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Universidade Federal de Alagoas - UFAL
 

18/10/2007
Cultura
EM BUSCA DO HORIZONTE PERDIDO

Desaldeada e em situação de penúria, comunidade indígena em Palmeira dos Índios luta pela reconquista de suas terras e preservação de suas tradições

Por Gabriela Rodrigues

Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

Ao contrário do que foi determinado há quase vinte anos, as palavras impressas na Constituição Federal parecem não fazer nenhum sentido quando se observa a realidade de alguns indígenas brasileiros. Em Alagoas, dissidentes da etnia Xucuru-Kariri, originariamente “donos” das terras que hoje correspondem ao município de Palmeira dos Índios, sofrem com o problema da falta de demarcação e, conseqüentemente, com as dificuldades para realizar suas práticas agropecuárias e culturais. Situação caótica encontra-se no Bairro do Alto do Cruzeiro, uma área tradicionalmente de ocupação indígena: tomado pela periferia da cidade, o local abriga, em média, 66 famílias da comunidade denominada Xucuru-Palmeira, hoje desaldeada. Sem a devida assistência à saúde, educação e moradia, a comunidade sofre também com a discriminação, a falta de espaço para realizar seus rituais e a apatia com a qual a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem tratado a questão agrária.

“Isso prejudica o nosso povo e é uma vergonha para a Funai e o Governo federal”, afirma o cacique Francisco José Lourenço, conhecido como “Xiquinho”. Líder da comunidade, Xiquinho expressa a sua indignação e conta que a tomada das terras indígenas foi causada principalmente pelo crescimento da periferia da cidade e pelas negociações entre latifundiários e lideranças políticas da região, além de vendas desonestas feitas por líderes de algumas aldeias, o que causou e ainda causa conflitos entre as diferentes facções que compõem a etnia Xucuru-Kariri. “A gente nasceu e se criou aqui no Alto do Cruzeiro, onde antigamente tudo era mata e tínhamos espaço para fazer nossos rituais. Mas Palmeira cresceu e tomou a nossa terra. Hoje a gente se mistura aos problemas da miséria”, explica, referindo-se à sua facção, os Xucuru-Palmeira.

O problema da falta de terras que levou o grupo à emergência não é recente, e é “conseqüência de uma ocupação territorial na qual os índios foram sendo expulsos, perseguidos e discriminados”, como explica o antropólogo Ivan Soares Farias, do Ministério Público Federal (MPF). Segundo ele, “a comunidade Xucuru-Palmeira existe em função de um processo sociológico de longos anos, e eles não são os únicos de Palmeira dos Índios a viver em periferia”. O antropólogo ressalta que o Xucuru-Kariri é um grupo étnico fragmentado por conta de processos sociológicos em que muitos foram expulsos e perderam suas terras, que só foram retomadas já na década de 1970, quando algumas comunidades retornaram à Palmeira. O cacique Xiquinho lembra que a “reconquista” da algumas áreas e a fragmentação em comunidades começou em 1979, pela retomada da aldeia Mata da Cafurna, liderada pelo cacique Antônio Celestino, e da aldeia Serra do Capela, do cacique Manoel Celestino. No entanto, o que antes era esforço coletivo transformou-se em rivalidade: “Participamos dessa retomada, mas depois que eles conseguiram, queriam que fôssemos subordinados”, revela o cacique, explicando que as comunidades que recuperaram suas áreas passaram a menosprezar os Xucuru-Palmeira, desaldeados. “Mas a gente tem nossos direitos próprios, e não quer ser subordinado a mais ninguém”.

A dissidência entre os grupos também originou nos anos 1980 as aldeias de Fazenda Canto, Cafurna de Baixo, Coité, Serra do Amaro e Boqueirão. As retomadas ganharam mais força com a Constituição de 1988, quando as comunidades reivindicaram as primeiras tentativas de demarcação. Porém, fracassadas. A pesquisadora de comunidades indígenas e Ph.D. em antropologia Sílvia Martins, da Universidade Federal de Alagoas, explica que apesar da Constituição de 1988 contribuir para a reorganização das tribos, até hoje não há nenhuma proposta de regularização de terras Xucuru-Kariri no Ministério da Justiça. “São quase vinte anos sem que eles tenham território efetivamente demarcado. Apesar do território Xucuru-Kariri ter sido identificado em 15.125 hectares em 2004, o relatório de Identificação e Delimitação não foi concluído e encaminhado”, destaca a antropóloga. Ou seja: as diferentes áreas que os índios ocupam hoje são, na sua maioria, terras de ocupação tradicional, mas obtidas através de negociações (Fazenda Canto, Boqueirão, Serra do Capela e Serra do Amaro); doação (cerca de 117,8 hectares na Mata da Cafurna), ou tratam-se de terras dominiais indígena, quando há uma ocupação efetiva das áreas imemoriais (Cafurna de Baixo, Coité). No caso dos Xucuru-Palmeira, a situação é ainda mais difícil, pois eles não têm, sequer, o acesso a terras emergenciais (áreas negociadas pela Funai que permitem a acomodação das tribos enquanto é feita a demarcação dos territórios originalmente indígenas).

NEGOCIAR O QUE É SEU. E POR DIREITO

“Desde os meus bisavós se fala em demarcação de terra. A gente nunca alcançou demarcação nenhuma, e nossa questão são as prioridades, a gente não pode esperar. A demarcação vai sair, nem que seja para os nossos netos, mas procuramos de antemão uma solução emergencial para o nosso povo”, declara Xiquinho, sem conseguir disfarçar as lágrimas e a indignação em seus olhos. Com o problema de sua comunidade, veio à tona a possibilidade de assentamento em uma área emergencial, que a Funai “readquire” para os donos originais. A reorganização das aldeias Xucuru-Kariri em terras emergenciais já no final dos anos 80, ao mesmo tempo em que representou uma forma alternativa de acomodar as tribos, permitindo a preservação de costumes míticos e das atividades de subsistência, ascendeu questões sobre a importância efetiva da demarcação, provocando choque entre as ações da Funai e do Ministério Público Federal.

José Heleno de Souza, administrador regional da Funai em Alagoas, explica que todas as negociações são feitas pelo Departamento de Assuntos Fundiários (DAF), na sede da fundação, em Brasília, e a administração local serve apenas como mediadora nos processos. “O problema não é só dos Xucuru-Palmeira. Atinge comunidades indígenas como um todo. Não temos como resolver de imediato, apenas podemos intervir”, declara José Heleno, aos rebater as críticas da comunidade que diz não se sentir representada pela Funai. O administrador explica que a aquisição das chamadas “áreas emergenciais” para assistência indígena ocorre quando a Funai negocia terras com um posseiro, o “proprietário” que, em dado momento, é o detentor de determinada área.

Um levantamento antropológico de áreas dessa natureza permite constatar se a propriedade é genuína do fazendeiro que a ocupa ou se é patrimônio da União. Neste sentido, há intervenção do Ministério Público Federal: se a terra for constatada como indígena, deverá ser demarcada. Mas enquanto isso não acontece, abre-se o processo de negociação no qual a fundação não “compra” as terras, mas paga benfeitorias ao posseiro (benefícios equivalentes a propriedades daquela região como, por exemplo, casa, fazenda ou criação de animais). Se o posseiro resistir às negociações, o caso é levado ao Ministério da Justiça, e caberá ao ministro Márcio Thomaz Bastos intervir nas medidas cabíveis e autorizar a efetiva demarcação, independente de quem se opuser ou estiver ocupando o território em questão.

Para o MPF, a Funai não está cumprindo o seu papel de instituição protetora. O fato da fundação fornecer terras emergenciais às comunidades é uma forma de “iludir” os índios, como declara Ivan Soares. “Em vez disso, eles poderiam agilizar a demarcação, mas não a fazem. A Funai hoje se pauta por interesses políticos, fazendo o que lhe é mais conveniente, mesmo sabendo que muitas vezes não usa a via correta. Seria correto negociar com posseiros terras emergenciais ‘devolvendo-as’ aos índios, sabendo que elas são suas por direito?”, indaga o antropólogo, ressaltando que manobras e alianças entre lideranças políticas e proprietários de terra dificultam o processo.

A antropóloga Sílvia Martins compreende a posição do Ministério, de defender procedimentos legais pela regularização do território, inclusive para não legitimar aquisição de áreas imemoriais indígenas. “Mas o procedimento de aquisição é uma forma de proporcionar, o mais rápido possível, o acesso à terra aos desaldeados, sem áreas para práticas agrícolas e rituais. Por isso, considero que essas iniciativas da Funai, que muitas vezes partem das próprias reivindicações das comunidades, tragam para os índios uma solução paliativa para o problema, embora não resolva a regularização de território que eles têm direito”, enfatiza Sílvia. “O Território Xucuru-Kariri até hoje não foi legitimado, está todo dividido em áreas emergenciais. Então, como estaria o grupo hoje sem a iniciativa de aquisições de parcelas de terras?”, conclui a pesquisadora.

A terra emergencial visada pelos Xucuru-Palmeira, que deve ser analisada para constar em proposta a ser encaminhada para Brasília, é a chamada Fazenda Caldeirão, uma área de 360 hectares afastada do perímetro urbano de Palmeira dos Índios, cujo proprietário, conhecido como Jacó, já se dispôs a negociar com a Funai. A pendência, agora, são os relatórios antropológicos: segundo Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, diretora do Departamento de Assuntos Fundiários (DAF), na sede da Funai, é necessário um diagnóstico da situação sócio-econômica da comunidade, feito por antropólogos, para que sejam analisadas as duas possibilidades: a da cessão de terras emergenciais e a de efetiva demarcação, caso a área seja realmente constatada como imemorial indígena.

A proposta da Fazenda Caldeirão já chegou ao conhecimento da Funai e do Ministério da Justiça, mas a decisão sobre a negociação e ocupação da área só acontece após o encaminhamento dos relatórios. Para a demarcação, será necessária intervenção da antropóloga Siglia Zambrotti, da Coordenação Geral de Identificação e Delimitação da Funai (CGID) que, segundo informações da comunidade, já começou o trabalho de pesquisa na região. Mas previsto para ser concluído em 15 de outubro, encontra-se “empacado” no DAF. Como o processo demarcatório é mais demorado, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas também participará do levantamento sócio-econômico, visando à possibilidade da ocupação emergencial na Fazenda Caldeirão.

GRUPO DE PESQUISA

Em reunião do DAF em maio de 2006, a diretora Maria Auxiliadora recomendou aos Xucuru-Palmeira que buscassem apoio na Ufal. Somente em agosto deste ano, a proposta foi viabilizada, com a formação de uma equipe de antropólogos e professores que devem, além de assessorar o processo reivindicatório, mapear as habitações do Alto do Cruzeiro, registrar as condições sociais do grupo em relatórios e em vídeo-documentário, e analisar a proposta da Fazenda Caldeirão. O resultado deste trabalho será encaminhado pessoalmente por Xiquinho e sua comunidade à sede da Funai, em novembro próximo. “Pretendemos fazer uma mobilização em Brasília até o final deste ano jamais feitas por nenhum grupo indígena do Nordeste. Pretendemos até fechar a sede da Funai ou acampar em frente ao Palácio do Planalto e só sair de lá para a nossa terra conquistada, porque não dá mais pra voltar para essa periferia, não temos mais condição de viver nessa miséria”, avisa o cacique, veemente.

De acordo com o professor José Nascimento, assessor do grupo de pesquisa da Ufal, os estudos antropológicos também representam projeto de extensão da universidade e devem ser concluídos no próximo dia 26 de outubro, quando será preparado o relatório a ser levado para a Funai. A solicitação de verbas para deslocamento e alimentação dos pesquisadores já foi encaminhada para a reitoria da instituição. “Esta articulação com a universidade é importantíssima porque eles se sentem apoiados. E a gente conhece a realidade indígena, volta a ter contato com nossas origens”, declara Nascimento.

“ESTAMOS SENDO MAL ASSISTIDOS”

A miséria da periferia palmeirense contrasta com o esplendor das serras visíveis do Alto do Cruzeiro. De onde se avista o Cristo do Goiti, “postal” de Palmeira dos Índios, moradias aglomeradas dividem espaço com o lixo espalhado e esgotos a céu aberto, na área que um dia fora considerada reserva indígena. O acesso às habitações é muito difícil e fica ainda mais complicado devido aos “altos e baixos” do local e aos problemas da falta de saneamento, que além de ocasionar doenças como dengue e esquistossomose, impossibilitam a prática das atividades agropecuárias tradicionais.

Se a falta de saneamento básico impede a produção de alimentos e proporciona a proliferação de doenças, a situação se torna ainda mais precária devido aos problemas da assistência à saúde. Erisvânia Lima da Silva, assistente de saúde que também mora no Alto Cruzeiro e presta serviço de graça na comunidade há quase um ano, afirma que o atendimento da Fundação Nacional de Saúde, Funasa, aos índios, é diferenciado. “Isso é discriminação. Não temos a devida assistência porque, além de sermos índios, estamos desaldeados”, queixa-se Erisvânia. Exemplo disso é a situação do deficiente físico José Cícero Mariano Canabrava, de 32 anos: em 2001, Cícero foi baleado na coluna, enquanto defendia o irmão menor de idade em briga “com um branco”, ficando paraplégico. Passados seis anos, o criminoso não foi punido, e Cícero, assistido apenas pelo Programa Saúde da Família, ainda luta por uma cadeira de rodas. “A Funasa desviou a cadeira de rodas destinada a ele para outra pessoa que estava em comunidade aldeada, já que tinha cadastro. A falta da demarcação dá um ar de incerteza ao nosso grupo”, complementa a assistente de saúde, enfatizando que a Funasa atende apenas comunidades devidamente demarcadas e cadastradas. O cadastro das famílias indígenas foi realizado pelo Ministério Público Federal na segunda quinzena de setembro, e, de agora em diante, deve facilitar as condições de José Cícero e de outras pessoas da comunidade que dependem de exames e medicamentos controlados.

Dona Iraci, mãe do cacique Chiquinho, também engajada na luta, usa o caso de José Cícero para demonstrar que a comunidade, integrada à região periférica do município, fica vulnerável à criminalidade, à mistura de culturas e à discriminação, o que impede a educação para crianças e jovens e a preservação de seus valores típicos. “Queremos uma vida digna, não podemos mais viver da forma diferente de nossos costumes”, revela.

A falta da demarcação também é entrave para que a educação aconteça no Alto do Cruzeiro: 70% das crianças em idade escolar não têm condições de estudar, e, as poucas que estudam, convivem com a dificuldade para manter-se, já que precisam de fardamentos, transporte e material escolar, precariamente fornecidos pela Funai e pela Secretaria de Educação, justamente por estarem desaldeadas. “Estamos sendo mal assistidos, a verdade é essa”, reclama Iraci. Segundo José Heleno, diretor regional da Funai, escolas só podem ser construídas em territórios devidamente demarcados ou em terras emergenciais, o que dá aos estudantes de Xucuru-Palmeira a única e inviável alternativa de estudar na Aldeia Serra do Amaro, de acesso muito difícil, “quase na divisa com Pernambuco”, como se diz na comunidade.

Diante da precariedade e da discriminação, restam poucas opções para a subsistência: sem as tradições agropecuárias e a devida assistência, o grupo hoje vive de esmolas ou batalhando por alguns “trocados” matando animais nos abatedouros da cidade, vendendo artesanato, fazendo fretes e carregando bancas e compras em feiras. O cacique revela que o simples fato da comunidade se identificar como indígena os impede de conseguir trabalho. “Quando um fazendeiro sabe que a gente é índio não quer dar emprego, acha que vamos roubar as terras. E não vamos fazer isso, mesmo sabendo que a terra é nossa. Há muito preconceito”, declara. Mas diante da falta de terras, a principal reivindicação da comunidade é ainda maior do que o caos nas condições de saúde, moradia, emprego e educação: a afetação aos valores culturais, devido à falta de espaço para realizar rituais míticos como o Toré e o Ouricuri Sagrado, é, atualmente, o que mais fere o Xucuru-Palmeira.

DO TORÉ AO OURICURI

“Não é fácil para quem está acostumado com o asfalto da cidade”, exclamava o cacique enquanto guiava seus companheiros de comunidade e a repórter entre as subidas e descidas de uma mata, em direção ao local no qual realizam típico ritual Xucuru-Kariri: o Toré. Sob o sol a pino do meio-dia, a descida íngreme. Início de setembro, e a primavera palmeirense já mostrava os seus sinais. No caminho, barro, carrapicho e araçá. “Ainda é a época dessa frutinha gostosa”, ouvia-se de um jovem durante o percurso.

O Toré é um costume no qual, através de cantos e rezas, os Xucurus cultuam suas divindades, os astros e os fenômenos da natureza. “Dançar o Toré”, como se diz, favorece a união da comunidade e é uma forma de expor alegrias e tristezas, conquistas e derrotas e de manifestar as insatisfações diante das injustiças. Vestidos a caráter e com os corpos estampados, homens, mulheres, crianças e jovens se entregam às homenagens feitas, às mensagens transmitidas, aos gestos e aos cânticos realizados, em sua maioria, no dialeto original dos Xucurus: o Macrogê. O cacique fala da dificuldade de seu povo em preservar o dialeto e as tradições culturais: “Os brancos impediam nossos antepassados de praticar o dialeto. Nos obrigavam a falar do jeito deles, impondo uma cultura que não é a nossa”. Segundo o antropólogo Ivan Soares, não se pode misturar os hábitos indígenas com as sociedades urbanas, pois além de ferir a identidade dos grupos, os torna alvo de preconceito.

A situação ficou ainda mais complicada com a perda das terras em Xucuru-Palmeira: Hoje, para realizar o Toré, é preciso se afastar da comunidade periférica não só pela falta de espaço, mas, principalmente, pela discriminação. “O povo daqui não nos dá a oportunidade de praticarmos a nossa própria igreja”, revela o cacique. Para preservar o Toré, os índios contam com a ajuda de um fazendeiro, Amarílio Cavalcante, que “empresta” parcela de sua terra para que a dança aconteça à vontade dos índios. No entanto, a solução não é viável para a realização de um outro ritual, derivado do Toré: o Ouricuri Sagrado, ou Santo Ouricuri, precisa acontecer em local completamente inacessível ao homem branco, pois evoca divindades e trata de segredos preservados entre várias gerações.

Ivan Soares explica que “o Santo Ouricuri é o ritual que congrega energias reais e sobrenaturais, no qual os índios recebem a visita de seres encantados.” Xiquinho enfatiza que “é um ritual sagrado, um segredo muito fino e muito profundo que precisamos preservar dos nossos antepassados”. Lutando para conservar a tradição, os Xucuru-Palmeira protagonizaram episódios de resistência e resgate de valores Xucuru-Kariri, na época em que eclodiram a opressão, expulsões e a dissidência entre as tribos: “Dói ver os nossos irmãos de raça perderam nossa cultura. Muitos não sabiam mais dançar o Toré, fazer um cocar, respeitar o Ouricuri. Termos da língua nativa foram se perdendo, rezas, cantos. Devolvemos os costumes para quem não tinha”, relembra o líder da comunidade. Assim aconteceu a “retomada” do Ouricuri na aldeia Mata da Cafurna e em Karapotó Terra Nova, local onde os Xucuru-Palmeira realizam, todos os meses, seu ritual. Localizada no município de São de Sebastião, próximo a Arapiraca, sustentada pela plantação de mandioca e produção de farinha e sob a liderança do cacique Antônio Isidoro, Karapotó Terra Nova é a alternativa para que a comunidade do Alto de Cruzeiro preserve a tradição sagrada, pois há espaço suficiente e livre do acesso de “homem branco”.

ENTRE O ÉTNICO E O ÉTICO

Para o Ministério Público Federal, a luta Xucuru-Palmeira nunca esteve tão forte, principalmente com a possibilidade da manifestação em Brasília. “Mas eles conseguiriam mais resultado se todas as aldeias Xucuru-Kariri se unissem por um bem comum que é resolver a questão agrária, problema de todos”, comenta Ivan Soares, ressaltando que, apesar da luta, os resultados são muito pequenas e acontecem lentamente. “É tudo muito devagar e a Funai não facilita. Se estivessem unidos, haveria mais visibilidade”.

No entanto, há um entrave que provoca conflito entre os próprios indígenas: embora pertençam ao mesmo grupo étnico, os Xucuru-Kariri convivem com rivalidade entre lideranças das aldeias e preconceito relacionado à etnia, como se “um se sentisse mais índio do que o outro”, conforme expressão do professor José Nascimento. O problema é que, no caso dos Xucuru-Palmeira, a miscigenação foi tanta que outras facções passaram a enxergá-los com desdém questionando, inclusive, a descendência do cacique da comunidade.

No dia 6 de setembro deste ano, o cacique Manoel Celestino, representando reivindicação da comunidade Serra do Capela e coletando assinaturas dos integrantes do grupo, encaminhou documento para a Funai e o MPF alegando que o líder Xiquinho não é índio. Mas a “reclamação” da Serra do Capela não deve atrapalhar as atividades do MPF e da Funai, já que “índio é aquele que se autodefine e que tenha uma comunidade que o reconheça”, como explica Ivan Soares, de acordo com a convenção 169 da Funai. De acordo com Ivan, não é ético que o MPF ou a Funai julguem se Xiquinho tem ou não ‘sangue índio’, pois o que realmente “qualifica” um brasileiro como índio é a prática e o respeito das tradições culturais.

Segundo o professor Nascimento, não se pode mais esperar que índio seja apenas aquele indivíduo de pele avermelhada, cabelos lisos e olhos puxados, que pertença a uma “linhagem pura” preservada desde os tempos do Brasil-colônia. Atualmente, se mantêm assim apenas alguns grupos na Amazônia, mas, no Nordeste, as invasões maciças provocaram intensa aculturação e mistura entre as raças. “Temos tanto tempo de aculturação, somos o povo da miscigenação, e isso não afeta no auto-reconhecimento. Quem é totalmente preto, branco ou índio que seja realmente brasileiro?”, questiona o pesquisador.

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