João caminhou pela regularização de sua terrinha em Traipú, Maria caminhava para relembrar as lutas que tinha enfrentado até hoje, Fabiana lutava por um país sem injustiça, Gileno dava passos alimentados pela indignação de um povo oprimido, tantos nomes e personagens, nesta jornada, marchavam em defesa de uma única causa. Marchavam para falar. Marchavam para serem escutados. Eram milhares de Sem Terra. Durante 21 dias percorreram 330 quilômetros distinguidos pela pluralidade de regiões por onde passavam. Saíram de Delmiro Gouveia em direção a Maceió, cruzaram o Estado Alagoano e atravessaram dezesseis cidades esperando que suas reivindicações fossem aceitas pelo governo.
Despertavam cedo, antes de o sol nascer, e ecoavam suas músicas de esperança. Acordavam. “Vem, lutemos punho erguido. Nossa força nos leva a edificar. Nossa Pátria livre e forte construída pelo poder popular”. Comiam apressadamente evitando pegar o sol ardente daquelas regiões nordestinas, terras estas, que guardavam os passos dados anteriormente pelos cangaceiros de Lampião que lutavam por justiça. Alimentavam o corpo com nacos de pão lambuzados pelo café forte, preto e fumegante. Fortaleciam suas carcaças com a batata doce, a abóbora, o cuscuz e as comidas herdadas por seus familiares. Alimentavam também seus espíritos com os ideais que tanto almejavam conquistar. Andavam. Despontavam. Seguiam com seus estandartes em punho.
O sol, que nascia laranja com o vigor de sempre, teimava em esquentar aquela fileira humana que ainda se alongava com os primeiros passos da manhã. Iluminados pelo raiar de um novo dia, seguiam, um atrás do outro, anunciando a passagem do movimento pelas cidades. A linha vermelha cortava o verde ainda sustentado pelas chuvas daquela estação. O sentimento era perceptível nos olhos daqueles que levantavam as faixas e as bandeiras. Vestiam-se com seus bonés e suas camisas e encharcavam aquelas peças com o suor produzido durante as passadas. Alguns empunhavam facões outros carregam garrafas com água procurando se proteger dos oponentes. “Vamos Conseguir chegar em qualquer lugar”, falava confiante Fabiana da Silva, 20 anos, moradora de Novo Lino e cheia de saudades dos seus dois filhos que ficaram em casa.
Marcavam seus passos no asfalto quente. E contavam as inúmeras pedras que tiveram de superar. As rachaduras da pista, ressecadas pelo tempo, lembravam as duras lutas contra os pistoleiros que ameaçavam matar famílias inteiras por conta das ocupações. O vento, cúmplice daquele feito histórico, cortava seus corpos e era encarregado de arrastar os inúmeros gritos que davam durante as passadas, dadas com força contra o solo que tanto os alimentou. A água teimava em fugir das gargantas. Os lábios ressecados pediam um pouco de umidade para continuarem proferindo os sonhados planos. E os olhos vislumbravam o amanhecer de um novo tempo, um tempo onde o campo e a cidade pudessem viver em harmonia.
Passavam por pessoas. Famílias inteiras saiam de suas casas para saberem que barulho era aquele. Alguns corriam estimulados pela curiosidade e pela adrenalina gerada pela passagem daquele bloco vermelho. Rasgavam o silêncio. O sossego das áreas cercadas era quebrado pelas palavras de ordem. “Se o campo não planta, a cidade não janta”, bradava Zé Roberto, responsável pela animação do movimento que não se cansava.
As crianças corriam acompanhando os passos largos daqueles adultos que insistiam em andar em fileira e perguntavam-se para onde estavam indo. Nunca tinham visto nada parecido. Tinham a certeza que aquilo não acontecia todo dia e aproveitavam aquele momento único. Alguns saiam das salas de aula, mesmo contra a vontade dos professores que disfarçavam o anseio de observar aquele aglomerado de gente que parecia uma escola de samba daquelas que passava na televisão. Televisão essa que persistia em criminalizar aquele movimento. Alguns fechavam as portas de seus estabelecimentos, outros negavam água, vários reclamavam, mas as crianças continuavam a correr. Gastavam suas energias em meio à multidão avermelhada.
Aquela caravana rubra mudava totalmente a rotina da vida das cidades por onde passavam. Chegavam com seus pés desgastados pelo contato intenso com o piche e a brita do asfalto. As mães, crianças, as malas e a estrutura do movimento chegavam em caminhões antes da multidão. Era preciso arrumar a cozinha e as barracas de lona preta para recepção daqueles que enfrentavam a longa caminhada. O grupo, que era dividido em brigadas, possuía pessoas dispostas a cozinhar, montar, levar água para os companheiros, animar, dar massagens, correr atrás de medicamentos e fazer tudo que fosse possível para beneficiar aquele ato coletivo. Trabalhavam. Labutavam como sempre fizeram nos empregos de seus patrões que exploravam sua força de trabalho, só que agora, lutavam por algo seu. “Eu Adorei fazer isso. Pude ajudar em tudo”, comentava Jorge Luiz, 16, que seguiu a marcha sozinho sem a família.
Acreditavam que aquela caminhada era fundamental para aquilo que defendiam. Construíam a reforma agrária e confiavam que isso era o instrumento fundamental para distribuição de riqueza e justiça social. Mobilizavam-se em busca da soberania popular, onde João, Maria, Manuel, Jorge Luiz, Glória, Isabel, Juliana, José, Aparecida e todos os trabalhadores pudessem conquistar aquilo que tanto sonhavam. Caminhavam, mas não caminhavam simplesmente. Marchavam firme. Sustentavam a luta do povo. Os milhares de seres humanos que se uniram em fileira apenas caminharam por não terem chão.