entrei em depressão, achando que eu tinha perdido as rédeas, que o que eu tinha feito não era nada daquilo que eu planejei inicialmente.
AUN – Fazer um roteiro é tão difícil quanto acredita a maior parte das pessoas?
CT – Exige muito trabalho e esforço. Pra quem está disposto a trabalhar muito para que tenha um bom resultado, então a dificuldade é superada. Eu sempre digo que o segredo do sucesso dos meus filmes é trabalhar muito o conceito das coisas, passar o conceito daquilo que se quer para toda sua equipe. Eu queria um filme desbotado, irrequietante, tumultuado e humano, muito humano. Então fixei essa idéia com todo mundo: câmeras, equipe de fotografia, atores, pessoas da maquiagem... Assim, você pode mudar toda a cena na hora da gravação, mas a equipe toda está em sintonia e sabe que, se eu mudo, é para manter o conceito que eu tanto já havia trabalhado.
AUN – Vocês receberam muitos prêmios internacionais. Isso quer dizer que o filme foi mais acolhido pelo público estrangeiro?
CT – A Casa de Alice teve uma carreira muito bonita, conquistou muitos prêmios, mas o público que atingiu foi mediano, cerca de 21.000 pessoas. Fomos mais vistos e bem recebidos no exterior. Eu não queria pessoas da mídia no meu filme, nenhum ator ou atriz global. Escolhi cada um pela alma. A Carla Ribas, que faz a Alice, por exemplo, tinha uma mistura de sedução e melancolia, tudo o que eu queria para a personagem. Então, por que colocar no lugar dela uma atriz só porque faz novelas na Globo? E sabe de uma coisa? Eu quero continuar fazendo filmes que não interessem para a grande mídia. Prefiro fazer para mim.
AUN – A temática central são as relações familiares, a complexidade da convivência. Como surgiu a idéia do filme?
CT – Eu vim da produção de documentários. Antes de pensar em escrever A Casa de Alice, meu interesse estava muito voltado para a cegueira. Eu tinha decidido fazer um filme sobre a cegueira. Quando eu estava no processo de pesquisa, senti que não estava pronto para falar sobre aquele assunto. O que eu queria mesmo era falar das turbulências familiares, e aí A Casa de Alice foi surgindo naturalmente... Os personagens se tornaram uma explosão de mim...