A mãe se delicia primeiro com o anúncio de que vai dar à luz a um bebê. Após contar ao marido, ambos entram em um estado de pura felicidade. Logo reúnem a família para compartilhar a novidade. A partir desse momento, o ventre da mãe passa a receber proteção e carinho constantes. As horas livres da gestante são ocupadas comprando ou admirando roupinhas tão pequenas e delicadas quanto o bebê que ainda se desenvolve em seu útero.
O ultra-som mostra que será uma menina, exatamente como os pais desejavam. A expectativa em torno da criança aumenta juntamente com seus futuros pertences. Até que a próxima ultra-sonografia detecta um problema inesperado: uma rara má-formação fetal que será uma sentença de morte para o futuro bebê. “Eu me desesperei. Era meu primeiro filho. E era uma menina, assim como eu e meu marido queríamos”, desabafa Edvânia Batista da Silva, de 21 anos.
Então, na próxima visita ao quarto quase pronto de seu primogênito, o “estado de pura felicidade” dos pais dá lugar à extrema comoção e pesar pela filhinha que eles veriam nascer e morrer no mesmo dia. Essa é a triste história de uma dentre as muitas alagoanas cujos filhos sofreram uma constituição cerebral defeituosa. Denominada anencefalia, a doença é caracterizada por uma má formação fetal do tubo neural, responsável pela ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela se sobrepõem.
A criança com essa anomalia nascerá sem o cérebro ou com apenas uma parte dele. Se ela virá com vida, sem vida ou se vai resistir até o fim da gravidez, é uma questão que a comunidade médica não pode garantir. Uma coisa, porém, é certa: a criança com a doença não sobreviverá, pois a anencefalia é fatal em 100% dos casos.
O encéfalo humano é dividido em três partes – cérebro, cerebelo e tronco cerebral. Os bebês anencéfalos só possuem esta última, que é responsável por funções biológicas, como a respiração, o ritmo dos batimentos cardíacos e certos reflexos (deglutição, vômito, tosse e o piscar de olhos). “Ele jamais irá ter qualquer chance de uma vida de relações, de interagir. O máximo que ele pode ter é uma vida vegetativa”, esclarece Emmanuel Fortes, presidente do Conselho Regional de Medicina de Alagoas (Cremal).
Por essa razão, esses bebês não são capazes de estabelecer nenhum tipo de consciência, cognição, percepção, comunicação e afetividade: características que definem a pessoa humana. Ainda assim, eles respondem a estímulos auditivos, vestibulares, dolorosos e apresentam quase todos os reflexos primitivos dos recém-nascidos. A polêmica está no desígnio do momento em que a vida começa e na viabilidade da manutenção de sua sobrevida através de suportes tecnológicos.
Ciente desta situação, juristas, médicos e religiosos discutem a possibilidade de legalizar o aborto nos casos de anencefalia. Dois anos de debates já se passaram, mas nada ainda foi decidido. Enquanto isso, a mulher brasileira é obrigada a vivenciar durante a gravidez, nove meses de absoluto luto precoce.
TERESÓPOLIS: ONDE TUDO COMEÇOU
Você já ouviu falar em anencefalia?
“Não”, esta é a resposta de muitos dos alagoanos residentes em Maceió. Surpreendentemente, essa também foi a resposta da promotora criminal de Teresópolis (RJ) Soraya Gaya, quando Gabriela de Oliveira Cordeiro, de 19 anos, foi com o marido à Defensoria Pública do Fórum de Teresópolis para pedir a interrupção de uma gravidez cuja primeira ultra-sonografia tinha detectado anencefalia.
Depois de saber do que se tratava a doença, Soraya encaminhou o pedido de autorização do aborto ao juiz Paulo Rodolfo Tostes. De imediato lhe foi negado, pois o aborto é considerado crime pelo Código Penal, com exceção em dois casos: se a gestação é resultante de estupro ou se há risco para a vida da mãe. No entanto, desde 1992 – data em que foi autorizado o primeiro aborto de um anencéfalo no Brasil, ocorrido em Londrina – juízes e promotores têm consentido a interrupção da gravidez nesses casos.
Este foi o argumento utilizado por Gizelda Leitão Teixeira, relatora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, quando a gestante de 19 anos recorreu da decisão do juiz Paulo Tostes. Tal fato garantiu a concessão de uma liminar autorizando a interrupção da gestação da jovem.
Tudo já estava marcado no hospital, até que, ao chegar em casa, Gabriela se depara com quatro Oficiais de Justiça anunciando que o presidente da 2º Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, José Murta Ribeiro, havia derrubado a liminar e portanto ela não poderia mais submeter-se ao aborto. No dia seguinte, tudo ficou mais claro: o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz – líder do grupo Pró-Vida de Anápolis (DF) que luta contra o aborto em quaisquer circunstâncias – havia tomado conhecimento da história e entrou no Superior Tribunal de Justiça (STJ) com um habeas corpus em nome do feto, pedindo a garantia de seu 'direito de ir e vir'.
O acontecimento mexeu com Gabriela e com muitos setores da sociedade brasileira. “O habeas corpus é um remédio que se destina a proteger a liberdade de ir e vir. Não é um remédio que se destina a proteger uma vida futura. Preciso ver a construção que este padre fez. A principio, acho muita criatividade dele em construir esse habeas corpus”, diz o atual Procurador do Estado de Alagoas, Tutmés Airan, que já foi defensor de dois casos de anencefalia em Maceió.
Diante da decisão do STJ, a diretoria do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) juntamente com a Themis Assessoria Jurídica, comoveram-se com a situação de Gabriela e utilizaram a mesma arma jurídica do padre: entraram com um pedido de habeas corpus em nome da gestante. Entretanto, eles foram mais longe: enviaram o pedido para o Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento então foi marcado. Já havia mais votos a favor do aborto do que contra. Porém a sessão no Tribunal teve que ser interrompida, pois, no mesmo dia, a filha do casal de Teresópolis – que se chamou Maria Vida – tinha vindo ao mundo e sobrevivido apenas por sete minutos.
Este foi o começo e o primeiro confronto de uma guerra religiosa travada no campo judicial, médico e filosófico. De forma pioneira no País, o debate sobre o aborto nos casos de anencefalia chega ao STF. Atualmente, todo o Brasil está envolvido com a questão da doença. E, apesar de muitos alagoanos ainda não a conhecerem, ela já andou marcando presença no Estado.
LONGE DALI... ESTAVA ALAGOAS
Em 12 de Fevereiro de 2007 o Ministério Público de Alagoas sediava seu 1º Simpósio de Bioética. Estiveram presentes a PHD em Antropologia Débora Diniz, integrante do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), e o advogado Pablo Falcão, mestrando em Teoria Geral da Filosofia do Direito para debater a situação da anencefalia no cenário nacional e a controversa possibilidade de aborto.
Antes de começar seu discurso, Diniz exibiu o documentário “Uma História Severina”, centrado em uma dona-de-casa, de mesmo nome, residente em Chã Grande, interior de Pernambuco. Sua jornada simboliza o desespero das brasileiras “SUS – dependentes” que após o diagnóstico de anencefalia em seu feto, enfrentam paradigmas jurídicos, médicos e religiosos, ao decidir pôr fim à gestação.
Da mesma forma que Severina, a alagoana Benedita Feitosa da Silva também sofreu com a burocracia jurídica intrínseca à permissão para terminar sua gravidez. Em seu caso a justiça não só tardou como também falhou. Seu processo nunca foi julgado e ela perdeu o filho muito antes do arquivamento de sua ação. Iniciado em 2002, o caso só foi encerrado após incríveis cinco anos, em fevereiro de 2007. “Uma das estratégias que se utiliza quando não se quer enfrentar o problema é colocá-lo pra baixo do tapete”, diz Tutmés Airan, defensor público de Benedita no processo.
O primeiro caso em Alagoas ocorreu em 12 de Setembro de 2000, quando o juiz de direito Alberto Jorge Correia de Barros Lima autorizou a interrupção da gravidez de Ilda Santana Alves, de 19 anos. "Eu me lembro como hoje", conta Tutmés, defensor público também nesse caso. "Um casal me procurou: a Ilda e o marido. Disseram que estavam esperando um bebê, mas a ultra-sonografia já mostrava que o bebê estava com anencefalia e que, portanto, não tinha nenhuma viabilidade. Perguntaram se eu podia ajudá-los a conseguir uma autorização para que ela interrompesse a gravidez. Eu fiz uma petição e a mandei para o foro".
O juiz receptor Alberto Jorge pediu mais embasamento para prosseguir, além da ultra-sonografia provando a anomalia do feto. Tutmés explicou ao juiz que a realização de outros exames criaria um problema de tempo, visto que Ilda já estava grávida de três meses. Jorge assegurou que ele mesmo tomaria conta disto e tudo estaria resolvido dentro de uma semana. Assim, o médico perito do Instituto Médico Legal (IML), Luis Carlos Buarque de Gusmão, fez um laudo comprovando que, naquela hipótese, o feto não poderia nascer com vida.
De posse deste documento, o juiz concedeu a autorização para que o abortamento fosse realizado pelo SUS, no Hospital Universitário. "Eu fiquei muito feliz, porque o gesto mais bonito da maternidade é você tomar o bebê nos braços após o parto. Nesse caso não há como se fazer isso. Então a mulher tenta se prevenir dessa decepção toda”, opina Tutmés Airan.
Na semana seguinte, o Procurador ficou surpreso ao saber que os médicos se negaram a cumprir a ordem judicial. Informado, Alberto Jorge replicou: "Então eu vou determinar a prisão do diretor, de toda a equipe médica e de todos os enfermeiros". A notícia vazou e, para evitar escândalos, um médico fez a cirurgia, porém a moça ficou com seqüelas físicas.
De acordo com informações da 9ª Vara Criminal do Fórum Jairo Maia Fernandes, apenas três mulheres entraram com ações judiciais para ter o consentimento legal para o aborto de fetos anencéfalos no Estado. Dessas mulheres, somente Benedita Feitosa não conquistou o parecer favorável do Ministério Público.
A razão do pequeno número de processos no Estado é o fato de que a maioria das alagoanas, sujeitas a precárias condições sócio-econômicas, optam por não se envolverem em uma disputa judicial. “A própria mulher se envergonha, ela acaba se vendo como uma criminosa. Isso é muito inibidor”, diz Tutmés. Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde, 109 crianças morreram de anencefalia nos últimos seis anos em Alagoas, sendo 44 em Maceió. Estima-se que este número seja muito maior já que muitas mulheres fazem o aborto clandestinamente.
A MEDICINA DÁ A SUA PALAVRA
De acordo com a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), a anencefalia atinge um em cada 1.600 nascidos vivos. A mortalidade intra-uterina desses fetos é de 75%. Apenas metade dos 25% restantes consegue sobreviver até o sétimo dia após o nascimento. Essa anomalia atinge entre 0,3 e 0,8% da população mundial, mas, apesar de rara, tem causado muita discussão. "A anencefalia é uma patologia incompatível com a vida”, diz a Ginecologista-Obstetra alagoana Maria Lucia de Fátima Guimarães.
Segundo Manuel Calheiros, médico especialista em gravidez de alto risco do Hospital Universitário de Alagoas, a anencefalia pode ser diagnosticada no primeiro trimestre da gravidez, entre seis e oito semanas. Apesar de ainda não haver consenso sobre os riscos de mortalidade da gestante que carrega uma criança com anencefalia, uma parcela da comunidade médica argumenta que a gravidez pode ser muito perigosa.
Em casos de morte intra-uterina, há o risco de putrefação do feto dentro do organismo materno, resultando numa grave infecção. Outra ameaça é o aumento exagerado do liquido amniótico, pois o feto não possui o sistema nervoso perfeito, urinando mais do que deglutindo. Como conseqüência, ocorre o aumento do útero e a potencialização dos sintomas da gravidez (inchaços, dor nos membros inferiores, falta de ar), além de pré-eclampsia, aumento da pressão arterial da gestante.
A única prevenção é a ingestão de uma vitamina chamada ácido fólico, que ajuda na formação do sistema nervoso, antes da gravidez. "[...] Quando a mãe pensar em engravidar, começa a tomar o ácido fólico. Assim, quando houver a união do espermatozóide com o óvulo ela já está prevenida", aconselha a médica Maria Lúcia de Fátima Guimarães.
O risco de incidência da anencefalia aumenta 5% a cada gravidez subseqüente. Não há provas concretas, mas alguns especialistas advertem que fatores nutricionais e ambientais podem influenciar diretamente. Também não existem causas hereditárias definidas, contudo o gene 5,10 MTHFR (Metileno-Tetra-Hidrofolato-Redutase) previne malformações do tubo neural.
A JUSTIÇA SE ABSTÉM, MAS NEM TANTO
Após anos de conflito, a questão do aborto em anencéfalos continua em aberto e a solução parece cada vez mais distante. Em 1992, foi autorizado, pela primeira vez na história do direito penal brasileiro, um aborto legal em feto portador dessa anomalia. Isto, somado à polêmica do caso de Gabriela, em março de 2004, estimulou o debate sobre o tema.
Em julho de 2004, o ministro Marcos Aurélio de Mello, do STF, concedeu liminar autorizando plenamente o aborto nesses casos. Sua duração, entretanto, foi curta. Durante a vigência da liminar, foram realizados abortos em 58 mulheres: "Elas se sentiram aliviadas", afirma Débora Diniz. "Seria horrível sair dali e dizer para essas mães que o Supremo Tribunal Federal do Brasil mandou avisar que não tem nada a ver com isso", sustenta o advogado Roberto Barroso. Ele era o representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS), que defendia o poder de decisão da mulher, durante a votação no STF que suspendeu essa liminar no dia 20 de outubro.
O pretexto foi de que o instrumento jurídico ainda não havia sido julgado, e, logo, não seria válido. Os argumentos utilizados pelos ministros foram baseados em preceitos religiosos e concepções pessoais. "O sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana", alegou Cézar Peluso, um dos ministros a favor da cassação da liminar.
Mesmo com tanta relutância do sistema judiciário, a partir da década de 1990 foram autorizadas mais de 3.000 antecipações de partos de fetos anencefálicos. Baseados na resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), nº 1.480 de 1997, que define morte encefálica como perda total de função do cérebro, muitos juízes têm decido a favor das mães. “Naturalmente, um caso desses, que é um caso limite, depende muito da opção pessoal do próprio juiz”, diz Tutmés Airan.
Apóia-se na mesma resolução de 1997, a Lei de Transplantes de Órgãos nº 9434 do mesmo ano. “Tem crianças que nascem com patologias e que necessitam de transplantes. O anencéfalo seria um doador perfeito”, diz o presidente do Cremal, Emmanuel Fortes, respaldando assim a resolução nº 1.752 de 2004, também do CFM, que declara os anencéfalos natimortos cerebrais e permite a utilização de seus órgãos para transplantes logo após sua morte.
E OS ANJOS NÃO DIZEM AMÉM
Munidos de força de vontade e argumentos embasados na fé, os religiosos se introduzem cada vez mais nos embates sobre anencefalia. "A Igreja não aprova isso. Se ela permitir isso [o aborto em casos de anencefalia], então vamos agora para a eutanásia. Vamos matar os velhinhos, os doentes". Esta é a opinião do padre alagoano Jácomo Fontana. Seu pensamento é unânime entre quase todas as religiões – católica, evangélica, budista, hinduísta e espírita.
Acusações e pressões psicológicas fazem parte da rotina das gestantes de fetos anencéfalos, apontadas como gananciosas e iludidas de que seus filhos serão curados ao nascer. "Os incômodos da gravidez e as dores do parto só se justificam se o bebê trouxer alguma vantagem para a gestante. A criança, por si só, não é uma pessoa a ser querida e amada. Sua vida só vale se tiver grande duração, se tiver saúde, se tiver qualidade, se tiver utilidade, mas por si mesma ela nada vale”, ironiza o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente do Comitê Pró-Vida de Anápolis (DF).
Embora seja uma lacuna na lei, as correntes religiosas definem o aborto de anencéfalos como eugênico, sendo então um crime contra a vida. Todavia, as convicções religiosas não devem interferir na jurisdição do Estado laico. Em meio a tanta opressão, a liberdade de expressão e o direito de escolha das mulheres brasileiras já não são mais uma garantia. E a Igreja ainda não desistiu dessa guerra.
ONDE ESTÃO OS DIREITOS HUMANOS?
“Não é possível atribuir o direito à vida a um feto inabilitado à experiência da vida após o parto. Muito embora se estenda o status de pessoa ao feto com anencefalia, o reconhecimento desse status não garante a existência de vida após o parto, um dado fora do controle humano”. As palavras de Débora Diniz ilustram a dura realidade: um bebê anencéfalo não irá viver independente da quantidade e da qualidade dos recursos medicinais colocados a sua disposição.
O Brasil é o quarto país do mundo em partos de fetos anencéfalos. Isso não significa que as mulheres brasileiras gerem mais fetos com essa anomalia. O fato é que apenas aqui elas têm o dever de levar adiante essa gestação. A situação legislativa e o debate público brasileiro criam espanto em fóruns internacionais. Praticamente todos os países desenvolvidos já autorizaram o aborto por anencefalia – Itália, Espanha, França, Suíça, Bélgica, Áustria, etc.
“Essa discussão só se explica pelo nosso apego a dogmas. Somos muito religiosos, inclusive legislativamente. Apegamo-nos a dogmas e não enxergamos o que tem por trás deles. É como se a vida humana fosse intocável em qualquer hipótese, mesmo na hipótese em que não há vida a proteger”, diz Tutmés Airan.
Em 1969, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos lançou o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil faz parte, com a pretensão de estabelecer uma norma de conduta geral. No 4º artigo é declarado que o direito à vida começa desde o momento de sua concepção, sendo crime qualquer espécie de aborto. Tal afirmação tem sido fortemente utilizada nas exposições contra a antecipação do parto em casos de anencefalia.
Entretanto, em seu 5º artigo, o Pacto também prevê que ninguém deve ser submetido a torturas e que toda pessoa tem o direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. A Organização Mundial de Saúde compreende o termo “saúde” justamente como a junção desses três aspectos, o bem estar do homem como um todo e não apenas como a ausência de doença. Negar a possibilidade de antecipação do parto implicaria, então, numa restrição ao direito de saúde da mãe.
“Levar uma gestação a termo de um feto incompatível com a vida ataca consideravelmente a saúde psicológica da gestante, visto que esta poderá vivenciar sentimentos que vão desde a impotência absoluta até o desespero e rejeição (velada ou explícita). Tais sentimentos são da natureza humana e antagônicos aos esperados em uma maternidade saudável”, diz a psicóloga alagoana Ivanize Guimarães.
Ao receber o diagnóstico de anencefalia no feto, geralmente a frustração da mãe é inevitável, pois na maioria das vezes o único documento que os pais terão da criança é a certidão de óbito. As diferentes reações são relacionadas à personalidade da mulher, assim como ao significado afetivo da chegada daquele filho. “Descobri que a criança tinha a doença com sete meses de gravidez. [...] Chorei muito ao saber. [...] Não quis abortar porque resolvi aceitar a situação”, relata Danielle Cristine de Lima, outra alagoana que passou pelo dilema da gestação de um filho inviável devido à anencefalia.
A decisão da mulher em seguir com a gravidez de fetos anencéfalos deve ser entendida tanto como uma prática do livre-arbítrio defendido pelos religiosos quanto da liberdade de escolha individual garantida pela democracia. O motivo da legalização do aborto em casos de anencefalia é simplesmente para amenizar o sofrimento da gestante que já lhe foi infligido por essa sentença: uma gravidez fatalmente trágica.