Minha mente não pára, não pára, não pára, não pára... Faz tempo que algo não me despertava tantos novos estímulos como o texto de Sarah Kane e a plasticidade de Krzysztof Warlikowski na peça teatral
Purificados. Saí do teatro há pouco e ainda não me sinto firmemente em mim - deixei muitos pedaços meus desabando e agora estou num estado entorpecente que beira a paz do desespero. Paz por saber que, em meio a tanto lixo cultural, ainda existem coisas que me fazem pulsar e pulsar e pulsar (e exterminam a minha prepotência em achar que já vi ou já provei de tudo e, por isso, a minha resignação). Desespero por sentir tão visceralmente os tormentos, as angústias do universo de Kane.
Enxerguei naquela peça uma retrospectiva de minhas leituras (escritas e iconográficas): vi o universo dos estranhos de Diane Arbus (e foi a arte dela que me fez gostar tanto da estranheza); senti a fragilidade e a delicadeza das metáforas de Susan Glaspell; Anaïs Nin estava ali na linguagem sinestésica, na sensorialidade e na sensualidade, nas cores tão pontuadas pela iluminação (e ao longo da peça, veio-me inúmeras vezes excertos do livro A casa do Incesto, era como se eu estivesse vendo os parágrafos que li do livro da Anaïs); nunca me fora tão perceptível uma consonância como a que eu fiz entre os poemas de Ana Cristina César e a linguagem, que muitas vezes chega a ser prosa-poética, de Kane. Sem falar que a toda hora eu pensava que havia alguma coisa ali que resgatava no meu íntimo sensações a la Sylvia Plath (e sua Lady Lazarus) e a la Virginia Woolf (especialmente no livro As Ondas).
As leituras de minha adolescência afloraram e várias personagens que povoam o meu universo obscuro ganharam vida na interpretação fantástica de atores como Mariusz Bonaszewski e Renate Jett (cuja voz era a leveza do peso que eu sentia naquele universo transgressor). Kane conseguiu juntar dentro de mim um pouco de cada uma dessas escritoras, e todas elas se ligam pelo toque feminino a um mundo atormentado pelas angústias, pelas frustrações e, especialmente, pelas violências sutis às quais estamos sempre expostos e, muitas vezes, permitimos entrar sem nem mesmo perceber a periculosidade da porta aberta.
Kane também surge como uma ponte a pelo menos boa parte dessas escritoras por algo que sempre me chamou muita atenção: o suicídio. Virginia Woolf se afogou no rio Ouse; Sylvia Plath trancou-se numa cozinha com o gás a estourar; Ana C. pulou do sétimo andar do apartamento dos pais; Diane Arbus tomou barbitúricos e cortou os pulsos; e Kane… Kane enforcou-se no banheiro do hospital onde estava internada. A incessante busca de sentido para a vida é algo que alimenta a obra dessas escritoras e, não obstante, não encontrando maneira alguma para matar a fome e aliviar a sede causadas por essa busca, foi o suicídio o último ato. Ate hoje ponho-me a pensar se o suicídio é um ato de grande coragem ou de extrema covardia… Hermann Hesse, no seu O Lobo da Estepe, retratou o suicídio de uma maneira que até hoje me influencia… Há aqueles que se matam com terrível delicadeza, na lida do cotidiano, aos poucos descamando pedaços de si; e há aqueles que se matam violentamente em nome da delicadeza que perderam junto com os pedaços que lhes foram arrancados – e aí estão todas essas mulheres que povoaram o meu mundo desde a adolescência com os seus personagens esquizofrênicos, doentios e profundamente arrebatadores.
Purificados, de fato, representa boa parte daquilo que eu apreendo como arte contemporânea de qualidade estonteante, uma vez que dá vazão à entropia narrativa (sobrevive de fragmentos costurados, quebrando a linearidade) sem se perder em devaneios gratuitos. Sentir pensadamente - tem sido essa a minha estirpe nos últimos tempos.
O mais interessante ainda é que eu fui assistir a essa peça bem na época em que ainda estou por demais motivada com a obra de Fassbinder, que tal como Kane, era homossexual e tinha a homossexualidade como um dos temas cernes de sua obra. Todavia, Kane se distingue de Fassbinder porque, enquanto este é provocador, Kane é agressiva. Por mais que grande parte da crítica tenha enxergado a truculência kaniana como “gratuita e de mal gosto”, eu vi uma delicadeza profunda em cada ato de violência, e de gratuito mesmo, para mim, é a crítica sem arcabouço com sensibilidade suficiente para enxergar a profundidade de cada passo das personagens. Kane é um tapa com “luvas de pelica” (para usar um termo a la Ana C.). Kane é o aborto de tudo aquilo que não poderia ter sido castrado em nós - e nos foi tomado deliberadamente pelo olhar castrador do outro, pelo processo de alteridade que não nos deixa livres um instante da dialética com o outro, nem que esse outro seja o espelho distorcido de nossas intimidades transvistas, de nossos olhares travestidos, de nossas vias transviadas (daí o cenário conter uma espécie de muro espelhado).
Por fim, são peças como essa (o olhar de um encenador polaco sobre o texto de uma dramaturga inglesa) que me fazem sentir a amálgama cultural que é a Europa – e faz-me sentir que está a valer a pena permanecer por mais algum tempo por estas terras do lado de cá do oceano.