Um polêmico gênio de sensibilidade aflorada, banhado pela arte do sorrir, do doar-se sem medidas, do ser solidariamente humano com o humano. São mágicos 120 anos! A comicidade e o melodrama outrora em prelúdio, já então nas mãos do poeta maior, daquele que soube engajar sua trajetória de vida no silêncio visualmente personificado por gestos universais: a figura de um pária. O criador pensante assim desejou ser o reflexo dos esquecidos, ironicamente através do humor. Humor sofrido.
O criador, Sir Charles Spencer Chaplin, ou simplesmente Chaplin. A criação, Carlitos ou como queiram, Charlie, Charlot, para todos os gostos, tipos, raças e sorrisos, igualmente à sua repercussão. Era este uma solita figura em preto e branco, adornada por um chapéu coco, uma bengalinha de bambu e um terno paupérrimo, apertadíssimo e com calça “balão”. Ah, claro, além de um doce coração de manteiga! Nele, uma energia saltitante, extrovertida, que inesperadamente aparecia em situações atrapalhadas – não se sabe de onde – e ao mesmo tempo tímida, que invadiu telonas do mundo inteiro. A comprovação de toda uma técnica expressiva, ainda não vista na época. A imitação de diferentes formas, através de um corpinho lânguido. Uma figura diferente.
Assim fora constituído o verdadeiro instrumento utilizado por Chaplin para suas críticas e sátiras à desigualdade e à alienação humana. Para ele não havia o que lhe fosse de proibido. Era “proibido proibir” os tradicionais chutes nos traseiros daquelas autoridades que o maltratavam – coincidentemente, quase sempre um policial. Sua vida resumida em filmes. Sua consternação insurgida de uma infância sofrida, representada pelo cômico. O mistério. Chaplin e Carlitos não eram dois, representavam apenas um. Todos, o imaginário do criador. Seus 120 anos, a boa lembrança do inesquecível.
No mundo “chapliniano”, uma Inglaterra vitoriana, repleta de influência hipócrita, a qual o peso de toda autoridade austera se via sobre os pobres, em muito a perfeita diversão dos ingleses. O peso das ricas roupas ornadas, dos rígidos costumes se fazia sentir em suas almas complexas, inebriadas por egoísmo. Para os moradores dos surbúbios londrinos só restava o enfadonho universo de suas mentes, onde seus sonhos podiam ser verdadeiros. A promessa de uma vida melhor. Sobre esta Inglaterra, há exatos 120 anos, Chaplin nasceu.
Seu espírito de sonhador, mais sensível do que racional, ser-lhe-ia o motor suficiente para sua arte. Alçar vôo à desconhecida América lhe seria um desafio e também a vitória sobre a vida reconhecidamente miserável que tivera, em termos materiais. Chaplin tão fácil não se abalou com as dificuldades que encontrou em terra estranha: perseguido por seu espírito irrequieto, polemizou a própria vida – com suas preferências amorosas por mulheres bem mais jovens –, seus filmes intrigantes, sempre com um profundo caráter político-social, assim como suas sinceras declarações contra o sistema da época.
Sim! Mágicos 120 anos dessa máquina humana, sempre sorridente! A contradição em pessoa. A contradição presenciada no seu estilo de encarar a vida, tal como em suas palavras que apelavam para o eterno sorriso, para que se não apercebecem da tristeza. A contradição presenciada num peculiar humor capaz de retratar o sofrimento de inocentes e a repressão nazista (The Great Dictator). Contradição presenciada até mesmo na história de um assassino em série (Monsieur Verdoux), curiosamente justificada nas palavras da personagem Verdux no momento em que é acusado de seus crimes, o qual afirma que a Guerra foi muito mais cruel do que ele. A Guerra, de fato, foi muito mais atroz do que aquele humor inteligente.
Criador de Carlitos. Mágicos 120 anos! Criador da maneira simples de sorrir. Criador de outros clássicos como A King in New York, alusão ao colonialismo inglês e uma perfeita resposta aos americanos ingratos, responsáveis por um macarthismo injusto e o consequente exílio em 1953. Por essas épocas, as estranhas terras maltratantes da América já não o tentariam sufocar, tampouco afundar a sua arte. Em 1972, voltou o gênio aos Estados Unidos, onde recebeu um Oscar honorífico por sua incalculável contribuição à indústria cinematográfica. Uma boa forma de redenção dos americanos.
Pelo amor e pela esperança, Chaplin guardou em si um brilhantismo de um poeta humanista, por isso é sempre lembrado, mesmo tendo se passado mais de quatro décadas de seu último trabalho no cinema (A Countess from Hong Kong). É lembrado nos detalhes e na simplicidade de fazer a arte acontecer. Uma prova de que o tempo é seu maior aliado, ao contrário do que ele próprio pensava, pois tinha ele medo desse tempo e do terrível esquecimento. Chaplin, sempre lembrado como poeta da alegria e da dor, e agora pelos seus inesquecíveis 120 anos.