Meu caro amigo,
Eis o Natal. Quando eu era mais jovem, ainda conservava a idéia do Natal como algo abstrato, inapalpável. A verdade é que hoje o Natal me vem mais pragmático do que nunca, tocando-nos com tantos aparatos, luzinhas, arranjos e mais e mais. O Natal é palpável, cabe nele mais enfeites e panetones (que aqui em Portugal chamam de bolo-rei) do que possa imaginar o Pai Natal (quer dizer, Papai Noel, no Brasil).
Do outro lado do Atlântico, finalmente presencio o traje do Papai Noel condizente com a estação do ano – quando eu era pequenina, ficava a imaginar porque tanta roupa tinha o bom velhinho se eu sentia crescente calor. Importam-se roupas e estilos, mas (ainda) não se deu jeito de se comercializar estações do ano com os seus devidos fenômenos naturais. Um dia ainda veremos (ou os nossos filhos, netos, bisnetos…) pacotes de verão ou primavera, estimo que serão os mais pedidos no mercado, pois que o inverno bem vejo que pelas bandas de cá não tem muita procura.
Essa invernia que se aproxima é silenciosa e sútil, assim como são os portugueses. Tenho tido um apraz acolhimento por aqui, embora eu já sinta profunda falta da alegria tão intrínseca ao nosso povo e tão nostalgicamente concebida nestas terras de cá. Fernando Pessoa definiu uma comparação extremamente interessante quando afirmou, em Páginas Íntimas e de Auto-interpretação, que “os portugueses são ternos e menos intensos; os espanhóis, apaixonados e frios”. Portugal respira revivalismo, décadas de 1980 e 90. A forma como as pessoas se vestem, como cortam o cabelo, como pronunciam tão corretamente a Língua Portuguesa… Há qualquer coisa aqui – feita de vestígios, vigílias e sortilégios – que beira sempre o passado. E veja que paradoxal estar tão próxima das apreensões de futuro que todo fim de ano suscita e, concomitante, viver tão intrinsecamente os anacronismos portugueses. Eis um intenso processo de descobertas a partir dos estilhaços de sensações que ficam depois de tantos medos e angústias ao nos lançarmos no mar do desconhecido. Eis a prudência das conseqüências humanas, o cheiro doce das manhãs caladas, os corpos cansados pela constante vigília que a vida exige para que não se perca a direção. E na minha face, a ausência que fala.
Todas as faltas que sentimos quando experienciamos morar em outro país nos permite a imprecisão das palavras e o campo minado que são as seguranças e as certezas do nosso seio familiar. Aprendemos a nos entregar ao mundo sem esperar que ele a nós se entregue. A independência crescente à medida que o tempo pulsa faz com que tenhamos mais cuidado com nós mesmos, uma vez que quanto maior a liberdade de escolha, mais compromisso tendemos a ter com a opção que fizemos. Percebemos o quanto ilusório é nos construirmos a partir do olhar do outro sobre nós – finalmente compreendemos que não era tão importante exatamente o olhar do outro, mas o fato de precisarmos que o outro sempre nos olhasse. Em terras distantes de nosso porto, os outros nos olham distraidamente.
Para além do oceano, aprendemos a nos fazer bem, mas não um bem por necessidade. Passamos a nos querer bem por perceber a importância de respeitarmos os nossos limites e por criar novos parâmetros que organizam aquilo que tem maior ou menor importância em nossas vidas. A distância permite uma grande descoberta das fontes que nos preenchem – e daquelas que já não nos concedem tanta fluidez assim.
Apronto para que você, meu querido amigo, permita-se. Permita-se recomeçar acreditando sinceramente que flores podem nascer no asfalto. Construa. Construa uma ponte em que o mais importante não será te levar ao outro, mas impedir que ao invés da ponte você construa um muro em torno de si. Ame. Ame os sorrisos, as lágrimas e a mistura de sensações. A vida é um pouco de cada um de nós.
Despeço-me olhando para a lareira que esquenta esta fria noite de Natal na cidade do Porto. “Todo sopro que apaga uma chama reacende o que for para ficar”; toda chama que se apaga leva consigo o que não conseguiria permanecer.
A ti, desejo a eternidade num instante.
Manaíra Aires