A noite começa e já é possível perceber a presença deles, que chegam para trabalhar. Na penumbra de uma das principais vias de Maceió eles fazem ponto. São vários, de dez a quinze, ficam a postos diariamente, à espera dos clientes. Esses antigos frequentadores da orla migraram para a parte alta da cidade. Na avenida, se posicionam à margem, como uma paráfrase da própria vida.
Quem circula por esse trecho da Avenida Menino Marcelo, a antiga Via Expressa de Maceió, pode nem se dar conta, mas basta observar com um pouco de atenção para ver as figuras que ficam margeando a pista. Do escurecer até a madrugada, não descuidam do visual: roupas provocantes, perfumes fortes, enfeites e saltos altos. Os travestis que fazem parte desse grupo são fiéis frequentadores da via que adotaram como novo local de trabalho.
Essa região, que até pouco era tempo desvalorizada, vive um momento de franca expansão, e se transformou em um verdadeiro canteiro de obras, onde estão sendo erguidas grandes construções comerciais e residenciais. Mas não só as empresas e habitações estão sendo atraídas para se instalar por lá, o mesmo aconteceu com a maioria desses travestis, que trocou a orla pelas ruas próximas ao Conjunto Terra de Antares.
Embora pareça provável, essa “migração” não aconteceu porque eles estão seguindo a tendência do momento, o motivo é outro bem diferente. Um dos travestis, apoiado pelos outros explica o porquê da troca da Pajuçara pela Avenida Menino Marcelo: “Lá (na Pajuçara) tem cliente fino, que paga bem, mas a Pajuçara virou a nova cracolândia. Não dá para bater de frente com o tráfico de drogas”.
A comercialização de entorpecentes se transformou em concorrente e, mais do que isso, em inimigo desleal. Tem afugentado os travestis dos tradicionais pontos de programa, por isso eles se vêem coagidos a fugir do tradicional eixo Pajuçara-Praia da Avenida e a buscar o sustento em outras áreas, uma tentativa de também escapar da violência.
E foi em busca desse objetivo que eles passaram a trabalhar nesse novo local, que não é como o antigo, mas já se tornou conhecido de quem procura os serviços. Homens passam só observando, alguns param, se aproximam, conversam, e outros acertam o programa. Chegam a pé, de moto, bicicleta ou mesmo de carro. Ajeitam-se na escuridão, nos próprios carros, ou no ‘matel’, um matagal próximo – como brinca um dos travestis, fazendo piada da própria sorte.
Antes, lhes era permitido circular no estacionamento do posto de combustíveis próximo, onde podiam atender aqueles caminhoneiros que estacionavam seus veículos para pernoitar e solicitavam seus serviços. Os caminhoneiros continuam parando lá, mas quem for travesti e for pego na área do posto, é expulso pelo vigilante. O mesmo acontece em alguns bares das proximidades.
Os moradores de um condomínio ao lado que precisam passar pelo ponto de prostituição costumam não atentar muito para os vizinhos noturnos, uns são indiferentes, outros mostrando um certo respeito, dão boa noite e seguem seu caminho. Mas o repúdio vem de outras pessoas. A conversa com a reportagem é interrompida pelos gritos vindos dos veículos que passam pela avenida, e não são poucos: são xingamentos, palavras debochadas, insultos. Ofensa que já doeu mais: “Já ouvimos tanto e somos tão ofendidas que hoje a gente tenta não ligar” – confessa “uma delas” – que faz questão em se descrever no feminino.
UMA VARIEDADE DE CLIENTES – A explicação quanto à prestação de serviços é clara: “A gente dá prazer a quem paga por ele, não existe amor, é só sexo”, é o que diz “P.”, de 34 anos, que está no ramo desde os 14 e já vivenciou a realidade da profissão em outros Estados do País. Na Via Expressa há 9 meses, ela relata que entre os clientes fixos ou não, atende em média dez por noite, o que pode render cerca de R$150. O público, segundo ela, é bem diversificado e vai do mendigo ao político.
Outro travesti completa a lista e diz atender ricos, pobres, estudantes, estrangeiros, casais e até padres ou mesmo pais que levam os próprios filhos. “Os clientes me procuram, mas depois de duas, três vezes, já querem outra pessoa. E eles são muitos curiosos, às vezes fazem perguntas, querem saber como é a nossa vida, mas eu não misturo trabalho e vida particular”, conta.
Embora sejam desrespeitados por grande parte da sociedade e muitas vezes incompreendidos pelos parentes, há quem encontre apoio em casa. “Na rua, nos ônibus sou discriminada”. Mas é o mesmo “P.”, que com um tom de voz afetuoso, conta que sua mãe o aceita e é sua grande defensora, chegando a comprar briga com quem ousar ofendê-lo. E afirma ainda que seus irmãos encaram com normalidade a vida que ele segue. “Eu respeito para ser respeitada, mas não é sempre assim que acontece. Mas minha família me aceita e me ama, é isso que importa”.
É o que relata aquele que quando criança sonhava em seguir a carreira jurídica ou médica, porém, nas suas próprias palavras: “o destino quis diferente”. Bem resolvido e de auto-estima invejável, tem orgulho do seu corpo moreno, e faz questão de ostentar os quadris largos, os seios fartos e as pernas grossas. Para valorizar seus dotes, não abre mão do decote profundo combinado com a mini-saia: “Quanto mais nua melhor, quanto mais puder exibir, mas eu ganho”.
Bastante vaidoso, não descuida da beleza, e diz que como trabalha com o corpo, não pode descuidar dele: “Uso cremes e hidratante. A gente sabe se arrumar, sabe como fazer uma boa maquiagem e, claro, um ‘look’ no cabelo, porque cabelo é a moldura do rosto” – a fala é sempre acompanhada por gestos, poses e gracejos com a mão.
Mas a mesma pessoa que se orgulha dos seus atributos físicos, carrega uma marca que teima em permanecer em seu corpo, uma cicatriz no braço – lembrança de uma briga travada há poucos meses. Ele esperava um cliente, quando dois jovens se aproximaram e tentaram levar sua bolsa, como ele reagiu, a luta foi inevitável. Enquanto brigava, chegou a cair no chão, foi nessa hora que o outro assaltante começou a pisoteá-lo. Apesar da resistência, “P.” não conseguiu evitar que levassem sua bolsa, onde guardava alguns trocados e objetos pessoais.
Devido à experiência, ele é bastante racional, sabe que já trabalhou muito e está ciente de que a beleza não é eterna, e a juventude acaba “É difícil uma chegar a minha idade”. Por isso, planeja deixar a prostituição. Nos seus planos estão a aposentadoria e o sonho de montar um pequeno negócio “Sou cabeleireira e quero abrir meu próprio salão”.
“P.” também sabe de um outro problema que assombra aqueles que tiram o sustento da prostituição. Segundo ele, grande parte das colegas sofre com algum tipo de doença – “fora as que nem suspeitam que tem”, por isso, quando o assunto é saúde, “P.” jura não vacilar. Certa vez, quando passou uma temporada no sudeste e precisou trabalhar no frio de São Paulo, pegou pneumonia, tuberculose e meningite, depois disso nunca mais descuidou da saúde, indo ao médico com certa freqüência. E ele garante: obriga os clientes a usar preservativo.
“P.” coleciona histórias, algumas curiosas e outras lamentáveis, além da briga que o deixou com marcas até hoje. Lembra que recentemente ficou sob a mira de um revólver: “Fui ameaçada por um cliente que não quis pagar, ele apontou a arma na minha cara”. Mas as vivências de “P.” registram outros episódios tristes: ele já apanhou da polícia e por três vezes foi arrastado por um carro, sendo duas em São Paulo e uma em Maceió. Erguendo o copo que trás na mão, de onde exala um forte odor de álcool, confessa: “Eu bebo para enfrentar”.
A alcunha de “vida fácil” não se encaixa na rotina de quem tira o sustento da prostituição. Quem vive da atividade, está longe do universo feito de cor e purpurina. “Dá para viver, mas é difícil” – essa é a resposta, com tom de lamento, dada pela pessoa que se aproxima. Seu rosto tem uma feição delicada e traços bem femininos que parece o de uma adolescente.
Ele desabafa: “Tudo é muito arriscado. A gente tem que entrar em lugares desconhecidos, e em carros com homens que a gente não sabe quem é, nem nunca viu, é perigoso”. Esse outro travesti, de apenas 18 anos de idade, se apresenta e faz questão de contar sua trajetória. Seu nome de guerra é o mesmo de uma estrela britânica. Há dois anos prefere ser chamado de V. B. Ele se espelha na cantora e ex-integrante de um grupo musical que foi sucesso mundial nos anos 1990.
Bem distante daquela que é seu referencial, V. que também trabalha na Via, é de origem simples e mora na periferia, foi obrigado a abandonar os estudos no primeiro ano do ensino médio porque não suportou a gozação dos colegas de escola, que zombavam por ele se travestir. Ao parar de estudar, deixou para trás o sonho de fazer Faculdade de Direito.
Apesar de ser novo no ramo, se comparado a “P.”, não foram poucas as vezes em que se viu diante de situações perigosas. Há pouco tempo um rapaz não pagou pelo programa e tentou agredi-lo com uma barra de ferro, mas V. conseguiu escapar.
Os jovens dizem que é possível se manter com o que recebem. apesar das dificuldades, os mais antigos lembram que o negócio já foi bem mais lucrativo, quando o tráfico não estava tão alastrado. O pior é que aqueles que não resistem, acabam por se envolver e tem caindo no mundo das drogas.
Muitos não enfrentam a vida de cara limpa. Como é repetido no meio: “Elas se drogam para conseguir se manter na zona”. Algumas são consumidoras de “nóia” e tem sustentado o vício com o que ganha com os programas. Como precisam saciar o vício, acabam cobrando barato – pedem R$ 5 pelos serviços –, um preço considerado baixo, o que tem causado prejuízo aos outros que não são dependentes, pois ficam impedidos de cobrar mais caro.
UMA ENTIDADE REPRESENTATIVA – Alagoas conta com uma organização não governamental, o Grupo Gay de Alagoas. Segundo a própria definição em sua página da internet, o GGAL “tem o propósito de promover, defender os direitos humanos e, difundir políticas anti-discriminatórias a gays, lésbicas, travestis e bissexuais”. A página do GGAL lista alguns pontos de prostituição em Maceió e seus respectivos frequentadores, como por exemplo, o da Avenida da Paz e da Praia de Cruz das Almas, frequentado por travestis. Curiosamente, o da Avenida Menino Marcelo ainda não consta na lista.
Sempre que possível, integrantes da entidade desenvolvem um trabalho itinerante de visita aos locais de prostituição, levando aconselhamento, dicas de saúde e cidadania, além de preservativos. Mas, de acordo com Teddy Marques, presidente do Ggal, os recursos são escassos e nem sempre se consegue manter esse acompanhamento.
O grupo é formado por coordenadorias, uma delas é a de Transgêneros, atualmente encabeçada por Renata Junnor. Renatinha relembra um caso de morte que ganhou destaque em abril deste ano. Andréia, travesti que fazia ponto na Avenida da Paz, foi atropelada e teve o corpo dilacerado pelo veículo que a atingiu. Testemunhas acreditam que ela estava alcoolizada, e teria sido atropelada porque cambaleava pela pista bêbada.
Outro episódio, lembrado pela maioria, foi o do travesti conhecido como Luana, que foi morto com um tiro na boca em junho deste ano. A suspeita é de que Luana foi vítima de um acerto de contas com o tráfico – já que tinha acabado de sair do presídio e, segundo a polícia, era usuário de drogas. Como boa parte dos crimes dessa natureza, esses episódios ficam sem esclarecimento e os culpados não respondem pelos erros.
Apesar desse cenário, “P.” diz não se intimidar, e sentencia: “Não tenho medo de morrer, mas se isso acontecer, morro feliz: vivi o que tinha que viver, viajei, e conheci todo tipo de homem: rico, pobre, preto, branco, sujo e limpinho. Morro feliz”.