:: Projeto de Extensão Coordenado pelos professores e jornalistas
:: Erico Abreu (MTb 354-AL) e Francisco de Freitas





De:
Por:
Clique para fazer a busca!
MENU
 

Universidade Federal de Alagoas - UFAL
 

13/12/2007
Geral
MORADA DO DESCASO

Drama da peça A Invasão, de Dias Gomes, é revivido por famílias sem-teto em prédio abandonado no Centro de Maceió

Por Fernanda Alves

O escritor e dramaturgo Dias Gomes eternizou no teatro a peça A Invasão. Transformada em livro, a premiada obra celebrizou-se contando a história de um prédio invadido por desabrigados que passam a morar nele. Baseada em fatos, a trama se desenvolve no Rio de Janeiro da década de 1960. Hoje, passados mais de quarenta anos, drama e cenário se repetem em Maceió, onde mais uma vez realidade e ficção se fundem.

Do real para o fictício e do fictício para o real. Quem visita Biblioteca Pública de Alagoas, no Centro da capital, e se atreve a olhar das janelas da parte de trás deste edifício histórico depara-se com uma visão que parece retirada da obra em questão: um prédio abandonado que serve de moradia para famílias tão desamparadas pelo poder quanto ele próprio.

No livro do autor baiano o cenário é um edifício em construção. Em Maceió, a história se passa em um prédio esquecido e depredado. Após a saída do órgão público que ocupava o local (o extinto Inamps), suas portas, janelas e até cerâmicas foram arrancadas por populares. Em 2006, o prédio novamente cedia suas instalações, dessa vez para exercer a função de abrigo clandestino de sem-teto. Passado pouco mais de um ano, entre cinqüenta e sessenta famílias carentes distribuem-se pelos seis andares, onde dormem, cozinham e fazem suas necessidades fisiológicas.

É um paradoxo. De um lado, o lugar onde o conhecimento mora nos livros, revistas e jornais devidamente catalogados; do outro, há poucos metros e ao alcance da vista, a cena é confrontante e o mau-cheiro impregna o ar. Uma habitação coletiva, residência do abandono e do descaso, que ironicamente estampa a pichação no alto: "Ordem é ninguém passa (sic) fome!!!" Mais acima da edificação, outro escrito inacabado parece aguardar por um complemento e deixa no ar a provocação: "Se não há justiça para todo que...". O refrão "O morro não tem vez", cantado em A Invasão, é revivido sem canção pelas estrofes pichadas, que se mostram tão denunciativas da condição subumana dos seus moradores quanto às do samba da personagem Bola Sete.

A visão se perde entre os detalhes e a alusão literária é incontestável. Entre andares sujos e depredados distribuem-se móveis, tapetes, utensílios domésticos, lonas, papelões e roupas estendidas nas sacadas. Mulheres realizam seus afazeres, crianças brincam tranqüilamente e homens transitam sem se importar se estão sendo observados da janela da Biblioteca à sua frente – lugar que, pressupõe-se, nenhum deles tenha visitado.

A AÇÃO DRAMÁTICA – Enquanto alguns moradores conversam, outros lavam roupa, carregam latas de água, se locomovem pelas escadas ou lançam restos de alimentos pela janela – desse último hábito, decorre o mau-cheiro do lugar que é sentido de longe. Os moradores dividem o espaço com ratos e insetos e nos dias de chuva com o acúmulo de água que o vento espalha pelas vidraças quebradas das janelas. Ouvem-se choros de criança e diálogos descontraídos. Um universitário, que observa da janela, lembra outra criação literária e sentencia: “É O Cortiço, de Aluísio de Azevedo!”.

Com exceção daqueles que freqüentam a Biblioteca, quem transita pela Praça dos Palmares é incapaz de imaginar que, camuflado pelas bancas do Shopping Popular, há um cenário pronto e centenas de personagens desconhecidas – bastando apenas que se atravesse uma discreta porta de madeira para adentrar nesse universo de privações e abandono.

Os ambulantes se recusam a falar dos vizinhos, dizem não conhecer nenhum dos moradores, porém, mesmo ignorado pelos transeuntes e pelos contíguos, o local não é de todo escondido. Jovens bem vestidos e aparentando ser de classe média, alguns trajando uniforme da empresa em que trabalham, são assíduos freqüentadores do prédio – um indício de que no local o comércio e o consumo de drogas são comuns. Testemunhas afirmam que além de traficantes, ali moram também trabalhadores, donas-de-casa, pedintes e garotas de programa.

Para atingir o interior do prédio, basta chegar à calçada e transpor a porta de madeira. Dentro o mau-cheiro é ainda mais forte e a sujeira dos cômodos é mais visível. T.S., de 13 anos, caminha descalça pelo chão sujo enquanto carrega a água que irá consumir no apartamento improvisado em que mora no térreo. M.K.S., uma menina franzina de 5 anos, se aproxima e diz: "Eu também tenho casa. Fica lá no 3º andar! Minha mãe tem um monte de filhos sendo que um tá lá no Conselho Tutelar". Enquanto M.K.S. brinca com V.J., 7 anos, revela: "Quando crescer quero ser médica". Assim como as duas, as demais crianças, com precárias condições de saúde, moradia e educação, observam diariamente o prédio da Biblioteca alheias ao que funciona lá dentro.

Um morador, C.C.S., de 29 anos, alega que os ocupantes do prédio nunca receberam assistência de entidades governamentais ou promessa de qualquer liderança. Quando informado da semelhança de sua moradia com a da história de Dias Gomes, lamenta: "Aqui todo mundo se vira como pode. Mas se forem escrever a história desse lugar, o nome tem que ser A história do povo sofredor".

Clique nas fotos para ampliá-las.

Clique para ampliar Clique para ampliar Clique para ampliar Clique para ampliar
Clique para ampliar Clique para ampliar Clique para ampliar Clique para ampliar