Se estivesse vivo, Caio Fernando Abreu, nascido em Santiago do Boqueirão, cidade do interior do Rio Grande do Sul, teria completado, no último dia 12 de setembro, 60 anos. Caio F. – forma que usava para se auto-intitular, numa referência ao romance Cristiane F. – morreu no dia 25 de fevereiro de 1996, vítima de complicações causadas pela Aids. Rejeitada durante muito tempo pela crítica, a prosa irônica e reveladora de Caio Fernando Abreu exige um olhar atento e um merecido lugar entre os grandes da literatura contemporânea.
Filho de uma geração que sofreu com a censura da ditadura militar, Caio Fernando Abreu pertence a uma safra de poetas, contistas e romancistas herdeiros do Modernismo. Entre os anos de 1970 e 1990, a literatura brasileira viveu uma espécie de apoteose criadora. Os poetas marginais, com seus textos mimeografados, aguçaram a irreverência, a sensibilidade e a liberdade de criação dos modernistas. A prosa desse período assistiu a uma consolidação da crônica, do conto e do romance policial e psicológico. O conto, gênero em que Caio Fernando passeia com maestria, sofreu grandes transformações. Aos poucos, a estrutura de começo, meio e fim cedeu espaço a uma narrativa preocupada em fotografar instantes, episódios ricos em sugestões e flagras intensamente poéticos sobre a significação humana.
Caio Fernando Abreu escreveu poemas, peças teatrais, romances, novelas, crônicas e contos. Todos eles refletindo, de modo bem particular, a angústia, a solidão e a confusão ideológica que marcaram as décadas de 1970, 80 e 90.
Embriagado de solidão urbana – Em seu primeiro livro de contos, Inventário do Irremediável, publicado em 1970, o escritor gaúcho já apresentava um esboço dos pontos essenciais que marcariam toda sua obra. O gosto por ambientes urbanos, a escrita angustiada e a temática da solidão compõem o quadro das características literárias de Caio Fernando, muitas vezes presentes em contos de caráter autobiográfico. Influenciada pela obra de Clarice Lispector, a narrativa de Caio F. é uma sondagem da angústia e da solidão daqueles que vivem perdidos entre os imensos arranha-céus. Sua prosa introspectiva revela a pressão de se sentir sozinho, esmagado por uma realidade opressiva que não faz a menor questão de estimular alguém a permanecer vivo. Em seus textos, há também a presença de uma radiografia dos sentimentos e das relações amorosas, com especial apego aos deslizes e incertezas.
Ainda na década de 1970, Caio Fernando publicou mais dois livros de contos: O Ovo Apunhalado> (1975) e Pedras de Calcutá (1977). Mas o auge do trabalho como contista só viria com Morangos Mofados, em 1982. Nesta obra, considerada a de maior sucesso, Caio traz à tona todo seu vazio existencial, preenchido por uma escrita mergulhada em astrologia e esoterismo, como demonstram os contos Os Sobreviventes e O Dia em que Urano entrou em Escorpião. Era como se a solidão, tema recorrente em seu trabalho, e o vazio da vida nas grandes cidades pudessem ser ocupados por qualquer coisa que lhe oferecesse a esperança de ser amado.
Outra marca importante de Morangos Mofados é a sensibilidade com que Caio Fernando aborda em seus contos todas as formas de amor. A singeleza dos relacionamentos amorosos, os rompimentos e o desabrochar das mais variadas emoções renderam contos de uma delicadeza única. Assumidamente homossexual, Caio F. fez de sua literatura também um espaço de libertação, de amor livre. Em Aqueles Dois, conto que recebeu uma adaptação para o cinema em 1985, o escritor gaúcho conta a história do amor entre dois homens que não podem compreender o tamanho da beleza daquele sentimento mútuo. Outros dois contos ainda abordam essa temática. Terça-Feira Gorda e Sargento Garcia retratam igualmente o preconceito sofrido por homossexuais. Neste último, o autor relata a história da iniciação sexual de um jovem com um sargento do exército.
Caio Fernando Abreu ainda publicou outras importantes obras, entre peças de teatro, romances e contos. Os Dragões Não Conhecem o Paraíso, publicado em 1988, traz um conjunto de histórias de amor que mostram um escritor especialista em finais tristes, trágicos e surpreendentes. Dentre seus romances, estão Limite Branco, escrito aos 18 anos, e Onde Andará Dulce Veiga?. Este último, inclusive, levado recentemente para a telona.
Um estranho no ninho – Talvez parte do desprezo da crítica pela literatura de Caio Fernando Abreu seja pelo fato de o autor não se encaixar nos padrões literários da Academia. Como ele mesmo chegou a dizer, sua obra incorporava o chulo e o não literário, sendo influenciada bem mais por Cazuza e Rita Lee do que por Graciliano Ramos. Os holofotes dos meios acadêmicos e jornalísticos só começaram a se voltar para o escritor quando ele assumiu, publicamente, numa crônica para O Estado de S. Paulo, ser portador do HIV.
A opção pela urbanidade, com constantes referências às ruas do centro de São Paulo, a presença da solidão e de uma narrativa ansiosa e angustiada fizeram de Caio F. um estranho no ninho da tradição literária gaúcha. Misturando a cultura pop e o cotidiano dos personagens, o autor revela o mal-estar da vida, as dores, os desejos não atingidos e os amores frustrados num mundo que parece não ter sido feito sob medida para nós. A literatura de Caio Fernando Abreu desvenda minuciosamente os sentimentos, como uma biografia daqueles que a lêem.