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_vol 1 n. 2 - janeiro/junho de 2008

 

           

A questão do objeto da Comunicação: contribuições da perspectiva sistêmica de Niklas Luhmann para a análise das relações entre mídia, comunicação e sociedade

expediente  


Carlos de Gusmão

Professor da UFAL -Univeersidade Federal de Alagoas. Doutor em Teoria da comunicação pela UNISINOS -Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Resumo:
Propomos-nos neste trabalho a refletir a questão das relações entre mídia, comunicação e sociedade. Analisamos essa questão a partir de pressupostos lógicos de diferenciação/indiferenciação entre comunicação, mídia e sociedade, que propomos como subjacentes à questão proposta. Pretendemos como isso realizar uma ultrapassagem epistemológica e teorica da concepção instrumental, presente nas teorias da comunicação, a partir de contribuições da teoria dos sistemas autopoiéticos, de Niklas Luhmann.

Palavras-chave:


Atualmente, a comunicação midiática surge como uma das características mais importantes do modo de ser da sociedade contemporânea. Ante essa importância formulamos questões sobre a legitimidade do poder dos meios, quando então enfrentamos dificuldades em conceituar, no âmbito teórico da comunicação, a natureza geral das relações entre mídia e sociedade. Comumente, partimos do pressuposto de uma determinação causal dos processos de produção de sentido da mídia ”sobre a sociedade”, ou vice versa, na construção social da realidade pela mídia, enunciado comumente aceito pela comunidade acadêmica. O problema epistemológico de conceituação desse processo decorre do fato de que todo sentido produzido pela mídia é em última instância produzido pela e na própria sociedade.
Utilizando uma perspectiva sistêmica autopoiética, a questão pode ser equacionada, em principio, na forma da relação da parte (sistema da mídia) com o todo (sistema total da sociedade) que a contém. Dessa forma temos que dispor de um conceito que se refira a uma distinção específica capaz de permitir conceituar a relação - a determinação ou inter-determinação causal - entre mídia e sociedade. Gomes (2004), numa perspectiva de campo, levanta essa questão quando se pergunta sobre a possibilidade da construção de ”um principio de inteligibilidade que o contra-distinga (o campo midiático) dos demais (campos)” (p. 20). Numa mesma perspectiva, Braga (2004) reflete, em seus estudos sobre interfaces, a questão do ”desentranhamento” do objeto do campo de estudo da comunicação, em relação às interfaces desse objeto, que implicam conceituações oriundas de outros campos da ciência.
Partindo do pressuposto de um consenso de que somos ”um campo em construção” (BRAGA, 2004, p.1), entende a prática de pesquisa como o caminho indicado para essa construção. Abdicaríamos assim de qualquer definição de caráter lógico-teórico a priori para o campo para construí-lo a partir dos resultados da pesquisa do campo, nos problemas e questões relevantes que explicitassem o que há de comunicacional nos questionamentos realizados. Ficaria a cargo do pesquisador a busca desse comunicacional, no objeto construído em interface. A referência orientadora desse processo, isto é, o que se definiria a priori como horizonte de busca seria, por consenso entre os pesquisadores, a mídia e seus processos.

Essa evidência consensual, pode entretanto ser problematizada, do ponto de vista epistemológico: nada garante que, como evidência, não exprima em si mesma uma questão epistemológica. E, da mesma forma, a questão não permita, se observada de um novo ângulo, ”ver” processos imperceptíveis às perspectivas teóricas que ela sustenta. Nosso objetivo, portanto, é tentar essa nova visada na questão, utilizando para isto as bases epistemológicas da teoria dos sistemas autopoiéticos, de Niklas Luhmann.
Tomamos então como referência inicial da questão o conceito sistêmico de sociedade, como o sistema que abrange a totalidade dos sistemas sociais. Nessa perspectiva, a mídia não está fora da sociedade - não há um sistema social (no caso a mídia) como meio do sistema da sociedade, já que este sistema por definição engloba tudo o que é social. Entende-se aqui sistemas sociais como sistemas de sentido. Nesse caso, estamos falando de um sistema de sentido que, como parte do social, se distingue do sistema de sentido da sociedade que o contém. Se concebida como um sistema de produção de sentido social na sociedade, a mídia não pode ser entendida em função de uma ”referência a si mesma”, ou auto-referência. Nesse caso, a referência ao processo social ”não comunicacional” na constituição do objeto não pode ser ”expurgada” até que se possa conceituá-la no âmbito dos processos midiáticos em sua completude (função) social. Se nos referimos à problemática da ”construção da realidade pela mídia” temos que nos referir a algo que ultrapassa sua auto-referencialidade, envolvendo a sociedade de alguma forma. É exatamente aí que a perspectiva sistêmica de Luhmann propõe um duplo sentido para a realidade produzida pelos meios de comunicação. Num primeiro plano de observação a realidade construída pela mídia deve ser vista como operações ”reais”, como a captação, a edição, a transmissão. Essas operações podem ser identificadas à base tecnológica que as permitem. São designadas assim de operações auto-referenciais. Mas ao operar auto-referencialmente, a mídia simultaneamente refere-se (hetero-refere-se) a uma outra realidade: aquela que ela constrói tendo como referência um acordo com os receptores sobre a realidade que está construindo e que eles irão entender como tal. Na produção de um tele-jornal as operações ”técnicas” realizadas são auto-referenciais - dizem respeito ao modo como a televisão opera como um médium específico, mesmo se considerarmos certo período de tempo. Todas as variações podem ser previstas no âmbito de seus processos de base tecnológica. No entanto, a depender do tema em voga (um acordo
sobre uma determinada temática, com os receptores) a realidade comunicada pode variar. Essa variação temática consiste nas operações que se referem ao meio observado pela mídia, que assim produz uma realidade - a comunicada efetivamente, portanto de acordo com os receptores que a consomem.
Dessa maneira, ela constrói, autopoiéticamente , (na medida em que auto e hetero-referência são operações da mídia), uma realidade que se refere tanto às suas próprias operações (auto-referência) e ao mesmo tempo tematiza tendo como referência (hetero-referência) uma realidade distinta de si mesma (a política, a educação, a economia etc...do meio). Por principio teórico autopoiético tanto as operações auto-referenciais como as hetero-referenciais são produzidas utilizando elementos da própria mídia.
Nesse caso, ao operar autopoiéticamente, a mídia só pode fazê-lo comunicando permanentemente uma distinção (autoproduzida) entre si mesma e algo distinta de si mesma. Estruturalmente, ela opera auto e hetero-referencialmente. Daí a dificuldade de distinguir, na comunicação da mídia, o que se refere à sua realidade ”real” (suas operações de base tecnológica - ou o seu modo tecnológico de produzir realidade) e o que se refere ao meio (as hetero-referências temáticas), na realidade comunicada. Se a realidade ”social” é construida autopoiéticamente pela mídia, as interfaces só podem ser conceituadas autopoiéticamente, quer dizer, no sentido de que são sempre realidades construídas pela própria mídia.
Dessa forma não podem ser ”expurgadas” historicamente do objeto. Antes, deverão ser conceituadas como realidades próprias da mídia ( a serem conceituadas dessa forma no ”objeto”- no sistema). Temos assim a definição da mídia como um sistema que é a ”forma da diferença entre si mesmo e o meio”, segundo Luhmann. Isso decorre do fato de que não podemos definir autopoiéticamente um sistema sem se referir a um meio. Não há um auto sem um hetero - não pode haver um fechamento operacional sem que devamos nos referir ao meio perante o qual se dá esse fechamento. Não há, portanto um objeto sem interface, se tenta conceituar as relações entre mídia e sociedade.
Da mesma forma, numa outra perspectiva, não podemos falar da constituição de um ”campo autônomo” da mídia sem que tenhamos que defini-lo em referência aos campos sociais perante os quais

consideramos essa autonomia. O subjacente espacial do conceito de campo impede, entretanto de conceituar o campo social (a interface) como ”parte” do campo midiático - daí o pressuposto da necessidade lógica de um ”desentranhamento” do objeto do campo. Em nossa concepção, ”objeto” refere-se à sistema e às suas operações autopoiéticas de observação e construção da realidade. O objeto se define assim a partir de uma diferença - um conceito diferencial, para Luhmann. Esse conceito exprime, mais uma vez, uma distinção ”estrutural” no ”objeto” como um sistema que opera (comunica) utilizando uma distinção entre auto e hetero-referência.
Dessa forma a mídia não pode comunicar a ”verdade”, mas construir uma realidade própria, caracterizada por sua base tecnológica, que produz um receptor abstrato, e que devido a isto demanda uma mensagem específica. Essa mensagem, por outro lado, deve ser adequada às temáticas do acordo com o receptor. Essas temáticas são assim territórios de sentidos compartilhados pela mídia e receptores, mas que não definem questões de ”verdade”. São apenas referências gerais utilizadas para um ”acordo de sentido” entre sistemas autopoiéticos. Elas são o que liga a mídia e os receptores a ela acoplados, como numa cumplicidade da produção de sentido.
A questão das interfaces pode retornar agora sob um outro prisma. Quando construímos um objeto de pesquisa, estamos de fato observando - distinguindo, para isso, entre a auto-referencia (o modo próprio de operar da ciência, de construir sua realidade como conhecimento) e hetero-referência (a referência à observação da mídia). Se a mídia observa como sistema (também) distinguindo entre auto e hetero-referência, a teoria tem como ”objeto” um sistema que deve ser observado como observador. Para isso ele deve: a) se distinguir do meio observado e b) ser conceituado, em função disso, ou como uma ”forma de uma diferença entre sistema e meio” (Luhmann). Essa conceituação diz respeito ao fato de que o sistema só pode ser definido em sua função de observador, e para observar tem que ”estruturalmente” distinguir-se auto e hetero-referencialmente . Nesse caso a teoria, como um sistema cognitivo, observa a observação da mídia. Ou mais propriamente, observa como a mídia observa o meio e assim constrói a sua realidade comunicada. A diferença está no código que identifica cada sistema - na mídia é o verdadeiro/não verdadeiro segundo experimentação e na mídia é o informável/não informável segundo acordo com os receptores.

O novo ângulo que permite uma ruptura epistemológica com o modo anterior de ”ver” as relações entre mídia e sociedade, refere-se a esta observação da observação. Isso traz um novo ângulo epistemológico que deveremos tentar explicar aqui da forma mais simples possível. Para se observar é necessário uma distinção, como a distinção que permite, na ciência social, distinguir entre sujeito e objeto, embora possamos dizer contra isso que o sujeito é descrito na descrição do ”objeto”. Nesse caso, a distinção proposta inicialmente para que se ”veja” o objeto é copiada pelo sistema de forma que se transforma num ”modo de ver”, ou num ”método” pelo qual sempre torna possível construirmos um ”objeto” social. Quando descrevemos o social no social, utilizamos esse ”truque de método” que faz supor que o investigador que comunica a teoria não descreve a si próprio no ”objeto” comunicação. Isso porque ele não dispõe - a não ser como um artifício - de um conceito capaz de aclarar o que distingue/identifica sua comunicação e a comunicação investigada, a não ser como um modo específico de comunicar, que não aclara per si a questão.
Nesse caso, a distinção não pode ser conceituada - não pode ser conhecida. Ela é em si uma diferença que permite que o sistema construa sentidos próprios e assim mantenha seus limites sistêmico-funcionais. Essa distinção-fronteira constitui assim condição do observar. Se partirmos dessa premissa teórica, temos que a mídia observa sua interface utilizando uma distinção que se expressa no objeto como a distinção entre auto e hetero-referência - o midiático em si (ex: a Mídia ...) e a hetero-referência (... e Política). Mas o comunicacional e sua interface constituem uma só realidade, na perspectiva autopoiética.
Nesse caso, a impossibilidade de se conceituar as relações entre mídia e sociedade a partir de uma referência ontológica de sentido é resolvida pelo fato de que epistemologicamente ”prestamos conta” disso, aceitando essa impossibilidade. Em troca propomo-los a conhecer o como os sistemas sociais processam sentido e constroem sua realidade. Quando falamos em ”construção social da realidade pela mídia” estamos falando na construção da realidade social nas operações da mídia. Isso significaria ter que compreender ainda as relações de inter-determinações dos modos de produção de sentido da mídia e da sociedade, o que nos leva mais adiante
Quando construímos nossos objetos de pesquisa em interface com outros processos (sistemas) sociais e assim os nomeamos, estamos nos referindo ao fato de que a mídia, como sistema, possui uma especificidade que é a de operar como auto-observação da sociedade. Todo objeto constituído em interface expressa essa especificidade da comunicação - no caso da comunicação midiática em seu modo próprio de auto-observação da sociedade. Essa especificidade da sua função de auto-observação da sociedade registra no objeto do campo a impossibilidade constitutiva de restrições quanto aos processos ”não comunicacionais” envolvidos nas interfaces. Isso pode ser mostrado quando percebemos que o horizonte histórico de constituição do campo, pela via dos esforços da pesquisa, se abre a indefinidas possibilidades de combinações entre a referência ao comunicacional e as hetero-referências aos processos ditos sociais, cuja multiplicidade é diretamente proporcional à importância da referência ao comunicacional midiático, na verdade.
Com, isso se reabre a questão das relações entre comunicação e sociedade. A diferenciação autopoiética do sistema da mídia na sociedade subtende, no conceito de acoplamento estrutural, uma relação ordenada por uma diferença. Por outro lado, essa diferenciação que persiste no objeto promove, por outro lado, uma problemática que é a da indistinção entre comunicação e sociedade. À medida que a importância da mídia emerge com relação ao modo de ser da sociedade atual; à medida que mídia é estudada em relação a processos sociais os mais diversos, se intui um nexo entre a comunicação midiática e o modo de ser da sociedade atual. Mas exatamente como, ao modo da diferenciação autopoiética, pode se explicar esse nexo? Onde a hetero-referência ao social deixa de ser social?
O problema epistemológico aí é que a diferenciação entre mídia e sociedade resulta numa diferenciação do social (sistema da mídia) do próprio social (sociedade). É dessa forma que uma estranhamento perpassa algumas teorias na percepção da emergência e desenvolvimento da comunicação midiática na sociedade contemporânea. É também dessa forma que podem ver a multiplicidade de objetos construídos ”em interface”, que apesar de anunciarem um horizonte de indistinção entre comunicação midiática e sociedade o fazem, paradoxalmente, persistindo numa dicotomização entre o midiático e outros processos sociais que a hetero-referência por si só não explica.
Temos, por um lado que a realidade comunicada pela mídia refere-se (hetero-refere-se) social sem que, no entanto, devido a sua autopoiésis, seja de nenhum modo igual ao social referido. Os meios de comunicação de massa são uma manifestação da complexidade evolutiva da sociedade e constituem uma galáxia de comunicação, diferenciada por seu código próprio e, nesse sentido, distinta de qualquer outro sistema de comunicação, conforme explicita Javier Torres Nafarrate,

”... aunque a la mirada habitual le parezca que los temas que tratan los medios de masas son transportados de la política, la economía, el arte, sin embargo, lo que sucede es que los mass media transforman esos temas de manera peculiar. Es precisamente ese procesamiento y reprocesamiento de temas venidos de otros confines, lo que acaba por constituir el universo específico - clausurado en su operación - , de los medios de comunicación de masas. Dicho de manera más drástica (con la esperanza de que el lector pormenorice con la lectura minuciosa del libro): Ni la información ni la representación que se hace en los medios sobre el arte, es arte; ni la información ni la representación sobre la ciencia, es ciencia; ni la información ni la representación sobre política, es política ...” (LUHMANN, 2000, In memorian, p. XX)
Por outro lado, essa diferenciação se dá na sociedade, já vimos. A indistinção entre mídia e sociedade é definida claramente na mesma teoria sistêmica autopoiética. No dizer de Luhmann,

La sociedad es el concepto social más amplio, incluye todo lo social, y por conseguiente, no conoce ningún entorno social. Si se agregan factores sociales, si surgen interlocutores o temas de comunicación novedosos, la sociedad cresce, pues esos factores arraigan en la sociedad, no pueden ser externalizados ni tratarse como una cosa de un entorno, ya que todo lo que es comunicación es sociedad. (LUHMANN, 1993, p. 15)
Se o esforço de pesquisa que permite reconhecer um horizonte de indistinção entre mídia e sociedade aponta, por outro lado uma dicotomia constitutiva nos objetos; se sistemicamente dispomos de um conceito de comunicação igual a sociedade também dispomos de um que diferencia sistema social e sociedade. Como organizar essa questão? Qual o seu centro problemático? Temos apenas que ele se refere a uma diferenciação entre a parte e o todo que a contém. Isso sem dúvida traz um paradoxo representado pelo fato de que estamos falando de produção social de sentido e a diferenciação problemática entre parte e todo deve referir-se a suas funções de produção de sentido. Seria essa diferenciação funcional na relação entre a parte e o todo que a contém a causa do estranhamento lógico que engendra teoricamente uma distinção entre social e social e assim a concepção instrumental da mídia? Seria essa concepção a matriz epistemológica da dificuldade em se conceituar adequadamente a natureza da relação entre mídia e sociedade? Nesse caso, deveremos buscar na história da teoria a gênese do problema.
Matellart (2000) define, em sua ”História das teorias da comunicação” a peça introdutória do ”dispositivo conceitual” da Mass Communication Research como a obra de Lasswell, Propaganda techniques in the World War, de 1927. A corrente da Mass Communication Research opõe-se à micro sociologia da comunicação da Escola de Chicago e apresenta uma visão instrumental que ”consagra uma representação da onipotência da mídia, considerada ferramenta de circulação eficaz de símbolos” (p.37). O conceito de ”agulha hipodérmica” formulado por Lasswell exprime essa concepção. Numa outra obra , de Serge Tchakhotine, de 1939, ela é reforçada no título: ”A violação das massas pela propaganda política”.
A corrente de estudos dos efeitos evoluiu no sentido de corrigir alguns postulados mais radicais. O relatório do Payne Fund (1933) produz alguns questionamentos da base teórica de Lasswell, mas essas correções na alteram a concepção em si, que é reforçada pelas pesquisas quantitativas de Lazarsfeld. Nas décadas de 40 e 50 surge uma inovação teórica, na

”descoberta de um elemento intermediário entre o ponto inicial e o ponto final do processo da comunicação. El
poria em questão o principio mecanicista lasswelliano do efeito direto e indiferenciado e, alem disso, o argumento tautológico do ”efeito massificador” da sociedade de massa” (MATELLART, 2000. p. 47).
A nova teoria, do two step flow, gradua o impacto dos efeitos, mas também não significa nenhuma mudança em profundidade na concepção instrumental. É conclusiva, portanto a colocação de Matellart sobre o fato de que,

”Fundada inicialmente numa crença na onipotência da mídia, a Mass Communication Research na seqüência não cessará de relativizar seus efeitos sobre os receptores, mas jamais voltará a por em questão a visão instrumental que presidiu ao nascimento da teoria lasswelliana (Gitlin, 1979; Piemme, 1980, Beaud, 1984). (MATELLART, 2000, p. 55).
Como contraponto radical à corrente da Comunicação Administrativa da Mass Communication Research, que via na mídia um instrumento de aperfeiçoamento da sociedade ”já pronta”, os estudos críticos refletem a mídia como instrumento de poder e dominação. Mas Hans Magnus Enzensberger levanta a questão do caráter instrumental da mídia quando afirma que a esquerda não possuía uma teoria que respaldasse a posição revolucionária na apropriação da condição de ”troca democrática” inerente á mídia. Uma concepção crítica atual , que merece atenção pelo fato de ser considerada eventualmente como ultrapassagem da perspectiva instrumental, é apresentada por Muniz Sodré (2002), na sua ”Antropológica do Espelho”.
Em Sodré (2002) a referência à distinção entre mídia e sociedade se dá na concepção de um bios midiático, em que a instrumentalidade da mídia coincide com o conceito representativo de uma nova forma de ser da sociedade. A apropriação instrumental é definida no conceito de bios midiático como uma afetação da vida por uma qualificação de natureza informacional que de resto não seria apenas uma neutra ”tecnologia da inteligência”, mas algo ”a serviço da lei estrutural do valor, o capital, e que constitui propriamente uma nova tecnologia societal.” (p.22).
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Nesse caso a concepção instrumental ultrapassa a idéia de meio e veicula-se à articulação hegemônica do sistema produtivo e mídia na configuração de um novo bios - uma nova sociedade. Mas se a indistinção entre comunicação e sociedade - e isso está proposto pelo conceito de ambiência - tem como pressuposta a distinção entre comunicação (mediada) e sociedade (midiatizada), chega-se à conclusão então estamos falando de duas sociedades. Uma seria a sociedade mediatizada e a outra seria a sociedade não mediatizada (as sociedades ”originárias”, puras, do que deriva a idéia de artificialidade do bios midiático, na percepção crítica que o engendra).
Isso porque qualquer conceito que expresse a idéia de incompletude do processo, seja pelo pressuposto de uma distinção irreversível entre dois sistemas autopoiéticos que se definem um em função do outro, como forma de uma distinção entre sistema e meios ambiente, seja pela impossibilidade de aclarar sobre a redutibilidade de uma lógica comunicacional (que deve continuar existindo nos níveis não tecno-interacionais das interações sociais) à lógica midiática (nas tecno-interações) põe em risco o conceito de ambiência. Enfim, o conceito de bios pressupõe uma completude, mas, ao mesmo tempo, ele só se sustenta a partir do pressuposto da existência (mesmo ideal) de uma ”outra” sociedade de referência ”antropológica”. A perda dessa referência desmonta o conceito. A concepção instrumental subjacente se revela então pela necessidade de manutenção desse sentido de originariedade perdida, de uma sociedade ”ideal” stand by. É essa diferenciação que permite o conceito se manter e nesse caso é ela que define a concepção instrumental subjacente a ele. A eficácia crítica do conceito decorre dessa distinção.
Se entendida como constitutiva da sociedade - como ”operação básica da sociedade” (Luhmann) e do ponto de vista sistêmico indistinto dela -, a comunicação não se presta a uma concepção instrumental. Do ponto de vista sistêmico, essa distinção entre comunicação e sociedade é inaceitável: todos os processos (operações) de produção de sentido na sociedade se realizam na própria sociedade. O conceito de sociedade (como a totalidade dos sistemas sociais) não pode referir-se como conceito a um conceito de entorno social. Ou por outra, a sociedade não possui nenhum entorno social. Dessa forma, não podemos conceituar a comunicação socia
como um sistema diferenciado da sociedade. Do ponto de vista sistêmico, sociedade e comunicação são a mesma coisa.
Nesse caso, aquelas relações (ditas de efeito) devem ser entendidas como da sociedade em relação à sociedade. Trata-se de uma outra referência que permite, finalmente a ultrapassagem da perspectiva instrumental : a mídia é uma diferenciação na comunicação da sociedade, como um sistema que opera/observa distinguindo entre si mesmo e seu entorno. Nesse caso o entorno considerado - a sociedade - é indistinta de comunicação e também nesse caso a diferença é entre sociedade (sistema social midiático) e sociedade (sistema de comunicação interpessoal), onde a diferenciação funcional refere-se aos modos distintos da comunicação da sociedade, embora nada impeça que a mídia se refira a mídia. A conseqüência da indistinção entre mídia/comunicação e sociedade significa que, se com a comunicação a sociedade observa a sociedade, então a mídia observa a comunicação e vice versa. Dessa forma, a mídia (tanto quanto a comunicação) opera a auto-observação da sociedade.
Nesse caso, a diferenciação da comunicação da sociedade (a mídia) cria uma nova forma de auto-observação que se defronta funcionalmente com as formas mais tradicionais de auto-observação (da comunicação). Quer dizer, a auto-observação através da oralidade é diferenciada da auto-observação através da escrita. Entre ambas, então, pode-se falar em diferenciações funcionais. O foco, portanto, da questão que envolve o surgimento da mídia (e a midiatização) se transfere, nessa perspectiva, da mídia (de uma concepção positiva de sistema midiático) para aquela teoria (conceito) diferencial, ou uma concepção de sistema como a forma de uma diferença entre si mesmo e entorno. De fato, na própria nomeação do conceito de midiatização está implicada uma relação, que deve ser compreendida agora como uma relação que define cada sistema especificado - comunicação ou mídia.
Decorre daí que a comunicação como um sistema cuja função é a de auto-observação da própria sociedade não pode ser conceituada como distinta da sociedade, no sentido que permita uma concepção instrumental nessa conceituação. Esclarecendo: não sobrevive aqui uma concepção instrumental da sociedade com a mídia (fundamento implícito naquelas teorias críticas e administrativas). Entretanto, na
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medida em que há uma diferenciação funcional entre comunicação e mídia, coloca-se, nessas relações, uma problemática instrumental. A dimensão instrumental, porém, está relacionada à ação, ultrapassada pela interação, em que as partes em jogo e suas relações transformam-se mutuamente. Na perspectiva de Luhmann, a ultrapassagem do instrumental se revela nos processos autopoiéticos.
Dessa forma, os sistemas diferenciados não implicam em romper com o princípio teórico da indiferenciação de comunicação e sociedade. Somente assim é possível pensar em midiatização, como um processo em que nas relações entre comunicação e mídia, se instalam novos processos de comunicação que refundam a sociedade. O fato de que a diferenciação funcional da comunicação da sociedade produz um sistema específico e de natureza autopoiética - a mídia - não implica que a comunicação da sociedade se interrompa, entretanto. Por princípio sistêmico, a sociedade comunica e isso define no conceito de sociedade, o conceito de comunicação. A questão a qual Luhmann nos lança, e que pretendemos colocar em discussão, diz respeito à pergunta: seria a diferenciação e complexificação da sociedade contemporânea reflexo dessa diferenciação nas operações básicas da sociedade?

Bibliografia
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GOMES, Pedro G. Os processos midiáticos como objeto de estudo. In: Tópicos da teoria da Comunicação. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p.18-33.
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LUHMANN, L. DE GEORGI, R. Teoria de la sociedad. Guadalajara: Universidad de Guadalajara, 1993.
MATTELART, Armand e Michèle. História das teorias da comunicação. Trad. Luis Paulo Ruanet. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho; uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002a.


 

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