expediente |
|
Carlos de Gusmão
Professor da UFAL -Univeersidade Federal de Alagoas. Doutor em Teoria
da comunicação pela UNISINOS -Universidade do Vale do Rio
dos Sinos
Resumo:
Propomos-nos neste trabalho a refletir a questão das relações
entre mídia, comunicação e sociedade. Analisamos
essa questão a partir de pressupostos lógicos de diferenciação/indiferenciação
entre comunicação, mídia e sociedade, que propomos
como subjacentes à questão proposta. Pretendemos como isso
realizar uma ultrapassagem epistemológica e teorica da concepção
instrumental, presente nas teorias da comunicação, a partir
de contribuições da teoria dos sistemas autopoiéticos,
de Niklas Luhmann.
Palavras-chave:
Atualmente, a comunicação midiática surge como uma
das características mais importantes do modo de ser da sociedade
contemporânea. Ante essa importância formulamos questões
sobre a legitimidade do poder dos meios, quando então enfrentamos
dificuldades em conceituar, no âmbito teórico da comunicação,
a natureza geral das relações entre mídia e sociedade.
Comumente, partimos do pressuposto de uma determinação causal
dos processos de produção de sentido da mídia ”sobre
a sociedade”, ou vice versa, na construção social
da realidade pela mídia, enunciado comumente aceito pela comunidade
acadêmica. O problema epistemológico de conceituação
desse processo decorre do fato de que todo sentido produzido pela mídia
é em última instância produzido pela e na própria
sociedade.
Utilizando uma perspectiva sistêmica autopoiética, a questão
pode ser equacionada, em principio, na forma da relação
da parte (sistema da mídia) com o todo (sistema total da sociedade)
que a contém. Dessa forma temos que dispor de um conceito que se
refira a uma distinção específica capaz de permitir
conceituar a relação - a determinação ou inter-determinação
causal - entre mídia e sociedade. Gomes (2004), numa perspectiva
de campo, levanta essa questão quando se pergunta sobre a possibilidade
da construção de ”um principio de inteligibilidade
que o contra-distinga (o campo midiático) dos demais (campos)”
(p. 20). Numa mesma perspectiva, Braga (2004) reflete, em seus estudos
sobre interfaces, a questão do ”desentranhamento” do
objeto do campo de estudo da comunicação, em relação
às interfaces desse objeto, que implicam conceituações
oriundas de outros campos da ciência.
Partindo do pressuposto de um consenso de que somos ”um campo em
construção” (BRAGA, 2004, p.1), entende a prática
de pesquisa como o caminho indicado para essa construção.
Abdicaríamos assim de qualquer definição de caráter
lógico-teórico a priori para o campo para construí-lo
a partir dos resultados da pesquisa do campo, nos problemas e questões
relevantes que explicitassem o que há de comunicacional nos questionamentos
realizados. Ficaria a cargo do pesquisador a busca desse comunicacional,
no objeto construído em interface. A referência orientadora
desse processo, isto é, o que se definiria a priori como horizonte
de busca seria, por consenso entre os pesquisadores, a mídia e
seus processos.
Essa evidência consensual, pode entretanto ser problematizada, do
ponto de vista epistemológico: nada garante que, como evidência,
não exprima em si mesma uma questão epistemológica.
E, da mesma forma, a questão não permita, se observada de
um novo ângulo, ”ver” processos imperceptíveis
às perspectivas teóricas que ela sustenta. Nosso objetivo,
portanto, é tentar essa nova visada na questão, utilizando
para isto as bases epistemológicas da teoria dos sistemas autopoiéticos,
de Niklas Luhmann.
Tomamos então como referência inicial da questão o
conceito sistêmico de sociedade, como o sistema que abrange a totalidade
dos sistemas sociais. Nessa perspectiva, a mídia não está
fora da sociedade - não há um sistema social (no caso a
mídia) como meio do sistema da sociedade, já que este sistema
por definição engloba tudo o que é social. Entende-se
aqui sistemas sociais como sistemas de sentido. Nesse caso, estamos falando
de um sistema de sentido que, como parte do social, se distingue do sistema
de sentido da sociedade que o contém. Se concebida como um sistema
de produção de sentido social na sociedade, a mídia
não pode ser entendida em função de uma ”referência
a si mesma”, ou auto-referência. Nesse caso, a referência
ao processo social ”não comunicacional” na constituição
do objeto não pode ser ”expurgada” até que se
possa conceituá-la no âmbito dos processos midiáticos
em sua completude (função) social. Se nos referimos à
problemática da ”construção da realidade pela
mídia” temos que nos referir a algo que ultrapassa sua auto-referencialidade,
envolvendo a sociedade de alguma forma. É exatamente aí
que a perspectiva sistêmica de Luhmann propõe um duplo sentido
para a realidade produzida pelos meios de comunicação. Num
primeiro plano de observação a realidade construída
pela mídia deve ser vista como operações ”reais”,
como a captação, a edição, a transmissão.
Essas operações podem ser identificadas à base tecnológica
que as permitem. São designadas assim de operações
auto-referenciais. Mas ao operar auto-referencialmente, a mídia
simultaneamente refere-se (hetero-refere-se) a uma outra realidade: aquela
que ela constrói tendo como referência um acordo com os receptores
sobre a realidade que está construindo e que eles irão entender
como tal. Na produção de um tele-jornal as operações
”técnicas” realizadas são auto-referenciais
- dizem respeito ao modo como a televisão opera como um médium
específico, mesmo se considerarmos certo período de tempo.
Todas as variações podem ser previstas no âmbito de
seus processos de base tecnológica. No entanto, a depender do tema
em voga (um acordo
sobre uma determinada temática, com os receptores) a realidade
comunicada pode variar. Essa variação temática consiste
nas operações que se referem ao meio observado pela mídia,
que assim produz uma realidade - a comunicada efetivamente, portanto de
acordo com os receptores que a consomem.
Dessa maneira, ela constrói, autopoiéticamente , (na medida
em que auto e hetero-referência são operações
da mídia), uma realidade que se refere tanto às suas próprias
operações (auto-referência) e ao mesmo tempo tematiza
tendo como referência (hetero-referência) uma realidade distinta
de si mesma (a política, a educação, a economia etc...do
meio). Por principio teórico autopoiético tanto as operações
auto-referenciais como as hetero-referenciais são produzidas utilizando
elementos da própria mídia.
Nesse caso, ao operar autopoiéticamente, a mídia só
pode fazê-lo comunicando permanentemente uma distinção
(autoproduzida) entre si mesma e algo distinta de si mesma. Estruturalmente,
ela opera auto e hetero-referencialmente. Daí a dificuldade de
distinguir, na comunicação da mídia, o que se refere
à sua realidade ”real” (suas operações
de base tecnológica - ou o seu modo tecnológico de produzir
realidade) e o que se refere ao meio (as hetero-referências temáticas),
na realidade comunicada. Se a realidade ”social” é
construida autopoiéticamente pela mídia, as interfaces só
podem ser conceituadas autopoiéticamente, quer dizer, no sentido
de que são sempre realidades construídas pela própria
mídia.
Dessa forma não podem ser ”expurgadas” historicamente
do objeto. Antes, deverão ser conceituadas como realidades próprias
da mídia ( a serem conceituadas dessa forma no ”objeto”-
no sistema). Temos assim a definição da mídia como
um sistema que é a ”forma da diferença entre si mesmo
e o meio”, segundo Luhmann. Isso decorre do fato de que não
podemos definir autopoiéticamente um sistema sem se referir a um
meio. Não há um auto sem um hetero - não pode haver
um fechamento operacional sem que devamos nos referir ao meio perante
o qual se dá esse fechamento. Não há, portanto um
objeto sem interface, se tenta conceituar as relações entre
mídia e sociedade.
Da mesma forma, numa outra perspectiva, não podemos falar da constituição
de um ”campo autônomo” da mídia sem que tenhamos
que defini-lo em referência aos campos sociais perante os quais
consideramos essa autonomia. O subjacente espacial do conceito de campo
impede, entretanto de conceituar o campo social (a interface) como ”parte”
do campo midiático - daí o pressuposto da necessidade lógica
de um ”desentranhamento” do objeto do campo. Em nossa concepção,
”objeto” refere-se à sistema e às suas operações
autopoiéticas de observação e construção
da realidade. O objeto se define assim a partir de uma diferença
- um conceito diferencial, para Luhmann. Esse conceito exprime, mais uma
vez, uma distinção ”estrutural” no ”objeto”
como um sistema que opera (comunica) utilizando uma distinção
entre auto e hetero-referência.
Dessa forma a mídia não pode comunicar a ”verdade”,
mas construir uma realidade própria, caracterizada por sua base
tecnológica, que produz um receptor abstrato, e que devido a isto
demanda uma mensagem específica. Essa mensagem, por outro lado,
deve ser adequada às temáticas do acordo com o receptor.
Essas temáticas são assim territórios de sentidos
compartilhados pela mídia e receptores, mas que não definem
questões de ”verdade”. São apenas referências
gerais utilizadas para um ”acordo de sentido” entre sistemas
autopoiéticos. Elas são o que liga a mídia e os receptores
a ela acoplados, como numa cumplicidade da produção de sentido.
A questão das interfaces pode retornar agora sob um outro prisma.
Quando construímos um objeto de pesquisa, estamos de fato observando
- distinguindo, para isso, entre a auto-referencia (o modo próprio
de operar da ciência, de construir sua realidade como conhecimento)
e hetero-referência (a referência à observação
da mídia). Se a mídia observa como sistema (também)
distinguindo entre auto e hetero-referência, a teoria tem como ”objeto”
um sistema que deve ser observado como observador. Para isso ele deve:
a) se distinguir do meio observado e b) ser conceituado, em função
disso, ou como uma ”forma de uma diferença entre sistema
e meio” (Luhmann). Essa conceituação diz respeito
ao fato de que o sistema só pode ser definido em sua função
de observador, e para observar tem que ”estruturalmente” distinguir-se
auto e hetero-referencialmente . Nesse caso a teoria, como um sistema
cognitivo, observa a observação da mídia. Ou mais
propriamente, observa como a mídia observa o meio e assim constrói
a sua realidade comunicada. A diferença está no código
que identifica cada sistema - na mídia é o verdadeiro/não
verdadeiro segundo experimentação e na mídia é
o informável/não informável segundo acordo com os
receptores.
O novo ângulo que permite uma ruptura epistemológica com
o modo anterior de ”ver” as relações entre mídia
e sociedade, refere-se a esta observação da observação.
Isso traz um novo ângulo epistemológico que deveremos tentar
explicar aqui da forma mais simples possível. Para se observar
é necessário uma distinção, como a distinção
que permite, na ciência social, distinguir entre sujeito e objeto,
embora possamos dizer contra isso que o sujeito é descrito na descrição
do ”objeto”. Nesse caso, a distinção proposta
inicialmente para que se ”veja” o objeto é copiada
pelo sistema de forma que se transforma num ”modo de ver”,
ou num ”método” pelo qual sempre torna possível
construirmos um ”objeto” social. Quando descrevemos o social
no social, utilizamos esse ”truque de método” que faz
supor que o investigador que comunica a teoria não descreve a si
próprio no ”objeto” comunicação. Isso
porque ele não dispõe - a não ser como um artifício
- de um conceito capaz de aclarar o que distingue/identifica sua comunicação
e a comunicação investigada, a não ser como um modo
específico de comunicar, que não aclara per si a questão.
Nesse caso, a distinção não pode ser conceituada
- não pode ser conhecida. Ela é em si uma diferença
que permite que o sistema construa sentidos próprios e assim mantenha
seus limites sistêmico-funcionais. Essa distinção-fronteira
constitui assim condição do observar. Se partirmos dessa
premissa teórica, temos que a mídia observa sua interface
utilizando uma distinção que se expressa no objeto como
a distinção entre auto e hetero-referência - o midiático
em si (ex: a Mídia ...) e a hetero-referência (... e Política).
Mas o comunicacional e sua interface constituem uma só realidade,
na perspectiva autopoiética.
Nesse caso, a impossibilidade de se conceituar as relações
entre mídia e sociedade a partir de uma referência ontológica
de sentido é resolvida pelo fato de que epistemologicamente ”prestamos
conta” disso, aceitando essa impossibilidade. Em troca propomo-los
a conhecer o como os sistemas sociais processam sentido e constroem sua
realidade. Quando falamos em ”construção social da
realidade pela mídia” estamos falando na construção
da realidade social nas operações da mídia. Isso
significaria ter que compreender ainda as relações de inter-determinações
dos modos de produção de sentido da mídia e da sociedade,
o que nos leva mais adiante
Quando construímos nossos objetos de pesquisa em interface com
outros processos (sistemas) sociais e assim os nomeamos, estamos nos referindo
ao fato de que a mídia, como sistema, possui uma especificidade
que é a de operar como auto-observação da sociedade.
Todo objeto constituído em interface expressa essa especificidade
da comunicação - no caso da comunicação midiática
em seu modo próprio de auto-observação da sociedade.
Essa especificidade da sua função de auto-observação
da sociedade registra no objeto do campo a impossibilidade constitutiva
de restrições quanto aos processos ”não comunicacionais”
envolvidos nas interfaces. Isso pode ser mostrado quando percebemos que
o horizonte histórico de constituição do campo, pela
via dos esforços da pesquisa, se abre a indefinidas possibilidades
de combinações entre a referência ao comunicacional
e as hetero-referências aos processos ditos sociais, cuja multiplicidade
é diretamente proporcional à importância da referência
ao comunicacional midiático, na verdade.
Com, isso se reabre a questão das relações entre
comunicação e sociedade. A diferenciação autopoiética
do sistema da mídia na sociedade subtende, no conceito de acoplamento
estrutural, uma relação ordenada por uma diferença.
Por outro lado, essa diferenciação que persiste no objeto
promove, por outro lado, uma problemática que é a da indistinção
entre comunicação e sociedade. À medida que a importância
da mídia emerge com relação ao modo de ser da sociedade
atual; à medida que mídia é estudada em relação
a processos sociais os mais diversos, se intui um nexo entre a comunicação
midiática e o modo de ser da sociedade atual. Mas exatamente como,
ao modo da diferenciação autopoiética, pode se explicar
esse nexo? Onde a hetero-referência ao social deixa de ser social?
O problema epistemológico aí é que a diferenciação
entre mídia e sociedade resulta numa diferenciação
do social (sistema da mídia) do próprio social (sociedade).
É dessa forma que uma estranhamento perpassa algumas teorias na
percepção da emergência e desenvolvimento da comunicação
midiática na sociedade contemporânea. É também
dessa forma que podem ver a multiplicidade de objetos construídos
”em interface”, que apesar de anunciarem um horizonte de indistinção
entre comunicação midiática e sociedade o fazem,
paradoxalmente, persistindo numa dicotomização entre o midiático
e outros processos sociais que a hetero-referência por si só
não explica.
Temos, por um lado que a realidade comunicada pela mídia refere-se
(hetero-refere-se) social sem que, no entanto, devido a sua autopoiésis,
seja de nenhum modo igual ao social referido. Os meios de comunicação
de massa são uma manifestação da complexidade evolutiva
da sociedade e constituem uma galáxia de comunicação,
diferenciada por seu código próprio e, nesse sentido, distinta
de qualquer outro sistema de comunicação, conforme explicita
Javier Torres Nafarrate,
”... aunque a la mirada habitual le parezca que los temas que tratan
los medios de masas son transportados de la política, la economía,
el arte, sin embargo, lo que sucede es que los mass media transforman
esos temas de manera peculiar. Es precisamente ese procesamiento y reprocesamiento
de temas venidos de otros confines, lo que acaba por constituir el universo
específico - clausurado en su operación - , de los medios
de comunicación de masas. Dicho de manera más drástica
(con la esperanza de que el lector pormenorice con la lectura minuciosa
del libro): Ni la información ni la representación que se
hace en los medios sobre el arte, es arte; ni la información ni
la representación sobre la ciencia, es ciencia; ni la información
ni la representación sobre política, es política
...” (LUHMANN, 2000, In memorian, p. XX)
Por outro lado, essa diferenciação se dá na sociedade,
já vimos. A indistinção entre mídia e sociedade
é definida claramente na mesma teoria sistêmica autopoiética.
No dizer de Luhmann,
La sociedad es el concepto social más amplio, incluye todo lo
social, y por conseguiente, no conoce ningún entorno social. Si
se agregan factores sociales, si surgen interlocutores o temas de comunicación
novedosos, la sociedad cresce, pues esos factores arraigan en la sociedad,
no pueden ser externalizados ni tratarse como una cosa de un entorno,
ya que todo lo que es comunicación es sociedad. (LUHMANN, 1993,
p. 15)
Se o esforço de pesquisa que permite reconhecer um horizonte de
indistinção entre mídia e sociedade aponta, por outro
lado uma dicotomia constitutiva nos objetos; se sistemicamente dispomos
de um conceito de comunicação igual a sociedade também
dispomos de um que diferencia sistema social e sociedade. Como organizar
essa questão? Qual o seu centro problemático? Temos apenas
que ele se refere a uma diferenciação entre a parte e o
todo que a contém. Isso sem dúvida traz um paradoxo representado
pelo fato de que estamos falando de produção social de sentido
e a diferenciação problemática entre parte e todo
deve referir-se a suas funções de produção
de sentido. Seria essa diferenciação funcional na relação
entre a parte e o todo que a contém a causa do estranhamento lógico
que engendra teoricamente uma distinção entre social e social
e assim a concepção instrumental da mídia? Seria
essa concepção a matriz epistemológica da dificuldade
em se conceituar adequadamente a natureza da relação entre
mídia e sociedade? Nesse caso, deveremos buscar na história
da teoria a gênese do problema.
Matellart (2000) define, em sua ”História das teorias da
comunicação” a peça introdutória do
”dispositivo conceitual” da Mass Communication Research como
a obra de Lasswell, Propaganda techniques in the World War, de 1927. A
corrente da Mass Communication Research opõe-se à micro
sociologia da comunicação da Escola de Chicago e apresenta
uma visão instrumental que ”consagra uma representação
da onipotência da mídia, considerada ferramenta de circulação
eficaz de símbolos” (p.37). O conceito de ”agulha hipodérmica”
formulado por Lasswell exprime essa concepção. Numa outra
obra , de Serge Tchakhotine, de 1939, ela é reforçada no
título: ”A violação das massas pela propaganda
política”.
A corrente de estudos dos efeitos evoluiu no sentido de corrigir alguns
postulados mais radicais. O relatório do Payne Fund (1933) produz
alguns questionamentos da base teórica de Lasswell, mas essas correções
na alteram a concepção em si, que é reforçada
pelas pesquisas quantitativas de Lazarsfeld. Nas décadas de 40
e 50 surge uma inovação teórica, na
”descoberta de um elemento intermediário entre o ponto
inicial e o ponto final do processo da comunicação. El
poria em questão o principio mecanicista lasswelliano do efeito
direto e indiferenciado e, alem disso, o argumento tautológico
do ”efeito massificador” da sociedade de massa” (MATELLART,
2000. p. 47).
A nova teoria, do two step flow, gradua o impacto dos efeitos, mas também
não significa nenhuma mudança em profundidade na concepção
instrumental. É conclusiva, portanto a colocação
de Matellart sobre o fato de que,
”Fundada inicialmente numa crença na onipotência da
mídia, a Mass Communication Research na seqüência não
cessará de relativizar seus efeitos sobre os receptores, mas jamais
voltará a por em questão a visão instrumental que
presidiu ao nascimento da teoria lasswelliana (Gitlin, 1979; Piemme, 1980,
Beaud, 1984). (MATELLART, 2000, p. 55).
Como contraponto radical à corrente da Comunicação
Administrativa da Mass Communication Research, que via na mídia
um instrumento de aperfeiçoamento da sociedade ”já
pronta”, os estudos críticos refletem a mídia como
instrumento de poder e dominação. Mas Hans Magnus Enzensberger
levanta a questão do caráter instrumental da mídia
quando afirma que a esquerda não possuía uma teoria que
respaldasse a posição revolucionária na apropriação
da condição de ”troca democrática” inerente
á mídia. Uma concepção crítica atual
, que merece atenção pelo fato de ser considerada eventualmente
como ultrapassagem da perspectiva instrumental, é apresentada por
Muniz Sodré (2002), na sua ”Antropológica do Espelho”.
Em Sodré (2002) a referência à distinção
entre mídia e sociedade se dá na concepção
de um bios midiático, em que a instrumentalidade da mídia
coincide com o conceito representativo de uma nova forma de ser da sociedade.
A apropriação instrumental é definida no conceito
de bios midiático como uma afetação da vida por uma
qualificação de natureza informacional que de resto não
seria apenas uma neutra ”tecnologia da inteligência”,
mas algo ”a serviço da lei estrutural do valor, o capital,
e que constitui propriamente uma nova tecnologia societal.” (p.22).
136
Nesse caso a concepção instrumental ultrapassa a idéia
de meio e veicula-se à articulação hegemônica
do sistema produtivo e mídia na configuração de um
novo bios - uma nova sociedade. Mas se a indistinção entre
comunicação e sociedade - e isso está proposto pelo
conceito de ambiência - tem como pressuposta a distinção
entre comunicação (mediada) e sociedade (midiatizada), chega-se
à conclusão então estamos falando de duas sociedades.
Uma seria a sociedade mediatizada e a outra seria a sociedade não
mediatizada (as sociedades ”originárias”, puras, do
que deriva a idéia de artificialidade do bios midiático,
na percepção crítica que o engendra).
Isso porque qualquer conceito que expresse a idéia de incompletude
do processo, seja pelo pressuposto de uma distinção irreversível
entre dois sistemas autopoiéticos que se definem um em função
do outro, como forma de uma distinção entre sistema e meios
ambiente, seja pela impossibilidade de aclarar sobre a redutibilidade
de uma lógica comunicacional (que deve continuar existindo nos
níveis não tecno-interacionais das interações
sociais) à lógica midiática (nas tecno-interações)
põe em risco o conceito de ambiência. Enfim, o conceito de
bios pressupõe uma completude, mas, ao mesmo tempo, ele só
se sustenta a partir do pressuposto da existência (mesmo ideal)
de uma ”outra” sociedade de referência ”antropológica”.
A perda dessa referência desmonta o conceito. A concepção
instrumental subjacente se revela então pela necessidade de manutenção
desse sentido de originariedade perdida, de uma sociedade ”ideal”
stand by. É essa diferenciação que permite o conceito
se manter e nesse caso é ela que define a concepção
instrumental subjacente a ele. A eficácia crítica do conceito
decorre dessa distinção.
Se entendida como constitutiva da sociedade - como ”operação
básica da sociedade” (Luhmann) e do ponto de vista sistêmico
indistinto dela -, a comunicação não se presta a
uma concepção instrumental. Do ponto de vista sistêmico,
essa distinção entre comunicação e sociedade
é inaceitável: todos os processos (operações)
de produção de sentido na sociedade se realizam na própria
sociedade. O conceito de sociedade (como a totalidade dos sistemas sociais)
não pode referir-se como conceito a um conceito de entorno social.
Ou por outra, a sociedade não possui nenhum entorno social. Dessa
forma, não podemos conceituar a comunicação socia
como um sistema diferenciado da sociedade. Do ponto de vista sistêmico,
sociedade e comunicação são a mesma coisa.
Nesse caso, aquelas relações (ditas de efeito) devem ser
entendidas como da sociedade em relação à sociedade.
Trata-se de uma outra referência que permite, finalmente a ultrapassagem
da perspectiva instrumental : a mídia é uma diferenciação
na comunicação da sociedade, como um sistema que opera/observa
distinguindo entre si mesmo e seu entorno. Nesse caso o entorno considerado
- a sociedade - é indistinta de comunicação e também
nesse caso a diferença é entre sociedade (sistema social
midiático) e sociedade (sistema de comunicação interpessoal),
onde a diferenciação funcional refere-se aos modos distintos
da comunicação da sociedade, embora nada impeça que
a mídia se refira a mídia. A conseqüência da
indistinção entre mídia/comunicação
e sociedade significa que, se com a comunicação a sociedade
observa a sociedade, então a mídia observa a comunicação
e vice versa. Dessa forma, a mídia (tanto quanto a comunicação)
opera a auto-observação da sociedade.
Nesse caso, a diferenciação da comunicação
da sociedade (a mídia) cria uma nova forma de auto-observação
que se defronta funcionalmente com as formas mais tradicionais de auto-observação
(da comunicação). Quer dizer, a auto-observação
através da oralidade é diferenciada da auto-observação
através da escrita. Entre ambas, então, pode-se falar em
diferenciações funcionais. O foco, portanto, da questão
que envolve o surgimento da mídia (e a midiatização)
se transfere, nessa perspectiva, da mídia (de uma concepção
positiva de sistema midiático) para aquela teoria (conceito) diferencial,
ou uma concepção de sistema como a forma de uma diferença
entre si mesmo e entorno. De fato, na própria nomeação
do conceito de midiatização está implicada uma relação,
que deve ser compreendida agora como uma relação que define
cada sistema especificado - comunicação ou mídia.
Decorre daí que a comunicação como um sistema cuja
função é a de auto-observação da própria
sociedade não pode ser conceituada como distinta da sociedade,
no sentido que permita uma concepção instrumental nessa
conceituação. Esclarecendo: não sobrevive aqui uma
concepção instrumental da sociedade com a mídia (fundamento
implícito naquelas teorias críticas e administrativas).
Entretanto, na
138
medida em que há uma diferenciação funcional entre
comunicação e mídia, coloca-se, nessas relações,
uma problemática instrumental. A dimensão instrumental,
porém, está relacionada à ação, ultrapassada
pela interação, em que as partes em jogo e suas relações
transformam-se mutuamente. Na perspectiva de Luhmann, a ultrapassagem
do instrumental se revela nos processos autopoiéticos.
Dessa forma, os sistemas diferenciados não implicam em romper com
o princípio teórico da indiferenciação de
comunicação e sociedade. Somente assim é possível
pensar em midiatização, como um processo em que nas relações
entre comunicação e mídia, se instalam novos processos
de comunicação que refundam a sociedade. O fato de que a
diferenciação funcional da comunicação da
sociedade produz um sistema específico e de natureza autopoiética
- a mídia - não implica que a comunicação
da sociedade se interrompa, entretanto. Por princípio sistêmico,
a sociedade comunica e isso define no conceito de sociedade, o conceito
de comunicação. A questão a qual Luhmann nos lança,
e que pretendemos colocar em discussão, diz respeito à pergunta:
seria a diferenciação e complexificação da
sociedade contemporânea reflexo dessa diferenciação
nas operações básicas da sociedade?
Bibliografia
BRAGA, José Luiz et alli. Campo da comunicação: caracterização,
problematizações e perspectivas. Antonio Fausto Neto, José
Luis Aidar Prado, Sérgio Dayrel Porto (organizadores). João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. 120 p.
______. Os estudos de interface como espaço de construção
do Campo da Comunicação. Texto apresentado no GT Epistemologia
da Comunicação, para a XIII Compós, 2004.
______. Sobre ”mediatização” como processo interacional
de referência. In: 15 Encontro Anual da Compós. 2006, Baurú
- SP. Anais do XV Encontro Anual da Compós - Associação
Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação,
2006.V.1. p. 1-16.
GOMES, Pedro G. Os processos midiáticos como objeto de estudo.
In: Tópicos da teoria da Comunicação. São
Leopoldo: Unisinos, 2004. p.18-33.
139
LUHMANN, Niklas. A nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Universidade/UFRGS,
Goethe Institut/ ICBA,1997.
______. La realidad de los medios de masas: Pról. Y trad. De Javier
Torres Nafarrate. Rubi. (Barcelona): Anthropos Editorial: México
: Universidad Iberoamericana, 2000
______. A realidade dos meios de comunicação. Trad. Ciro
Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005.
LUHMANN, L. DE GEORGI, R. Teoria de la sociedad. Guadalajara: Universidad
de Guadalajara, 1993.
MATTELART, Armand e Michèle. História das teorias da comunicação.
Trad. Luis Paulo Ruanet. São Paulo: Edições Loyola,
2000.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho; uma teoria da comunicação
linear e em rede. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002a.
|