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Universidade Federal de Alagoas - UFAL
 

17/12/2007
Comportamento
A OUTRA FACE DO DADO

O que há no RPG que faz jovens trocarem a chamada diversão “normal” por tardes com um grupo de amigos, livros, dados, e muita imaginação?

Por Fernanda Café

A cena é assustadora: um grupo de rapazes na casa dos 20, em uma tarde ensolarada de domingo, senta-se ao redor de uma mesa discutindo táticas, rolando dados de formatos estranhos e consultando livros intitulados Dungeons & Dragons, Gurps e Vampiro, A Máscara. Esses jovens, em sua maioria universitários, poderiam estar em qualquer lugar mais comum à sua faixa etária, como a praia, o shopping ou um jogo de futebol, mas optaram por passar horas e horas jogando RPG.

O significado de Roleplaying game, ou Jogo de Interpretação de Personagem, como preferem alguns puristas da língua portuguesa, é traduzido em si mesmo: consiste em um conjunto de regras que ditarão detalhes como o cenário e as limitações do personagem criado e interpretado por cada jogador. O estilo mais comum desse tipo de jogo é o de mesa, onde um narrador, ou mestre, utiliza-se de livros-base para criar uma história na qual guiará o grupo de jovens, agora transfigurados em intrépidos aventureiros.

O Livro do Jogador avisa: “A ação de D&D acontece na imaginação dos jogadores. Como atores em um filme, os jogadores algumas vezes falam como se fossem seus personagens. Porém, na verdade você não é mais um personagem do que quando joga com a peça do rei no xadrez. Do mesmo modo, o mundo indicado por essas regras é um mundo imaginário”. D&D, no caso, é a sigla para Dungeons & Dragons, o RPG mais famoso e jogado no mundo. Lançado em 1974 nos Estados Unidos, o jogo tornou-se ícone dos nerds da década de 1980, os mesmos nerds fãs do livro O Senhor dos Anéis (no qual foi baseado) e da saga cinematográfica Guerra nas Estrelas, que mais tarde viriam a se tornar empresários como Bill Gates, da Microsoft, e Steve Jobs, da Apple.

O estereótipo nerd nunca foi forte no Brasil, mas o D&D e outros sistemas de RPG já chegaram marcando presença no final dos anos 1980, substituindo os pouco conhecidos RPGs de tabuleiro. “Um amigo nosso adquiriu uma caixa de um jogo chamado Hero Quest. Adquirimos uma revista especializada em RPG chamada Dragão Brasil, onde ficamos sabendo de outros títulos de RPG. A partir daí, nosso grupo começou a se revezar e criar diversas histórias e nunca deixamos de jogar”, diz Roberto Nobre, psicólogo de 29 anos. Ele e Juliano de Melo são amigos desde então, e foram companheiros de mesa até que cada um seguiu sua carreira em um lugar diferente.

Juliano, que é professor de cursinhos pré-vestibular em Maceió, já fez uso do jogo de interpretação em sala de aula: “Fazia grupos de cinco alunos, determinava regras simples de criação de personagens e simulava uma situação histórica: eles interpretavam bandeirantes, escravos, famílias de engenho, e era necessário pesquisar para continuar a história, senão os alunos misturavam presente com o passado”. Isso quando Juliano lecionava para 7ª e 8ª séries, faixa etária para a qual hoje em dia é Roberto quem leciona, também utilizando o jogo.

TEMA DE MESTRADO – “O RPG é um jogo que se dá na construção coletiva de uma história. A integração e a dinâmica do grupo são sempre trabalhadas durante as sessões de jogo, além de desenvolver também uma capacidade de raciocínio lógico para a resolução constante de problemas”, argumenta o psicólogo. Sua tese de mestrado, intitulada “O RPG nas Escolas: Uma Tecnologia Lúdica para Ensinar e Aprender na Sala de Aula” disserta sobre essas e outras características desenvolvidas por jogos de interpretação.

O vestibulando Bruno Lins nunca teve um professor que se utilizasse de técnicas de RPG em sala de aula, mas garante que seus anos de experiência como jogador irão lhe ajudar nas provas que estão por vir: “A maioria dos jogadores fica melhor em matemática. Especialmente em probabilidade”, afirma o jovem, que junto com mais cinco amigos passa tardes de domingo (e noites de semana) jogando. Bruno e os colegas fazem parte do público-alvo de eventos como o Encontro Alagoano de RPG e Anime, no Sesc.

Organizado semestralmente por Manoel Messias, conhecido como B.G., o EARPG une-se a eventos como os outros encontros alagoanos e duas bienais regionais organizadas por Juliano (cujo público girou em cerca de 1.500 pessoas), no minguado hall de oportunidades que os jogadores alagoanos têm para se reunir e trocar experiências, bem como participar de arenas nas quais seus personagens duelam, e conhecer o estilo formal de live-action, modalidade de RPG na qual a interpretação se torna “real” e com espadas de madeira previamente amortecidas e regras claramente delimitadas os jogadores encarnam seus personagens em falsos duelos dos quais ninguém jamais saiu ferido.

Apesar das roupas curiosas com que alguns se vestem nesses encontros, e da preferência musical por heavy-metal (geralmente bandas como Angra, Nightwish e Blind Guardian compõem a playlist dos jogadores de RPG, por trazerem a temática da fantasia em suas letras), nenhum organizador ou participante do evento já tentou se matar ou matou alguém. O estereótipo dos jogadores de interpretação assusta o senso-comum e irrita os envolvidos: “A mídia é a única culpada por toda essa babaquice”, ataca Bruno. “Se ela se preocupasse um pouco mais em conhecer o RPG em vez de alienar a população divulgando casos absurdos que em sua maioria não têm nada a ver com o jogo, todos olhariam com bons olhos para ele”.

“Na verdade, a mídia culpa o jogo e os jogadores a mídia. Essa guerra é eterna.”, afirma Roberto. “Quem joga RPG vai sempre dizer que o jogo não tem culpa de nada. Como jogador também diria o mesmo, como psicólogo digo que o jogo é só um instrumento, que tem características muito positivas, mas que também possui algumas outras características que podem ser utilizadas de forma irresponsável”. Juliano também tenta enxergar os dois lados: “Atribuir ao jogo a culpabilidade pelas mortes de pessoas, é apenas uma leviandade sem fundamento tomada pela mídia, ou pelos policiais que, antes de investigarem o caso, precipitam as conclusões, ou por grupos religiosos e políticos que têm interesse em demonizar algo para silenciar a população. É como dizer que o culpado da aprendizagem é o livro, e não o professor-aluno.”

RELAÇÃO POLÊMICA – De fato, quase todas as notícias de assassinatos e suicídios que supostamente envolviam o RPG foram comprovadamente enganos. O sítio virtual da editora Daemon, conhecida pela publicação dos livros do cenário Tormenta, veicula uma carta aberta à mídia intitulado “O RPG nunca matou ninguém no Brasil”. O texto destrincha os crimes mais famosos relacionados ao RPG pela imprensa, dentre eles o estupro seguido de assassinato de duas garotas de Teresópolis (RJ), cujo culpado era um cigano que sequer sabia ler. O curioso é que a mídia fez tamanho alarde em cima de uma declaração da madrasta de uma das meninas de que “ela andava às voltas com pessoas que se vestiam de vampiro”, que um amigo de ambas acabou sendo preso injustamente por quatro dias.

O caso mais próximo dos alagoanos foi o recente suicídio em série de três rapazes em Palmeira dos Índios, interior do Estado. Seguindo o padrão de exaltar algumas afirmações aleatórias de parentes em negação, a mídia local (personificada no jornal Gazeta de Alagoas) veiculou em reportagem de capa (que continuava em quatro páginas), entrevistas com informações opostas. Na edição do jornal do dia 4 de novembro de 2007, a mãe de um dos meninos afirmava que havia pesquisado sobre o RPG na internet, e encontrara “gente que comia morcegos no palco”. A “gente” em questão é o cantor Ozzy Osbourne, vocalista da banda Black Sabbath. Ainda estão a procurar a relação do cantor com o RPG, que até o momento é inexistente. Um primo dos garotos (esse sim RPGista), afirmava na mesma reportagem que nenhum deles era jogador. Apesar da não-confirmação dos fatos, a jornalista incluiu na matéria dois quadros explicativos: o primeiro intitulado “O que é o RPG?” e um logo abaixo com os dizeres “Casos de mortes”.

“Todo suicida tem um potencial patológico ou social”, argumenta Juliano. “O suicídio parte de um determinado estopim, que pode ser uma decepção, um problema familiar, uma crise nervosa, ou então algo fisiológico, como uma queda em alguma taxa hormonal que provoque depressão”. O professor diz que em seus 18 anos como jogador nunca viu ninguém que se afastasse da família ou dos amigos por causa do jogo. Nesse ponto Juliano e Roberto e Bruno convergem: “Quando a tragédia acontece, a culpa é sempre do outro”, afirma o Juliano.

“Com certeza o RPG não é o primeiro a cair nesse problema. Já tentaram culpar o cinema, os video-games, músicas e etc. Mas o que ninguém quer mesmo ver é que a culpa é, na maioria dos casos, da sociedade”, diz Bruno. Juliano acredita que os temas que envolvem o RPG (aventura, mistério, ocultismo) são de certa forma culpados pela relação problemática feita pela maioria das pessoas com o jogo. “Uma relação vulgar, que não se fundamenta nas investigações e na pesquisa científica desses casos”, completa.

No caso dos três rapazes de Palmeira dos Índios, foi comprovado que apesar da pouca idade todos costumavam sair para beber e alguns faziam uso de drogas ilícitas, e tinham acesso ao carro da família mesmo sem a carteira de habilitação. É preocupante que as famílias desses garotos tenham sido coniventes com todos esses fatores e procurem no RPG o bode expiatório da mea culpa. Juliano e Roberto não são os únicos pesquisadores da influência desse tipo de jogo na formação da personalidade que reafirmam os inúmeros benefícios que o RPG traz para os jogadores. Um número crescente de acadêmicos vem corroborar essa tese. É preciso fazer com que a mídia atue em seu papel de formadora de opinião e construa uma imagem verossímil dos jogos de interpretação, para que estes possam, enfim, atingir todo o seu potencial educativo.

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