É noite. Jurandir, auxiliar de serviços gerais, chega em casa depois de um dia de trabalho. Pretende jantar e ir dormir. Pois amanhã vai levantar cedo de novo para trabalhar. Já estão todos ao redor da mesa. A mulher, os dois filhos e o Jurandir. No centro, uma panela fumegante. Uma só.
- O que temos pra comer? – pergunta o marido.
Antes mesmo da resposta da mulher, vem o espanto do Jurandir ao destampar a panela.
- O quê?! Mas o que é isso? Arroz? Só arroz? Onde estão o feijão e a carne?!
- A comida tá muito cara, Jurandir. Esse mês nem deu pra comprar tudo. O dinheiro foi embora rapidinho.
- Mas essa situação já tá ficando insuportável. Aonde é que nós vamos parar desse jeito, meu Deus?!
- E eu é que sei, Jurandir?! Tá tudo subindo de preço. É a carne, o feijão, o óleo, o leite. Uma loucura. A Maria mesmo, aquela da casa da frente, me contou hoje que os meninos dela ficam brincando de caça ao feijão no almoço. Tá difícil pra todo mundo, amor.
- Pra todo mundo não! Vê se tá essa pindaíba na casa do meu patrão. Coisa nenhuma! O sujeito não faz nada nessa vida, num bate um prego numa barra de sabão. Só sabe explorar os outros. Agora vê só a gente. Se mata de trabalhar pra não ter dinheiro nem pra comer direito. Aquele aumento miserável no salário mínimo que o Lula deu não serviu pra nada. Um absurdo!
Quando o Jurandir calou-se, ficou suspensa no ar aquela já conhecida sensação de que “não estamos sozinhos”. Havia mais alguém na mesa além da família. Uma visitante bastante ingrata. Sim, era ela. A inflação! Que desgraçadamente come melhor do que todos nós.
O rápido silêncio foi quebrado pela mulher.
- Tudo bem. Vamos tentar relaxar e comer. Filho, liga a televisão que já deve tá na hora do jornal.
Assim que o menino ligou o aparelho, Jurandir se engasgou com um punhado de arroz. A manchete do jornal dizia: “Brasil bate recorde na produção de alimentos.”.
- Recorde?! E pra onde diabos vai essa comida toda que não chega na mesa do povo?! – indignou-se Jurandir.
- Vai pra fora do país, pai. – disse um dos meninos – O Brasil vende quase tudo pro estrangeiro e fica com o resto.
- Quem foi que te disse isso, menino? – quis saber a mãe.
- A professora. Ela disse que é por isso que a comida tá tão cara. E falou também que a culpa é de uma tal de multinacional.
O Jurandir mal se recuperara da engasgada quando o jornal pôs no ar o Lula falando sobre a inflação dos alimentos. “Isso tem uma razão: os pobres do mundo estão começando a comer mais.”.
Aí o jurandir não se aguentou:
- Agora danou-se tudo de vez! Quer dizer que a culpa é nossa?! A gente não come direito porque os preços estão altos. E quando come os preços sobem mais?! Que que é isso, meu Deus?! Sei não, hein! Tem alguma coisa errada nessa história. Mas por via das dúvidas vamos fazer o seguinte: parem de comer! Ninguém come mais!
- Mas, Jurandir, os meninos estão com fome. Precisam comer!
- Nada disso! Se a gente comer mais desse arroz, o preço vai subir e aí não vamos poder comprar nem mesmo o arroz. Ninguém toca nesses pratos!
- Jurandir! – revoltou-se a mulher – Mas o que é isso?! Ficou doido?! Deixe os meninos comerem!
Estavam numa encruzilhada.
- Tá. Tudo bem. Mas só alguns grãos, hein!
Depois de algum tempo, a mulher se levantou pra ir até a cozinha. E de lá mesmo perguntou, suspirando:
- Ai, meu amor. Será que vamos voltar a comer carne de novo algum dia?
Não houve resposta. Quando voltou da cozinha, encontrou o Jurandir olhando de maneira esquisita pros meninos. E o pior: estava apertando a perna de um e a costela de outro, com jeito de quem verifica as provisões.