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Universidade Federal de Alagoas - UFAL
 

31/12/2008
Opinião
Purificados

- Mas se tiveste que mudar alguma coisa na tua vida, o que seria? /- O corpo, para que ele pudesse ter a forma do que eu sinto. (Sarah Kane, em Purificados) Crônica de Manaíra Aires

Por Manaíra Aires

Minha mente não pára, não pára, não pára, não pára... Faz tempo que algo não me despertava tantos novos estímulos como o texto de Sarah Kane e a plasticidade de Krzysztof Warlikowski na peça teatral Purificados. Saí do teatro há pouco e ainda não me sinto firmemente em mim - deixei muitos pedaços meus desabando e agora estou num estado entorpecente que beira a paz do desespero. Paz por saber que, em meio a tanto lixo cultural, ainda existem coisas que me fazem pulsar e pulsar e pulsar (e exterminam a minha prepotência em achar que já vi ou já provei de tudo e, por isso, a minha resignação). Desespero por sentir tão visceralmente os tormentos, as angústias do universo de Kane.

Enxerguei naquela peça uma retrospectiva de minhas leituras (escritas e iconográficas): vi o universo dos estranhos de Diane Arbus (e foi a arte dela que me fez gostar tanto da estranheza); senti a fragilidade e a delicadeza das metáforas de Susan Glaspell; Anaïs Nin estava ali na linguagem sinestésica, na sensorialidade e na sensualidade, nas cores tão pontuadas pela iluminação (e ao longo da peça, veio-me inúmeras vezes excertos do livro A casa do Incesto, era como se eu estivesse vendo os parágrafos que li do livro da Anaïs); nunca me fora tão perceptível uma consonância como a que eu fiz entre os poemas de Ana Cristina César e a linguagem, que muitas vezes chega a ser prosa-poética, de Kane. Sem falar que a toda hora eu pensava que havia alguma coisa ali que resgatava no meu íntimo sensações a la Sylvia Plath (e sua Lady Lazarus) e a la Virginia Woolf (especialmente no livro As Ondas).

As leituras de minha adolescência afloraram e várias personagens que povoam o meu universo obscuro ganharam vida na interpretação fantástica de atores como Mariusz Bonaszewski e Renate Jett (cuja voz era a leveza do peso que eu sentia naquele universo transgressor). Kane conseguiu juntar dentro de mim um pouco de cada uma dessas escritoras, e todas elas se ligam pelo toque feminino a um mundo atormentado pelas angústias, pelas frustrações e, especialmente, pelas violências sutis às quais estamos sempre expostos e, muitas vezes, permitimos entrar sem nem mesmo perceber a periculosidade da porta aberta.

Kane também surge como uma ponte a pelo menos boa parte dessas escritoras por algo que sempre me chamou muita atenção: o suicídio. Virginia Woolf se afogou no rio Ouse; Sylvia Plath trancou-se numa cozinha com o gás a estourar; Ana C. pulou do sétimo andar do apartamento dos pais; Diane Arbus tomou barbitúricos e cortou os pulsos; e Kane… Kane enforcou-se no banheiro do hospital onde estava internada. A incessante busca de sentido para a vida é algo que alimenta a obra dessas escritoras e, não obstante, não encontrando maneira alguma para matar a fome e aliviar a sede causadas por essa busca, foi o suicídio o último ato. Ate hoje ponho-me a pensar se o suicídio é um ato de grande coragem ou de extrema covardia… Hermann Hesse, no seu O Lobo da Estepe, retratou o suicídio de uma maneira que até hoje me influencia… Há aqueles que se matam com terrível delicadeza, na lida do cotidiano, aos poucos descamando pedaços de si; e há aqueles que se matam violentamente em nome da delicadeza que perderam junto com os pedaços que lhes foram arrancados – e aí estão todas essas mulheres que povoaram o meu mundo desde a adolescência com os seus personagens esquizofrênicos, doentios e profundamente arrebatadores.

Purificados, de fato, representa boa parte daquilo que eu apreendo como arte contemporânea de qualidade estonteante, uma vez que dá vazão à entropia narrativa (sobrevive de fragmentos costurados, quebrando a linearidade) sem se perder em devaneios gratuitos. Sentir pensadamente - tem sido essa a minha estirpe nos últimos tempos.

O mais interessante ainda é que eu fui assistir a essa peça bem na época em que ainda estou por demais motivada com a obra de Fassbinder, que tal como Kane, era homossexual e tinha a homossexualidade como um dos temas cernes de sua obra. Todavia, Kane se distingue de Fassbinder porque, enquanto este é provocador, Kane é agressiva. Por mais que grande parte da crítica tenha enxergado a truculência kaniana como “gratuita e de mal gosto”, eu vi uma delicadeza profunda em cada ato de violência, e de gratuito mesmo, para mim, é a crítica sem arcabouço com sensibilidade suficiente para enxergar a profundidade de cada passo das personagens. Kane é um tapa com “luvas de pelica” (para usar um termo a la Ana C.). Kane é o aborto de tudo aquilo que não poderia ter sido castrado em nós - e nos foi tomado deliberadamente pelo olhar castrador do outro, pelo processo de alteridade que não nos deixa livres um instante da dialética com o outro, nem que esse outro seja o espelho distorcido de nossas intimidades transvistas, de nossos olhares travestidos, de nossas vias transviadas (daí o cenário conter uma espécie de muro espelhado).

Por fim, são peças como essa (o olhar de um encenador polaco sobre o texto de uma dramaturga inglesa) que me fazem sentir a amálgama cultural que é a Europa – e faz-me sentir que está a valer a pena permanecer por mais algum tempo por estas terras do lado de cá do oceano.



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