No dia 29 de outubro de 1983, durante uma crise emocional, Ana Cristina Cesar pôs fim à própria vida, jogando-se pela janela do apartamento dos pais. Ana C. – como costumava assinar – infelizmente desceu cedo do grande ônibus da vida. Mas, antes de partir, resolveu nos presentear com seus versos simples e profundos. O suicídio da poetisa, quatro meses após completar 31 anos, deixou uma lacuna no que havia de melhor na poesia da década de 1970. Hoje, vinte cinco anos depois, é urgente homenagear aquela que foi um dos ícones da Poesia Marginal. Como diria Cacaso, em um poema dedicado à autora: “Ana Cristina cadê você?”.
Poesia Marginal: a geração mimeógrafo
Nascida no Rio de Janeiro, em 2 de junho de 1952, Ana Cristina teve um encontro precoce com a poesia. Ainda criança, aos 4 anos, sem ao menos ter sido alfabetizada, ditava seus poemas para que a mãe os escrevesse. Garota de classe média, Ana C. se formou em Letras pela PUC do Rio, escreveu artigos para revistas e jornais alternativos, foi tradutora e trabalhou na televisão. Criada em Niterói e Copacabana, também chegou a morar nos EUA e na Inglaterra.
Ana Cristina Cesar fez parte de uma geração que viveu importantes acontecimentos políticos. Em maio de 1968, estudantes e trabalhadores sacudiram a França com greves e confrontos contra o autoritarismo, influenciando outras partes do mundo a fazer o mesmo. Foi uma época marcada pela contracultura, pelo deboche, pela liberdade sexual, pela força de movimentos feministas e de defesa dos direitos civis.
Entretanto, no final desse mesmo ano, o Brasil viu os anos de chumbo da ditadura militar endurecerem ainda mais com o anúncio do Ato Institucional nº 5 (AI-5), baixado pelo presidente Costa e Silva. Marcados por este contexto, no início dos anos 1970, surgiram os primeiros poetas marginais. Eram chamados assim porque estavam à margem do mercado editorial, seja pela censura que sofriam as editoras ou pelo desprezo que os poetas tinham ao prestigio intelectual. Imprimindo seus poemas em mimeógrafos, os marginais produziam livrinhos de maneira artesanal e distribuíam em bares, teatros, cinemas e faculdades. Para eles, o que interessava mesmo era fazer sua literatura chegar mais rápido aos leitores.
Os poemas geralmente falavam da vida imediata, utilizando uma linguagem livre, coloquial, cheia de humor e gíria. Inspirados pelo Modernismo, pelos concretistas e pela Tropicália, os poetas marginais gostavam de abordar temas como amor, sexo, drogas, política e vida familiar. Além da bela Ana Cristina Cesar, integram o time desse período figuras como Chacal, Cacaso, Francisco Alvim e Paulo Leminski.
Ana C. – íntima e autobiográfica
A estréia de Ana Cristina veio em 1976, num livro chamado 26 poetas hoje, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda. Como uma autêntica marginal, Ana C. também teve suas primeiras publicações financiadas e produzidas por ela mesma. Os livros de poemas Cenas de abril (1979), Correspondência Completa (1979) e Luvas de Pelica (1980) são exemplos. Em 1982, publicou pela Editora Brasiliense sua última obra em vida, o livro A Teus Pés. Entre os trabalhos lançados depois de sua morte, estão Inéditos e Dispersos, Correspondência Incompleta, Escritos no Rio e Escritos em Londres. Seus livros chegaram a ser traduzidos na França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, Venezuela, Colômbia e Argentina.
A obra de Ana Cristina Cesar guarda uma sensibilidade tão ímpar quanto a beleza simples de seus versos. Com uma linguagem livre de exageros estéticos, a poesia de Ana C. retrata seu testemunho perplexo diante da vida. Há também em seus poemas o caráter confessional, apresentando o registro da intimidade como se estivéssemos lendo cartas e diários particulares da autora. Isso fica claro nos versos: “Faz três semanas/espero depois da novela/sem falta/um telefonema/de algum ponto perdido do país”.
Mas a maneira fragmentária de revelar esta intimidade faz algumas vezes tudo parecer mera aparência, como se a poesia fosse um jogo de gato e rato. De todo modo, Ana Cristina traz à tona pequenas revelações de quem sempre aparentou estar esperando por alguém. A verdade é que sua obra reserva uma fina linha entre o ficcional e o autobiográfico. E é exatamente por isso que ela permanece.